ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
3 de abril de 2025 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro — Entrega de uma pessoa ao Reino Unido para efeitos de procedimento penal — Risco de violação de um direito fundamental — Artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Princípio da legalidade dos delitos e das penas — Alteração, desfavorável à pessoa condenada, do regime da liberdade condicional»
No processo C‑743/24 [Alchaster II] ( i ),
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), por Decisão de 22 de outubro de 2024, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de outubro de 2024, no processo relativo à execução de mandados de detenção emitidos contra
MA,
sendo interveniente:
Minister for Justice and Equality,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),
composto por: K. Lenaerts, presidente, T. von Danwitz, vice‑presidente, F. Biltgen, C. Lycourgos (relator), M. L. Arastey Sahún, D. Gratsias e M. Gavalec, presidentes de secção, A. Arabadjiev, I. Ziemele, J. Passer, Z. Csehi, O. Spineanu‑Matei, B. Smulders, M. Condinanzi e R. Frendo, juízes,
advogado‑geral: D. Spielmann,
secretário: M. Krausenböck, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 21 de janeiro de 2025,
vistas as observações apresentadas:
– |
em representação de MA, por M. Lynam, SC, S. Brittain, BL, e C. Mulholland, solicitor, |
– |
em representação do Minister for Justice and Equality e da Irlanda, por M. Browne, Chief State Solicitor, D. Curley, S. Finnegan e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por J. Fitzgerald, SC, e A. Hanrahan, SC, |
– |
em representação do Governo do Reino Unido, por S. Fuller, na qualidade de agente, assistido por V. Ailes e J. Pobjoy, barristers, e por J. Eadie, KC, |
– |
em representação da Comissão Europeia, por H. Leupold, F. Ronkes Agerbeek e J. Vondung, na qualidade de agentes, |
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de fevereiro de 2025,
profere o presente
Acórdão
1 |
O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito da execução, na Irlanda, de quatro mandados de detenção europeus emitidos contra MA pelas autoridades judiciárias do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte contra MA para efeitos de procedimento penal. |
Quadro jurídico
CEDH
3 |
O artigo 7.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), estipula: «Ninguém pode ser condenado por uma ação ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infração, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida.» |
Direito da União
4 |
O Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro (JO 2021, L 149, p. 10, a seguir «ACC»), contém, nomeadamente, uma terceira parte, intitulada «Cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal», na qual figuram os artigos 522.o a 702.o do ACC. |
5 |
O artigo 524.o do ACC prevê: «1. A cooperação prevista na presente parte baseia‑se no respeito de longa data pelas Partes e pelos Estados‑Membros pela democracia, do Estado de direito e da defesa dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas, incluindo os consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos[, adotada pela Assembleia‑Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948], e na [CEDH], bem como na importância de aplicar internamente os direitos e liberdades consagrados nessa Convenção. 2. Nenhuma disposição da presente parte pode ter por efeito alterar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos consagrados, nomeadamente, na [CEDH] e, no caso da União [Europeia] e dos Estados‑Membros, na [Carta].» |
6 |
O artigo 604.o do ACC dispõe: «A execução do mandado de detenção pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita às seguintes condições: […]
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7 |
Nos termos do artigo 613.o, n.o 2, do ACC: «Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, especialmente as que digam respeito ao […] artigo 604.o […], podendo fixar um prazo para a sua receção […]» |
Litígio no processo principal e questão prejudicial
8 |
Em 26 de novembro de 2021, um District Judge (juiz) dos Magistrates’ Courts of Northern Ireland (Tribunal de Primeira Instância da Irlanda do Norte, Reino Unido) emitiu quatro mandados de detenção contra MA a título de infrações consideradas atos de terrorismo praticadas entre 18 e 20 de julho de 2020 na Irlanda do Norte (Reino Unido). A primeira destas infrações é punível com uma pena de prisão com uma duração máxima de dez anos, ao passo que as três outras podem justificar que seja decretada uma pena de prisão de duração determinada, uma pena privativa de liberdade alargada, uma pena privativa de liberdade de duração indeterminada ou uma pena de prisão perpétua. |
