6.12.2018   

PT

Jornal Oficial da União Europeia

C 440/183


Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a «Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões — Combater a desinformação em linha: uma estratégia europeia» [COM

(2018) 236 final]

(2018/C 440/32)

Relator:

Martin SIECKER

Consulta

Comissão Europeia, 18.6.2018

Base jurídica

Artigo 304.o do TFUE

Competência

Secção Especializada de Transportes, Energia, Infraestruturas e Sociedade da Informação

Adoção em secção

6.9.2018

Adoção em plenária

19.9.2018

Reunião plenária n.o

537

Resultado da votação

(votos a favor/votos contra/abstenções)

121/16/34

1.   Conclusões e recomendações

1.1.

A liberdade de informação e de expressão é inviolável na UE, mas esta liberdade está a ser utilizada para negar os princípios da União, impossibilitar o debate e o pensamento crítico e servir de arma, em vez de como instrumento de informação ou persuasão. A desinformação é utilizada como uma forma extrema de abuso dos meios de comunicação social para influenciar os processos sociais e políticos, sendo particularmente poderosa quando é financiada pelos governos e utilizada nas relações internacionais. Entre os recentes casos mais graves contam-se, entre muitos outros, a desinformação financiada pelo Estado russo, a campanha do Brexit, que só pode ser classificada como um ataque frontal à UE, e a intervenção nas eleições nos EUA. Todas estas ações de desestabilização suscitam grandes preocupações para a sociedade civil europeia.

1.2.

Atualmente, estão a ser utilizados vários instrumentos e métodos para fragilizar os valores europeus e a ação externa da UE, bem como para desenvolver e suscitar atitudes nacionalistas e separatistas, manipular a opinião pública e interferir diretamente na política interna de países soberanos e de toda a União Europeia. Além disso, observa-se a influência crescente de capacidades cibernéticas ofensivas e um aumento da arsenalização das tecnologias para alcançar objetivos políticos. O impacto dessas ações é frequentemente subestimado (1).

1.3.

O CESE concorda com o apelo da Comissão para uma maior responsabilização das plataformas de redes sociais. No entanto, apesar de haver vários estudos e documentos de orientação política elaborados por especialistas europeus nos últimos anos, a comunicação não prevê quaisquer medidas práticas obrigatórias para garantir essa responsabilização.

1.4.

Com base na investigação disponível, a UE deve assegurar e prosseguir a investigação do impacto da desinformação na Europa, nomeadamente através da monitorização da resiliência dos cidadãos europeus face à desinformação nos futuros inquéritos do Eurobarómetro. Esses inquéritos devem incluir não só dados genéricos sobre as notícias falsas, mas também determinar o verdadeiro grau de imunidade dos europeus em relação à desinformação. A falta de sentido de urgência e de ambição da Comissão impede que sejam tratadas várias questões fundamentais, como estabelecer regimes de apoio aos meios de comunicação tradicionais para garantir o direito fundamental dos cidadãos a informações fiáveis e de qualidade, estudar a viabilidade da criação de parcerias público-privadas para criar plataformas digitais pagas que ofereçam serviços digitais seguros e a preços acessíveis, explorar as possibilidades de aumentar a transparência e o controlo dos algoritmos subjacentes a estes sistemas digitais, e analisar a possibilidade de desmantelar os monopólios para restabelecer condições de concorrência equitativas, a fim de prevenir a corrupção progressiva da sociedade.

1.5.

O CESE lamenta que nem a comunicação em apreço nem o relatório do grupo de peritos de alto nível mencionem a Rússia enquanto principal fonte de desinformação hostil à UE. No entanto, o primeiro passo para a resolução de qualquer problema é admitir a sua existência.

1.6.

Com base na Resolução do Parlamento Europeu, de 15 de junho de 2017, sobre as plataformas em linha e o Mercado Único Digital (2), a Comissão faz referência aos apelos do CESE em prol da aplicação adequada das disposições jurídicas existentes relativas às plataformas digitais. O CESE convida também a Comissão a concluir o debate sobre o regime de responsabilidade jurídica das plataformas digitais e a aplicar uma regulamentação específica relativa à definição e às características das plataformas digitais. As plataformas digitais e as redes sociais devem comprometer-se a tomar medidas para assegurar a transparência, explicando o modo como os algoritmos selecionam as notícias apresentadas, e devem ser encorajadas a tomar medidas eficazes para melhorar a visibilidade das notícias fiáveis e fidedignas e facilitar o acesso dos utilizadores às mesmas.

