Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ATHANASIOS RANTOS

apresentadas em 11 de julho de 2024 (1)

Processo C205/23

Engie România SA

contra

Autoritatea Naţională de Reglementare în Domeniul Energiei

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunalul Bucureşti (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia)]

«Reenvio prejudicial — Energia — Diretiva 2009/73/CE — Mercado interno do gás natural — Artigo 3.° — Obrigações de serviço público e proteção dos consumidores — Fornecedor de gás natural que viola a sua obrigação de transparência para com os clientes domésticos — Cúmulo de sanções administrativas pela mesma infração — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.° — Princípio ne bis in idem — Artigo 52.°, n.° 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Proporcionalidade»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Tribunalul Bucureşti (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia), tem por objeto a interpretação dos artigos 50.° e 52.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e do princípio da proporcionalidade.

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Engie România SA (a seguir «Engie» ou «recorrente»), um fornecedor de gás natural, à Autoritatea Națională de Reglementare în Domeniul Energiei (Entidade Nacional Reguladora do Setor Energético, a seguir «ANRE»), a respeito de um auto, elaborado por esta entidade, através do qual atestou e sancionou a alegada prática de uma contraordenação pela Engie.

3.        A pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões centrar‑se‑ão na análise da segunda questão prejudicial relativa à aplicação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.° da Carta, lido em conjugação com o artigo 52.°, n.° 1, da mesma que introduz restrições a este princípio. Mais concretamente, coloca‑se, em substância, a questão de saber se a aplicação de uma sanção de natureza administrativa a um fornecedor de gás natural, tanto pela entidade reguladora da energia como pela autoridade de proteção dos consumidores, pelos mesmos factos, embora sancionados separadamente por estas duas autoridades, com base em normas diferentes, constitui uma restrição justificada à aplicação do referido princípio.

4.        O presente processo permite ao Tribunal de Justiça, por um lado, clarificar a sua jurisprudência relativa à aplicação do princípio ne bis in idem nos casos em que coexistem dois procedimentos administrativos de fiscalização e de sanção de uma pessoa coletiva, instaurados em paralelo por duas autoridades competentes diferentes, que emitiram atos sancionatórios individuais distintos em relação a factos alegadamente idênticos e, por outro, determinar em que medida este cúmulo de atos respeita o princípio da proporcionalidade consagrado no direito da União.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        O princípio ne bis in idem está consagrado no artigo 50.° da Carta, sob a epígrafe «Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito», que tem a seguinte redação:

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.»

6.        O artigo 51.° da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.° 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

7.        O artigo 52.° da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», prevê, no seu n.° 1:

«Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.»

B.      Direito romeno

8.        Nos termos do artigo 143.°, n.° 1, alínea k), da Legea nr. 123, energiei electrice și a gazelor naturale (Lei n.° 123, em Matéria de Eletricidade e Gás Natural), de 10 de julho de 2012 (2) (a seguir «Lei n.° 123/2012»):

«Os fornecedores de gás natural têm, nomeadamente, as seguintes obrigações:

[...]

k)      fornecer aos clientes finais informações transparentes sobre os preços/tarifas aplicados, consoante o caso, e sobre as condições gerais de acesso e utilização dos serviços prestados.»

9.        O artigo 194.°, ponto 241, desta lei dispõe:

«Constituem infrações às disposições que regulam as atividades no setor do gás natural os seguintes factos: [...] o não cumprimento pelos participantes no mercado do gás natural das obrigações que lhes incumbem por força do artigo 143.°, n.° 1, do artigo 1441 e do artigo 145.°, n.° 4, alínea g).»

10.      Nos termos do artigo 195.°, ponto 2, alínea c), da referida lei, essa contraordenação é punível com uma coima de 20 000 a 400 000 leus romenos (RON) (cerca de 4 057 a 81 147 euros).

