ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

17 de Dezembro de 1970 ( *1 )

No processo 11/70,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Verwaltungsgericht (tribunal administrativo) Frankfurt am Main, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Internationale Handelsgesellschaft mbH, com sede em Francoforte do Meno,

e

Einfuhr- und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel (serviço de importação e armazenamento dos cereais e forragens) de Francoforte do Meno,

uma decisão a título prejudicial sobre a validade do artigo 12.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 120/67/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1967, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais, e o artigo 9.o do Regulamento n.o 473/67/CEE da Comissão, de 21 de Agosto de 1967, relativo aos certificados de importação e de exportação para os cereais, os produtos transformados à base de cereais, o arroz, as trincas e os produtos transformados à base de arroz,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner e A. Trabucchi, presidentes de secção, R. Monaco, J. M. Wilmars, P. Pescatore e H. Kutscher, juízes,

advogado-geral: A. Dutheillet de Lamothe

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 18 de Março de 1970, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de Março de 1970, o Verwaltungsgericht (tribunal administrativo) Frankfurt am Main submeteu, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, duas questões relativas à validade do regime dos certificados de exportação e da caução com ele conexa — a seguir «regime de cauções» — previsto pelo Regulamento n.o 120/67/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1967, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO 1967, p. 2269) e o Regulamento n.o 473/67/CEE da Comissão, de 21 de Agosto de 1967, relativo aos certificados de importação e exportação (JO 1967, 204, p. 16).

2

Resulta da fundamentação do despacho de reenvio que o tribunal administrativo se tem recusado até agora a admitir a validade das disposições em causa e que, por essa razão, considera indispensável pôr fim à insegurança jurídica existente. Segundo a apreciação desse tribunal, o regime de cauções seria contrário a certos princípios estruturais do direito constitucional nacional que deveriam ser salvaguardados no âmbito do direito comunitário, pelo que a primazia do direito supranacional deveria ceder perante os princípios da lei fundamental alemã. Mais especificamente, o regime de cauções violaria os princípios da liberdade de acção e de disposição, da liberdade económica e da proporcionalidade que resultam, designadamente, dos artigos 2.o, n.o 1, e 14. o da lei fundamental. O compromisso de importar ou exportar que resulta da emissão dos certificados, conjugado com a caução que com estes se prende, constituiria uma intervenção excessiva na liberdade de disposição do comércio, enquanto o objectivo dos regulamentos poderia ter sido atingido por meio de intervenções com consequências menos gravosas.

Quanto à protecção dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico comunitário

3

O recurso às regras ou noções jurídicas do direito nacional, para a apreciação da validade dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade, teria por efeito pôr em causa a unidade e a eficácia do direito comunitário. A validade desses actos não pode ser apreciada senão em função do direito comunitário. Com efeito, ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, não podem, em virtude da sua natureza, ser opostas em juízo regras de direito nacional, quaisquer que sejam, sob pena de perder o seu carácter comunitário e de ser posta em causa a base jurídica da própria Comunidade; portanto, a invocação de violações, quer aos direitos fundamentais, tais como estes são enunciados na Constituição de um Estado-membro, quer aos princípios da estrutura constitucional nacional, não pode afectar a validade de um acto da Comunidade ou o seu efeito no território desse Estado.

4

Convém, no entanto, analisar se não terá sido violada qualquer garantia análoga, inerente ao direito comunitário. Com efeito, o respeito dos direitos fundamentais faz parte integrante dos princípios gerais de direito cuja observância é assegurada pelo Tribunal de Justiça. A salvaguarda desses direitos, ainda que inspirada nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, deve ser assegurada no âmbito da estrutura e dos objectivos da Comunidade. Convém, pois, analisar, à luz das dúvidas manifestadas pelo tribunal administrativo, se o regime de cauções terá violado os direitos fundamentais cujo respeito deve ser assegurado no ordenamento jurídico comunitário.

