ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
30 de Setembro de 1975 ( *1 )
No processo 32/75,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pela Cour d'appel de Paris, destinado a obter, no processo entre
Anita Cristiní, viúva de Eugenio Fiurini, residente em Vénissieux, França,
e
Société nationale des chemins de fer français, com sede em Paris,
uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257 de 19.10.1968; EE 05 F1 p. 77),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: R. Lecourt, presidente, J. Mertens de Wilmars e Mackenzie Stuart, presidentes de secção, A. M. Donner, R. Monaco, P. Pescatore, H. Kutscher, M. Sørensen e A. O'Keeffe, juízes,
advogado-geral: A. Trabucchi
secretário: A. Van Houtte
profere o presente
Acórdão
(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)
Fundamentos da decisão
1 |
Por acórdão de 14 de Março de 1975, entrado neste Tribunal a 21 do mesmo mês, a Cour d'appel de Paris, baseando-se no artigo 177.o do Tratado CEE, solicitou a este Tribunal que se pronuncie sobre o problema de saber se o cartão de redução emitido pela Société nationale des chemins de fer français para as famílias numerosas constitui, para os trabalhadores dos Estados-membros, uma «vantagem social» nos termos do artigo 7.o do Regulamento n.o 1612 do Conselho das Comunidades Europeias, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade. |
2 |
Resulta do acórdão de reenvio que o processo principal tem por objecto a recusa pela SNCF de um cartão de redução daquele tipo, pedido por uma nacional italiana, residente em França, cujo marido, também de nacionalidade italiana, trabalhava em França, onde veio a morrer vítima de acidente de trabalho, deixando viúva e quatro filhos menores. |
3 |
O pedido foi recusado em razão da nacionalidade da autora, com base nas disposições legais francesas que prevêem que o cartão de redução para famílias numerosas é um princípio reservado apenas aos franceses, sendo emitido em proveito de estrangeiros apenas se o respectivo Estado de origem tiver celebrado com a França um acordo de reciprocidade neste domínio, o que não é o caso de Itália. |
4 |
A lei francesa de 29 de Outubro de 1921, modificada pela lei de 24 de Dezembro de 1940 e pelo decreto de 3 de Novembro de 1961, prevê que, no caso de famílias com pelo menos três filhos menores de dezoito anos, a pedido do chefe de família será atribuído ao pai, à mãe e a cada um dos filhos, um cartão de identidade que lhes dá direito a certos descontos nas tarifas da SNCF. |
5 |
O Code français de la famille et de l'aide sociale (decreto de 24 de Janeiro de 1956) dispõe no artigo 20.o que, com o objectivo de ajudar as famílias a educar os filhos, ser-lhe-ão atribuídos certos abonos e prestações, enumerados de forma não exaustiva, entre os quais figuram, além das prestações familiares previstas na legislação da segurança social e reduções ou isenções fiscais, reduções nas tarifas de transportes por caminho-de-ferro previstas na lei referida no caso concreto. |
6 |
Se bem que o Tribunal de Justiça, pronunciando-se no âmbito do artigo 177.o, não tenha competência para aplicar a norma comunitária a um caso concreto e portanto para qualificar uma disposição de direito nacional, pode todavia fornecer ao órgão jurisdicional nacional elementos do direito comunitário que poderão ser-lhe úteis para a apreciação dos efeitos desta disposição. |
7 |
O Regulamento n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, dispõe no artigo 7.o, n.o 1, que o trabalhador nacional de um Estado-membro não pode, no território de outros Estados-membros, sofrer, em razão da sua nacionalidade, tratamento diferente do concedido aos trabalhadores nacionais no que respeita a todas as condições de emprego e de trabalho. |
8 |
Nos termos do n.o 2, ele beneficia «das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais». |
9 |
Nos termos do n.o 3, beneficia também «nas mesmas condições que os trabalhadores nacionais, do acesso ao ensino nas escolas profissionais e nos centros de readaptação ou de reconversão». |
10 |
A recorrida no processo principal invocou que as vantagens assim previstas são exclusivamente as inerentes à qualidade de trabalhador, uma vez que se encontram ligadas ao próprio contrato de trabalho. |