III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

11.      Por Decisão de 14 de setembro de 2021, a Autoritatea Națională pentru Protecția Consumatorilor (Autoridade Nacional para a Proteção dos Consumidores, Roménia, a seguir «ANPC») deu como provado que a Engie tinha recorrido a práticas comerciais enganosas e agressivas no exercício da sua atividade económica (3) e instou‑a a pôr termo a essas práticas, a suspender a sua atividade até cessar as alegadas práticas comerciais desleais e a não alterar o preço de comercialização do gás natural para os clientes domésticos.

12.      Em 11 de outubro de 2021, a ANRE deu como provado que a Engie, um fornecedor autorizado de gás natural, tinha violado a sua obrigação de transparência prevista no artigo 143.°, n.° 1, alínea k), da Lei n.° 123/2012, e aplicou‑lhe uma coima no montante total de 800 000 RON (cerca de 160 000 euros) (a seguir «auto em causa»), dado que, por um lado, tinha cometido irregularidades no que respeita ao conteúdo de algumas ofertas de gás natural e, por outro, não tinha deixado suficientemente claro que o preço de comercialização do gás natural, com base no qual tinha celebrado os contratos com os seus clientes, poderia variar durante um período de doze meses. Além disso, a ANRE instou a Engie a adotar todas as medidas necessárias para, primeiro, informar os seus doze clientes finais de que iria manter o preço fixo do gás natural a que se tinha comprometido, segundo, anular os aditamentos enviados a esses clientes, terceiro, identificar todos os clientes finais que tinham aceitado propostas normalizadas a um preço fixo válido para o período indicado nas mesmas, e aos quais tinham sido enviadas posteriormente notificações e aditamentos com vista ao aumento do preço do gás natural comercializado antes do termo do referido período e, quarto, informar esses clientes da manutenção do preço fixo do gás estipulado nas referidas propostas e da anulação dos aditamentos enviados.

13.      Atento o contexto, a Engie intentou uma ação no Judecătoria Sectorului 4 București (Tribunal de Primeira Instância do Quarto Setor de Bucareste, Roménia) que tinha por objeto o auto em causa. Este tribunal julgou a ação improcedente por Sentença de 14 de março de 2022. A Engie interpôs recurso desta sentença para o Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

14.      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que é necessário esclarecer se a ANRE pode exigir a um fornecedor de gás natural que aplique um preço diferente do preço de mercado regulado no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2009/73/CE (4) como consequência de uma pretensa violação da obrigação de transparência para com os consumidores.

15.      Em segundo lugar, o referido órgão jurisdicional salienta que tanto a ANRE como a ANPC deram como provados, em substância, os mesmos factos, embora tendo‑os qualificado de forma diferente, e aplicaram à Engie, através de atos distintos, coimas e a mesma obrigação de sanação, isto é, de repor o preço fixado na proposta normalizada, neste caso, o preço que estava em vigor em abril de 2021. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é necessário determinar se o princípio ne bis in idem é aplicável às sanções adotadas pela primeira autoridade com fundamento na Lei n.° 123/2012, que transpõe a Diretiva 2009/73 para o ordenamento jurídico romeno, e pela segunda autoridade com fundamento na legislação romena de proteção dos consumidores.

16.      Nestas circunstâncias, o Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Pode uma pretensa violação da obrigação de transparência que incumbe aos fornecedores de gás natural em relação aos clientes domésticos e foi transposta para o ordenamento jurídico nacional, e que é, nesse ordenamento, considerada uma contraordenação (contravenția), levar a que a autoridade nacional competente também obrigue um fornecedor de gás natural a aplicar, nas relações com os consumidores, um preço imposto por via administrativa, que não tem em conta o princípio da livre formação de preços no mercado de gás natural, princípio este que está consagrado no artigo 3.°, n.° 1, da [Diretiva 2009/73]?

2)      Pode o facto de um fornecedor de gás natural ter sido punido, tanto pela autoridade de proteção dos consumidores como pela entidade reguladora do setor energético, através da adoção de dois autos de contraordenação distintos, nos quais foi constatada a prática de infrações e aplicadas ao fornecedor as mesmas medidas (duplicação dos atos administrativos de imposição de medidas), ser considerado uma restrição justificada ao princípio ne bis in idem, à luz do disposto no artigo 52.° da [Carta], ou isso viola este princípio?

