ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)
3 de abril de 2025 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Livre circulação de trabalhadores — Artigo 45.o TFUE — Advogados — Formação de advogados estagiários — Restrição territorial — Regulamentação nacional que exige a realização de uma parte do período de formação de um advogado estagiário junto de um advogado com domicílio profissional no território nacional»
No processo C‑807/23,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 16 de outubro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de dezembro de 2023, no processo
Katharina Plavec
contra
Rechtsanwaltskammer Wien,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),
composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, S. Rodin (relator), N. Piçarra, O. Spineanu‑Matei e N. Fenger, juízes,
advogado‑geral: P. Pikamäe,
secretário: D. Dittert, chefe de unidade,
vistos os autos e após a audiência de 27 de novembro de 2024,
vistas as observações apresentadas:
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em representação de K. Plavec, por S. Schwab e J. P. Willheim, Rechtsanwälte, |
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em representação de Rechtsanwaltskammer Wien, por R. Gerlach, Rechtsanwalt, e T. Simek, |
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em representação do Governo Austríaco, por A. Posch, A. Bell, G. Eberhard e P. Thalmann, na qualidade de agentes, |
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em representação do Governo Croata, por G. Vidović Mesarek, na qualidade de agente, |
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em representação do Governo Sueco, por H. Eklinder, na qualidade de agente, |
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em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e J. Szczodrowski, na qualidade de agentes, |
vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 |
O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 45.o TFUE. |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Katharina Plavec à Rechtsanwaltskammer Wien (Ordem dos Advogados de Viena, Áustria) (a seguir «RAK») a respeito do indeferimento do pedido de K. Plavec destinado a obter, por um lado, a sua inscrição na lista de advogados estagiários e, por outro, a emissão de um certificado comprovativo de legitimação reduzida para representação em juízo, na aceção do artigo 15.o, n.o 3, do Rechtsanwaltsordnung (Estatuto dos Advogados), de 15 de julho de 1868 (RGBl. n.o 96/1868), na sua versão de 20 de abril de 2023 (BGBl. I 39/2023) (a seguir «RAO»). |
Quadro jurídico
Direito da União
3 |
O artigo 45.o TFUE dispõe: «1. A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na União [Europeia]. 2. A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados‑Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho. […]» |
4 |
O considerando 1 da Diretiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 1998, tendente a facilitar o exercício permanente da profissão de advogado num Estado‑Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional (JO 1998, L 77, p. 36), enuncia: «Considerando que, por força do artigo [26.o TFUE], o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas e que, em conformidade com o artigo [4.o, n.o 2, alínea a), TFUE], a abolição, entre os Estados‑Membros, dos obstáculos à livre circulação das pessoas e dos serviços constitui um dos objetivos da [União]; que para os nacionais dos Estados‑Membros esta compreende, nomeadamente, a faculdade de exercer uma profissão, a título independente ou assalariado, num Estado‑Membro diferente daquele em que adquiriram as suas qualificações profissionais.» |
5 |
O artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva prevê: «A presente diretiva tem por objeto facilitar o exercício permanente da profissão de advogado a título independente ou assalariado num Estado‑Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional.» |
6 |
O artigo 10.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe: «O advogado que exerça com o título profissional de origem e prove ter exercido atividade efetiva e regular por um período de, pelo menos, três anos no Estado‑Membro de acolhimento, e em relação ao direito desse Estado, incluindo o direito comunitário, é dispensado das condições referidas no n.o 1, alínea b), do artigo 4.o da Diretiva 89/48/CEE [do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, relativa a um sistema geral de reconhecimento dos diplomas de ensino superior que sancionam formações profissionais com uma duração mínima de três anos (JO 1989, L 19, p. 16),] para aceder à profissão de advogado do Estado‑Membro de acolhimento. Por “atividade efetiva e regular” entende‑se o exercício real de atividade sem outras interrupções para além das que possam resultar dos acontecimentos da vida corrente. […]» |