Quanto à primeira questão (legalidade do regime de cauções)

5

A primeira questão submetida pelo tribunal administrativo visa saber se são conformes ao direito o compromisso de exportar fundado no artigo 12.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 120/67, a constituição de uma caução que acompanha esse compromisso e a perda da caução no caso da exportação não ter lugar dentro do prazo de validade do certificado de exportação.

6

Nos termos do décimo terceiro considerando do preâmbulo do Regulamento n.o 120/67, «as autoridades competentes devem estar em posição de poder seguir permanentemente o movimento das trocas para poder avaliar a evolução do mercado e eventualmente aplicar as medidas… necessárias», e «para tal é conveniente prever a emissão de certificados de importação ou de exportação acompanhados da constituição de uma caução que garanta a realização das operações para as quais foram pedidos esses certificados». Resulta dessas considerações, bem como da sistemática do regulamento, que o regime de cauções se destina a garantir a realidade das importações e exportações para as quais são pedidos os certificados, a fim de assegurar quer à Comunidade quer aos Estados-membros um conhecimento exacto das transacções previstas.

7

Esse conhecimento, conjuntamente com os outros dados disponíveis sobre a situação do mercado, é indispensável para permitir às autoridades competentes uma utilização judiciosa dos instrumentos de intervenção, correntes ou excepcionais, postos à sua disposição para garantir o funcionamento do regime de preços instituído pelo regulamento, como, por exemplo, as acções de compra, de armazenamento e distribuição, a fixação das restituições à exportação, a aplicação de medidas de salvaguarda e a escolha de medidas destinadas a evitar os desvios de tráfego. Essa necessidade é tanto mais imperiosa quanto a implementação da política agrícola comum origina pesadas responsabilidades financeiras à Comunidade e aos Estados-membros.

8

Importa, pois, que as autoridades competentes disponham não apenas de dados estatísticos sobre a situação do mercado, mas ainda de previsões precisas sobre as importações e exportações futuras. Perante a obrigação, imposta aos Estados-membros pelo artigo 12.o do Regulamento n.o 120/67, de emitir certificados de importação ou de exportação a qualquer interessado, uma previsão sobre os movimentos futuros seria destituída de significado se os certificados não comportassem para os beneficiários o compromisso de agir em conformidade. Por sua vez, esse compromisso seria ineficaz se a sua observância não estivesse assegurada através de meios adequados.

9

Não se pode criticar que, para esse efeito, o legislador comunitário tenha escolhido utilizar a caução, tendo em conta o facto de que esse mecanismo se adapta à natureza voluntária dos pedidos de certificados e que possui, sobre os outros sistemas possíveis, a dupla vantagem da simplicidade e da eficácia.

10

Um regime de simples declaração das exportações efectuadas e dos certificados não utilizados, como o preconizado pela autora no processo principal, seria, devido à sua natureza retrospectiva e à inexistência de qualquer garantia de aplicação, incapaz de fornecer às autoridades competentes dados exactos sobre a evolução dos movimentos de mercadorias.

11

De igual modo, um sistema de multas impostas a posteriori originaria consideráveis complicações administrativas e jurisdicionais, quer ao nível da decisão quer ao da execução, agravadas pelo facto dos operadores em questão poderem escapar à autoridade dos organismos de intervenção por terem a sua sede no território de outro país membro, o artigo 12.o do regulamento impõe aos Estados-membros a obrigação de emitir os certificados a qualquer interessado que o solicite, «independentemente do local do seu estabelecimento na Comunidade».

12

Parece, pois, que a exigência de certificados de importação e de exportação que comportam para os beneficiários o compromisso de efectuar as operações previstas mediante a garantia de uma caução constitui uma medida necessária e apropriada com vista a permitir às autoridades competentes determinar da forma mais eficaz as suas intervenções no mercado dos cereais.

13

0 regime de cauções não pode, portanto, ser contestado no seu fundamento.

