ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

29 de fevereiro de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Artigo 5.o, n.os 1 e 3 — Artigo 7.o, n.o 1 — Indemnização dos passageiros aéreos em caso de cancelamento de um voo — Natureza e fundamento do direito a indemnização — Cessão a uma sociedade comercial do crédito dos passageiros em relação à transportadora aérea — Cláusula contratual que proíbe essa cessão — Artigo 15.o — Proibição de exclusão»

No processo C‑11/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Mercantil n.o 1 de Palma de Mallorca (Tribunal de Comércio n.o 1 de Palma de Maiorca, Espanha), por Decisão de 31 de outubro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de janeiro de 2023, no processo

Eventmedia Soluciones SL

contra

Air Europa Líneas Aéreas SAU,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Terceira Secção, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Eventmedia Soluciones SL, por R. M. Jiménez Varela, procuradora, e A. M. Martínez Cuadros, abogada,

em representação da Air Europa Líneas Aéreas SAU, por N. de Dorremochea Guiot, procurador, e E. Olea Ballesteros, abogado,

em representação do Governo Espanhol, por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agente,

em representação do Governo Lituano, por S. Grigonis e V. Kazlauskaitė‑Švenčionienė, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. L. Buendía Sierra, N. Ruiz García e G. Wilms, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e n.o 3, do artigo 7.o, n.o 1, e do artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1), bem como do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Eventmedia Soluciones SL (a seguir «Eventmedia»), cessionária dos créditos de seis passageiros aéreos, à Air Europa Líneas Aéreas SAU (a seguir «Air Europa») a respeito de uma indemnização pelo cancelamento de um voo.

Direito da União

Regulamento (CE) n.o 44/2001

3

O Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), previa, no seu artigo 5.o, ponto 1, alínea a), o seguinte:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão […]»

Regulamento (CE) n.o 261/2004

4

Os considerandos 1, 7 e 20 do Regulamento n.o 261/2004 têm a seguinte redação:

«(1)

A ação da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

[…]

(7)

A fim de assegurar a aplicação efetiva do presente regulamento, as obrigações nele previstas deverão recair sobre a transportadora aérea operadora que operou ou pretende operar um voo, quer seja em aeronave própria, alugada em regime de dry lease ou wet lease, ou de qualquer outra forma.

[…]

(20)

Os passageiros deverão ser devidamente informados dos seus direitos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos, para poderem exercer efetivamente os seus direitos.»

5

O artigo 1.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento tem a seguinte redação:

«O presente regulamento estabelece, nas condições a seguir especificadas, os direitos mínimos dos passageiros, em caso de:

[…]

b)

Cancelamento de voos […]»

6

O artigo 2.o, alínea b), do referido regulamento define o conceito de «Transportadora aérea operadora» como «uma transportadora aérea que opera ou pretende operar um voo ao abrigo de um contrato com um passageiro, ou em nome de uma pessoa coletiva ou singular que tenha contrato com esse passageiro».

7

O artigo 3.o do mesmo regulamento, com a epígrafe «Âmbito», dispõe, no seu n.o 5:

«O presente regulamento aplica‑se a qualquer transportadora aérea operadora que forneça transporte a passageiros abrangidos pelos n.os 1 e 2. Sempre que uma transportadora aérea operadora, que não tem contrato com o passageiro, cumprir obrigações impostas pelo presente regulamento, será considerado como estando a fazê‑lo em nome da pessoa que tem contrato com o passageiro.»

8

Nos termos do artigo 5.o do Regulamento n.o 261/2004, sob a epígrafe «Cancelamento»:

«1.   Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

[…]

c)

Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.o, salvo se:

[…]

3.   A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[…]»

9

O artigo 7.o deste regulamento, sob a epígrafe «Direito a indemnização», prevê, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)

250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

b)

400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;

c)

600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).»

10

O artigo 15.o do referido regulamento, com a epígrafe «Proibição de exclusão», dispõe:

«1.   As obrigações para com os passageiros nos termos do presente regulamento não podem ser limitadas ou excluídas, nomeadamente através de derrogação ou de cláusula limitativa do contrato de transporte.

2.   Se, não obstante, essa derrogação ou cláusula limitativa for aplicada ao passageiro ou se o passageiro não tiver sido corretamente informado dos seus direitos e, por esse motivo, tiver [aceitado] uma indemnização inferior à estabelecida no presente regulamento, o passageiro tem direito a mover um procedimento nos tribunais ou nos organismos competentes com vista a obter uma indemnização adicional.»