11 |
Se é certo que algumas disposições daquele artigo se referem a relações originadas pelo contrato de trabalho, outras há que são alheias a tais relações, e que pressupõem mesmo, como a reintegração profissional e o reemprego em caso de desemprego, o termo de um contrato anterior. |
12 |
Nestas condições, não poderá interpretar-se restritivamente a alusão às «vantagens sociais» no n.o 2 do artigo 7.o |
13 |
Do exposto resulta que, na perspectiva da igualdade de tratamento pretendida pela disposição, o âmbito de aplicação natural deve ser delimitado de modo a compreender todas as vantagens sociais e fiscais, associadas ou não ao contrato de trabalho, tais como a redução nos preços de transporte em benefício de famílias numerosas. |
14 |
Deve, seguidamente, examinar-se se uma vantagem deste tipo deve ser atribuída à viúva e aos filhos, após a morte do trabalhador migrante, uma vez que a lei nacional prevê que o cartão de identidade que atribui direito à redução é concedido a cada um dos membros da família a pedido do respectivo chefe. |
15 |
Se a viúva e os filhos menores de um nacional tiverem direito a esses cartões, se o pedido tiver sido apresentado pelo pai antes da sua morte, o mesmo deverá acontecer quando o pai falecido for um trabalhador migrante nacional de um outro Estado-membro. |
16 |
Com efeito, seria contrário ao objectivo e ao espírito da regulamentação comunitária sobre a livre circulação de trabalhadores privar os sobreviventes desse benefício na sequência da morte do trabalhador, uma vez que é reconhecido aos sobreviventes de um cidadão nacional. |
17 |
A este respeito, convém salientar as disposições do Regulamento n.o 1251/70 da Comissão, relativo ao direito dos trabalhadores de permanecerem no território de um Estado-membro depois de aí terem trabalhado. |
18 |
Com efeito, o artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento dispõe que os familiares do trabalhador que com ele residam no território de um Estado-membro têm o direito de aí permanecer a título definitivo se o trabalhador tiver adquirido o direito de permanência nesse Estado e isso mesmo após a sua morte, ao passo que o artigo 7.o determina que «o direito à igualdade de tratamento reconhecido pelo Regulamento n.o 1612/68 do Conselho é extensivo aos beneficiários do presente regulamento». |
19 |
Deve, portanto, responder-se à questão suscitada que o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1612/68 do Conselho deve ser interpretado no sentido de que as vantagens sociais referidas naquela disposição compreendem os cartões de desconto nos preços dos transportes emitidos por um organismo nacional dos caminhos-de-ferro em benefício de famílias numerosas, e isso ainda que esse benefício só seja requerido depois da morte do trabalhador, em proveito da sua família que permaneceu no mesmo Estado-membro. |
Quanto às despesas
20 |
As despesas efectuadas pelo Governo francês, pelo Governo italiano e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. |
21 |
Revestindo o presente processo, quanto às partes no processo principal, a natureza de um incidente suscitado perante os órgãos jurisdicionais nacionais, compete a este decidir quanto às despesas. |
Pelos fundamentos expostos, O TRIBUNAL DE JUSTIÇA, pronunciando-se sobre as questões submetidas pela Cour d'appel de Paris, por acórdão de 14 de Março de 1975, declara: |
O artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1612/68 do Conselho, relativo à livre circulação de trabalhadores na Comunidade, deve ser interpretado no sentido de que abrange todas as vantagens sociais e fiscais, associadas ou não ao contrato de trabalho. Estas vantagens compreendem, portanto, também os cartões de redução nos preços dos transportes emitidos por um organismo nacional de caminho de ferro em beneficio das famílias numerosas, e isso ainda que este benefício só seja requerido depois da morte do trabalhador, em proveito da sua família que permaneceu no mesmo Estado-membro. |
Lecourt Mertens de Wilmars Mackenzie Stuart Donner Monaco Pescatore Kutscher Sørensen O'Keffe Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de Setembro de 1975. O secretário A. Van Houtte O presidente R. Lecourt |
( *1 ) Língua do processo: francês.