Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

12 de setembro de 2024 (*)

« Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 90.°, n.° 1 — Redução do valor tributável se o preço for reduzido depois de efetuada a operação — Contribuições pagas por uma empresa farmacêutica ao organismo estatal de seguro de saúde — Legislação fiscal nacional que exclui do benefício da redução do valor tributável as contribuições pagas por uma empresa farmacêutica ao organismo público de seguro de saúde em cumprimento de uma obrigação legal »

No processo C‑248/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), por Decisão de 30 de março de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de abril de 2023, no processo

Novo Nordisk A/S

contra

Nemzeti Adó és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de março de 2024,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Novo Nordisk A/S, por T. Bodrogi‑Szabó, Z. Hegymegi‑Barakonyi e G. Riszter, ügyvédek,

–        em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por V. Bottka e J. Jokubauskaitė, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 6 de junho de 2024,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Novo Nordisk A/S à Nemzeti Adó‑ és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága (Direção de Recursos da Administração Nacional Tributária e Aduaneira, Hungria) (a seguir «Direção de Recursos») a respeito da recusa desta última em conceder à Novo Nordisk o direito de deduzir do valor tributável do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) as contribuições que pagou, por força de uma obrigação legal, ao Nemzeti Egészségbiztosítási Alapkezelő (organismo gestor do Fundo Nacional de Seguro de Saúde, Hungria) (a seguir «NEAK»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do artigo 73.° da Diretiva IVA:

«Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.° a 77.°, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»

4        O artigo 78.° desta diretiva tem a seguinte redação:

«O valor tributável inclui os seguintes elementos:

a)      Os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com exceção do próprio IVA;

b)      As despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro, exigidas pelo fornecedor ao adquirente ou ao destinatário.

Para efeitos da alínea b) do primeiro parágrafo, os Estados‑Membros podem considerar despesas acessórias as que sejam objeto de convenção separada.»

5        O capítulo 5 do título VII da referida diretiva, sob a epígrafe «Disposições diversas», contém o seu artigo 90.°, que prevê:

«1.      Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados‑Membros.

2.      Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados‑Membros podem derrogar o disposto no n.° 1.»

6        O artigo 401.° da mesma diretiva dispõe:

«Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, as disposições da presente diretiva não impedem que um Estado-Membro mantenha ou introduza impostos sobre contratos de seguros e sobre jogos e apostas, impostos especiais de consumo, direitos de registo e, em geral, todos os impostos, direitos e taxas que não tenham a natureza de impostos sobre o volume de negócios, desde que a cobrança desses impostos, direitos e taxas não dê origem, nas trocas comerciais entre Estados‑Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.»

 Direito húngaro

7        Nos termos do artigo 65.° da az általános forgalmi adóról szóló 2007. évi CXXVII. törvény (Lei CXXVII de 2007, relativa ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado) [Magyar Közlöny 2007/155 (XI.16.)]:

«Nas entregas de bens e nas prestações de serviços, o valor tributável, exceto se a presente lei dispuser de outra forma, será constituído pela contraprestação pecuniária obtida ou a obter por quem tenha recebido ou a deva receber do adquirente do bem, do destinatário do serviço ou de um terceiro, incluindo qualquer subvenção, independentemente da forma que esta tenha, que influencie diretamente o preço da entrega ou da prestação.»

8        O artigo 36.° da biztonságos és gazdaságos gyógyszer‑ és gyógyászati segédeszköz‑ellátás, valamint a gyógyszerforgalmazás általános szabályairól szóló 2006. évi XCVIII. törvény (Lei XCVIII de 2006, relativa às Disposições Gerais Aplicáveis ao Fornecimento Fiável e Economicamente Viável de Medicamentos e de Dispositivos Médicos e à Comercialização de Medicamentos) [Magyar Közlöny 2006/146.(XI.29), a seguir «Gyftv»] prevê, no n.° 1:

«Os titulares da autorização de introdução no mercado de medicamentos ou, caso estes não exerçam nenhuma atividade de distribuição no país, os distribuidores — designados por acordo celebrado entre eles e aprovado pela autoridade tributária estatal — ou, como os titulares de um pedido de subvenção da segurança social para um preparado ou, caso esse preparado não seja por ele distribuído, os distribuidores [...], estão sujeitos, no que respeita aos medicamentos e aos preparados [...] comercializados em farmácias e que beneficiam de qualquer financiamento público — com exceção dos medicamentos referidos no artigo 38.°, n.° 1, e dos preparados visados pela regulamentação relativa às fórmulas para lactentes e fórmulas de transição — à obrigação de pagar 20 % sobre uma parte da subvenção da segurança social — baseada nos dados de comercialização de acordo com as prescrições médicas do mês de referência — proporcionalmente ao preço de produção ou ao preço de importação [...]. Os titulares da autorização de introdução no mercado do medicamento estão sujeitos, no que respeita aos preparados abrangidos pela regulamentação relativa às fórmulas para lactentes e fórmulas de transição comercializados em farmácias e que beneficiam de qualquer financiamento público, à obrigação de pagar 10 % sobre uma parte da subvenção da segurança social — baseada nos dados de comercialização segundo as prescrições médicas do mês de referência — proporcionalmente ao preço de produção (preço de produção/preço de consumo). O cálculo da obrigação de pagamento é efetuado para cada produto e para cada tipo de subvenção. [...]»

9        O artigo 37.° da Gyftv tem a seguinte redação:

«(1)      O organismo de seguro de doença responsável pela gestão do Fundo Nacional de Seguro de Doença comunica ao devedor ou publica no seu sítio Internet, o mais tardar até ao dia 10 do segundo mês civil seguinte ao mês de referência, os dados relativos à subvenção e à comercialização necessários para cumprir as obrigações de pagamento previstas no artigo 36.°, n.os 1 e 2.

(2)      Por força das obrigações de pagamento previstas no artigo 36.°, n.os 1 e 2, o titular da autorização de introdução no mercado do medicamento e o titular da autorização de distribuição por grosso do medicamento devem apresentar, o mais tardar até ao dia 20 do terceiro mês seguinte ao mês de referência, uma declaração à autoridade tributária estatal utilizando o formulário disponibilizado por esta última e, simultaneamente, efetuar o pagamento na conta aberta para este fim específico pela autoridade tributária junto do Tesouro Público.»

10      O artigo 40.° da Gyftv enuncia:

«A autoridade tributária estatal

a)      imediatamente após a cobrança dos montantes cobrados nos  termos do artigo 36.°, n.os 1, 2, 4 e 4a;

b)      [revogado]

transfere-os para a conta do Fundo Nacional de Seguro de Doença aberta junto do Tesouro Público, identificada por disposição específica.»

11      O artigo 40.°/A da Gyftv dispõe:

«(1)      Para além do pagamento previsto no artigo 36.°, n.° 1, o titular da autorização de introdução no mercado de um medicamento ou, caso este não exerça nenhuma atividade de distribuição no país, os distribuidores — designados por acordo celebrado entre eles e aprovado pela autoridade tributária estatal — […] estão sujeitos, no que respeita aos medicamentos comercializados em farmácias e que beneficiam de qualquer financiamento público há, pelo menos, seis anos, cujo preço, tomado como base para esse financiamento, ultrapasse 1 000 forintes [(aproximadamente 2,63 euros)], à obrigação de pagar 10 % sobre uma parte da subvenção da segurança social, baseada nos dados de comercialização segundo as prescrições médicas do mês de referência, proporcionalmente ao preço de produção ou ao preço de importação, desde que não exista outro produto que beneficie igualmente de um financiamento público e cuja substância ativa e via de administração sejam idênticas às do produto em questão, mas que seja comercializado sob uma marca distinta por um titular da autorização de introdução no mercado diferente. O cálculo da obrigação de pagamento é efetuado para cada produto e para cada tipo de subvenção.

[...]

(5)      A autoridade tributária estatal deve informar o organismo de seguro de saúde da aprovação do acordo celebrado entre o titular da autorização de introdução no mercado e o distribuidor, a que se refere o n.° 1, no prazo de oito dias a contar da data da autorização.

(6)      O organismo de seguro de saúde responsável pela gestão do Fundo Nacional de Seguro de Doença comunica ao devedor ou publica no seu sítio Internet, o mais tardar até ao dia 10 do segundo mês civil seguinte ao mês de referência, os dados relativos à subvenção e à comercialização necessários para cumprir a obrigação de pagamento prevista no n.° 1.