Diretiva 93/13

11

Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

12

O artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

Seis passageiros aéreos afetados pelo cancelamento de um voo com partida do aeroporto Viru Viru de Santa Cruz (Bolívia) e com destino a Madrid (Espanha), previsto para 24 de março de 2022, cederam à Eventmedia, uma sociedade comercial, os seus créditos de indemnização que detinham relativamente à Air Europa.

14

Em seguida, a Eventmedia intentou no Juzgado de lo Mercantil n.o 1 de Palma de Mallorca (Tribunal de Comércio n.o 1 de Palma de Maiorca, Espanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio, uma ação contra a Air Europa para obter uma indemnização de 600 euros por cada um daqueles passageiros, com base no Regulamento n.o 261/2004.

15

Neste órgão jurisdicional, a Air Europa contesta a legitimidade processual ativa da Eventmedia. No seu entender, a cessão de créditos não é legalmente válida, uma vez que viola a proibição de ceder os direitos do passageiro prevista na cláusula 15.1 das suas condições gerais de transporte (a seguir «cláusula controvertida»). Nos termos desta cláusula, «[a] responsabilidade da Air Europa e de qualquer transportadora, de acordo com o artigo 1.o, [são determinadas] pelas condições de transporte da transportadora que emita o bilhete, salvo disposição em contrário. Os direitos do passageiro são de caráter estritamente pessoal e não é permitida a cessão dos mesmos».

16

O órgão jurisdicional de reenvio explica que, ao abrigo do direito espanhol, um passageiro aéreo pode invocar judicialmente o seu direito à indemnização contra a transportadora aérea operadora, previsto no Regulamento n.o 261/2004, no âmbito de um processo «sumário», sem ter de se fazer representar por advogado. Na prática, os passageiros aéreos raramente recorrem a esta possibilidade, devido à defesa da maioria das transportadoras aéreas e à complexidade das regras processuais. Além disso, um passageiro aéreo pode constituir um mandatário ad litem para que este compareça em juízo, em seu nome e por sua conta.

17

Por último, nos termos do direito espanhol, um passageiro aéreo pode ceder o direito de crédito que detém em relação a uma transportadora aérea, nomeadamente, a uma entidade especializada nos pedidos apresentados ao abrigo do Regulamento n.o 261/2004. Nesse caso, esta entidade comparece no processo em seu nome e em sua representação, defendendo os seus interesses enquanto cessionária do crédito.

18

Ora, o órgão jurisdicional de reenvio observa que a cláusula controvertida restringe a referida possibilidade de os passageiros aéreos cederem os seus direitos. Por conseguinte, interroga‑se sobre a compatibilidade desta cláusula com o direito da União.

19

Antes de mais, este órgão jurisdicional considera necessário determinar se uma cláusula que consta das condições gerais do contrato de transporte e que proíbe a cessão dos direitos pertencentes ao passageiro aéreo constitui uma limitação das obrigações para com os passageiros aéreos decorrente do artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004. Nesse caso, a cláusula controvertida será nula por ser contrária a uma regra imperativa ou proibitiva na aceção do direito espanhol.

20

Em seguida, o referido órgão jurisdicional considera que, num contexto de abordagens divergentes adotadas pelos órgãos jurisdicionais espanhóis, é essencial determinar a natureza do direito à indemnização previsto no artigo 5.o e no artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004. A este respeito, os Acórdãos de 7 de março de 2018, flightright e o. (C‑274/16, C‑447/16 e C‑448/16, EU:C:2018:160, n.o 63), e de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia (C‑215/18, EU:C:2020:235, n.o 49), podem dar a entender que se trata de um direito de natureza contratual. Inversamente, a circunstância de o artigo 5.o do Regulamento n.o 261/2004, lido à luz do considerando 7 e do artigo 2.o, alínea b), deste regulamento, responsabilizar a transportadora aérea operadora, mesmo que esta não tenha celebrado um contrato com o passageiro aéreo, leva a crer que o passageiro aéreo retira o seu direito à indemnização diretamente do referido regulamento.

21

A título subsidiário, quer no caso de o artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004 não se opor a uma cláusula que proíba a cessão dos direitos do passageiro aéreo quer no de o direito à indemnização previsto neste regulamento ter um fundamento contratual, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por último, sobre a interpretação da Diretiva 93/13. Neste sentido, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, e sendo caso disso em que circunstâncias, pode, num litígio que opõe dois profissionais, declarar oficiosamente a natureza abusiva, em seu entender, de uma cláusula contida num contrato celebrado entre um destes profissionais e um consumidor que cedeu os seus direitos ao outro profissional.