Direito austríaco
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Nos termos do § 2.o do RAO: «1) O estágio exigido para exercer a profissão de advogado consiste necessariamente numa atividade jurídica num órgão jurisdicional ou numa delegação Ministério Público e num escritório de advogado; pode também consistir numa atividade jurídica junto de um notário ou, quando a atividade for útil para o exercício da profissão de advogado, junto de uma instância administrativa, uma universidade, um revisor oficial de contas ou um consultor fiscal. […] O estágio num escritório de advogado só será tido em conta se for exercido a título de atividade profissional principal e sem limitações decorrentes do exercício de outra atividade profissional; […] 2) O estágio previsto no n.o 1 terá a duração de cinco anos, dos quais pelo menos sete meses serão num órgão jurisdicional ou de numa delegação do Ministério Público e pelo menos três anos serão num escritório de advogado na Áustria. 3) Para o período de estágio que não tem obrigatoriamente de ser efetuado num órgão jurisdicional, numa delegação do Ministério Público ou num escritório de advogado na Áustria, são tidos em conta: […]
A comissão da Ordem dos Advogados deve emitir diretrizes sobre as condições e a medida em que os estágios, na aceção dos pontos 2 e 3 são tidos em conta; […]. As diretrizes são publicadas no sítio Internet da Ordem dos Advogados, onde figuram de forma permanente. […]» |
8 |
O § 15.o, n.os 3 e 4, deste estatuto dispõe: «3) Nos casos em que a representação por advogado não é obrigatória, o advogado pode também substabelecer os seus poderes, sob sua responsabilidade, perante quaisquer tribunais ou órgãos da administração pública, num advogado estagiário que esteja a estagiar consigo; todavia, os advogados‑estagiários não podem assinar petições dirigidas a tribunais ou a órgãos da administração pública. 4) A comissão da Ordem dos Advogados é obrigada a entregar a um advogado estagiário que efetua o seu estágio junto de um advogado documentos que comprovem […] o seu poder [limitado] de representação na aceção do n.o 3.» |
9 |
O § 30.o, n.o 1, do referido estatuto tem a seguinte redação: «Para efeitos da inscrição na lista de advogados estagiários, quando se iniciar o estágio com um advogado, deverá ser feita a respetiva declaração à comissão, acompanhada da prova da nacionalidade austríaca, da nacionalidade de um Estado‑Membro da União Europeia ou de outro Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu ou da Confederação Suíça, bem como da prova da conclusão de uma licenciatura em direito austríaco […] O período de estágio junto de um advogado começa a contar apenas a partir da data da entrega dessa declaração. […]» |
Litígio no processo principal e questão prejudicial
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K. Plavec foi contratada a partir de janeiro de 2022 como trabalhadora assalariada no escritório de advogados Jones Day, em Francoforte do Meno (Alemanha), onde efetuava um estágio junto de KI, advogado austríaco com o estatuto de associado nesse escritório. Por mensagem de correio eletrónico de 14 de janeiro de 2022, solicitou à RAK a sua inscrição na lista de advogados estagiários e a emissão de um certificado comprovativo de legitimação reduzida para representação em juízo na aceção do artigo 15.o, n.o 3, do Estatuto dos Advogados. |
11 |
A pedido da RAK, K. Plavec prestou, por carta de 7 de março de 2022, os seguintes esclarecimentos. O seu domicílio e a sua residência habitual situavam‑se em Francoforte do Meno e dispunha de residência secundária em Viena (Áustria). A sua atividade incidia exclusivamente sobre o direito austríaco. Sendo a única pessoa autorizada a dar‑lhe instruções sobre questões relacionadas com o direito austríaco, o seu patrono, KI, prestava aconselhamento sobre o direito austríaco a clientes austríacos e estrangeiros do escritório Jones Day e representava‑os perante as instâncias administrativas e os órgãos jurisdicionais austríacos. Assim, durante o seu estágio, K. Plavec esteve em contacto várias vezes por semana com instâncias administrativas e órgãos jurisdicionais austríacos no âmbito da representação dos clientes de KI. |
12 |