1.7.

Um dos problemas da desinformação é o facto de ser impossível verificar a identidade das fontes que a propagam na Internet. É muito fácil operar no ciberespaço com uma identidade falsa — e, em geral, é exatamente isso que fazem as pessoas ativas na Internet com intenções maliciosas. A Comissão apresenta várias propostas, descritas na comunicação conjunta sobre a cibersegurança publicada em setembro de 2017. O problema é que estas propostas não são vinculativas. Para realmente fazer a diferença na luta contra a desinformação, podem ser necessárias medidas mais rigorosas em matéria de identificação quando as pessoas agem de forma proativa na Internet. Afinal, é assim que operam os meios de comunicação social de qualidade, em conformidade com a Declaração de Bordéus de 1954, que foi elaborada pela Federação Internacional de Jornalistas e estabelece princípios muito claros e rigorosos sobre o recurso a fontes. A equipa de redação deve conhecer sempre os nomes e endereços das fontes.

1.8.

O CESE concorda com a perspetiva da Comissão de que a comunidade de verificadores de factos deve trabalhar em estreita cooperação. Já existem redes semelhantes, uma das quais sob a alçada do Grupo de Trabalho East StratCom. O problema reside no facto de necessitarem de financiamento suficiente, o que atualmente não é o caso. O CESE insta a Comissão e os Estados-Membros a apoiarem plenamente os esforços desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho East StratCom. Tal deve incluir não só um orçamento adequado, mas também a participação ativa de todos os Estados-Membros no seu trabalho, mediante o envio de peritos destacados para o Grupo de Trabalho East StratCom e a criação de pontos de contacto. O sítio Web que apresenta os resultados dos esforços envidados por este grupo de trabalho (3) deve ser divulgado de forma mais proativa, a fim de aumentar a sensibilização da opinião pública na UE para as ameaças.

2.   Síntese da comunicação da Comissão

2.1.

O bom funcionamento de um ecossistema de informação livre e pluralista, baseado em elevadas normas profissionais, é indispensável a um debate democrático saudável. A Comissão está atenta às ameaças que a desinformação representa para as nossas sociedades abertas e democráticas.

2.2.

A Comissão pretende apresentar uma abordagem abrangente com vista a responder a essas ameaças, promovendo ecossistemas (4) digitais baseados na transparência e em informações de elevada qualidade, bem como a capacitação dos cidadãos contra a desinformação e a proteção das nossas democracias e dos processos de definição de políticas.

2.3.

A Comissão convida todas as partes interessadas a intensificarem consideravelmente os seus esforços no sentido de resolver de forma adequada o problema da desinformação. Considera que as ações propostas, se eficazmente aplicadas, contribuirão substancialmente para a luta contra a desinformação em linha.

2.4.

A Comissão identifica três causas principais para o problema (criação da desinformação, ampliação através das redes sociais e de outros meios de comunicação social em linha, divulgação pelos utilizadores de plataformas digitais) e apresenta um conjunto de propostas para o combater, em cinco domínios de intervenção:

Criar um ecossistema digital mais transparente, fiável e responsável;

Assegurar processos eleitorais seguros e resilientes;

Promover a educação e a literacia mediática;

Apoiar o jornalismo de qualidade como elemento essencial de uma sociedade democrática;

Combater ameaças de desinformação internas e externas através de comunicação estratégica.

3.   Observações na generalidade

3.1.

O crescimento da desinformação organizada, criada por vários intervenientes estatais e não estatais, representa uma ameaça real para a democracia. Estas forças desestabilizadoras incluem os governos de países maiores do que qualquer Estado-Membro da União. A UE é a entidade adequada para combater esta ameaça porque, ao contrário de qualquer Estado-Membro por si só, dispõe de massa crítica e de recursos que a colocam numa posição única para desenvolver e implementar estratégias e políticas que respondam a este problema complexo.

3.2.

O funcionamento adequado da democracia depende de cidadãos bem informados que possam fazer escolhas criteriosas, com base em dados fiáveis e opiniões de confiança. Para tal é fundamental dispor de um sistema de empresas de comunicação social independentes, credíveis e transparentes, no âmbito das quais os radiodifusores públicos ocupem uma posição especial, e que empreguem um número significativo de profissionais para recolher, verificar, avaliar, analisar e interpretar as fontes noticiosas a fim de salvaguardar um determinado nível de qualidade e solidez das notícias publicadas.

