ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

29 de julho de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política de imigração — Diretiva (UE) 2016/801 — Condições de entrada e de residência de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos — Artigo 20.o, n.o 2, alínea f) — Pedido de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos — Outras finalidades — Recusa de visto — Motivos de recusa — Não transposição — Princípio geral de proibição de práticas abusivas — Artigo 34.o, n.o 5 — Autonomia processual dos Estados‑Membros — Direito fundamental à ação — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑14/23 [Perle] ( i ),

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), por Decisão de 23 de dezembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de janeiro de 2023, no processo

XXX

contra

État belge, representado pela secrétaire d’État à l’Asile et la Migration,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan (relator), presidente de secção, Z. Csehi e I. Jarukaitis, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 11 de outubro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação de XXX, por D. Andrien, avocat,

em representação do Governo Belga, por M. Jacobs, C. Pochet e M. Van Regemorter, na qualidade de agentes, assistidas por E. Derriks e K. de Haes, avocats,

em representação do Governo Checo, por M. Smolek, J. Očková e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Lituano, por E. Kurelaitytė, na qualidade de agente,

em representação do Governo Luxemburguês, por A. Germeaux e T. Schell, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér, na qualidade de agente,

em representação do Governo Neerlandês, por E. M. M. Besselink, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por J. Hottiaux e A. Katsimerou, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva (UE) 2016/801 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, relativa às condições de entrada e de residência de nacionais de países terceiros para efeitos de investigação, de estudos, de formação, de voluntariado, de programas de intercâmbio de estudantes, de projetos educativos e de colocação au pair (JO 2016, L 132, p. 21), nomeadamente o artigo 3.o, ponto 3, o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), e o artigo 34.o, n.o 5, da mesma diretiva, bem como do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe XXX ao État belge (Estado Belga), representado pela secrétaire d’État à l’Asile et la Migration (Secretária de Estado do Asilo e da Migração), a respeito da recusa deste em lhe conceder a autorização de residência requerida para prosseguir estudos na Bélgica.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 2, 3, 14, 41 e 60 da Diretiva 2016/801 enunciam:

«(2)

A presente diretiva deverá responder à necessidade identificada nos relatórios de aplicação das Diretivas 2004/114/CE [do Conselho, de 13 de dezembro de 2004, relativa às condições de admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos, de intercâmbio de estudantes, de formação não remunerada ou de voluntariado (JO 2004, L 375, p. 12)] e 2005/71/CE [do Conselho, de 12 de outubro de 2005, relativa a um procedimento específico de admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de investigação científica (JO 2005, L 289, p. 15)], para colmatar as insuficiências assinaladas, assegurar maior transparência e maior segurança jurídica e estabelecer um quadro jurídico coerente para as diferentes categorias de nacionais de países terceiros que entram na União [Europeia]. Por conseguinte, a presente diretiva deverá simplificar e racionalizar, através de um único instrumento jurídico, as atuais disposições aplicáveis a essas categorias de nacionais. Apesar das diferenças existentes entre as categorias abrangidas pela presente diretiva, essas pessoas partilham igualmente um conjunto de características semelhantes, que é possível regulamentar mediante um quadro jurídico comum a nível da União.

(3)

A presente diretiva contribui para realizar o objetivo do Programa de Estocolmo, que consiste em aproximar as legislações nacionais que regulam as condições de entrada e de residência dos nacionais de países terceiros. A imigração com origem em países terceiros representa uma reserva de pessoas altamente qualificadas, sendo especialmente procurados os estudantes do ensino superior e os investigadores. Estas pessoas desempenham, com efeito, um papel determinante na formação do principal ativo da União, o capital humano, visando assegurar um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, contribuindo, portanto, para a realização dos objetivos da estratégia “Europa 2020”.

[…]

(14)

A fim de promover a Europa no seu conjunto como centro mundial de excelência para os estudos e a formação, as condições de entrada e de residência das pessoas que pretendem entrar na União para esses efeitos deverão ser melhoradas e simplificadas. […]

[…]

(41)

Caso haja dúvidas a respeito dos fundamentos do pedido de admissão, os Estados‑Membros devem poder efetuar os controlos apropriados ou exigir provas para avaliarem, caso a caso, a investigação, os estudos, a formação, o voluntariado, o programa de intercâmbio de estudantes do ensino secundário, o projeto educativo ou a colocação “au pair” que o requerente pretende efetuar e combaterem a utilização abusiva e indevida do procedimento estabelecido na presente diretiva.

[…]

(60)

Os Estados‑Membros deverão assegurar que sejam colocadas à disposição do público, nomeadamente através da internet, informações adequadas e regularmente atualizadas sobre as entidades de acolhimento aprovadas e sobre as condições e os procedimentos de admissão de nacionais de países terceiros no seu território para efeitos da presente diretiva.»

4

O artigo 3.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“estudante do ensino superior”, o nacional de um país terceiro que tenha sido aceite por uma instituição de ensino superior e admitido no território de um Estado‑Membro para frequentar, a título de atividade principal, numa instituição de ensino superior um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente à obtenção de um título de ensino superior reconhecido por esse Estado‑Membro, nomeadamente um diploma, um certificado ou um doutoramento, o que poderá abranger um curso de preparação para tais estudos nos termos do direito nacional ou formação obrigatória no programa de estudos;

[…]»

5

O artigo 5.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Princípios», tem a seguinte redação:

«1.   A admissão de nacionais de países terceiros ao abrigo da presente diretiva fica sujeita à verificação de provas documentais que certifiquem que essas pessoas preenchem:

a)

as condições gerais estabelecidas no artigo 7.o; e

b)

as condições específicas pertinentes previstas nos artigos 8.o, 11.o, 12.o, 13.o, 14.o ou 16.o

2.   Os Estados‑Membros podem exigir que o requerente apresente as provas documentais a que se refere o n.o 1 numa das línguas oficiais do Estado‑Membro em causa ou na língua oficial da União que esse Estado‑Membro determine.