Por Decisão de 14 de junho de 2022, o serviço competente da RAK, ao abrigo do artigo 30.o, n.o 1, do RAO, lido em conjugação com o artigo 2.o, n.o 2, do mesmo, indeferiu o pedido de K. Plavec, com o fundamento de que o seu estágio não tinha sido efetuado junto de um advogado estabelecido na Áustria. |
13 |
Em 31 de agosto de 2022, K. Plavec deixou o escritório Jones Day. |
14 |
Por Decisão de 6 de setembro de 2022, a RAK indeferiu a reclamação apresentada contra a Decisão de 14 de junho de 2022. Esta Decisão de 6 de setembro de 2022 menciona, nomeadamente, que KI é membro do comité de avaliação das provas de acesso à profissão de advogado na Áustria e que intervém como advogado designado para representar os litigantes na Áustria ao abrigo do mecanismo de assistência judiciária. Nesta qualidade, além do escritório em Francoforte do Meno, KI tem um escritório em Viena, para o qual nomeou outro advogado austríaco como substituto, em conformidade com o RAO. Por esta razão, foi declarado ausente desde 15 de novembro de 2016 devido a uma estadia prolongada no estrangeiro. |
15 |
K. Plavec e KI interpuseram recurso da Decisão de 6 de setembro de 2022 no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), que é o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a anulação desta decisão e que seja ordenado à RAK que inscreva K. Plavec na lista de advogados estagiários para o período compreendido entre 14 de janeiro de 2022 e 31 de agosto de 2022. |
16 |
O órgão jurisdicional de reenvio especifica que o objeto do litígio que lhe foi submetido diz respeito apenas à questão de saber se, e, sendo caso disso, durante que período, os requisitos de inscrição na lista de advogados estagiários tinham sido cumpridos por K. Plavec, uma vez que esta deixou o escritório Jones Day em 31 de agosto de 2022. Além disso, uma vez que KI não tinha interesse próprio em que K. Plavec fosse inscrita retroativamente na lista de advogados estagiários, o órgão jurisdicional de reenvio julgou o seu recurso inadmissível. |
17 |
O órgão jurisdicional de reenvio assinala que resulta do artigo 2.o, n.o 2, e do artigo 30.o, n.o 1, do RAO, lidos conjuntamente, que, durante um período total de cinco anos de estágio obrigatório para se tornar advogado, deve ser efetuado um período de, pelo menos, três anos e sete meses em território austríaco, dos quais pelo menos três anos junto de um advogado. Este órgão jurisdicional salienta que, quando o local de trabalho de um advogado estagiário se situa fora da Áustria, a Ordem dos Advogados austríaca competente não pode dirigir‑se ao escritório onde trabalha esse advogado estagiário para exercer a sua missão legal de o controlar e ao seu patrono, que tem a obrigação de assegurar a formação completa do referido advogado estagiário na profissão de advogado. |
18 |
O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, por força do artigo 2.o, n.o 3, ponto 2, do RAO, a parte do estágio de K. Plavec efetuada junto de KI pode, em contrapartida, ser tida em conta como a parte do estágio que pode ser realizada no estrangeiro. |
19 |
No que diz respeito aos factos do litígio que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o estágio de K. Plavec não foi efetuado na Áustria, embora tenha trabalhado sob a direção de um advogado inscrito numa Ordem dos Advogados austríaca e no domínio do direito austríaco. |
20 |
O órgão jurisdicional de reenvio considera que se coloca a questão de saber se disposições nacionais que preveem que uma parte do estágio de um candidato à profissão de advogado deve obrigatoriamente decorrer no território nacional são incompatíveis com a livre circulação dos trabalhadores, ainda que outra parte desse período possa ser efetuada no estrangeiro. |
21 |
Considera que tais disposições são, em todo o caso, adequadas e conformes com os valores protegidos pelo direito da União. A este respeito, sublinha, em especial, que o artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 98/5 subordina o acesso à profissão de advogado num Estado‑Membro de acolhimento de um advogado que exerça com o título profissional emitido pelo seu Estado‑Membro de origem à prova de uma atividade efetiva e regular por um período de, pelo menos, três anos neste primeiro Estado‑Membro. Se esta exigência de experiência prática num Estado‑Membro de acolhimento é aplicável aos advogados que já dispõem de um título que os habilita a exercer a sua profissão no seu Estado‑Membro de origem e que já aí a exerceram na prática, o acesso dos advogados estagiários à profissão de advogado poderia, a fortiori, estar subordinado a essa exigência. |