3.3.

Existe uma diferença entre notícias falsas e desinformação. As notícias falsas sempre existiram ao longo da história: trata-se de um termo genérico que engloba rumores, propaganda de guerra, discurso de ódio, sensacionalismo, mentiras, utilização seletiva de factos, etc. A invenção da imprensa escrita no século XV permitiu a divulgação de notícias (falsas) a uma escala mais vasta, e o seu alcance geográfico foi ampliado após a introdução do selo postal em 1840. A tecnologia digital e a Internet eliminaram as últimas barreiras à divulgação ilimitada.

3.4.

A desinformação é definida como informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente a opinião pública, que é suscetível de prejudicar os processos democráticos e influenciar as eleições e constitui uma ameaça grave para a sociedade (5).

3.5.

Existem múltiplos intervenientes na cadeia de desinformação: os que a criam, os que a consomem, bem como as plataformas digitais que desempenham um papel fundamental no processo global, facilitando a divulgação das informações.

Aqueles que a criam (governos, instituições religiosas, grupos empresariais, partidos políticos, organizações ideológicas, entre outros) fazem-no por diversas razões (para influenciar e manipular a opinião pública, confirmar a sua suposta superioridade, obter ou aumentar o lucro, ganhar poder, gerar ódio, justificar a exclusão, etc.).

Os que a divulgam (nomeadamente as plataformas digitais, mas também os meios de comunicação social tradicionais) têm diferentes motivações, incluindo benefícios financeiros ou manipulação deliberada.

Aqueles que a consomem (utilizadores da Internet) muitas vezes não têm espírito crítico suficiente, sendo, por conseguinte, deliberadamente manipulados pelas plataformas digitais. As empresas de tecnologia intermediárias, como Twitter, Google e Facebook (para referir apenas algumas) facilitam uma partilha ilimitada e descontrolada de conteúdos nas plataformas digitais, em troca da recolha de dados pessoais que permitem a estas plataformas gerar enormes lucros com publicidade micro-orientada que proporcione mensagens comerciais adaptadas aos grupos-alvo definidos de forma precisa. A ignorância dos consumidores sobre a sua própria proteção digital contribui para agravar o problema.

3.6.

As empresas de tecnologia em questão têm uma responsabilidade partilhada, uma vez que desempenham um papel fundamental neste processo. Estas empresas não se identificam como editoras, mas «apenas» como plataformas digitais que divulgam informações e outros conteúdos criados pelos meios de comunicação social já implantados sem terem de pagar pela criação dos conteúdos através de uma equipa de redação. O conteúdo é distribuído a partir de outras fontes, sem que o material que publicam seja verificado, avaliado, analisado ou interpretado. O artigo «The great Brexit robbery: how our democracy was hijacked» [O grande assalto ao Brexit: como a nossa democracia foi desviada], publicado pelo jornal The Guardian analisou o que considerou ser uma operação obscura, levada a cabo a nível global por diversas forças da campanha pela saída do Reino Unido da UE, que influenciou o resultado do referendo, e uma das suas principais conclusões é que o Google não é «apenas» uma plataforma, mas enquadra, estrutura e distorce a forma como vemos o mundo. Tendo em conta que a desinformação e as notícias fiáveis são apresentadas de forma indiferenciada, os utilizadores têm dificuldades em distingui-las umas das outras Por conseguinte, as empresas de tecnologia devem dar prioridade à transparência em matéria de regras e de dados. É particularmente importante conhecer de forma transparente as ligações existentes entre as políticas de receitas publicitárias das plataformas e a divulgação da desinformação (a este respeito, as negociações em curso sobre o código de conduta sobre desinformação, que deveria ter sido publicado antes do final de julho de 2018, devem ser acompanhadas de perto).

4.   Observações na especialidade

4.1.

Apesar da diversidade de mensagens, canais, instrumentos, níveis, ambições e objetivos táticos, e não obstante a sua rápida adaptação, o objetivo estratégico das campanhas de desinformação é enfraquecer a democracia liberal, e semear e aumentar a desconfiança face a fontes de informação credíveis, à orientação geopolítica de um país e ao trabalho das organizações intergovernamentais. A desinformação é utilizada para explorar e aumentar as divisões entre diferentes grupos socioeconómicos, com base na sua nação, raça, rendimento, idade, educação e profissão. Para além das modalidades bem conhecidas, como os canais de notícias, a utilização de plataformas digitais, o envio em massa de mensagens de correio eletrónico, etc., a desinformação opera através de diversas vias, por exemplo, agências de relações públicas, grupos de interesses, grupos de reflexão, organizações não governamentais, grupos de influência, partidos, comunidades de peritos, atividades culturais e movimentos europeus de extrema-direita e de extrema-esquerda, que, por seu turno, são financiados através de diversos fundos públicos «independentes», contas off-shore, etc.