(7)      Por força da obrigação de pagamento prevista no n.° 1, o titular da autorização de introdução no mercado do medicamento deve apresentar, o mais tardar até ao dia 20 do terceiro mês seguinte ao mês de referência, uma declaração à autoridade tributária estatal utilizando o formulário disponibilizado por esta última e, simultaneamente, efetuar o pagamento na conta aberta para este fim específico pela autoridade tributária junto do Tesouro Público.

(8)      O organismo de seguro de saúde responsável pela gestão do Fundo Nacional de Seguro de Doença presta, juntamente com o serviço de comunicação de dados referido no n.° 6, um serviço de comunicação eletrónica de dados a favor da autoridade tributária estatal relativamente aos dados necessários para o controlo dos devedores.

(9)      A autoridade tributária estatal transfere o montante cobrado nos termos do n.° 1 para a conta do Fundo Nacional de Seguro de Doença aberta junto do Tesouro público, identificada por disposição específica, efetuando essa transferência imediatamente após o pagamento ter sido realizado.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

12      A Novo Nordisk é uma sociedade registada na Dinamarca que se dedica à produção e comercialização de medicamentos. No âmbito das suas atividades, esta sociedade vende os seus medicamentos na Hungria.

13      A comercialização a retalho dos medicamentos neste Estado‑Membro efetua‑se, com exceção dos hospitais, por intermédio das farmácias. As farmácias compram a distribuidores grossistas e os grossistas a empresas de distribuição farmacêutica, tais como a Novo Nordisk.

14      Determinados medicamentos podem ser subvencionados pelo NEAK, através de um sistema de «subvenção do preço de compra». Em virtude deste sistema, o NEAK concede uma subvenção sobre o preço de compra dos medicamentos vendidos mediante receita médica e comparticipados pela segurança social no âmbito de tratamentos ambulatórios (a seguir «subvenção da segurança social»). O pagamento do preço do medicamento subsidiado reparte‑se entre o NEAK e o paciente. Este paciente paga à farmácia um montante, dito «preço subvencionado», que corresponde à diferença entre o preço do medicamento e o montante da subvenção da segurança social. O NEAK reembolsa a posteriori à farmácia o montante desta subvenção. O preço dos medicamentos recebidos pelas farmácias, que constitui o valor tributável do imposto sobre o valor acrescentado, tem, por isso, duas componentes, por um lado, a subvenção da segurança social e, por outro, o «preço subvencionado» pago pelo paciente. A farmácia é obrigada a pagar o IVA tanto sobre o montante pago pelo paciente como sobre a soma paga pelo NEAK.

15      Por um lado, a Novo Nordisk pertence a um grupo de empresas que celebrou com o NEAK, em nome próprio e por conta da Novo Nordisk, contratos relativos à carteira de produtos subvencionados e ao volume de preços (a seguir «contratos sobre o volume de comparticipação»). Nos termos dos contratos sobre o volume de comparticipação, a Novo Nordisk comprometia‑se a pagar ao NEAK, sobre a quantidade dos medicamentos que comercializava, contribuições de montante definido nos contratos, deduzidas do volume de negócios proveniente da venda desses medicamentos.

16      Por outro lado, por força do artigo 36.°, n.° 1, e do artigo 40.°/A, n.° 1, da Gyftv, a Novo Nordisk, enquanto distribuidora de medicamentos, está sujeita a uma obrigação legal de pagamento de montantes correspondentes a 20 % e a 10 %, respetivamente, de uma parte das subvenções da segurança social relativa a todos os medicamentos que vendeu, distribuídos em farmácia e que beneficiam de financiamento por fundos públicos (a seguir «obrigação legal»).

17      Os montantes devidos a título desta obrigação são depositados na conta da autoridade tributária que os transfere imediatamente para a conta do Fundo Nacional de Seguro de Doença gerida pelo NEAK.

18      Ao cumprir a referida obrigação, a Novo Nordisk renuncia a uma fração da contrapartida que obteve dos grossistas pela venda dos medicamentos, reduzindo assim o seu volume de negócios numa percentagem predeterminada e fixada pela legislação nacional. A própria existência da obrigação legal e, sendo caso disso, o montante global dependem da quantidade de medicamentos vendidos e do montante da subvenção da segurança social.