3.   Caso todas as condições gerais e todas as condições específicas pertinentes estejam preenchidas, os nacionais de países terceiros têm o direito de obter a respetiva autorização.

Se um Estado‑Membro só emitir títulos de residência no seu território e estiverem preenchidas todas as condições de admissão previstas na presente diretiva, o Estado‑Membro em causa deve conceder ao nacional do país terceiro o visto solicitado.»

6

O artigo 7.o da Diretiva 2016/801, sob a epígrafe «Condições gerais», prevê, no n.o 1:

«No que respeita à admissão de nacionais de países terceiros ao abrigo da presente diretiva, os requerentes:

a)

apresentam um documento de viagem válido nos termos definidos pela legislação nacional e, se assim for exigido, um pedido de visto ou um visto válido ou, se aplicável, um título de residência ou um visto de longa duração igualmente válidos; os Estados‑Membros podem exigir que o período de validade do documento de viagem cubra pelo menos a duração prevista da estadia;

b)

se os nacionais de países terceiros forem menores de idade nos termos da legislação nacional do Estado‑Membro em causa, apresentam uma autorização parental ou um documento equivalente para a estadia prevista;

c)

comprovam que os nacionais de países terceiros possuem ou, se a legislação nacional assim o previr, requereram um seguro de doença que cubra todos os riscos contra os quais estão normalmente cobertos os nacionais do Estado‑Membro em causa. O período de validade do seguro cobrirá a duração prevista da estadia;

d)

se o Estado‑Membro o exigir, comprovam que pagaram a taxa fixada para o tratamento do pedido, prevista no artigo 36.o;

e)

a pedido do Estado‑Membro em causa, comprovam que, durante a estadia prevista, os nacionais de países terceiros disporão de recursos suficientes para cobrir as suas despesas de subsistência sem recorrer ao sistema de assistência social do Estado‑Membro, bem como para custear a viagem de regresso. A suficiência dos recursos é avaliada com base no exame individual do caso e tem em conta os recursos provenientes, nomeadamente, de uma subvenção ou bolsa de estudo, de um contrato de trabalho válido, de uma oferta firme de trabalho ou de um compromisso financeiro assumido por uma organização responsável por programas de intercâmbio de estudantes, por uma entidade de acolhimento de estagiários, por uma organização responsável por programas de voluntariado, por uma família de acolhimento ou por uma organização de colocação de pessoas “au pair”.»

7

O artigo 11.o desta diretiva, sob a epígrafe «Condições específicas aplicáveis aos estudantes do ensino superior», dispõe no n.o 1:

«Para além das condições gerais estabelecidas no artigo 7.o, no que respeita à admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos, o requerente deve comprovar:

a)

que os nacionais de países terceiros tenham sido aceites por uma instituição de ensino superior para efetuar um programa de estudos;

b)

que foi efetuado o pagamento das propinas cobradas pela instituição de ensino superior, se o Estado‑Membro assim o exigir;

c)

a posse de conhecimentos suficientes da língua em que é ministrado o programa de estudos frequentado, se o Estado‑Membro assim o exigir;

d)

que os nacionais de países terceiros possuem recursos suficientes para custear as despesas incorridas com os estudos a efetuar.»

8

O artigo 20.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Motivos de recusa», enuncia, nos n.os 1 e 2:

«1.   Os Estados‑Membros indeferem o pedido se:

a)

não estiverem reunidas as condições estabelecidas no artigo 7.o ou as condições específicas estabelecidas nos artigos 8.o, 11.o, 12.o, 13.o, 14.o ou 16.o;

b)

os documentos apresentados tiverem sido obtidos de modo fraudulento ou forjados ou falsificados;

c)

o Estado‑Membro em causa só conceder a admissão através de uma entidade de acolhimento aprovada, e a entidade de acolhimento não estiver aprovada.

2.   Os Estados‑Membros podem indeferir o pedido se:

[…]

f)

o Estado‑Membro tiver provas ou motivos sérios e objetivos para concluir que o nacional de um país terceiro pretende residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede admissão.»

9

O artigo 21.o da Diretiva 2016/801, sob a epígrafe «Motivos de retirada ou de não renovação da autorização», prevê, no n.o 1:

«Os Estados‑Membros retiram ou, quando aplicável, recusam a renovação de uma autorização se:

[…]

d)

o nacional de um país terceiro permanecer no território para efeitos diferentes daqueles para que foi autorizado a residir.»

10

Nos termos do artigo 24.o desta diretiva, sob a epígrafe «Atividades económicas de estudantes do ensino superior»:

«1.   Fora do período consagrado ao programa de estudos e sob reserva das regras e condições aplicáveis à atividade pertinente no Estado‑Membro em causa, os estudantes do ensino superior têm o direito de exercer uma atividade económica por conta de outrem e podem ser autorizados a exercer uma atividade económica por conta própria, sob reserva das limitações previstas no n.o 3.