22 |
Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que uma atividade como a exercida por K. Plavec em Francoforte do Meno não pode, nem sequer tendo em conta os meios de comunicação modernos, proporcionar o grau de intensidade dos contactos com os órgãos jurisdicionais e as instâncias administrativas austríacos que uma formação num escritório de advogados estabelecido na Áustria assegura. Por outro lado, seria pouco realista supor que K. Plavec tencionava deslocar‑se especialmente de Francoforte do Meno para participar em audiências nos tribunais e nas instâncias administrativas austríacos, tendo em conta o facto de que o certificado de legitimação que esta pretendia obter apenas confere um direito de representação muito limitado, a saber, em litígios de direito civil essencialmente da competência dos Bezirksgerichte (Tribunais de Primeira Instância, Áustria). Por último, o patrono de K. Plavec exercia principalmente o direito austríaco da arbitragem, enquanto os patronos estão obrigados, por força do RAO, a conferir uma formação completa aos advogados estagiários. |
23 |
Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: «Deve o artigo 45.o TFUE, relativo à livre circulação de trabalhadores, ser interpretado no sentido de que esta disposição se opõe a uma regulamentação nacional, nos termos da qual a título de requisito prévio para a inscrição na lista de advogados estagiários austríacos, uma parte do estágio (período de formação) de um advogado estagiário deve ser obrigatoriamente prestada na qualidade de advogado estagiário junto de um advogado na Áustria, ou seja, no território nacional […], não sendo suficiente para essa parte do estágio (período de formação) uma atividade prestada junto de um advogado noutro Estado‑Membro da União, mesmo que essa atividade seja ali realizada sob a supervisão de um advogado inscrito na Áustria no domínio do direito austríaco?» |
Quanto à questão prejudicial
24 |
Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que impõe a realização de uma parte determinada de um estágio, que é necessário para o acesso à profissão de advogado e durante o qual o advogado estagiário dispõe de um certo poder de representação perante os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro, junto de um advogado estabelecido no referido Estado‑Membro, excluindo que uma parte do estágio possa ser realizada junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro, embora este advogado esteja inscrito numa Ordem dos Advogados do primeiro Estado‑Membro e as atividades realizadas no âmbito desse estágio digam respeito ao direito desse primeiro Estado‑Membro. |
25 |
A este respeito, há que recordar que, na falta de harmonização das condições de acesso a uma profissão, os Estados‑Membros podem definir os conhecimentos e as habilitações necessários para o exercício dessa profissão (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 24 e jurisprudência referida). |
26 |
Os requisitos de acesso à profissão de advogado de uma pessoa que não está habilitada para exercer esta profissão em nenhum Estado‑Membro, não sendo objeto, até à data, de harmonização à escala da União, continuam a ser da competência dos Estados‑Membros para serem definidos (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 25). |
27 |
Daqui resulta que o direito da União não se opõe a que a regulamentação de um Estado‑Membro subordine o acesso à profissão de advogado à posse dos conhecimentos e das qualificações considerados necessários (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 26), o que pode incluir a realização de um estágio. |
28 |
No entanto, os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio respeitando as liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE e as disposições nacionais adotadas para o efeito não podem constituir um entrave injustificado ao exercício efetivo das liberdades fundamentais garantidas pelos artigos 45.o TFUE (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 27 e jurisprudência referida). |
29 |
Há que considerar que uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 45.o TFUE, ainda que regule um estágio que faz parte da formação que permite o acesso à profissão de advogado, uma vez que os juristas em causa exercem a sua atividade de estagiário na qualidade de assalariados que recebem uma remuneração (v., por analogia, Acórdão de 13 de novembro de 2003, Morgenbesser, C‑313/01, EU:C:2003:612, n.o 60). No caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que K. Plavec foi remunerada durante o seu estágio no escritório Jones Day. |