19      Na sua qualidade de distribuidora de medicamentos, a Novo Nordisk apresentou à autoridade tributária de primeiro grau uma declaração retificativa de IVA relativa ao mês de janeiro de 2016, que incluía uma redução do valor tributável para o período em causa. O montante desta redução correspondia aos pagamentos efetuados pela Novo Nordisk por força dos contratos sobre o volume de comparticipação da obrigação legal.

20      A autoridade tributária de primeiro grau rejeitou esta declaração retificativa, considerando que a mesma não permitia a redução a posteriori do valor tributável.

21      A Direção de Recursos, chamada a pronunciar‑se sobre a reclamação apresentada pela Novo Nordisk contra esta decisão, considerou, baseando‑se no Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim (C‑717/19, EU:C:2021:818), que a Novo Nordisk podia deduzir do valor tributável os montantes que pagou ao abrigo dos contratos sobre o volume de comparticipação.

22      No entanto, a Direção de Recursos recusou deduzir desse valor tributável os pagamentos efetuados pela Novo Nordisk por força da obrigação legal (a seguir «pagamentos controvertidos»). A Direção de Recursos considerou que estes pagamentos, que tinham sido efetuados em cumprimento de uma obrigação prevista na lei, não constituem uma redução do preço dedutível do valor tributável do IVA. Com efeito, os pagamentos efetuados nos termos do artigo 36.°, n.° 1, e do artigo 40.°/A, n.° 1, da Gyftv devem ser considerados um imposto, uma vez que, por um lado, não se destinam ao consumidor final mas à autoridade tributária e, por outro, são essencialmente um meio para atingir objetivos orçamentais e de saúde.

23      A Novo Nordisk interpôs recurso da Decisão da Direção de Recursos no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

24      Baseando‑se na jurisprudência resultante dos Acórdãos de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs (C‑317/94, EU:C:1996:400), e de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma (C‑462/16, EU:C:2017:1006), esse órgão jurisdicional considera, antes de mais, que o NEAK deve ser considerado o consumidor final das entregas de medicamentos efetuadas pela Novo Nordisk. Com efeito, a circunstância de o beneficiário direto destas entregas não ser o NEAK que reembolsa a posteriori o montante da subvenção à farmácia, mas os próprios segurados que lhe pagam o preço subvencionado, não é suscetíveis de romper o vínculo direto que existe entre as referidas entregas e a contrapartida recebida, pelo que o montante recebido pela autoridade tributária não pode ser superior ao que foi pago pelo consumidor final.

25      Em seguida, o referido órgão jurisdicional observa que a exposição de motivos do projeto de lei que institui a obrigação legal qualifica os pagamentos controvertidos de entrega.

26      Por último, a obrigação legal assemelha‑se a uma redução de preço, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, uma vez que, nas circunstâncias do processo principal, a Novo Nordisk não recebeu a totalidade da contrapartida pelos produtos que vendeu.

27      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre a questão de saber se a circunstância de os pagamentos controvertidos serem efetuados em cumprimento de uma obrigação prevista por lei obsta à sua qualificação de redução de preço, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA. 

28      Nestas condições, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva [IVA], ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional em causa no processo principal, segundo a qual uma empresa farmacêutica que efetua ex lege pagamentos ao organismo estatal de seguro de saúde em função do volume de negócios resultante da venda de produtos farmacêuticos que beneficiam de financiamento público não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável, pelo facto de os pagamentos serem efetuados ex lege, sendo que se deduzem da base da obrigação de pagamento tanto os pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação como os investimentos realizados pela empresa em investigação e desenvolvimento para o setor da saúde, e sendo o montante devido cobrado pela autoridade tributária estatal, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde?»

 Quanto à questão prejudicial

29      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual uma empresa farmacêutica que está obrigada a entregar, ao organismo estatal de seguro de saúde, uma parte do seu volume de negócios resultante da venda dos seus produtos farmacêuticos que beneficiam de um financiamento público, não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues, tendo em conta que estes são efetuados ex lege, que a sua base tributável pode ser reduzida através de dedução dos pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação e das despesas efetuadas pela empresa para efeitos de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, e que o montante devido é cobrado pela autoridade tributária, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde.