4.2.

O Governo russo tem utilizado uma vasta gama de ferramentas e instrumentos nas suas campanhas de desinformação, como já referido pelo Parlamento Europeu (6), a Comissão Europeia (7) e o Conselho Europeu (8). Estas campanhas de desinformação devem ser encaradas com a maior gravidade. Fazem parte da doutrina militar russa e são aceites pelos dirigentes dos principais meios de comunicação estatais russos. Estas campanhas têm por objetivo direto prejudicar a democracia liberal, o Estado de direito e os direitos humanos, e silenciar as instituições, as organizações intergovernamentais, os políticos e os indivíduos que os defendem (9).

4.3.

Vivemos numa era caracterizada por relações políticas e democráticas fortemente polarizadas. Segundo grupos de reflexão como a Freedom House e a Economist Intelligence Unit, entre outros, a democracia está sujeita a uma pressão crescente desde a crise económica mundial de 2008. Um dos resultados deste fenómeno é a emergência de um novo tipo de liderança política que representa uma rutura com a tradição democrática que construímos na Europa nos últimos 70 anos. Em vez de uma liderança liberal escolhida de forma democrática, estamos cada vez mais na presença de «homens fortes» cuja eleição suscita profundas questões sobre a integridade dos respetivos processos eleitorais. Estamos familiarizados com este tipo de liderança fora da esfera de influência da UE — por exemplo, na Rússia e na China. Mas com representantes como Donald Trump, Recep Tayyip Erdogan e os «democratas iliberais» eleitos em alguns Estados-Membros da UE — que se tornaram todos famosos pela sua preferência pela desinformação, pelo desprezo pela democracia, e pela sua relação problemática com o Estado de direito — o fenómeno que se vem alastrando está a atingir proporções extremas.

4.4.

O funcionamento adequado da democracia depende de cidadãos bem informados que façam escolhas criteriosas, com base em dados fiáveis e opiniões de confiança, mas os conceitos de «fiabilidade» e «confiança» já não são inequívocos na nossa sociedade atual. Neste tipo de ambiente social altamente polarizado, e com um excesso de informação, as pessoas estão muito vulneráveis à desinformação, o que torna relativamente fácil manipular o seu comportamento. Observaram-se operações de desestabilização deste tipo, com taxas de êxito muito elevadas, nas eleições gerais de vários Estados-Membros, bem como noutras ocasiões, como a campanha do Brexit, as campanhas de desinformação sobre os ataques à Crimeia e à Ucrânia e sobre o voo MH17 da Malaysia Airlines, abatido em 2014 por um míssil do sistema BUK do exército russo, causando a morte de todas as 298 pessoas a bordo. A Comissão é encorajada a procurar formas mais proativas de educar o público para as ameaças decorrentes de campanhas de desinformação, ciberataques, assim como para o impacto global da influência estrangeira sobre a sociedade — por exemplo, acompanhando os recentes desenvolvimentos noutros países, de forma a proporcionar aos cidadãos informações acessíveis e apelativas sobre questões urgentes em matéria de cibersegurança que incluam conselhos e boas práticas sobre a melhor forma de proteger o seu ambiente digital quotidiano.

4.5.

O CESE concorda com a Comissão quando esta afirma que, dada a complexidade da questão e o ritmo acelerado da evolução do ambiente digital, qualquer reação política deve ser abrangente, avaliar continuamente o fenómeno da desinformação e ajustar os objetivos políticos à luz dessa evolução. Não existe uma solução única que resolva todos os desafios, mas a inação não é uma opção. As propostas da Comissão representam um passo na direção certa, mas é necessário fazer mais e melhor. A transparência, a diversidade, a credibilidade e a inclusão devem orientar a ação para combater a desinformação, protegendo simultaneamente a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais.

4.6.