14

Convém, contudo, analisar se certas modalidades do regime de cauções não poderão ser contestadas face aos princípios enunciados pelo tribunal administrativo, já que, de resto, a autora no processo principal alegou que o encargo decorrente da caução seria excessivo para o comércio, a ponto de violar os direitos fundamentais.

15

Para avaliar o encargo real que a constituição da caução impõe ao comércio, convém ter em consideração não tanto o montante da caução reembolsável — isto é, 0,5 unidades de conta por cada 1000 Kg —, como as despesas e os encargos originados pela sua constituição. Não se pode ter em conta, na apreciação desse encargo, a perda da própria caução, dado que os comerciantes estão adequadamente protegidos pelas disposições do regulamento relativas às circunstâncias que são reconhecidas como casos de força maior.

16

As despesas originadas pela constituição da caução não constituem um montante desproporcionado em relação ao valor total em jogo das mercadorias e das outras despesas comerciais. Parece, pois, que os encargos resultantes do regime de cauções não são excessivos e são a consequência normal de um regime de organização dos mercados concebido segundo as exigências do interesse geral, definido pelo artigo 39 o do Tratado, que visa assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola e ao mesmo tempo preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores.

17

A autora no processo principal alega ainda que a perda de caução, subsequente à não execução do compromisso de importar ou de exportar, constituiria na realidade uma multa ou uma pena que nem a Comissão nem o Conselho estariam habilitados pelo Tratado a instituir.

18

Este argumento assenta numa análise errada do regime de cauções, que não pode ser assimilado a uma sanção penal, dado que não constitui senão a garantia do cumprimento de um compromisso voluntariamente assumido.

19

Finalmente, são irrelevantes os argumentos, avançados pela autora no processo principal, relativos, por um lado, ao facto dos serviços da Comissão não estarem, tecnicamente, em posição de explorar os dados fornecidos pelo sistema impugnado, que seria destituído de qualquer utilidade prática, e, por outro, ao facto das mercadorias que constituem o objecto do litígio terem sido submetidas ao regime de aperfeiçoamento activo, dado que essas críticas não podem pôr em causa o próprio princípio do regime de cauções.

20

Resulta do conjunto destas considerações que o regime dos certificados, que envolve para quem os requere o compromisso de importar ou de exportar garantido por uma caução, não viola qualquer direito de natureza fundamental. O mecanismo de cauções constitui um meio apropriado, na acepção do artigo 40.o, n.o 3 do Tratado, à organização comum dos mercados agrícolas e é, de resto, conforme às exigências do artigo 43 o

Quanto à segunda questão (conceito de força maior)

21

A segunda questão submetida pelo tribunal administrativo visa saber se, no caso do Tribunal confirmar a validade da disposição em causa do Regulamento n.o 120/67, o artigo 9 o do Regulamento n.o 473/67 da Comissão, adoptado em aplicação do primeiro regulamento, é conforme ao direito, dado que apenas exclui a perda da caução em caso de força maior.

22

Resulta da fundamentação do despacho de reenvio que o tribunal considera excessiva e contrária aos princípios acima referidos a disposição do artigo 1.o do Regulamento n.o 473/67, cujo efeito é o de limitar apenas às «circunstâncias que devam ser consideradas como caso de força maior» o cancelamento da obrigação de importar ou de exportar e a restituição da caução. O tribunal administrativo, à luz da sua experiência, considera essa disposição como sendo demasiado estrita, dado que deixa a cargo dos exportadores a perda da caução em circunstâncias em que a exportação não tenha tido lugar devido a razões válidas, mas não assimiláveis a um caso de força maior no sentido estrito do termo. Por sua parte, a demandante no processo principal entende que essa disposição é demasiado rigorosa, pois que limita a restituição da caução apenas aos casos de força maior, sem ter em conta as considerações de carácter comercial que possam ter motivado o comportamento dos importadores ou exportadores.