30      Nos termos do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, os Estados‑Membros são obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 41 e jurisprudência referida).

31      No que respeita ao contexto em que se insere esta disposição, importa salientar que o artigo 73.° da Diretiva IVA prevê que o valor tributável compreende, nas entregas de bens e nas prestações de serviços, tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.

32      A este respeito, importa recordar que o princípio de base do sistema do IVA assenta no facto de o IVA se destinar unicamente a onerar o consumidor final e a ser perfeitamente neutro em relação aos sujeitos passivos que intervêm no processo de produção e de distribuição anterior à fase de tributação final, independentemente do número de transações ocorridas (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 39 e jurisprudência referida).

33      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a Novo Nordisk vende, no mercado húngaro, medicamentos subvencionados pelo NEAK, por intermédio de grossistas, às farmácias que os revendem a pessoas cobertas por esse seguro estatal mediante o pagamento por estas da diferença entre o preço do medicamento e o montante da subvenção da segurança social paga diretamente pelo NEAK às farmácias. Em cumprimento da obrigação legal, a Novo Nordisk paga ao NEAK, por intermédio da autoridade tributária, montantes correspondentes a 20 % e a 10 %, respetivamente, de uma parte das subvenções da segurança social relativas a esses medicamentos que vendeu, distribuídos em farmácias. Estes montantes são deduzidos dos rendimentos da venda desses medicamentos. Mesmo que o destinatário formal dos pagamentos controvertidos seja a autoridade tributária, esta é obrigada a transferir imediatamente os montantes pagos ao NEAK.

34      Neste contexto, tanto a autoridade tributária como o Governo Húngaro consideram que as modalidades segundo as quais os pagamentos controvertidos foram efetuados pela Novo Nordisk justificam a sua qualificação de imposto, na aceção do artigo 78.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva IVA, e, consequentemente, que esses pagamentos devem ser incluídos no valor tributável da entrega dos medicamentos.

35      A este respeito, o Tribunal de Justiça já indicou que, para que impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos possam integrar o valor tributável do IVA, ainda que não representem valor acrescentado e não constituam a contrapartida económica da entrega de bens ou da prestação de serviços, devem apresentar um nexo direto com essa transmissão ou essa prestação e que a questão de saber se o facto gerador do imposto, do direito aduaneiro, da taxas e dos demais encargos em causa coincide com o do IVA é um elemento determinante para demonstrar a existência desse nexo (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de maio de 2010, Comissão/Polónia, C‑228/09, EU:C:2010:295, n.° 30, e de 11 de junho de 2015, Lisboagás GDL, C‑256/14, EU:C:2015:387, n.° 29 e jurisprudência referida).

36      Antes de mais, afigura‑se, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que os pagamentos controvertidos não representam um valor acrescentado.

37      Em seguida, há que verificar que, na medida em que a parte do preço de venda dos medicamentos subvencionados que é paga ao NEAK pela Novo Nordisk, por intermédio da autoridade tributária, é previamente fixada e é obrigatória, não se pode considerar que faz parte da contrapartida económica das entregas desses medicamentos realmente recebida pela Novo Nordisk (v., neste sentido, Acórdão de 19 de julho de 2012, International Bingo Technology, C‑377/11, EU:C:2012:503, n.° 28).

38      Por último, resulta da decisão de reenvio, por um lado, que o acontecimento no termo do qual a obrigação legal prevista no artigo 36.°, n.° 1, e no artigo 40.°/A, n.° 1, da Gyftv se impõe ao sujeito passivo é a venda dos medicamentos e, por outro, que o montante global devido a título dessa obrigação é determinado em função da quantidade de medicamentos vendidos e do montante da subvenção da segurança social.

39      Quanto ao direito, reconhecido pela legislação nacional, de as sociedades farmacêuticas deduzirem do montante dos pagamentos controvertidos as contribuições pagas no âmbito dos contratos sobre o volume de comparticipação relativas ao período de referência, deduzidas do IVA, bem como as despesas destinadas à investigação e ao desenvolvimento, há que salientar que, embora o exercício desse direito possa, se for caso disso, reduzir o montante desses pagamentos, não tem qualquer efeito sobre o facto de, tendo em conta as considerações expostas nos n.os 36 a 38 do presente acórdão, os referidos pagamentos poderem ser qualificados de imposto, na aceção do artigo 78.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva IVA. 