2.   Se necessário, os Estados‑Membros concedem aos estudantes e/ou aos empregadores uma autorização prévia em conformidade com o direito nacional.

3.   Cada Estado‑Membro fixa o número máximo de horas por semana ou de dias ou meses por ano em que essa atividade é autorizada, o qual não será inferior a 15 horas por semana ou ao equivalente em dias ou meses por ano. Pode ser tida em conta a situação do mercado de trabalho no Estado‑Membro em causa.»

11

O artigo 34.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Garantias processuais e transparência», tem a seguinte redação:

«1.   As autoridades competentes do Estado‑Membro em causa decidem sobre o pedido de autorização ou sobre a renovação da mesma, e notificam a decisão ao requerente por escrito, o mais cedo possível mas o mais tardar 90 dias a contar da data de apresentação do pedido completo, em conformidade com os processos de notificação previstos na legislação nacional desse Estado‑Membro.

2.   Em derrogação do n.o 1 do presente artigo, no caso de o processo de admissão estar relacionado com uma entidade de acolhimento aprovada nos termos dos artigos 9.o e 15.o, a decisão sobre o pedido completo é tomada o mais rapidamente possível, no prazo máximo de 60 dias.

3.   Se as informações ou a documentação comprovativas do pedido forem incompletas, as autoridades competentes notificam ao requerente, num prazo razoável, as informações adicionais necessárias e fixam um prazo razoável para a sua apresentação. O prazo referido nos n.os 1 e 2 fica suspenso até que as autoridades competentes tenham recebido as informações complementares exigidas. Se as informações ou os documentos adicionais não forem apresentados dentro do prazo, o pedido pode ser indeferido.

4.   Os fundamentos da decisão que declara inadmissível ou indefere um pedido ou recusa a sua renovação são comunicados por escrito ao requerente. Os fundamentos da decisão de retirar uma autorização são comunicados por escrito ao nacional de um país terceiro. Os fundamentos da decisão de retirar uma autorização podem ser comunicados por escrito também à entidade de acolhimento.

5.   Qualquer decisão que declara inadmissível ou indefere um pedido, recusa a renovação ou cancela a autorização é passível de recurso no Estado‑Membro em causa, em conformidade com a legislação nacional. A notificação escrita especifica o tribunal ou a autoridade administrativa perante os quais pode ser interposto o recurso e o prazo para o interpor.»

12

O artigo 35.o da Diretiva 2016/801, sob a epígrafe «Transparência e acesso à informação», dispõe:

«Os Estados‑Membros facilitam o acesso dos requerentes à informação sobre todas as provas documentais necessárias ao pedido bem como à informação sobre entrada e permanência, incluindo os direitos, as obrigações e as garantias processuais dos nacionais de países terceiros abrangidos pela presente diretiva e, se aplicável, dos membros das suas famílias. Quando aplicável, esta informação inclui o nível suficiente de recursos mensais, nomeadamente os recursos necessários para cobrir as despesas decorrentes dos estudos ou da formação, sem prejuízo de uma análise individual de cada caso, e as taxas aplicáveis.

As autoridades competentes em cada um dos Estados‑Membros publicam as listas das entidades de acolhimento aprovadas para efeitos da presente diretiva. As versões atualizadas das referidas listas são publicadas o mais rapidamente possível depois de terem sido alteradas.»

13

O artigo 40.o desta diretiva, sob a epígrafe «Transposição», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros põem em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva até 23 de maio de 2018. Comunicam imediatamente à Comissão o texto dessas disposições.

Quando os Estados‑Membros adotarem essas disposições, estas incluem uma referência à presente diretiva ou são acompanhadas dessa referência aquando da sua publicação oficial. Incluem igualmente uma menção precisando que as remissões, nas disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor, para as diretivas revogadas pela presente diretiva, se entendem como sendo feitas para a presente diretiva. As modalidades dessa referência e a formulação dessa menção são estabelecidas pelos Estados‑Membros.

2.   Os Estados‑Membros comunicam à Comissão o texto das principais disposições de direito interno que adotarem nas matérias reguladas pela presente diretiva.»

Direito belga

14

Nos termos do artigo 58.o da loi du 15 décembre 1980 sur l’accès au territoire, le séjour, l’établissement et l’éloignement des étrangers (Lei de 15 de dezembro de 1980 sobre o Acesso dos Estrangeiros ao Território e a sua Permanência, Residência e Afastamento) (Moniteur belge de 31 de dezembro de 1980, p. 14584), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «Lei de 15 de dezembro de 1980»):

«Quando um pedido de autorização de residência no Reino por mais de três meses seja apresentado junto de um posto diplomático ou consular belga por um estrangeiro que pretenda realizar na Bélgica estudos de ensino superior ou neste país frequentar um ano de preparação para o ensino superior, essa autorização deve ser concedida se a pessoa interessada não se encontrar num dos casos previstos no artigo 3.o, 1.o e 5.o a 8.o parágrafos, e se apresentar os seguintes documentos:

1.

certificado passado por uma instituição de ensino em conformidade com o disposto no artigo 59.o;

2.

prova de que possui meios de subsistência suficientes;

3.

atestado médico do qual resulte que não sofre de uma das doenças ou enfermidades enumeradas no anexo da presente lei;

4.

certificado de inexistência de condenações por crimes de direito comum, se o interessado tiver mais de 21 anos de idade.