A Rússia parece ter um papel particularmente ativo no domínio da desinformação e da guerra híbrida contra o Ocidente, visando especialmente a UE. Para combater este problema, é necessário criar urgentemente um ecossistema digital mais transparente, fiável e responsável. O CESE recomenda a utilização do Manual de Praga, um estudo financiado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Países Baixos e pelo Fundo Internacional de Visegrado, que apresenta uma visão geral clara da subversão hostil russa na UE e da ameaça que esta representa para a democracia. Embora alguns Estados-Membros ainda duvidem da existência desta ameaça ou até contribuam para a sua propagação, o estudo é muito claro na conclusão de que a UE tem, absolutamente, de agir. O estudo apresenta propostas concretas sobre a forma de conceber e executar estratégias contra influências hostis e subversivas.

4.7.

O papel das plataformas digitais no âmbito da desinformação tem sido moralmente repreensível. Num período de tempo relativamente curto, estas plataformas desenvolveram essencialmente um tipo de função de serviço público semelhante ao das companhias de telefone, da radiodifusão e dos jornais no passado. Para utilizarem os seus serviços «gratuitamente», os utilizadores de plataformas digitais têm de os pagar com dados pessoais que permitem a estas plataformas vender um volume enorme de publicidade micro-orientada, tal como ilustrado no caso Cambridge Analytica. Este modelo de receitas distorcido (em termos de privacidade) é demasiado lucrativo para que estas plataformas o suprimam por iniciativa própria. Algumas vozes propõem que plataformas como o Facebook ofereçam igualmente um serviço credível e funcional semelhante ao Facebook, no qual os utilizadores teriam de pagar um valor acessível em troca da garantia do respeito pela sua privacidade. Coloca-se a questão de saber se os potenciais utilizadores ainda acreditam e confiam suficientemente na credibilidade e na integridade de portais como o Facebook após a forma como a empresa que lhe está subjacente justificou o seu comportamento perante o Senado dos EUA. Para aumentar a confiança do público nas plataformas digitais e proteger os cidadãos contra esta forma de abuso, incluindo o tratamento e a partilha indevidos de dados pessoais, as plataformas devem ser regulamentadas, como já indicado no Código de conduta sobre discursos ilegais de incitação ao ódio em linha, de 2016, no Regulamento Geral de Proteção de Dados ou na Diretiva Cibersegurança. No entanto, a autorregulação, como proposto pela Comissão, é apenas um primeiro passo neste sentido e deve ser acompanhada de outras medidas a adotar pela Comissão.

4.8.

Andrew Keen, um empresário e escritor britânico que é conhecido como o Anticristo da Internet, publicou quatro livros muito críticos sobre a evolução da Internet. Sem se opor à Internet ou às redes sociais, considera que o problema reside fundamentalmente nas atividades das grandes empresas de tecnologia, que visam recolher informações sensíveis sobre as pessoas. A privacidade é um bem precioso, define quem somos. O chamado «modelo empresarial gratuito» — em que não pagamos com dinheiro, mas renunciando à nossa privacidade — destruirá a nossa privacidade. Andrew Keen estabelece um paralelismo com o século XIX, em que a revolução industrial criou uma mudança a uma escala que pode ser comparada à da mudança que a revolução digital está a gerar atualmente. Quando a mudança é definida como uma revolução, é geralmente acompanhada de enormes problemas. No século XIX, conseguimos resolver estes problemas com instrumentos como a inovação, a regulação, as escolhas dos consumidores, a ação civil e a educação. A mensagem deste autor é que a inteligência humana — e não a inteligência artificial — pode repetir esta experiência, e que temos de utilizar todos os recursos que utilizámos para condicionar a revolução precedente para assegurar que controlamos a revolução digital, e evitar que esta nos domine.

4.9.

Com base na investigação disponível, a UE deve assegurar e prosseguir a investigação do impacto da desinformação na Europa, nomeadamente através da monitorização da resiliência dos cidadãos europeus face à desinformação nos futuros inquéritos do Eurobarómetro. Esses inquéritos devem incluir não só dados genéricos sobre as notícias falsas, mas também determinar o verdadeiro grau de imunidade dos europeus em relação à desinformação. A falta de sentido de urgência e de ambição da Comissão impede que sejam tratadas várias questões fundamentais, como estabelecer regimes de apoio aos meios de comunicação tradicionais para garantir o direito fundamental dos cidadãos a informações fiáveis e de qualidade, estudar a viabilidade da criação de parcerias público-privadas para criar plataformas digitais pagas que ofereçam serviços digitais seguros e a preços acessíveis, explorar as possibilidades de aumentar a transparência e o controlo dos algoritmos subjacentes a estes sistemas digitais, e analisar a possibilidade de desmantelar os monopólios para restabelecer condições de concorrência equitativas, a fim de prevenir a corrupção progressiva da sociedade.