9 |
Por Decisão de 24 de outubro de 2022, bem como através de despachos proferidos no mesmo dia e em 7 de novembro de 2022, o High Court (Tribunal Superior, Irlanda) decretou a entrega de MA ao Reino Unido e não o autorizou a interpor recurso no Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda). |
10 |
Por Decisão de 17 de janeiro de 2023, o Supreme Court (Tribunal Supremo, Irlanda), que é o órgão jurisdicional de reenvio, autorizou MA a interpor recurso da decisão e dos despachos do High Court (Tribunal Superior). |
11 |
MA alegou, perante o órgão jurisdicional de reenvio, que a sua entrega ao Reino Unido seria incompatível com o princípio de legalidade dos delitos e das penas, por, em caso de condenação a uma pena de prisão, a sua eventual liberdade condicional ser regida por legislação do Reino Unido que foi adotada depois de terem sido cometidas as infrações a título das quais foi constituído arguido e que é mais severa do que a legislação que era aplicável na data em que essas infrações foram cometidas. |
12 |
Depois de ter afastado a argumentação de MA respeitante a um risco de violação do artigo 7.o da CEDH, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que existem dúvidas quanto à necessidade de examinar, por outro lado, a existência de um risco de violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta e, sendo caso disso, quanto às modalidades desse exame. Por conseguinte, em 7 de março de 2024, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa à interpretação do ACC. |
13 |
No Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster (C‑202/24, EU:C:2024:649), em resposta a esta questão, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 524.o, n.o 2, e o artigo 604.o, alínea c), do ACC, lidos em conjugação com o artigo 49.o, n.o 1, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que uma autoridade judiciária de execução, quando uma pessoa que é objeto de um mandado de detenção emitido ao abrigo do ACC invocar um risco de violação deste artigo 49.o, n.o 1, em caso de entrega ao Reino Unido, devido a uma alteração, desfavorável para essa pessoa, das condições de colocação em liberdade condicional, ocorrida depois de a pessoa ter presumivelmente praticado a infração que lhe é imputada, tem de proceder a um exame autónomo relativo à existência desse risco antes de se pronunciar sobre a execução desse mandado de detenção, numa situação na qual essa autoridade judiciária já afastou o risco de violação do artigo 7.o da CEDH ao ter‑se baseado nas garantias oferecidas, em geral, pelo Reino Unido no que se refere ao respeito pela CEDH e na possibilidade de essa pessoa intentar uma ação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No termo desse exame, essa autoridade judiciária de execução só deverá recusar executar o referido mandado de detenção se, depois de ter solicitado, à autoridade judiciária de emissão, informações e garantias adicionais, dispuser de elementos objetivos, fiáveis, específicos e devidamente atualizados que comprovam que existe um risco real de alteração do próprio âmbito da pena prevista na data em que a infração em causa foi praticada do qual resulta a aplicação de uma pena mais pesada do que a inicialmente prevista. |
14 |
À luz desta resposta, o órgão jurisdicional de reenvio, em aplicação do artigo 613.o, n.o 2, do ACC, solicitou às autoridades do Reino Unido que lhe fossem comunicadas informações complementares sobre a legislação do Reino Unido que seria aplicável a MA no caso de este vir a ser condenado pela prática de uma ou de várias das infrações a título das quais foi constituído arguido. O District Judge (juiz) dos Magistrates’ Courts of Northern Ireland (Tribunal de Primeira Instância da Irlanda do Norte, Reino Unido) respondeu a este pedido em 17 de setembro de 2024. |
15 |
Ao abrigo, nomeadamente, desta resposta, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, nos termos da legislação que era aplicável na Irlanda do Norte na data da presumível prática das infrações em causa no processo principal, o órgão jurisdicional que decrete uma condenação numa pena de prisão de duração determinada tem de determinar um «período de detenção», que não pode ser superior a metade da pena decretada e no termo do qual a pessoa condenada tem obrigatoriamente de gozar de liberdade condicional. |
16 |