[…]»

15

O artigo 39/2.o, n.o 2, desta lei enuncia:

«O Conseil [du contentieux des étrangers (Bélgica)] [Conselho do Contencioso dos Estrangeiros (Bélgica)] decide da anulação, por acórdão, dos outros recursos por preterição de formalidades essenciais ou passíveis de nulidade, excesso ou desvio de poder.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16

Em 6 de agosto de 2020, a recorrente no processo principal, nacional de um país terceiro, apresentou, com base no artigo 58.o da Lei de 15 de dezembro de 1980, um pedido de visto para estudar na Bélgica.

17

Dado que a concessão desse visto lhe foi recusada por Decisão de 18 de setembro de 2020, com o fundamento de que do seu projeto de estudos resultavam incoerências que punham em causa uma intenção real de prosseguir os estudos na Bélgica, a recorrente no processo principal pediu, em 28 de setembro de 2020, a anulação dessa decisão ao Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), que indeferiu o seu pedido por Acórdão de 23 de dezembro de 2020.

18

O Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) salientou, nesse acórdão, que, nos termos do artigo 58.o da Lei de 15 de dezembro de 1980, o pedido de autorização de residência é apresentado por um nacional de um país terceiro que «pretenda realizar na Bélgica estudos de ensino superior ou neste país frequentar um ano de preparação para o ensino superior». Daí deduziu que esta disposição impõe às autoridades competentes que verifiquem a vontade real do requerente de estudar na Bélgica.

19

O Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) considerou também que era possível recusar a concessão do visto requerido com base neste artigo 58.o se a intenção do requerente não fosse estudar, porque, mesmo que o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2016/801 ainda não tivesse sido transposto para a ordem jurídica belga apesar de ter expirado o prazo de transposição previsto no artigo 40.o, n.o 1, da mesma diretiva, a faculdade de recusa prevista nesse artigo 20.o, n.o 2, alínea f), resultava também do referido artigo 58.o Considerou, assim, que a aplicação deste artigo 58.o era conforme com o referido artigo 20.o, n.o 2, alínea f).

20

Por petição de 19 de janeiro de 2021, a recorrente no processo principal interpôs no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), que é o órgão jurisdicional de reenvio, um recurso de cassação contra o referido acórdão.

21

No âmbito desse recurso, alega, em primeiro lugar, que o Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) considerou erradamente que a aplicação do artigo 58.o da Lei de 15 de dezembro de 1980, nas circunstâncias em causa no processo principal, era conforme com o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2016/801, dado que esta disposição não tinha sido transposta para o direito belga e que o direito nacional não especifica os motivos sérios e objetivos que permitem concluir que um nacional de um país terceiro pretende residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão no território belga.

22

A recorrente no processo principal alega também que, à luz da definição do conceito de «estudante do ensino superior», enunciada no artigo 3.o, ponto 3, desta diretiva, só é permitido assegurar que o nacional de um país terceiro que apresentou um pedido de visto para efeitos de estudos é admitido numa instituição de ensino superior, e não verificar se o requerente tem a intenção de estudar.

23

O Estado Belga sustenta, em contrapartida, que este artigo 58.o reconhece a faculdade de as autoridades competentes verificarem a intenção de estudar do requerente, em conformidade com o considerando 41 da referida diretiva, independentemente da transposição do artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta, pelo que é possível exigir todas as provas necessárias para avaliar o propósito do pedido de admissão.

24

O órgão jurisdicional de reenvio entende que, uma vez que o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2016/801 permite indeferir o pedido apresentado com fundamento nesta diretiva se se verificar que o nacional de um país terceiro tem a tenção de residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão, os Estados‑Membros têm necessariamente o direito de verificar se a intenção desse nacional é realmente prosseguir estudos no Estado‑Membro de acolhimento. Todavia, considera que há que questionar o Tribunal de Justiça a este respeito, tendo em conta as suas dúvidas e o facto de decidir em última instância.

25

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio considera que importa também questionar o Tribunal de Justiça para determinar se, como sustenta a recorrente no processo principal, a aplicação do artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da referida diretiva exige, para justificar o indeferimento de um pedido de residência, por um lado, que a legislação nacional preveja expressamente que esse pedido pode ser indeferido quando o Estado‑Membro de acolhimento tiver provas ou motivos sérios e objetivos para concluir que o nacional de um país terceiro tem a intenção de residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão, e, por outro, que a legislação nacional especifique quais são as provas ou os motivos sérios e objetivos que permitem concluir que é esse o caso.

26

Em segundo lugar, a recorrente no processo principal alega que as modalidades da fiscalização exercida pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), que se limita a uma fiscalização da legalidade, violam as exigências decorrentes do direito da União. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o artigo 34.o, n.o 5, da Diretiva 2016/801 impõe aos Estados‑Membros que prevejam que as decisões de indeferimento dos pedidos de residência sejam passíveis de recurso e considera que as modalidades processuais desse recurso devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade.

27

Recorda que o recurso previsto no direito belga, no artigo 39/2, n.o 2, da Lei de 15 de dezembro de 1980, é um recurso de anulação e que se trata de uma fiscalização da legalidade que não confere nenhum poder de revogação ao órgão jurisdicional competente, a saber, o Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), e que, por conseguinte, não lhe permite substituir a apreciação das autoridades administrativas competentes pela sua, nem tomar uma nova decisão em vez destas. No entanto, se essa decisão for anulada, estas autoridades estão obrigadas a respeitar a autoridade do caso julgado associada à parte dispositiva do acórdão e os respetivos fundamentos que lhe servem necessariamente de base.