23

O conceito de força maior consagrado nos regulamentos agrícolas tem em conta a natureza especial das relações de direito público entre os operadores económicos e a administração nacional, bem como as finalidades dessa regulamentação. Resulta tanto dessas finalidades como das normas positivas dos regulamentos em causa, que o conceito de força maior não se limita apenas à impossibilidade absoluta, mas deve ser entendido no sentido de circunstâncias anormais, estranhas ao importador ou ao exportador, e cujas consequências não pudessem ser evitadas senão à custa de sacrifícios excessivos, apesar de toda a diligência utilizada. Este conceito implica uma suficiente flexibilidade no que respeita não apenas à natureza da ocorrência que é invocada, mas ainda às diligências que o exportador deveria ter efectuado para lhe fazer face e à extensão dos sacrifícios que este, para esse efeito, deveria ter aceite.

24

Os casos de perda da caução citados pelo tribunal, como impondo ao exportador um encargo injustificado e excessivo, parecem referir-se a hipóteses em que a exportação não teve lugar, seja por culpa do próprio exportador ou em consequência de um erro da sua parte, seja em virtude de considerações puramente comerciais. As críticas levantadas ao artigo 9.o do Regulamento n.o 473/67 tendem, pois, na realidade, a substituir considerações baseadas apenas no interesse e no comportamento de certos operadores económicos a um regime que foi introduzido no interesse público da Comunidade. O sistema estabelecido, por força dos princípios do Regulamento n.o 120/67, visa desobrigar os operadores económicos do seu compromisso apenas nos casos em que a operação de importação ou de exportação não pôde ser realizada dentro do prazo de validade do certificado devido às ocorrências contempladas nos citados textos. Fora desses casos, para os quais não podem ser considerados responsáveis, os importadores e exportadores estão obrigados a conformarem-se ao que determinam os regulamentos agrícolas, sem poderem substituir a estes as considerações baseadas no seu próprio interesse.

25

Parece desde logo que ao limitar aos casos de força maior o cancelamento do compromisso de exportar e a restituição da caução, o legislador comunitário adoptou uma disposição que, sem impor um encargo indevido aos importadores ou aos exportadores, é apropriado com vista a assegurar o funcionamento normal da organização de mercado dos cereais, no interesse geral, tal como este é definido no artigo 39.o do Tratado. Resulta que nenhum argumento contra a validade do sistema de cauções se pode basear nas disposições que limitam a restituição da caução aos casos de força maior.

Quanto às despesas

26

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino dos Países Baixos, pelo Governo da República Federal da Alemanha e pela Comissão das Comunidade Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Verwaltungsgericht Frankfurt, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as alegações da autora no processo principal e da Comissão das Comunidades Europeias,

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

visto o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, designadamente os artigos 2.o, 39o, 40.o, 43.o e 177.o,

visto o Regulamento n.o 120/67/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1967, e o Regulamento n.o 473/67/CEE da Comissão, de 21 de Agosto de 1967,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia, designadamente o artigo 20.o,

visto o Regulamento Processual do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Verwaltungsgericht Frankfurt, por decisão de 18 de Março de 1970, declara:

A análise das questões submetidas não revelou nenhum elemento susceptível de afectar a validade:

 

1)

do terceiro parágrafo do n.o 1 do artigo 12.o do Regulamento n.o 120/67/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1967, que subordina a emissão dos certificados de importação ou de exportação à constituição de uma caução que garanta o cumprimento do compromisso de importar ou exportar dentro do prazo de validade do certificado;

 

2)

do artigo 9.o do Regulamento n.o 473/67/CEE da Comissão, de 21 de Agosto de 1967, que tem por efeito restringir o cancelamento do compromisso de importar ou exportar e a restituição da caução apenas aos casos que se possam considerar como sendo de força maior.

 

Lecourt

Donner

Trabucchi

Monaco

Wilmars

Pescatore

Kutscher

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 17 de Dezembro de 1970.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: alemão.