30 |
Segundo jurisprudência constante, as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de pessoas, vistas no seu conjunto, incluindo o artigo 45.o TFUE, visam facilitar aos nacionais dos Estados‑Membros, o exercício de atividades profissionais de qualquer natureza em todo o território da União e opõem‑se às medidas que possam desfavorecer esses nacionais quando desejam exercer uma atividade económica no território de outro Estado‑Membro [Acórdão de 16 de novembro de 2023, Comissão/Países Baixos (Transferência do valor dos direitos a pensão), C‑459/22, EU:C:2023:878, n.o 29 e jurisprudência referida]. |
31 |
Assim, as disposições nacionais que impeçam ou dissuadam um trabalhador nacional de um Estado‑Membro de abandonar o seu Estado de origem para exercer o seu direito de livre circulação constituem entraves a essa liberdade, mesmo que se apliquem independentemente da nacionalidade dos trabalhadores em causa (Acórdão de 11 de julho de 2019, A, C‑716/17, EU:C:2019:598, n.o 17 e jurisprudência referida). |
32 |
Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 45.o TFUE se opõe, em princípio, a uma medida nacional, relativa aos requisitos da tomada em consideração de uma experiência profissional para efeitos de acesso à profissão de advogado, adquirida num Estado‑Membro diferente do autor da medida, que é suscetível de dificultar ou tornar menos atrativo o exercício, pelos cidadãos da União, incluindo os do Estado‑Membro autor da referida medida, das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 30). O mesmo se diga de uma regulamentação nacional que exclui a tomada em consideração da experiência profissional que deve ser adquirida no âmbito de uma parte determinada de um estágio necessário ao acesso à profissão de advogado pelo simples facto de essa parte do estágio ser efetuada junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro. |
33 |
Daqui resulta que uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe que uma parte determinada do estágio necessário ao acesso à profissão de advogado seja efetuada junto de um advogado estabelecido nesse Estado‑Membro, constitui efetivamente uma restrição à liberdade de circulação garantida pelo artigo 45.o TFUE, uma vez que é suscetível de perturbar ou de tornar menos atrativo o exercício dessa liberdade de circulação, ao limitar a possibilidade de esses nacionais exercerem a sua atividade profissional, como advogado estagiário, junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro. |
34 |
Esta conclusão não é posta em causa, contrariamente ao que sustenta o Governo Austríaco nas suas observações escritas, pelo facto de, por força desta regulamentação, um estágio de vários meses no estrangeiro poder ser reconhecido como outra parte do estágio. Com efeito, uma vez que se considera que os três anos de estágio junto de um advogado, que correspondem à parte do estágio em causa no processo principal, devem obrigatoriamente ser efetuados junto de um advogado estabelecido na Áustria, a referida regulamentação impede os juristas que pretendam aceder à profissão de advogado de invocarem o seu direito de livre circulação garantido pelo artigo 45.o TFUE durante esta última parte do estágio. |
35 |
Tal restrição à liberdade de circulação só pode ser admitida se, em primeiro lugar, for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral e, em segundo lugar, respeitar o princípio da proporcionalidade, o que implica que seja adequada para garantir, de forma coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido e não vá além do necessário para o alcançar (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 32 e jurisprudência referida). |
36 |
O órgão jurisdicional de reenvio salienta, em substância, que a regulamentação em causa no processo principal prossegue objetivos de proteção dos destinatários dos serviços jurídicos e de boa administração da justiça. Estes objetivos figuram entre os que podem ser considerados razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar restrições à livre circulação de trabalhadores (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Onofrei, C‑218/19, EU:C:2020:1034, n.o 34 e jurisprudência referida). |
37 |
Além disso, uma regulamentação de um Estado‑Membro que sujeita o benefício da inscrição na lista de advogados estagiários ao requisito de realização de uma parte do estágio junto de um advogado estabelecido neste Estado‑Membro não se afigura, como tal, inadequada para assegurar a realização dos referidos objetivos. |