22

Foi nestas circunstâncias que o Juzgado de lo Mercantil n.o 1 de Palma de Mallorca (Tribunal de Comércio n.o 1 de Palma de Maiorca) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Pode considerar‑se uma exceção proibida [,] na aceção do artigo 15.o do Regulamento [n.o 261/2004], a inclusão no contrato de transporte aéreo de uma cláusula como [a cláusula controvertida], por se entender que limita as obrigações da transportadora ao restringir a possibilidade de os passageiros verem satisfeito o direito à indemnização por cancelamento de um voo através da cessão do crédito?

2)

Pode o artigo 7.o, n.o 1, conjugado com o artigo 5.o, [n.o] 1, alínea c) e [o artigo 5.o, n.o] 3[,] do [Regulamento n.o 261/2004], ser interpretado no sentido de que o pagamento da indemnização prevista pelo cancelamento de um voo a cargo da transportadora aérea operadora seria uma obrigação imposta [por este] regulamento independentemente da existência de um contrato de transporte com o passageiro e do incumprimento culposo das obrigações contratuais da transportadora aérea?

[…]

3)

[A título subsidiário, na hipótese de se considerar que a referida cláusula não constitui uma exceção proibida nos termos do artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004, ou que o direito à indemnização é de natureza contratual, deve o artigo] 6.o, n.o 1[,] e [o artigo] 7.o, n.o 1[,] da [Diretiva 93/13/CEE], ser interpretados no sentido de que caberá ao juiz nacional chamado a conhecer de uma ação de fazer valer o direito a indemnização por cancelamento de um voo previsto no artigo 7.o, n.o 1 do Regulamento [n.o 261/2004] [conhecer] oficiosamente o eventual caráter abusivo de uma cláusula incluída no contrato de transporte, que não permite ao passageiro ceder os seus direitos, quando a ação é intentada pelo cessionário, o qual, diversamente do cedente, não detém a condição de consumidor e utente?

4)

Caso [haja lugar ao conhecimento oficioso], o dever de informar o consumidor e verificar se invoca o caráter abusivo da cláusula ou a aceita pode ser omitido atendendo à declaração tácita que constitui a transmissão do seu crédito em violação da cláusula eventualmente abusiva que não permitia a cessão do crédito?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à segunda questão

23

Com a sua segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as disposições conjugadas do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e n.o 3, e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004 devem ser interpretadas no sentido de que, em caso de cancelamento de um voo, o direito de os passageiros aéreos receberem da transportadora aérea operadora a indemnização prevista nestas disposições e a correspondente obrigação de pagamento desta última decorrem deste regulamento, ou no sentido de que aquele direito e esta obrigação se baseiam num contrato que, sendo caso disso, teria sido celebrado entre a referida transportadora e o passageiro aéreo em causa, ou mesmo num incumprimento culposo deste contrato pela referida transportadora aérea.

24

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para efeitos da interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte [Acórdãos de 11 de maio de 2017, Krijgsman, C‑302/16, EU:C:2017:359, n.o 24 e jurisprudência referida, e de 29 de setembro de 2022, LOT (Indemnização imposta pela autoridade administrativa),C‑597/20, EU:C:2022:735, n.o 21].

25

O artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004 enuncia que, em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a «[r]eceber da transportadora aérea operadora [uma] indemnização» nos termos do artigo 7.o deste regulamento, salvo se tiverem sido informados do cancelamento do voo nas condições previstas nesta primeira disposição (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Airhelp, C‑263/20, EU:C:2021:1039, n.o 49). O n.o 3 deste artigo determina as condições em que a transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar esta indemnização, quando o cancelamento se deva a circunstâncias excecionais (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 20).

26

O artigo 7.o, n.o 1, do referido regulamento estabelece, por sua vez, o montante fixo da indemnização a que um passageiro aéreo tem direito, quando esta disposição é mencionada no referido regulamento.

27

Tendo em conta a redação destas disposições e de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito a uma indemnização uniforme de montante fixo a cargo da transportadora aérea operadora figura entre os direitos essenciais que foram conferidos aos passageiros dos transportes aéreos pelo Regulamento n.o 261/2004 (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia, C‑215/18, EU:C:2020:235, n.o 37).

28

Daqui resulta que, em caso de cancelamento de um voo, o direito dos passageiros aéreos à indemnização, previsto no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004, e a correspondente obrigação de a transportadora aérea operadora pagar a indemnização prevista no artigo 7.o, n.o 1, deste regulamento decorrem diretamente deste último. Por conseguinte, não se pode considerar que este direito e esta obrigação se baseiam num contrato eventualmente celebrado entre o passageiro aéreo e a transportadora aérea operadora em causa nem, a fortiori, no incumprimento culposo deste contrato por esta última.