28

Uma vez que a recorrente no processo principal alega que a inexistência de um poder de reforma do Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) é contrária às exigências decorrentes do artigo 34.o, n.o 5, da Diretiva 2016/801, do princípio da efetividade e do artigo 47.o da Carta, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é necessário questionar o Tribunal de Justiça a este respeito.

29

Nestas circunstâncias, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Atendendo ao artigo 288.o [TFUE], aos artigos 14.o e 52.o da [Carta], aos artigos 3.o, 5.o, 7.o, 11.o, 20.o, 34.o, 35.o e 40.o da Diretiva [2016/801] e aos seus considerandos 2 e 60, bem como aos princípios da segurança jurídica e da transparência, deve a faculdade de indeferimento do pedido de residência conferida ao Estado‑Membro pelo [artigo 20.o, n.o 2, alínea f),] [desta diretiva], para ser utilizada pelo referido Estado‑Membro, estar expressamente prevista na legislação deste último? Em caso de resposta afirmativa, devem os motivos sérios e objetivos estar especificados na sua legislação?

2)

O exame do pedido de visto para efeitos de realização de estudos impõe ao Estado‑Membro que verifique a vontade e a intenção do estrangeiro de realizar estudos, embora o artigo 3.o da Diretiva [2016/801] defina o estudante como um nacional de um país terceiro que tenha sido aceite numa instituição de ensino superior e os motivos de indeferimento do pedido referidos no artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta diretiva sejam facultativos e não vinculativos à semelhança dos que são enunciados no artigo 20.o, n.o 1, da referida diretiva?

3)

O artigo 47.o da [Carta], o princípio da efetividade e o artigo [34.o, n.o 5], da Diretiva [2016/801] exigem que o recurso, previsto no direito nacional que tenha por objeto uma decisão de indeferimento de um pedido de admissão no território para efeitos de realização de estudos, permita que o juiz substitua a apreciação da autoridade administrativa pela sua apreciação e que reforme a decisão dessa autoridade ou é suficiente que proceda a uma fiscalização da legalidade que permita ao juiz declarar uma ilegalidade, nomeadamente um erro manifesto de apreciação, anulando a decisão da autoridade administrativa?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto às duas primeiras questões

30

A título preliminar, importa observar que resulta tanto do pedido de decisão prejudicial como das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2016/801, que prevê que o Estado‑Membro em causa pode indeferir um pedido quando tiver provas ou motivos sérios e objetivos para concluir que o nacional de um país terceiro pretende residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão, só foi objeto de transposição expressa para o direito belga posteriormente à ocorrência dos factos que estão em causa no processo principal.

31

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, no Acórdão de 23 de dezembro de 2020 do Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), este considerou que, mesmo na falta de transposição desta disposição, as autoridades competentes têm a possibilidade, em conformidade com o direito da União, de indeferir um pedido de visto para estudar na Bélgica, quando a intenção real do requerente não é estudar.

32

Por outro lado, na audiência no Tribunal de Justiça, embora tendo confirmado que o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta diretiva ainda não tinha sido expressamente transposto para o direito nacional durante o período pertinente para o litígio em causa no processo principal, o Governo Belga precisou, na sequência das suas observações escritas, nas quais sustenta que as autoridades competentes têm a faculdade, independentemente da transposição desta disposição, de verificar a intenção do nacional de um país terceiro que apresentou um pedido de visto para prosseguir os estudos, que o litígio em causa no processo principal não diz respeito a essa transposição, mas ao conceito de «estudante do ensino superior», conforme definido no artigo 3.o, ponto 3, da referida diretiva.

33

Nestas circunstâncias, há que considerar que, com as suas duas primeiras questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2016/801, nomeadamente tendo em conta o artigo 3.o, ponto 3, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro, apesar de não ter transposto o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta diretiva, indefira um pedido de admissão no seu território para efeitos de estudos pelo facto de o nacional de um país terceiro ter apresentado esse pedido sem ter real intenção de estudar no território desse Estado‑Membro.

34

Ao abrigo do artigo 5.o, n.o 3, da referida diretiva, o nacional de um país terceiro que tenha apresentado tal pedido tem direito a uma autorização de residência no território do Estado‑Membro em causa se preencher as condições gerais consagradas no artigo 7.o da Diretiva 2016/801 e as condições específicas aplicáveis em função do tipo de pedido apresentado, no caso em apreço as previstas no artigo 11.o desta diretiva para os pedidos de admissão para efeitos de estudos.

35

Daqui resulta que, em aplicação deste artigo 5.o, n.o 3, os Estados‑Membros estão obrigados a emitir uma autorização de residência para efeitos de estudos ao requerente que tenha satisfeito os requisitos que figuram nos artigos 7.o e 11.o da referida diretiva (v., por analogia, Acórdão de 10 de setembro de 2014, Ben Alaya, C‑491/13, EU:C:2014:2187, n.o 31).

36

Ora, nenhum destes requisitos faz expressamente referência à existência de uma intenção real de prosseguir estudos no território do Estado‑Membro em causa.

37

Dito isto, segundo um princípio geral do direito da União, os particulares não podem invocar de forma fraudulenta ou abusiva as normas do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o.,C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o 96 e jurisprudência referida).

38

Daqui decorre que um Estado‑Membro deve recusar o benefício das disposições do direito da União quando estas são invocadas não para realizar os objetivos dessas disposições, mas com o objetivo de beneficiar de uma vantagem do direito da União quando as condições para beneficiar dessa vantagem apenas estão formalmente preenchidas (Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o., C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o 98).