38 |
Por um lado, essa regulamentação é suscetível de contribuir para assegurar que o jurista que pretende tornar‑se advogado num Estado‑Membro adquira, antes de poder exercer esta profissão, uma experiência real da prática do direito neste Estado‑Membro, bem como das regras que se impõem aos advogados e dos usos que regem as relações com os órgãos jurisdicionais e as autoridades do referido Estado‑Membro. Por outro lado, as autoridades competentes serão, assim, em regra capazes de controlar facilmente as condições de realização desse estágio e, em especial, a adequação do conteúdo desse estágio às exigências resultantes do direito nacional. Em especial, uma regulamentação como a que está em causa no processo principal é suscetível, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, de permitir à Ordem dos Advogados austríaca competente, no âmbito da sua missão legal de controlo do advogado estagiário e do patrono, aceder ao escritório deste para se certificar de que a formação do advogado estagiário corresponde às exigências próprias do exercício da profissão de advogado. |
39 |
Todavia, há que observar que, uma vez que visa assegurar, como resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, que o advogado adquiriu uma experiência satisfatória da prática do direito nacional e dos contactos com as autoridades e os órgãos jurisdicionais austríacos a fim de garantir a realização dos objetivos de proteção dos destinatários dos serviços jurídicos e da boa administração da justiça prosseguidos pela regulamentação nacional em causa no processo principal, o requisito segundo o qual um jurista deve efetuar uma parte determinada do estágio com um advogado estabelecido no Estado‑Membro em causa vai além do que é necessário para alcançar estes objetivos. |
40 |
Com efeito, a realização por juristas de um estágio junto de um advogado inscrito numa Ordem dos Advogados austríaca, mas estabelecido noutro Estado‑Membro, acompanhado da exigência de provar junto das autoridades nacionais competentes que este estágio é suscetível de permitir o acesso a uma experiência equivalente à que proporciona um estágio junto de um advogado estabelecido na Áustria, constitui uma medida que permite realizar os objetivos prosseguidos por uma regulamentação como a que está em causa no processo principal, que se afigura menos restritiva do que a restrição imposta por esta regulamentação. |
41 |
A este respeito, importa referir, em primeiro lugar, que não se pode presumir, de forma geral, que um jurista que efetue um estágio junto de um advogado inscrito numa Ordem dos Advogados austríaca, mas estabelecido noutro Estado‑Membro, não pode receber uma formação adequada nem adquirir uma experiência suficiente no que diz respeito à prática do direito austríaco equivalentes às adquiridas por um jurista que realiza o seu estágio na Áustria. Nestas circunstâncias, a obrigação de fornecer provas suficientes de que as atividades efetivamente realizadas durante esse estágio são de molde a proporcionar uma formação e uma experiência equivalentes às proporcionadas por um estágio junto de um advogado estabelecido na Áustria parece suscetível de garantir que os objetivos deste estágio foram efetivamente atingidos. |
42 |
Em segundo lugar, no âmbito de uma regulamentação como a mencionada no n.o 40 do presente acórdão, as autoridades competentes continuam em condições de efetuar controlos efetivos quanto às condições em que decorre o estágio. |
43 |
Antes de mais, é‑lhes permitido, se o considerarem útil à luz dos elementos de que dispõem, convocar o advogado estagiário e o seu patrono para obter explicações sobre o desenrolar do estágio, se necessário ordenando a interrupção deste estágio ou recusando tê‑lo em conta em caso de recusa de resposta a essa convocatória. Resulta, aliás, das declarações da RAK, na audiência realizada no Tribunal de Justiça, que esta procede a tais convocatórias quando há dúvidas justificadas quanto ao cumprimento, em casos especiais, dos requisitos impostos para a formação dos advogados estagiários relativos ao exercício da profissão de advogado. |
44 |
Em seguida, uma vez que, na hipótese referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, tanto o advogado estagiário como o patrono estão inscritos numa Ordem dos Advogados do Estado‑Membro em que é ministrada a formação para a profissão de advogado, as autoridades profissionais são habitualmente competentes para lhes impor sanções disciplinares se procurarem induzir em erro as autoridades competentes quanto ao conteúdo do estágio ou não respeitarem as medidas de controlo instituídas para assegurar a boa realização desse estágio. |