4.10.

Pode ser oportuno, por exemplo, analisar a possibilidade de criar uma plataforma digital baseada numa parceria público-privada que garanta a privacidade dos utilizadores. Uma plataforma europeia deste tipo, com a Comissão como parceiro público de cofinanciamento, pode ser uma proposta muito apelativa e promissora como alternativa à «máquina de manipulação» de Mark Zuckerberg e a outros grandes monopólios privados e comerciais dos EUA e da China. Tal plataforma deve garantir o respeito da privacidade dos seus utilizadores.

4.11.

Numa economia de mercado há sempre um preço a pagar por tudo, mas com esta alternativa o modo de pagamento seria a moeda, e não a privacidade. A maior parte do orçamento necessário para este serviço semipúblico poderia ser financiado com o dinheiro dos contribuintes, como é o caso em todos os serviços públicos. O resto do orçamento seria financiado pelo pagamento, pelos utilizadores, de uma pequena quantia para salvaguardar a sua privacidade contra a insaciável voracidade de dados pessoais das atuais plataformas «sociais». Se a UE e os governos nacionais dos Estados-Membros anunciassem oficialmente uma plataforma deste tipo como parceiro preferencial e a utilizassem como alternativa aos atuais predadores de dados, esta teria a economia de escala necessária para competir com os atuais operadores do mercado. A UE também poderia recorrer aos motores de pesquisa existentes que garantem o respeito absoluto da privacidade como parceiros preferenciais e instalá-los como aplicações pré-definidas em todos os computadores utilizados pelas instituições da UE, recomendando também a sua utilização como aplicações pré-definidas às instituições governamentais dos Estados-Membros. A Comissão poderia ainda desempenhar um papel mais pró-ativo e examinar as possibilidades de regulação relativamente aos algoritmos e ao desmantelamento de monopólios.

4.12.

Embora a verificação de factos não seja a solução para o problema, reveste-se, contudo, de grande importância. Constitui o primeiro passo para compreender, expor e analisar a desinformação, o que é necessário antes de se poder conceber novas contramedidas. Importa também envidar esforços significativos para conquistar a atenção de um público mais vasto, uma vez que nem todas as pessoas utilizam plataformas de redes sociais ou mesmo a Internet. Pode ser especialmente difícil chegar aos habitantes de regiões remotas. A visibilidade nos meios de comunicação social é importante. A televisão continua a ser a fonte de informação mais comum dos cidadãos, e emitir regularmente programas que expliquem casos de desinformação nas línguas nacionais pode contribuir de forma significativa para a sensibilização da opinião pública para o problema. É importante que o processo de verificação de factos seja realizado por profissionais, a fim de evitar os erros que marcaram recentemente a primeira tentativa da Comissão. A cooperação com editoras e organizações de comunicação social cujos jornalistas participam na verificação de factos pode evitar estes problemas.

4.13.

Um dos problemas da desinformação é o facto de ser impossível verificar a identidade das fontes que a propagam na Internet. É muito fácil operar no ciberespaço com uma identidade falsa — e, em geral, é exatamente isso que fazem as pessoas ativas na Internet com intenções maliciosas. A Comissão apresenta várias propostas, descritas na comunicação conjunta sobre a cibersegurança publicada em setembro de 2017. O problema é que estas propostas não são vinculativas: um utilizador poderá optar por apenas comunicar com outros utilizadores de plataformas digitais se estes se tiverem identificado, a Comissão poderá promover a utilização de sistemas em linha de caráter voluntário que permitam identificar fornecedores de informações, etc. Com efeito, existe um potencial conflito de interesses entre a privacidade e o controlo total, e deve ser possível manter o anonimato quando se navega passivamente na Internet. No entanto, para realmente fazer a diferença na luta contra a desinformação, podem ser necessárias medidas mais rigorosas em matéria de identificação quando as pessoas agem de forma proativa na Internet. Afinal, é assim que operam os meios de comunicação social de qualidade, em conformidade com a Declaração de Bordéus de 1954, que foi elaborada pela Federação Internacional de Jornalistas e estabelece princípios muito claros e rigorosos sobre o recurso a fontes. Por vezes, existem motivos válidos para que os meios de comunicação social tradicionais de qualidade publiquem artigos com fontes anónimas, mas estes incluem sempre uma indicação de que o nome e endereço da fonte são do conhecimento da equipa de redação.