Ao abrigo da nova legislação aplicável na Irlanda do Norte desde 30 de abril de 2021, e que se aplica inclusivamente às infrações cometidas antes desta data, uma pena de prisão de duração determinada pela prática de uma «infração terrorista especificada» (specified terrorism offence) é composta por um «período de detenção adequado», determinado pelo juiz, e por um período adicional de um ano, durante o qual a pessoa condenada goza de uma liberdade condicional, não podendo a duração cumulada destes dois períodos exceder a duração máxima da pena de prisão prevista. Além disso, esta pessoa pode beneficiar de liberdade condicional depois de ter cumprido dois terços do «período de detenção adequado» e na condição de os Parole Commissioners (Comissários para a Liberdade Condicional, Reino Unido) considerarem que para proteger a sociedade não é necessário manter a pessoa em detenção. |
17 |
O órgão jurisdicional de reenvio indica que as acusações de MA se referem exclusivamente às alterações da legislação relativa às penas de prisão de duração determinada, pelo que as regras relativas à liberdade condicional de uma pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade alargada, a uma pena privativa de liberdade de duração indeterminada ou a uma pena de prisão perpétua não são pertinentes no processo principal. |
18 |
Este órgão jurisdicional considera que existe uma possibilidade real de MA ser condenado numa pena de prisão de duração determinada no caso de ser entregue ao Reino Unido. Indicando que a duração máxima da pena prevista pela prática da primeira infração em causa no processo principal continua a ser de dez anos, o órgão jurisdicional salienta que as alterações ao regime de liberdade condicional em causa no processo principal implicam nomeadamente que as pessoas condenadas a essa pena pela prática de uma «infração terrorista especificada» ficarão detidas mais tempo. |
19 |
A este respeito, MA e o Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda) não estão de acordo no que se refere à compatibilidade destas alterações com o princípio da legalidade das penas, por estas terem colocado em causa um regime no qual a liberdade condicional ocorria de forma automática. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se ainda assim se pode considerar que as referidas alterações só dizem respeito à execução das penas ou se, pelo contrário, se deve considerar que alteram de forma retroativa o âmbito em si mesmo da pena que MA irá cumprir no caso de ser entregue ao Reino Unido. |
20 |
Nestas condições, o Supreme Court (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: «A aplicação, a uma pessoa condenada pela prática de um ou de vários crimes a uma pena ou a penas de duração determinada, de regras entretanto alteradas, tendo essa aplicação por efeito que essa pessoa terá de cumprir, pelo menos, dois terços dessa pena e só, então, terá um direito condicional à liberdade condicional que dependerá de uma apreciação da perigosidade, ao passo que, nos termos das regras aplicáveis à data da prática dos alegados crimes, essa pessoa tinha automaticamente direito, nos termos da lei, a beneficiar da liberdade condicional depois de ter cumprido metade dessa pena, implica a aplicação de uma “pena mais grave” à pessoa condenada do que a pena aplicável à data dos alegados crimes, constituindo assim uma violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta?» |
Tramitação processual no Tribunal de Justiça
21 |
Através do seu Despacho de 26 de novembro de 2024, MA (C‑743/24, EU:C:2024:983), o presidente do Tribunal de Justiça decidiu submeter o processo a tramitação acelerada, em conformidade com o disposto no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. |
Quanto à questão prejudicial
22 |
Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta deve ser interpretado no sentido de que constitui a imposição de uma pena mais grave a aplicação, a uma pessoa condenada a uma pena de prisão de duração determinada, de um regime que prevê que essa pessoa deve cumprir pelo menos dois terços de um período fixo de detenção antes de poder beneficiar de liberdade condicional, que tal liberdade está subordinada a que uma autoridade especializada considere que a manutenção em detenção da referida já não é necessária para proteger a sociedade e que a mesma pessoa gozará necessariamente de liberdade condicional um ano antes do termo da pena decretada, embora, ao abrigo das regras aplicáveis na data em que as infrações foram presumivelmente cometidas, essa pessoa devesse gozar automaticamente de liberdade condicional depois de ter cumprido metade dessa pena. |
23 |
O artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta prevê que não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida. |
24 |
Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 49.o da Carta comporta, pelo menos, as mesmas garantias que as que estão previstas no artigo 7.o da CEDH que têm de ser tomadas em consideração, ao abrigo do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, como limiar de proteção mínima (Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 92 e jurisprudência referida). |
25 |
Uma vez que a questão colocada incide sobre a aplicação de alterações de um regime de liberdade condicional a uma pessoa condenada a uma pena de prisão de duração determinada pela prática de uma infração cometida antes da entrada em vigor destas alterações, há que recordar que da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem resulta que, para efeitos da aplicação do artigo 7.o da CEDH, há que distinguir uma medida que constitui em substância uma «pena» de uma medida relativa à «execução» ou à «aplicação» da pena. Assim, quando a natureza e o objetivo de uma medida disserem respeito à redução de uma pena ou a uma alteração do sistema da liberdade condicional, esta medida não faz parte integrante da «pena», na aceção deste artigo 7.o (TEDH, 21 de outubro de 2013, Del Río Prada c. Espanha, CE:ECHR:2013:1021JUD004275009, § 83, e Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 94). |
26 |
Uma vez que na prática a distinção entre uma medida que constitui uma «pena» e uma medida que diga respeito à «execução» de uma pena não é sempre evidente, para se pronunciar sobre a questão de saber se uma medida só diz respeito às modalidades de execução da pena ou pelo contrário afeta o seu âmbito, há que identificar de forma casuística aquilo que a «pena» aplicada ou prevista implicava efetivamente no direito interno no momento considerado ou, por outras palavras, qual era a sua natureza intrínseca (TEDH, 21 de outubro de 2013, Del Río Prada c. Espanha, CE:ECHR:2013:1021JUD004275009, §§ 85 e 90, e Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 95). |
27 |
A este respeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirmou que a circunstância de o alargamento do limiar de admissibilidade à liberdade condicional ocorrido depois de uma condenação ter podido conduzir a um endurecimento da situação de detenção dizia respeito à execução da pena e não à própria pena e que, por conseguinte, não se podia deduzir de tal circunstância que a pena aplicada teria sido mais pesada do que a que veio a ser aplicada pelo juiz que decretou a pena (TEDH, 31 de agosto de 2021, Devriendt c. Bélgica, CE:ECHR:2021:0831DEC003556719, § 29, e Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 96). |
28 |
Em contrapartida, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou contrária ao artigo 7.o da CEDH a aplicação retroativa de uma medida que consiste em transformar uma pena de prisão perpétua que pode ser alterada numa pena de prisão perpétua que não pode ser alterada (TEDH, 10 de novembro de 2022, Kupinskyy c. Ucrânia, CE:ECHR:2022:1110JUD000508418, § 56 e 64). |
29 |
Por conseguinte, uma medida relativa à execução de uma pena só será incompatível com o artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta se dela resultar uma alteração retroativa do âmbito da própria pena que estava prevista na data em que a infração em causa foi presumivelmente praticada, conduzindo assim à condenação numa pena mais grave do que aquela inicialmente prevista. Em todo o caso, se tal não suceder quando esta medida se limitar a alargar o limiar de admissibilidade à liberdade condicional, a situação poderá ser diferente, nomeadamente, se a referida medida eliminar na sua substância a possibilidade de sair em liberdade condicional ou se essa medida fizer parte de um conjunto de medidas que conduzam a um agravamento da natureza intrínseca da pena inicialmente prevista (Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 97). |
30 |
Do que precede decorre que a circunstância de uma legislação nacional prever, no que respeita a infrações cometidas antes da sua entrada em vigor, um aumento da parte de uma pena de prisão que tem necessariamente de ter sido cumprida em situação de detenção antes de poder ser ordenada a liberdade condicional não pode, considerada isoladamente, conduzir a uma violação do artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta. |
31 |