45 |
Por último, embora seja verdade que, no âmbito de uma regulamentação como a mencionada no n.o 40 do presente acórdão, as autoridades competentes não estão necessariamente em condições de aceder ao escritório do patrono para efeitos de controlo, esse acesso não pode ser considerado indispensável para satisfazer os objetivos da regulamentação em causa no processo principal. Resulta, aliás, das informações fornecidas na audiência pela RAK que, na prática, esta recorre a medidas de controlo menos rigorosas do que o controlo no local nos escritórios de advogados para verificar se os objetivos do estágio são atingidos. |
46 |
A circunstância de, no direito austríaco, o advogado estagiário dispor, após um período de 18 meses de estágio junto de um advogado estabelecido na Áustria, de uma capacidade de representação muito ampla não é suscetível de pôr em causa o que precede, uma vez que, em aplicação de uma regulamentação como a mencionada no n.o 40 do presente acórdão, a experiência que um jurista adquire após ter efetuado este período de estágio junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro é equivalente à adquirida no termo do mesmo período por um advogado estagiário que efetua o seu estágio junto de um advogado estabelecido na Áustria. |
47 |
Por outro lado, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio considera que a regulamentação em causa no processo principal assenta numa lógica comparável à consagrada no artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 98/5, há que referir que a opção feita pelo legislador da União no que respeita às medidas que os Estados‑Membros estão habilitados a impor aos advogados que, tendo adquirido a sua qualificação profissional noutro Estado‑Membro, pretendam exercer a sua profissão no seu território, quando adotou esta diretiva, não é suscetível de restringir a aplicação das disposições do Tratado FUE a uma situação não abrangida pelo âmbito de aplicação da referida diretiva. |
48 |
Face ao exposto, o artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que impõe a realização de uma parte determinada de um estágio, necessário para o acesso à profissão de advogado e durante o qual o advogado estagiário dispõe de um certo poder de representação perante os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro, junto de um advogado estabelecido no referido Estado‑Membro, excluindo que uma parte do possa ser realizada junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro, embora este advogado esteja inscrito numa Ordem dos Advogados do primeiro Estado‑Membro e as atividades realizadas no âmbito desse estágio digam respeito ao direito deste primeiro Estado‑Membro, e não permite, portanto, que os juristas em causa efetuem essa parte do referido estágio noutro Estado‑Membro na condição de provarem às autoridades nacionais competentes que, nos termos em que será efetuada, essa parte do estágio lhes pode proporcionar uma formação e uma experiência equivalentes às proporcionadas por um estágio realizado junto de um advogado estabelecido no primeiro Estado‑Membro. |
Quanto às despesas
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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara: |
O artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que impõe a realização de uma parte determinada de um estágio, necessário para o acesso à profissão de advogado e durante o qual o advogado estagiário dispõe de um certo poder de representação perante os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro, junto de um advogado estabelecido no referido Estado‑Membro, excluindo que uma parte do estágio possa ser realizada junto de um advogado estabelecido noutro Estado‑Membro, embora este advogado esteja inscrito numa Ordem dos Advogados do primeiro Estado‑Membro e as atividades realizadas no âmbito desse estágio digam respeito ao direito deste primeiro Estado‑Membro, e não permite, portanto, que os juristas em causa efetuem essa parte do referido estágio noutro Estado‑Membro na condição de provarem às autoridades nacionais competentes que, nos termos em que será efetuada, essa parte do estágio lhes pode proporcionar uma formação e uma experiência equivalentes às proporcionadas por um estágio realizado junto de um advogado estabelecido no primeiro Estado‑Membro. |
Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: alemão.