40      Por um lado, o NEAK é o beneficiário final dos pagamentos efetuados tanto a título da obrigação legal como a título dos contratos sobre o volume de comparticipação.

41      Por outro lado, o Governo Húngaro não apresentou nenhum esclarecimento sobre as modalidades de funcionamento do mecanismo de dedução do montante dos pagamentos decorrentes da obrigação legal das despesas de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, pelo que nada permite deduzir deste direito que o mesmo seja pertinente para considerar que os pagamentos controvertidos são impostos que devem ser incluídos no valor tributável do IVA, em conformidade com o artigo 78.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva IVA.

42      Nestas circunstâncias, o facto gerador dos pagamentos controvertidos pode coincidir com o facto gerador do IVA devido sobre os medicamentos subvencionados e comercializados. Por conseguinte, estes pagamentos podem, ao abrigo do artigo 78.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva IVA, ser incluídos no valor tributável do IVA.

43      No que respeita à questão de saber se os montantes pagos por empresas farmacêuticas aos organismos de segurança social por ocasião de uma venda de medicamentos subvencionados podem, no entanto, ser abrangidos pelo artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, há que recordar, por um lado, que o Tribunal de Justiça já declarou que o desconto concedido, ao abrigo de uma lei nacional, por uma empresa farmacêutica a uma empresa privada de seguros de saúde implica, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, uma redução do valor tributável a favor desta empresa farmacêutica, quando sejam efetuadas entregas de produtos farmacêuticos por intermédio de grossistas a farmácias que efetuam essas entregas a pessoas cobertas por um seguro de saúde privado que reembolsa aos seus segurados o preço que pagaram pela aquisição dos produtos farmacêuticos (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma, C‑462/16, EU:C:2017:1006, n.° 46).

44      A este respeito, é irrelevante a argumentação do Governo Húngaro segundo a qual, no processo que deu origem a esse acórdão, o caráter privado da empresa de seguros de saúde constituía uma diferença primordial, ao passo que, no caso em apreço, os pagamentos controvertidos têm caráter de receita fiscal. Com efeito, como resulta do n.° 33 do presente acórdão, o beneficiário real dos pagamentos controvertidos não é a autoridade tributária, mas o NEAK, que os utiliza para a subvenção do preço de compra dos medicamentos, da mesma forma que nesse processo.

45      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA se opõe a uma legislação nacional que prevê que uma empresa farmacêutica não pode deduzir do seu valor tributável do IVA a parte do seu volume de negócios proveniente da venda de medicamentos subvencionados pelo organismo estatal do seguro de saúde que paga a esse organismo, com base num contrato celebrado entre este último e essa empresa, com o fundamento de que os montantes pagos a esse título não foram determinados com base nas modalidades previamente fixadas por essa empresa no quadro da sua política comercial e que esses pagamentos não foram efetuados com fins promocionais (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 55).

46      Ora, as modalidades segundo as quais, no caso em apreço, os pagamentos controvertidos foram efetuados por força da obrigação legal não podem pôr em causa a qualificação desses pagamentos como redução de preço, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA.

47      Com efeito, primeiro, o Tribunal de Justiça já esclareceu que o âmbito de aplicação do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA abrange as reduções de preços resultantes tanto dos contratos celebrados entre uma empresa farmacêutica e um organismo estatal do seguro de saúde como de obrigações legais como as que estão em causa no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.os 48 e 49).

48      Além disso, as partes no processo confirmaram na audiência que a finalidade dos pagamentos efetuados por força da obrigação legal é idêntica à dos pagamentos efetuados com base nos contratos sobre o volume de comparticipação celebrados entre o organismo de segurança social e as empresas farmacêuticas, a saber, subvencionar o preço de compra dos medicamentos vendidos mediante receita médica e comparticipados pela segurança social no âmbito de tratamentos ambulatórios.