Um tal cúmulo de atos sancionatórios com fundamento nos mesmos factos, por parte de autoridades diferentes, respeita o princípio da proporcionalidade?»

17.      A Engie, a ANRE, os Governos Romeno e Helénico e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Estas partes também apresentaram alegações na audiência de alegações realizada em 24 de abril de 2024.

IV.    Análise

A.      Quanto à segunda questão prejudicial

18.      Com a sua segunda questão prejudicial, sobre a qual incidem as presentes conclusões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 50.° e 52.° da Carta devem ser interpretados no sentido de que a aplicação de uma sanção a um fornecedor de gás natural, tanto pela entidade reguladora da energia como pela autoridade de proteção dos consumidores, com fundamento nos mesmos factos, embora sancionados separadamente pelas duas autoridades, com bases jurídicas diferentes, constitui uma restrição justificada à aplicação do princípio ne bis in idem.

1.      Observações preliminares

a)       Quanto ao âmbito de aplicação do artigo 50 da Carta

19.      A título preliminar, cumpre recordar que o âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.°, n.° 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União (5).

20.      No caso em apreço, decorre das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que os dois autos em causa foram elaborados com fundamento na legislação romena que transpõe, respetivamente, as Diretivas 2009/73 e 2005/29/CE (6). Por conseguinte, uma vez que constituem a aplicação do direito da União, estas legislações nacionais estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da Carta, na aceção do seu artigo 51.°, pelo que o artigo 50.° desta Carta é aplicável no processo principal.

21.      Cumpre igualmente recordar que o princípio ne bis in idem, conforme consagrado no artigo 50.° da Carta, constitui um princípio fundamental do direito da União (7), que proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções que tenham natureza penal, na aceção deste artigo, pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa (8). No entanto, as restrições ao princípio ne bis in idem podem ser justificadas com fundamento no artigo 52.°, n.° 1, da Carta, desde que os requisitos enumerados nesta disposição estejam preenchidos (9).

b)      Quanto à natureza «penal» da infração objeto de investigação

22.      Note‑se, a título preliminar, que segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça são relevantes três critérios para apreciar se os procedimentos e as sanções em causa têm natureza penal. O primeiro é a qualificação jurídica da infração no direito interno, o segundo diz respeito à própria natureza da infração e o terceiro é relativo ao nível de severidade da sanção suscetível de ser aplicada à pessoa em causa (10).

23.      Em primeiro lugar, no que respeita ao critério relativo à qualificação jurídica da infração no direito interno, há que salientar que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, as sanções aplicadas são qualificadas de «contraordenações» no direito interno e que os procedimentos no termo dos quais estas sanções foram aplicadas são procedimentos administrativos.

24.      No entanto, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o artigo 50.° da Carta não se limita apenas aos procedimentos e às sanções qualificados de «penais» pelo direito nacional, mas estende‑se, independentemente da respetiva qualificação no direito interno, aos procedimentos e às sanções que devam ser considerados de natureza penal com base nos dois outros critérios mencionados no n.° 22 das presentes conclusões (11).

25.      Em segundo lugar, no que se refere ao critério relativo à natureza da infração, importa verificar se a sanção em causa prossegue uma finalidade repressiva, independentemente do facto de prosseguir também uma finalidade preventiva. Com efeito, é próprio das sanções penais destinarem‑se tanto a reprimir como a prevenir condutas ilícitas (12). Em contrapartida, uma medida que se limita a reparar o prejuízo causado pela infração em causa não reveste natureza penal (13).