39

Por conseguinte, o princípio geral da proibição de práticas abusivas deve ser oposto a uma pessoa quando esta invoca certas regras do direito da União que preveem uma vantagem de uma forma que não é coerente com os objetivos que essas regras visam (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o., C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o 102).

40

Importa ainda precisar que, uma vez que factos constitutivos de fraude ou abuso não podem fundamentar um direito previsto pela ordem jurídica da União, a recusa de uma vantagem com base numa diretiva, no caso vertente, na Diretiva 2016/801, não equivale a impor uma obrigação ao particular afetado por força desta diretiva, sendo a mera consequência da constatação de que as condições objetivas exigidas para a obtenção da vantagem pretendida, estabelecidas pela referida diretiva no que respeita a este direito, apenas estão formalmente preenchidas (v., por analogia, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o., C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o119 e jurisprudência referida).

41

Assim, embora o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2016/801 preveja que o Estado‑Membro em causa pode indeferir um pedido de admissão no território apresentado com fundamento nesta diretiva quando tiver provas ou motivos sérios e objetivos para concluir que o nacional de um país terceiro pretende residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão, esta disposição também não pode ser interpretada no sentido de que exclui a aplicação do princípio geral do direito da União da proibição das práticas abusivas, visto que a aplicação do referido princípio não está submetida a uma exigência de transposição, como o estão as disposições dessa diretiva (v., por analogia, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o., C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o 105 e jurisprudência referida).

42

O considerando 41 da Diretiva 2016/801 enuncia, de resto, que, caso haja dúvidas a respeito dos fundamentos do pedido de admissão, os Estados‑Membros devem poder efetuar os controlos apropriados ou exigir provas nomeadamente para combater a utilização abusiva e indevida do procedimento estabelecido nesta diretiva.

43

Resulta destes elementos que incumbe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício de direitos previstos pela referida diretiva quando estes são invocados abusiva e indevidamente, mesmo que o Estado‑Membro em causa não tenha transposto esse artigo 20.o, n.o 2, alínea f).

44

A este respeito, importa recordar que para fazer prova de uma prática abusiva é necessário, por um lado, um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, não obstante o respeito formal dos requisitos previstos pela regulamentação da União, o objetivo prosseguido por esta regulamentação não foi alcançado e, por outro, um elemento subjetivo que consiste na vontade de obter uma vantagem resultante da regulamentação da União, criando artificialmente as condições exigidas para a sua obtenção (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, The International Protection Appeals Tribunal e o., C‑322/19 e C‑385/19, EU:C:2021:11, n.o 91 e jurisprudência referida).

45

No caso em apreço, no que respeita ao objetivo prosseguido pela Diretiva 2016/801, os seus considerandos 3 e 14 enunciam, por um lado, que a imigração proveniente de países fora da União representa uma reserva de pessoas altamente qualificadas e que os estudantes do ensino superior e os investigadores são especialmente procurados e, por outro, que, para promover a Europa no seu conjunto como centro mundial de excelência para os estudos e a formação, as condições de entrada e de residência das pessoas que pretendem entrar na União para esses efeitos deverão ser melhoradas e simplificadas.

46

Neste sentido, a referida diretiva visa, em especial, como resulta do artigo 3.o, ponto 3, e do artigo 11.o, n.o 1, alínea a), desta, autorizar os nacionais de países terceiros a residir no território de um Estado‑Membro quando tenham sido admitidos numa instituição de ensino superior do Estado‑Membro em causa para aí frequentarem, a título de atividade principal, um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente à obtenção de um título de ensino superior reconhecido por esse Estado‑Membro.

47

Por conseguinte, quando está em causa um pedido de admissão para efeitos de estudos, a constatação de uma prática abusiva exige que se demonstre, à luz de todas as circunstâncias específicas do caso em apreço, que, não obstante o respeito formal das condições gerais e específicas, respetivamente estabelecidas nos artigos 7.o e 11.o da Diretiva 2016/801, que dão direito a uma autorização de residência para efeitos de estudos, o nacional de um país terceiro em causa apresentou o seu pedido de admissão sem ter realmente a intenção de frequentar, a título de atividade principal, um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente à obtenção de um título de ensino superior reconhecido por esse Estado‑Membro.

48

Quanto às circunstâncias que permitem demonstrar o caráter abusivo de um pedido de admissão, há que sublinhar que, se, à data da apresentação do pedido de autorização de residência, o nacional de um país terceiro ainda não iniciou, por hipótese, o ciclo de estudos identificado nesse pedido e, por conseguinte, não pode ter tido a possibilidade de concretizar a sua intenção de frequentar, a título de atividade principal, um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente à obtenção de um título de ensino superior reconhecido por esse Estado‑Membro, um pedido de admissão só pode ser indeferido se esse caráter abusivo resultar de forma suficientemente manifesta de todos os elementos pertinentes de que as autoridades competentes dispõem para avaliar esse pedido.

49

No âmbito do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça não tem competência para apreciar os factos e aplicar as normas do direito da União a um caso determinado. Cabe, pois, ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às qualificações jurídicas necessárias à solução do litígio no processo principal. Em contrapartida, incumbe ao Tribunal de Justiça fornecer‑lhe todas as indicações necessárias para o guiar nessa apreciação (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 55 e jurisprudência referida).