4.14.

As tecnologias não são «boas» nem «más» — são neutras. Podem ser utilizadas de forma positiva ou negativa, mas isso depende das escolhas das pessoas que as utilizam. As novas tecnologias emergentes como as que são agora utilizadas na arte da desinformação também têm potencial para desempenhar um papel fundamental no combate à desinformação. Por conseguinte, o CESE acolhe favoravelmente a intenção da Comissão de tirar pleno partido do programa de trabalho do Horizonte 2020 e do seu sucessor, Horizonte Europa, para mobilizar a investigação e tecnologias como a inteligência artificial, a cadeia de blocos e os algoritmos, a fim de melhor identificar as fontes, validar a fiabilidade das informações e avaliar a qualidade e a exatidão das fontes de dados no futuro. No entanto, é crucial examinar pormenorizadamente a possibilidade de recorrer a outras formas de financiamento para combater a desinformação, dado que a maioria das iniciativas não entra no âmbito de aplicação dos programas Horizonte.

4.15.

A democracia na UE baseia-se em processos eleitorais seguros e resilientes, mas estas características deixaram de estar garantidas. Nos últimos anos, detetaram-se práticas de manipulação e de desinformação em linha no período eleitoral em, pelo menos, 18 países, e as táticas de desinformação contribuíram, pelo sétimo ano consecutivo, para a redução global da liberdade na Internet. O CESE acolhe favoravelmente as iniciativas da Comissão no sentido de identificar boas práticas em matéria de identificação, redução e gestão dos riscos que os ataques informáticos e as campanhas de desinformação comportam para o processo eleitoral, tendo em vista as eleições para o Parlamento Europeu de 2019.

4.16.

As competências mediáticas e digitais, bem como a educação cívica, são componentes essenciais para aumentar a resiliência da sociedade, sobretudo porque os jovens, que têm uma elevada presença nas plataformas digitais, são muito recetivos à desinformação. Uma vez que a política de educação é uma responsabilidade dos governos, a organização de iniciativas e a formação de professores sobre esta matéria a todos os níveis dos sistemas de ensino nacionais são competências dos governos nacionais. Infelizmente, muitas vezes os governos não colocam no topo das suas agendas políticas a integração da literacia mediática e informativa nos sistemas de ensino nacionais. Esta situação deve ser melhorada logo que possível, mas a literacia mediática e informativa também vai além dos sistemas de ensino. É necessário proceder à sua promoção e melhoria entre todos os grupos da sociedade, independentemente da idade. Nestes domínios, as organizações não governamentais têm um papel a desempenhar. Muitas destas organizações já trabalham em toda a Europa, mas a maioria opera em pequena escala e não tem o alcance necessário. As iniciativas de cooperação nacional entre as organizações não governamentais e os governos nacionais poderiam colmatar esta lacuna.

4.17.

Os meios de comunicação social de qualidade e o jornalismo fiável desempenham um papel essencial na prestação ao público de informações sólidas e diversificadas. Estes meios de comunicação social tradicionais enfrentam problemas financeiros, dado que as plataformas distribuem conteúdos produzidos pelos meios de comunicação tradicionais sem os reembolsar pelos custos em que incorreram e, posteriormente, apropriando-se das sua receitas através da venda de publicidade. Para melhorar a posição dos editores e assegurar que os titulares de direitos serão compensados quando o fruto do seu trabalho é utilizado por terceiros para fins comerciais, seria desejável concluir rapidamente um acordo sobre a reforma dos direitos de autor da UE. Além disso, recomenda-se a procura de soluções para alargar a iniciativa anunciada pelo Parlamento Europeu, em setembro de 2018, sobre o financiamento europeu especificamente destinado a apoiar o jornalismo de investigação na UE. Uma imprensa forte e fiável conduz a uma democracia resiliente e fácil de defender, em que os valores da verdade e da responsabilidade prevalecem. O financiamento reveste-se de particular importância para os meios de comunicação social mais pequenos que enfrentam, com frequência, ações judiciais e ações vexatórias com o intuito de levar ao seu encerramento.

4.18.