26.      No caso em apreço, decorre das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que a violação das obrigações de transparência e de informação dos consumidores por um fornecedor de gás natural pode dar lugar à aplicação de uma sanção pecuniária por força do disposto na Lei n.° 123/2012 (14). O mesmo sucede com as sanções aplicadas pela ANPC com fundamento na Lei n.° 363/2007, que prevê que as práticas comerciais desleais ou enganosas também podem dar lugar à aplicação de coimas (15). Além disso, resulta das mesmas informações que, além das sanções pecuniárias, estas duas autoridades aplicaram medidas corretivas complementares (qualificadas pelo órgão jurisdicional de reenvio de «obrigação(ões) de sanação») que exigem que a Engie reponha o preço fixado na proposta normalizada de abril de 2021.

27.      A este respeito, cumpre distinguir entre, por um lado, as contraordenações aplicadas pela ANPC e pela ANRE e, por outro, as medidas corretivas complementares adotadas por estas autoridades. Com efeito, embora se afigure pacífico, sem prejuízo das apreciações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, que as sanções pecuniárias aplicadas à Engie têm uma finalidade simultaneamente repressiva e preventiva, o mesmo não acontece com as medidas complementares à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada no n.° 25 das presentes conclusões, segundo a qual uma medida que se limita a reparar [ou remediar] o prejuízo causado pela infração em causa não reveste natureza penal.

28.      Em terceiro lugar, quanto ao critério relativo à severidade da sanção aplicada, que deve ser apreciado em função da sanção máxima prevista (16), note‑se que decorre dos elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que foram aplicadas à Engie duas sanções no montante, respetivamente, de 800 000 RON (cerca de 160 000 euros), no caso da sanção aplicada pela ANRE (17), e de 150 000 RON (cerca de 30 000 euros), no caso da sanção aplicada pela ANPC (18).

29.      Por conseguinte, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, com base em todos os elementos de que dispõe, se os montantes destas sanções são suficientemente severos para serem qualificados de «penais por natureza» (19).

2.      Quanto aos requisitos de aplicação do princípio ne bis in idem

30.      A aplicação do princípio ne bis in idem depende do preenchimento de dois requisitos, isto é, por um lado, que exista uma decisão anterior definitiva (requisito «bis») e, por outro, que a decisão anterior e os procedimentos ou decisões subsequentes digam respeito aos mesmos factos (e às mesmas pessoas) (requisito «idem») (20).

a)      Quanto ao requisito «bis»

31.      No que respeita ao requisito «bis», para que se possa considerar que uma decisão judicial se pronunciou definitivamente sobre os factos submetidos a um segundo processo, é necessário não só que essa decisão se tenha tornado definitiva, mas também que tenha sido proferida na sequência de uma apreciação do mérito da causa (21).

32.      O Tribunal de Justiça também esclareceu, a este respeito, que, embora a aplicação do princípio ne bis in idem pressuponha a existência de uma decisão anterior definitiva, daqui não decorre necessariamente que as decisões ulteriores às quais este princípio se opõe só possam ser as decisões adotadas após esta decisão anterior definitiva. Com efeito, este princípio exclui a possibilidade de instaurar ou de prosseguir um processo penal pelos mesmos factos quando exista uma decisão definitiva (22).

33.      No caso em apreço, decorre dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a decisão da ANPC foi anulada a título definitivo pelo tribunal competente com fundamento em falta de competência sem que o mérito da causa tenha sido apreciado (23). Ora, conforme recordado no n.° 31 das presentes conclusões, o requisito «bis» pressupõe a existência de uma decisão, que se tenha tornado definitiva, sobre o mérito da causa, requisito que parece não estar preenchido no caso vertente.

34.      De qualquer modo, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, à luz das considerações que precedem, se o requisito «bis» está efetivamente preenchido antes de proceder à apreciação do requisito «idem».

b)      Quanto ao requisito «idem»

35.      No que respeita ao requisito «idem», decorre da própria redação do artigo 50.° da Carta que este proíbe que a mesma pessoa seja julgada ou punida penalmente, mais do que uma vez, pelo mesmo delito.