50

A este respeito, cabe salientar, por um lado, que resulta do artigo 24.o da Diretiva 2016/801 que esta não se opõe a que os nacionais de países terceiros que requereram uma autorização de residência para efeitos de estudos possam, fora do período consagrado ao programa de estudos e sob reserva das regras e condições indicadas nessa disposição, exercer uma atividade económica por conta de outrem ou exercer uma atividade económica por conta própria no referido Estado‑Membro. Por conseguinte, não se pode considerar necessariamente indício de uma prática abusiva o facto de o nacional de um país terceiro que apresentou o pedido de admissão para efeitos de estudos ter também a intenção de exercer uma atividade diferente no território do Estado‑Membro em causa, nomeadamente se esta atividade não afetar o prosseguimento dos estudos, a título de atividade principal, que justificam esse pedido.

51

Em contrapartida, no caso de o requerente se ter comprometido a exercer uma atividade, nomeadamente de ordem profissional, cuja realização parece manifestamente incompatível com a prossecução, a título de atividade principal, de um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente à obtenção de um título de ensino superior reconhecido por esse Estado‑Membro, esse compromisso pode constituir um elemento que suscita dúvidas sobre os motivos reais do pedido de admissão e, sendo caso disso, à luz de todas as circunstâncias pertinentes do caso em apreço, o indício de que o nacional de um país terceiro tem a intenção de residir para efeitos distintos daqueles para os quais pede a sua admissão.

52

Por outro lado, como foi recordado no n.o 42 do presente acórdão, o considerando 41 da Diretiva 2016/801 precisa que, caso haja dúvidas a respeito dos fundamentos do pedido de admissão, os Estados‑Membros devem poder efetuar os controlos apropriados ou exigir provas para avaliarem, caso a caso, nomeadamente, os estudos que o nacional do país terceiro pretende frequentar.

53

As incoerências do projeto de estudo do requerente podem, portanto, constituir também uma das circunstâncias objetivas que contribuem para a constatação de uma prática abusiva, pelo facto de o seu pedido visar, na realidade, outros efeitos que não o prosseguimento de estudos, desde que essas incoerências revistam um caráter suficientemente manifesto e sejam apreciadas à luz de todas as circunstâncias específicas do caso concreto. Assim, uma circunstância que pode ser considerada normal no decurso de estudos superiores, como uma reorientação, não basta, por si só, para demonstrar que o nacional de um país terceiro que apresentou um pedido de admissão para efeitos de estudos não tem uma intenção real de estudar no território desse Estado‑Membro. Do mesmo modo, a mera circunstância de os estudos considerados não estarem diretamente relacionados com os objetivos profissionais prosseguidos não é necessariamente indicativa de uma falta de vontade de prosseguir efetivamente os estudos que justificam o pedido de admissão.

54

Dito isto, importa sublinhar que, uma vez que as circunstâncias que permitem concluir pelo caráter abusivo de um pedido de admissão para efeitos de estudos são necessariamente específicas de cada caso concreto, como foi salientado no n.o 47 do presente acórdão, não pode ser estabelecida uma lista exaustiva dos elementos pertinentes a este respeito. Por conseguinte, o caráter eventualmente abusivo de um pedido de admissão para efeitos de estudos não pode ser presumido à luz de determinados elementos, mas deve ser avaliado caso a caso, na sequência de uma apreciação individual de todas as circunstâncias específicas de cada pedido.

55

A este respeito, incluindo nas circunstâncias referidas nos n.os 50 a 53 do presente acórdão, cabe às autoridades competentes proceder a todos os controlos apropriados e exigir as provas necessárias a uma apreciação individual desse pedido, solicitando ao requerente, sendo caso disso, que preste esclarecimentos e explicações a esse respeito.

56

Neste contexto, há ainda que precisar, por um lado, que, embora os fundamentos de recusa pertinentes devam estar relacionados com as circunstâncias específicas do pedido em questão, isso não tem, porém, por efeito dispensar as autoridades competentes da obrigação de comunicar por escrito esses fundamentos ao requerente, como prevê o artigo 34.o, n.os 1 e 4, da Diretiva 2016/801.

57

Por outro lado, as considerações precedentes não prejudicam a possibilidade de os Estados‑Membros declararem e sancionarem, através de uma retirada da autorização ou de uma recusa da sua renovação, uma eventual prática abusiva após a autorização de residência, como prevê o artigo 21.o da mesma diretiva.

58

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às duas primeiras questões que a Diretiva 2016/801, nomeadamente tendo em conta o artigo 3.o, ponto 3, desta, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, apesar de não ter transposto o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta diretiva, indefira um pedido de admissão no seu território para efeitos de estudos com o fundamento de que o nacional de um país terceiro apresentou esse pedido sem ter uma real intenção de estudar no território desse Estado‑Membro, em aplicação do princípio geral do direito da União da proibição de práticas abusivas.

Quanto à terceira questão

59

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 34.o, n.o 5, da Diretiva 2016/801, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o recurso contra uma decisão tomada pelas autoridades competentes que indefere um pedido de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos consista exclusivamente num recurso de anulação, sem que o órgão jurisdicional que conhece desse recurso disponha do poder de substituir, sendo caso disso, a apreciação das autoridades competentes pela sua própria apreciação ou de adotar uma nova decisão.

60

Nos termos do artigo 34.o, n.o 5, desta diretiva, qualquer decisão que declara inadmissível ou indefere um pedido, recusa a renovação ou cancela a autorização é passível de recurso no Estado‑Membro em causa, em conformidade com a legislação nacional.