49      Segundo, a circunstância de, no processo principal, o beneficiário direto das entregas dos medicamentos em causa não ser o organismo estatal do seguro de saúde que reembolsa a posteriori o montante da subvenção à farmácia, mas sim os próprios segurados que pagam o preço subvencionado à farmácia, não é suscetível de romper o nexo direto que existe entre a entrega de bens efetuada e a contrapartida recebida (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 45 e jurisprudência referida).

50      Com efeito, uma vez que a farmácia deve pagar o IVA não só sobre o montante pago pelo paciente mas também sobre o montante que lhe é pago pelo organismo estatal do seguro de saúde para os medicamentos subvencionados, deve considerar‑se que este último interveio como consumidor final de uma entrega efetuada por uma empresa farmacêutica sujeita a IVA, pelo que o montante recebido pela autoridade tributária não pode ser superior ao que foi pago pelo consumidor final (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 46 e jurisprudência referida).

51      A este respeito, no que se refere à determinação do consumidor final, não é pertinente o argumento apresentado pelo Governo Húngaro de que os montantes devidos a título da obrigação legal são recebidos pela autoridade tributária. Com efeito, como foi recordado no n.° 44 do presente acórdão, esta última transfere imediatamente esses montantes para o NEAK, que concede uma subvenção relativa ao preço de compra dos medicamentos vendidos mediante receita médica e comparticipados pela segurança social no âmbito de tratamentos ambulatórios.

52      Ora, o mecanismo dessa transferência imediata milita a favor da qualificação dos pagamentos controvertidos de redução de preço na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA.

53      Contrariamente ao que alega o Governo Húngaro, o artigo 401.° desta diretiva não se opõe a esta interpretação, tendo em conta o contexto deste artigo. Com efeito, a circunstância de os Estados‑Membros poderem manter ou introduzir determinados impostos, direitos ou taxas nas condições previstas neste artigo não obsta, de modo nenhum, a que esses impostos, direitos ou taxas devam, por força do artigo 78.°, primeiro parágrafo, alínea a), da referida diretiva, ser tidos em conta para efeitos da determinação do valor tributável do IVA, a título de redução do preço, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da mesma diretiva.

54      Além disso, resulta da decisão de reenvio que, através dos pagamentos controvertidos, a Novo Nordisk renuncia a uma fração da contrapartida paga pelo grossista.

55      Ora, não seria conforme com o princípio da neutralidade fiscal recordado no n.° 32 do presente acórdão que o valor tributável com base na qual é calculado o IVA devido pela empresa farmacêutica, enquanto sujeito passivo, fosse mais elevada do que o montante que esta acaba por receber. Se assim fosse, este princípio não seria respeitado (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 44, e jurisprudência aí referida).

56      Assim, uma vez que uma parte da contrapartida obtida na sequência da venda dos medicamentos pela empresa farmacêutica não foi recebida por esta última devido à contribuição que envia ao organismo estatal de seguro de saúde, que paga às farmácias uma parte do preço desses medicamentos, há que considerar que o preço desses medicamentos foi reduzido depois de efetuada a operação, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.° 47).

57      Com efeito, a empresa farmacêutica não pôde dispor livremente da totalidade do preço recebido aquando da venda dos seus produtos às farmácias ou aos grossistas (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma, C‑462/16, EU:C:2017:1006, n.° 43 e jurisprudência referida).

58      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual uma empresa farmacêutica que está obrigada a entregar, ao organismo estatal de seguro de saúde, uma parte do seu volume de negócios resultante da venda dos seus produtos farmacêuticos que beneficiam de um financiamento público, não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues, tendo em conta que estes são efetuados ex lege, que a sua base tributável pode ser reduzida através de dedução dos pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação e das despesas efetuadas pela empresa para efeitos de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, e que o montante devido é cobrado pela autoridade tributária, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde.

 Quanto às despesas

59      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual uma empresa farmacêutica que está obrigada a entregar, ao organismo estatal de seguro de saúde, uma parte do seu volume de negócios resultante da venda dos seus produtos farmacêuticos que beneficiam de um financiamento público, não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues, tendo em conta que estes são efetuados ex lege, que a sua base tributável pode ser reduzida através de dedução dos pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação e das despesas efetuadas pela empresa para efeitos de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, e que o montante devido é cobrado pela autoridade tributária, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.