36.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o critério relevante para apreciar se está em causa a mesma infração é o da identidade dos factos materiais. Assim, o artigo 50.° da Carta proíbe a aplicação, pelos mesmos factos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para estes fins (24). Além disso, também resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualificação jurídica dos factos no direito nacional e o interesse jurídico protegido não são relevantes para verificar se está em causa a mesma infração, uma vez que o alcance da proteção conferida pelo artigo 50.° da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro (25).

37.      Embora o requisito «idem» exija que os factos materiais sejam idênticos, o princípio ne bis in idem não é aplicável quando os factos em causa não são idênticos, mas apenas semelhantes. Com efeito, entende‑se por identidade dos factos materiais um conjunto de circunstâncias concretas que decorrem de acontecimentos que, em substância, são os mesmos, porquanto implicam o mesmo autor e estão indissociavelmente ligados entre si no tempo e no espaço (26).

38.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio observou, por um lado, que os dois procedimentos em causa no processo principal dizem respeito à mesma pessoa coletiva, a saber, a Engie, e, por outro, que os factos apurados pela ANRE e pela ANPC são, em substância, os mesmos, isto é, a alteração do preço do gás natural pela recorrente, embora estes factos tenham sido qualificados de forma diferente por estas duas autoridades.

39.      Embora o Governo Romeno e a ANRE pareçam contestar a descrição dos factos apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio, ao alegarem que os factos apurados e sancionados por aquelas autoridades não são os mesmos (27), importa recordar que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro normativo e factual que define sob a sua própria responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência (28). Assim, visto que o órgão jurisdicional nacional considera que os factos pelos quais a Engie foi sancionada pelas duas autoridades são os mesmos, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça exposta no n.° 37 das presentes conclusões, este cúmulo constitui uma restrição ao direito fundamental garantido no artigo 50.° da Carta.

40.      De qualquer modo, caberá, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se os factos a que se referem os dois procedimentos em causa no processo principal, instaurados com base, respetivamente, por um lado, na legislação setorial da energia e, por outro, no direito dos consumidores, são os mesmos. Para o efeito, cabe‑lhe examinar os factos que foram tomados em consideração em cada um dos procedimentos e o alegado período da infração (29).

3.      Quanto à justificação de uma eventual restrição ao direito fundamental garantido no artigo 50 da Carta

41.      Importa recordar que as restrições ao direito fundamental garantido no artigo 50.° da Carta só podem ser justificadas com base no artigo 52.°, n.° 1, da mesma. Em conformidade com o primeiro período deste número, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. De acordo com o segundo período do mesmo número, na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições aos referidos direitos e liberdades só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

a)      Quanto à proteção de um ou vários objetivos de interesse geral

42.      Como resulta do recente Acórdão bpost, o Tribunal de Justiça considerou que um cúmulo de sanções pode ser justificado sempre que os procedimentos instaurados por duas autoridades diferentes visem finalidades complementares, que têm por objeto aspetos diferentes da mesma conduta ilícita (30). Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça salientou ainda que as autoridades públicas podem legitimamente optar por respostas jurídicas complementares perante determinados comportamentos socialmente lesivos através de diferentes procedimentos que formem um todo coerente, de maneira a lidar com os diferentes aspetos do problema social em questão, desde que estas respostas jurídicas conjugadas não representem um encargo excessivo para a pessoa em questão (31).

43.      No caso em apreço, este requisito parece estar preenchido, uma vez que, se, por um lado, as medidas aplicadas pela ANPC visam exclusivamente pôr termo às práticas comerciais desleais e enganosas para com os consumidores, as medidas aplicadas pela ANRE têm, por sua vez, como objetivo garantir a transparência dos preços no mercado energético romeno no contexto específico da liberalização do setor do gás natural e, assim, o garantir o bom funcionamento do mesmo (32). Por conseguinte, afigura‑se legítimo que um Estado‑Membro sancione práticas que violam, por um lado, a legislação setorial que visa liberalizar o mercado do gás natural e, por outro, as regras relativas às práticas comerciais desleais, a fim de assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores (33).