61

Daqui resulta que, em caso de decisão que indefere um pedido de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos, este artigo 34.o, n.o 5, confere expressamente ao nacional de um país terceiro que tenha apresentado tal pedido a possibilidade de interpor recurso em conformidade com a legislação nacional do Estado‑Membro que tomou essa decisão (v., por analogia, Acórdão de 10 de março de 2021, Konsul Rzeczypospolitej Polskiej w N., C‑949/19, EU:C:2021:186, n.o 41).

62

A este respeito, importa recordar que as características do procedimento de recurso previsto no artigo 34.o, n.o 5, da Diretiva 2016/801 devem ser determinadas em conformidade com o artigo 47.o da Carta (Acórdão de 10 de março de 2021, Konsul Rzeczypospolitej Polskiej w N., C‑949/19, EU:C:2021:186, n.o 44).

63

Ora, o direito a um recurso efetivo, consagrado no artigo 47.o da Carta, seria ilusório se a ordem jurídica de um Estado‑Membro permitisse que uma decisão judicial definitiva e obrigatória fosse inoperante em detrimento de uma das partes (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Deutsche Umwelthilfe, C‑752/18, EU:C:2019:1114, n.os 35 e 36). Isto é particularmente verdade quando a obtenção do benefício efetivo dos direitos decorrentes do direito da União, conforme reconhecidos por uma decisão jurisdicional, exige o cumprimento de imperativos temporais.

64

Assim, quando está em causa uma decisão administrativa nacional que, para assegurar o respeito do benefício efetivo dos direitos do interessado decorrentes do direito da União, deve imperativamente ser adotada com celeridade, resulta da necessidade, que decorre do artigo 47.o da Carta, de assegurar a efetividade do recurso interposto contra a decisão administrativa inicial que indefere o seu pedido, que cada Estado‑Membro adapte o seu direito nacional de maneira que, em caso de anulação da decisão, seja adotada uma nova decisão num prazo curto e em conformidade com a apreciação constante da sentença que decretou a anulação (v., por analogia, Acórdão de 29 de julho de 2019, Torubarov, C‑556/17, EU:C:2019:626, n.o 59 e jurisprudência referida).

65

Daqui resulta que, relativamente aos pedidos de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos, o facto de o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se ser competente para decidir apenas sobre a anulação da decisão das autoridades competentes que indefere esse pedido, sem poder substituir a apreciação dessas autoridades pela sua própria apreciação ou adotar uma nova decisão, é suficiente, em princípio, para satisfazer os requisitos do artigo 47.o da Carta, desde que, sendo caso disso, as referidas autoridades estejam vinculadas à apreciação que consta da sentença que decreta a anulação dessa decisão.

66

Além disso, se, no âmbito desse recurso, o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se apenas tiver competência para anular a decisão das autoridades competentes que indeferiu esse pedido de admissão, há que velar por que as condições de interposição desse recurso e, se for caso disso, de execução da decisão dele resultante, sejam de molde que permitam, em princípio, a adoção de uma nova decisão num prazo curto, de modo que o nacional de um país terceiro suficientemente diligente possa beneficiar da plena efetividade dos direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 2016/801.

67

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 34.o, n.o 5, desta diretiva, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o recurso contra uma decisão tomada pelas autoridades competentes que indefere um pedido de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos consista exclusivamente num recurso de anulação, sem que o órgão jurisdicional que conhece desse recurso tenha o poder de substituir, se for caso disso, a apreciação das autoridades competentes pela sua própria apreciação ou de adotar uma nova decisão, desde que as condições de interposição desse recurso e, se for caso disso, de execução da decisão dele resultante, sejam de molde a permitir que seja adotada uma nova decisão num prazo curto, conforme com a apreciação que consta da decisão judicial que decretou a anulação, de modo que o nacional de um país terceiro suficientemente diligente possa beneficiar da plena efetividade dos direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 2016/801.

Quanto às despesas

68

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

A Diretiva (UE) 2016/801 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, relativa às condições de entrada e de residência de nacionais de países terceiros para efeitos de investigação, de estudos, de formação, de voluntariado, de programas de intercâmbio de estudantes, de projetos educativos e de colocação au pair, nomeadamente, à luz do artigo 3.o, ponto 3, desta,

deve ser interpretada no sentido de que:

não se opõe a que um Estado‑Membro, apesar de não ter transposto o artigo 20.o, n.o 2, alínea f), desta diretiva, indefira um pedido de admissão no seu território para efeitos de estudos com o fundamento de que o nacional de um país terceiro apresentou esse pedido sem ter uma real intenção de estudar no território desse Estado‑Membro, em aplicação do princípio geral do direito da União da proibição de práticas abusivas.

 

2)

O artigo 34.o, n.o 5, da Diretiva 2016/801, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a que o recurso contra uma decisão tomada pelas autoridades competentes que indefere um pedido de admissão no território de um Estado‑Membro para efeitos de estudos consista exclusivamente num recurso de anulação, sem que o órgão jurisdicional que conhece desse recurso tenha o poder de substituir, se for caso disso, a apreciação das autoridades competentes pela sua própria apreciação ou de adotar uma nova decisão, desde que as condições de interposição desse recurso e, se for caso disso, de execução da decisão dele resultante, sejam de molde a permitir que seja adotada uma nova decisão num prazo curto, conforme com a apreciação que consta da decisão judicial que decretou a anulação, de modo que o nacional de um país terceiro suficientemente diligente possa beneficiar da plena efetividade dos direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 2016/801.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

( i ) O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.