Contudo, a questão colocada incide sobre alterações de um regime de liberdade condicional que excedem o mero aumento do limiar de admissibilidade para essa liberdade. Com efeito, essas alterações apresentam a especificidade de pôr em causa uma regra ao abrigo da qual a liberdade condicional deve ocorrer de forma automática quando metade da pena tiver sido cumprida. Através destas alterações, é alterada a regra até então existente, passando o sistema a prever que a liberdade condicional, num primeiro momento, fica dependente de uma apreciação da perigosidade da pessoa condenada levada a cabo por uma autoridade especializada, depois de uma parte predeterminada da pena decretada ter sido cumprida, devendo em seguida, num segundo momento, ocorrer de pleno direito um ano antes do termo dessa pena. |
32 |
É certo que dessa alteração, em si mesma, resulta um agravamento da situação de detenção. Assim, esta alteração cria uma incerteza em relação ao momento em que ocorrerá a liberdade condicional de uma pessoa condenada e pode implicar que, nalguns casos, a liberdade só se verificará no último ano da pena decretada, embora, no âmbito do regime aplicável na data em que as infrações em causa foram presumivelmente praticadas, essa pessoa tivesse a certeza de poder beneficiar de pleno direito desse regime antes desse último ano. |
33 |
No entanto, da jurisprudência mencionada no n.os 27 e 29 do presente acórdão resulta que não tem necessariamente de se considerar que alterações ao regime de liberdade condicional conduzem a um agravamento da situação de detenção implica a imposição de uma pena mais grave, na aceção do artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta. |
34 |
Esta consideração resulta da separação entre o conceito de «pena», entendido como a condenação decretada ou suscetível de ser decretada, por um lado, e o conceito de medidas relativas à «execução» ou à «aplicação» da pena, por outro. Esta consideração é valida não apenas no que respeita ao aumento do limiar de admissibilidade à liberdade condicional, mas também no que respeita a alterações de outras condições às quais está sujeita a emissão da decisão de liberdade condicional ou das regras processuais relativas à emissão dessa decisão. |
35 |
Deste modo, desde que essas alterações não eliminem em substância a possibilidade de poder beneficiar dessa liberdade e não conduzam a um agravamento da natureza da pena prevista na data em que as infrações em causa foram presumivelmente cometidas, a sua aplicação a infrações cometidas antes da sua entrada em vigor não é contrária ao artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta. |
36 |
No que se refere à primeira destas duas condições, há que sublinhar que uma alteração como a mencionada no n.o 31 do presente acórdão não conduz, seja em termos de lei ou na prática, a uma revogação em substância da possibilidade de beneficiar de liberdade condicional. |
37 |
Com efeito, por um lado, tal alteração preserva a possibilidade de ser decretada a liberdade condicional da pessoa condenada, em função da apreciação efetuada sobre a perigosidade desta última, depois de alcançado o limiar de admissibilidade fixado na legislação nacional pertinente. |
38 |
A este respeito, dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe não resulta que o exercício das competências dos comissários responsáveis pela liberdade condicional pode conduzir, na prática, a uma revogação da possibilidade de beneficiar de tal liberdade por não estar enquadrado por garantias processuais adequadas, incluindo no que se refere ao prazo de tratamento dos pedidos de liberdade condicional. |
39 |
Por outro lado, na sequência de uma alteração como a mencionada no n.o 31 do presente acórdão, a liberdade condicional tem, seja como for, de ocorrer de pleno direito um ano antes do termo da pena decretada, pelo que não se pode considerar que esta pena passa sistematicamente a ter de ser cumprida, na sua integralidade, num regime de detenção. |
40 |
No que se refere à segunda condição mencionada no n.o 35 do presente acórdão, não resulta que uma alteração como a referida no n.o 31 deste acórdão se situe entre um conjunto de medidas que conduzem a agravar a natureza intrínseca da pena inicialmente prevista. |
41 |
A este respeito, há que salientar que tal alteração não prolonga a duração máxima da pena de prisão de duração determinada prevista para uma infração cuja execução se enquadra no regime de liberdade condicional resultante dessa alteração. Além disso, da decisão de reenvio resulta que a duração máxima da pena prevista para a primeira infração em causa no processo principal se manteve fixada em dez anos. |
42 |
Ora, a duração da pena de prisão decretada pelo juiz penal constitui, tanto ao abrigo deste último regime como das regras que regulam a liberdade condicional que eram aplicáveis na data em que as infrações em causa foram presumivelmente cometidas, a duração máxima durante a qual a pessoa condenada pode, de forma definitiva, ser colocada em situação de detenção. |