29

Esta interpretação é corroborada pelo contexto do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e n.o 3, e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004, bem como pelo objetivo deste regulamento.

30

No que respeita, em primeiro lugar, a este contexto, há que salientar, por um lado, que, nos termos do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), o Regulamento n.o 261/2004 «estabelece», nas condições nele previstas, os direitos mínimos dos passageiros aéreos em caso de cancelamento do seu voo.

31

Por outro lado, resulta da leitura conjugada das disposições do artigo 2.o, alínea b), e do artigo 3.o, n.o 5, do Regulamento n.o 261/2004 que o passageiro que tiver um voo cancelado ou atrasado pode invocar este regulamento em relação à transportadora aérea operadora, ainda que este passageiro e esta transportadora não tenham celebrado um contrato entre eles (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia, C‑215/18, EU:C:2020:235, n.os 27 a 29).

32

Estas disposições corroboram, assim, a interpretação segundo a qual, em caso de cancelamento do seu voo, o direito dos passageiros aéreos à indemnização prevista nos artigos 5.o e 7.o do Regulamento n.o 261/2004 decorre diretamente deste regulamento.

33

Em segundo lugar, no que respeita ao objetivo do Regulamento n.o 261/2004, este consiste, como resulta do seu considerando 1, em garantir um elevado nível de proteção dos passageiros aéreos, pelo que os direitos que lhes são reconhecidos devem ser objeto de uma interpretação ampla (v., neste sentido, Acórdãos de 4 de outubro de 2012, Rodríguez Cachafeiro e Martínez‑Reboredo Varela‑Villamor, C‑321/11, EU:C:2012:609, n.o 25, e de 30 de abril de 2020, Blue Air — Airline Management Solutions, C‑584/18, EU:C:2020:324, n.o 93).

34

Ora, a interpretação das disposições conjugadas do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004, enunciada no n.o 28 do presente acórdão, está conforme com este objetivo, uma vez que garante que qualquer passageiro aéreo afetado por um voo cancelado disponha do direito à indemnização, nas condições previstas nestas disposições, independentemente da questão de saber se celebrou ou não um contrato de transporte com a transportadora aérea operadora.

35

Por outro lado, a referida interpretação não é de modo nenhum incompatível com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual as ações relativas ao direito à indemnização nos termos do Regulamento n.o 261/2004 estão abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de março de 2018, flightright e o., C‑274/16, C‑447/16 e C‑448/16, EU:C:2018:160, n.os 63 a 65, e de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia, C‑215/18, EU:C:2020:235, n.o 49). Com efeito, com esta jurisprudência, relativa à competência judiciária em matéria civil e comercial, o Tribunal de Justiça pretendeu assegurar uma aplicação uniforme do conceito de «matéria contratual», na aceção desta disposição, ao declarar que, para ser abrangido por este conceito, é indiferente que o passageiro aéreo não tenha celebrado o contrato de transporte diretamente com a transportadora aérea operadora em causa, mas sim com outro prestador de serviços, como uma agência de viagens. Como alegaram o Governo Espanhol e a Comissão Europeia, a referida jurisprudência não pretende prejudicar o próprio fundamento do direito à indemnização previsto no Regulamento n.o 261/2004.

36

A este respeito, há que salientar que uma ação cuja causa de pedir seja contratual pode ter por objeto um pedido baseado nas cláusulas do contrato em causa ou nas regras de direito aplicáveis por força deste contrato (v., neste sentido, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Wikingerhof, C‑59/19, EU:C:2020:950, n.o 32 e jurisprudência referida). Num caso como o do processo principal, embora a causa de pedir da ação de indemnização intentada pelo passageiro aéreo ou por uma sociedade cessionária do crédito de indemnização deste passageiro contra a transportadora aérea operadora assente necessariamente na existência de um contrato, quer seja com esta transportadora aérea ou com outro prestador (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia, C‑215/18, EU:C:2020:235, n.os 50 a 52), o direito à indemnização que este passageiro ou esta sociedade cessionária podem invocar no âmbito desta ação, especialmente em caso de cancelamento de um voo, decorre, por sua vez, diretamente das disposições conjugadas do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004, como resulta dos n.os 28 e 32 do presente acórdão.

37

À luz de todos os fundamentos que precedem, há que responder à segunda questão que as disposições conjugadas do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e n.o 3, e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004 devem ser interpretadas no sentido de que, em caso de cancelamento de um voo, o direito de os passageiros aéreos receberem da transportadora aérea operadora a indemnização prevista nestas disposições e a correspondente obrigação de pagamento desta última decorrem diretamente deste regulamento.