A fim de combater as ameaças internas e externas de desinformação, a Comissão criou, em 2015, o Grupo de Trabalho East StratCom, tendo em vista uma comunicação estratégica proativa das políticas da UE para combater as tentativas de desestabilização pela Rússia. O CESE gostaria que a Comissão fosse mais proativa na divulgação dos esforços envidados pelo Grupo de Trabalho East StratCom ao público em geral, encaminhando-o para as informações no sítio Web do grupo de trabalho, a fim de aumentar a sensibilização da opinião pública para as ameaças à nossa democracia e aumentar a capacidade de resistência a estas ameaças. É igualmente necessário aumentar o orçamento do grupo de trabalho. Em outubro de 2017, o Parlamento Europeu aprovou um orçamento de 1 000 000 euros. Este orçamento dificilmente é comparável aos recursos financeiros investidos por outros intervenientes, como a Federação da Rússia (o Departamento de Estado dos EUA estima que a sofisticada campanha de influência do Kremlin prevê um instrumento de propaganda interna e externa no valor de 1,4 mil milhões de dólares por ano, que alega chegar a cerca de 600 milhões de pessoas em 130 países e 30 línguas).

4.19.

Paralelamente a outras ações, exorta-se a Comissão a dar atenção ao facto de as instituições e regulamentações nacionais em matéria de segurança da informação dos Estados-Membros estarem frequentemente pouco desenvolvidas. O quadro regulamentar está desatualizado, impedindo assim que as entidades reguladoras competentes fiscalizem devidamente os canais de desinformação no que diz respeito ao cumprimento das normas legislativas. A cooperação intrainstitucional é inadequada, e há uma lacuna evidente nas estratégias nacionais a longo prazo para combater as campanhas de desinformação organizadas por países terceiros e elaborar narrativas coerentes para grupos vulneráveis da população. É igualmente fundamental proceder a uma revisão aprofundada da Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual da UE, que atualmente permite que um órgão de comunicação social seja registado em qualquer Estado-Membro da UE desde que um dos membros do conselho de administração da empresa resida nesse país, o que permite chegar a audiências nos países europeus através da exploração de lacunas na regulamentação da UE.

Bruxelas, 19 de setembro de 2018.

O Presidente do Comité Económico e Social Europeu

Luca JAHIER


(1)  Relatório de Informação REX/432 — A utilização dos meios de comunicação social para influenciar os processos sociais e políticos na UE e nos países vizinhos da Europa Oriental.

(2)  2016/2276 (INI).

(3)  https://euvsdisinfo.eu

(4)  A Comissão utiliza o termo «ecossistema» no seu documento. O termo «infraestrutura» poderia ser mais adequado neste contexto.

(5)  Comunicação da Comissão COM(2018) 236 final.

(6)  http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-2017-0272+0+DOC+PDF+V0//PT

(7)  http://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=50271

(8)  http://www.consilium.europa.eu/pt/meetings/european-council/2015/03/19-20/; http://www.consilium.europa.eu/media/33457/22-euco-final-conclusions-en.pdf; https://www.consilium.europa.eu/media/35936/28-euco-final-conclusions-en.pdf

(9)  SEAE, «The Strategy and Tactics of the Pro-Kremlin Disinformation Campaign» [A estratégia e tática da campanha de desinformação pró-Kremlin].


ANEXO

A seguinte proposta de alteração foi rejeitada durante o debate, tendo recolhido, contudo, pelo menos um quarto dos sufrágios expressos:

Ponto 4.3

4.3.

Vivemos numa era caracterizada por relações políticas e democráticas fortemente polarizadas. Segundo grupos de reflexão como a Freedom House e a Economist Intelligence Unit, entre outros, a democracia está sujeita a uma pressão crescente desde a crise económica mundial de 2008. Um dos resultados deste fenómeno é a emergência de um novo tipo de liderança política que representa uma rutura com a tradição democrática que construímos na Europa nos últimos 70 anos. Em vez de uma liderança liberal escolhida de forma democrática, estamos cada vez mais na presença de «homens fortes» cuja eleição suscita profundas questões sobre a integridade dos respetivos processos eleitorais. Estamos familiarizados com este tipo de liderança fora da esfera de influência da UE  — por exemplo, na Rússia e na China. Mas com representantes como Donald Trump, Recep Tayyip Erdogan e os «democratas iliberais» eleitos em alguns Estados-Membros da UE  — que se tornaram todos famosos pela sua preferência pela desinformação, pelo desprezo pela democracia, e pela sua relação problemática com o Estado de direito  — o fenómeno que se vem alastrando está a atingir proporções extremas.

Resultado da votação

Votos a favor:

68

Votos contra:

82

Abstenções:

24