43 |
Com efeito, os regimes de liberdade condicional visados pela questão colocada implicam, ambos, a possibilidade de a pessoa que beneficiou de tal liberdade ser novamente colocada em situação de detenção, dentro dos limites da duração de prisão fixada quando da sua condenação, se o comportamento dessa pessoa justificar que se revogue essa liberdade. Assim, nenhum destes regimes garante à referida pessoa que poderá permanecer em liberdade durante uma parte predeterminada da pena de prisão decretada pelo juiz penal. |
44 |
Além disso, no que respeita às condições de liberdade condicional que resultam de uma alteração como a referida no n.o 31 do presente acórdão, o critério relativo à perigosidade da pessoa condenada conforme apreciada no momento da possível liberdade condicional constitui, conforme o advogado‑geral salientou no n.o 96 das suas conclusões, um critério usual nas políticas penitenciárias. Semelhante critério, na medida em que pressupõe que se efetue uma apreciação prospetiva em relação ao comportamento previsível da pessoa condenada à luz da sua situação conforme se apresenta depois de essa pessoa ter cumprido uma parte substancial da sua pena em detenção, implica uma apreciação de uma natureza diferente daquela que foi inicialmente efetuada quando a condenação foi decretada e pertence, desta forma, à execução da pena. |
45 |
A este respeito, dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe não resulta que os comissários responsáveis pela liberdade condicional gozam de um poder meramente discricionário, que excede o poder de apreciação relativo à avaliação, nomeadamente, da perigosidade da pessoa condenada depois de esta ter cumprido uma parte substancial da sua pena em situação de detenção. Em especial, destes autos não resulta que esses comissários se podem basear em considerações de política penal independentes dessa avaliação. |
46 |
Nestas condições, nem a circunstância de alterações ao regime de liberdade condicional como as que estão em causa no processo principal só dizerem respeito a determinadas categorias de pessoas condenadas nem os motivos subjacentes a essas alterações podem implicar que estas são incompatíveis com o artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta. Com efeito, esta circunstância e estes fundamentos não têm consequências no que respeita às referidas alterações na situação objetiva dessas pessoas, não podendo conduzir, enquanto tais, a que se considere que das mesmas alterações resulta a aplicação de uma pena mais grave às referidas pessoas. |
47 |
À luz de todos estes elementos, há que responder à questão colocada que artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta deve ser interpretado no sentido de que não constitui uma imposição de uma pena mais grave a aplicação, a uma pessoa condenada a uma pena de prisão de duração determinada, de um regime que prevê que essa pessoa deve cumprir pelo menos dois terços de um período fixo de detenção antes de poder beneficiar de liberdade condicional, que tal liberdade está subordinada a que uma autoridade especializada considere que a manutenção em detenção da referida já não é necessária para proteger a sociedade e que a mesma pessoa gozará necessariamente de liberdade condicional um ano antes do termo da pena decretada, embora, ao abrigo das regras aplicáveis na data em que as infrações foram presumivelmente cometidas, essa pessoa devesse gozar automaticamente de liberdade condicional depois de ter cumprido metade dessa pena. |
Quanto às despesas
48 |
Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara: |
O artigo 49.o, n.o 1, segunda frase, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que não constitui uma imposição de uma pena mais grave a aplicação, a uma pessoa condenada a uma pena de prisão de duração determinada, de um regime que prevê que essa pessoa deve cumprir pelo menos dois terços de um período fixo de detenção antes de poder beneficiar de liberdade condicional, que tal liberdade está subordinada a que uma autoridade especializada considere que a manutenção em detenção da referida já não é necessária para proteger a sociedade e que a mesma pessoa gozará necessariamente de liberdade condicional um ano antes do termo da pena decretada, embora, ao abrigo das regras aplicáveis na data em que as infrações foram presumivelmente cometidas, essa pessoa devesse gozar automaticamente de liberdade condicional depois de ter cumprido metade dessa pena. |
Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: inglês.
( i ) O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.