Quanto à primeira questão

38

Com a sua primeira questão, que importa examinar em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à inclusão, num contrato de transporte, de uma cláusula que proíba a cessão dos direitos que o passageiro aéreo beneficia em relação à transportadora aérea operadora por termos das disposições deste regulamento.

39

O artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004, intitulado «Proibição de exclusão», dispõe, no seu n.o 1, que as obrigações das transportadoras aéreas para com os passageiros nos termos deste regulamento não podem ser limitadas ou excluídas, nomeadamente através de derrogação ou de cláusula limitativa do contrato de transporte.

40

De acordo com esta disposição e tendo em conta a resposta à segunda questão, a obrigação de a transportadora aérea operadora pagar a indemnização prevista no artigo 7.o, n.o 1, deste regulamento em caso de cancelamento de um voo não pode, assim, ser limitada ou excluída por via contratual.

41

A este respeito, importa acrescentar que, tendo em conta o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros aéreos subjacente, nomeadamente, ao artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004 e à interpretação ampla que, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 33 do presente acórdão, deve ser dada aos direitos conferidos a estes passageiros, esta disposição também deve ser objeto de uma interpretação ampla, uma vez que determina a proibição das exceções a estes direitos (v., por analogia, Acórdão de 30 de abril de 2020, Blue Air — Airline Management Solutions, C‑584/18, EU:C:2020:324, n.o 102).

42

Assim, tendo em conta a utilização do advérbio «nomeadamente», na referida disposição, e tendo em conta o referido objetivo, devem ser consideradas proibidas não só as exceções que figuram num contrato de transporte, ato de natureza sinalagmática que o passageiro dos transportes aéreos subscreveu, mas também, e a fortiori, as que constem de outros documentos elaborados unilateralmente pela transportadora aérea operadora e que esta possa vir a invocar em relação aos passageiros aéreos em causa (v., neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2020, Blue Air — Airline Management Solutions, C‑584/18, EU:C:2020:324, n.o 102). A mesma disposição pode, assim, aplicar‑se a exceções que constem das condições gerais de transporte.

43

Além disso, tendo em conta o referido objetivo e para garantir a efetividade do direito a indemnização dos passageiros aéreos, devem ser consideradas proibidas, na aceção do artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004, não só as exceções ou as limitações que dizem diretamente respeito a este direito enquanto tal mas também as que restringem, em detrimento destes passageiros, as modalidades de exercício do referido direito relativamente às disposições legais aplicáveis.

44

Com efeito, para assegurar um nível elevado de proteção dos passageiros aéreos e para lhes permitir exercer eficazmente os seus direitos de acordo com o objetivo enunciado no considerando 20 do Regulamento n.o 261/2004, há que garantir ao passageiro afetado por um voo cancelado a liberdade de escolher a maneira mais eficaz de defender o seu direito, nomeadamente permitindo‑lhe decidir dirigir‑se diretamente à transportadora aérea operadora, recorrer aos tribunais competentes ou, quando tal esteja previsto no direito nacional aplicável, ceder o seu crédito a um terceiro para evitar dificuldades e custos que o possam dissuadir de realizar diligências pessoais em relação a esta transportadora em casos de menor importância económica.

45

Daqui resulta que uma cláusula que conste das condições gerais do contrato de transporte e que proíba a cessão dos direitos do passageiro aéreo contra a transportadora aérea operadora constitui uma exceção proibida prevista no artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004.

46

À luz de todos os fundamentos que precedem, há que responder à primeira questão que o artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à inclusão, num contrato de transporte, de uma cláusula que proíba a cessão dos direitos de que o passageiro aéreo beneficia em relação à transportadora aérea operadora nos termos deste regulamento.

Quanto à terceira e quarta questões

47

Tendo em conta as respostas dadas à primeira e segunda questões, não há que responder às terceira e quarta questões.

Quanto às despesas

48

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

As disposições conjugadas do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e n.o 3, e do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91,

devem ser interpretadas no sentido de que:

em caso de cancelamento de um voo, o direito de os passageiros aéreos receberem da transportadora aérea operadora a indemnização prevista nestas disposições e a correspondente obrigação de pagamento desta última decorrem diretamente deste regulamento.

 

2)

O artigo 15.o do Regulamento n.o 261/2004

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe à inclusão, num contrato de transporte, de uma cláusula que proíba a cessão dos direitos de que o passageiro aéreo beneficia em relação à transportadora aérea operadora nos termos deste regulamento.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.