44.      Resulta do exposto que, em princípio, o princípio ne bis in idem não é violado quando um mesmo comportamento é objeto de procedimentos de investigação separados, baseados em normas jurídicas diferentes que prosseguem objetivos distintos e complementares, como a proteção dos consumidores e a observância da transparência dos preços no mercado energético.

45.      Por outro lado, o facto de a proteção dos consumidores, enquanto objetivo de interesse geral, poder ser prosseguida não só pela legislação nacional em matéria de proteção dos consumidores mas também, de forma indireta e sob um ângulo diferente, pela legislação setorial da energia (34) não é suscetível de pôr em causa a natureza complementar dos objetivos prosseguidos pelos dois conjuntos de normas.

46.      A interpretação exposta, baseada na complementaridade dos objetivos prosseguidos pelas duas legislações, também parece ser corroborada pelo próprio texto da Diretiva 2009/73 (que foi transposta para o direito interno pela Lei n.° 123/2012) que prevê, no seu anexo I, ponto 1, que as medidas de proteção dos consumidores a que se refere o artigo 3.° desta diretiva não afetam as regras da União em matéria de proteção dos consumidores.

b)      Quanto à proporcionalidade e à necessidade da restrição

47.      No que concerne ao respeito do princípio da proporcionalidade, importa recordar que este exige que o cúmulo de procedimentos e de sanções previsto na legislação nacional não exceda os limites do que é adequado e necessário à realização dos objetivos legítimos prosseguidos por essa legislação. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, caso existam várias medidas adequadas, deve recorrer‑se à menos restritiva, assegurando que os inconvenientes causados por esta medida não são desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos (35).

48.      Quanto ao caráter estritamente necessário desse cúmulo de procedimentos e de sanções, há que apreciar, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se existem regras claras e concretas que permitam prever quais os atos e omissões que podem ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções. Por outro lado, cabe determinar se os dois procedimentos foram conduzidos de maneira suficientemente coordenada e aproximada no tempo, e se a sanção eventualmente aplicada quando do primeiro procedimento no plano temporal foi tida em conta na avaliação da segunda sanção, de modo que os encargos resultantes desse cúmulo para as pessoas visadas se limitem ao estritamente necessário e que o conjunto das sanções impostas corresponda à gravidade das infrações cometidas (36).

49.      Antes de mais, cumpre observar que o facto de existirem duas legislações diferentes que se aplicam em paralelo permite às empresas em causa conhecer, antecipadamente, com um elevado grau de previsibilidade, as potenciais sanções a que estão expostas. Por outro lado, não é de estranhar que uma empresa ativa no mercado da produção ou da distribuição de energia tenha de respeitar várias legislações setoriais que prosseguem objetivos diferentes ou complementares e possa, eventualmente, ser confrontada com diversas sanções paralelas pela mesma conduta, com base em atos jurídicos que prosseguem objetivos diferentes.

50.      Por outro lado, os autos de que o Tribunal de Justiça dispõe contêm indícios da existência de uma conexão temporal estreita entre os dois procedimentos instaurados e as decisões adotadas ao abrigo legislação setorial da energia e do direito da proteção dos consumidores, bem como da cooperação e da troca de informações entre as autoridades em causa (previsto especificamente na legislação romena), o que caberá igualmente ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

51.      Tendo em conta o que precede, considero que o artigo 50.° da Carta, lido em conjugação com o artigo 52.°, n.° 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um fornecedor de gás natural seja sancionado por meio de dois autos de infração distintos, um elaborado pela autoridade de proteção dos consumidores e o outro pela entidade reguladora da energia, desde que:

–        os procedimentos e as sanções se baseiem em normas jurídicas diferentes que prosseguem objetivos de interesse geral distintos e complementares, justificando assim um cúmulo de procedimentos e de sanções;

–        existam regras claras e concretas que permitam prever quais os atos e omissões que podem ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções e assegurar a coordenação entre as duas autoridades competentes;

–        os dois procedimentos tenham sido conduzidos de maneira suficientemente coordenada num intervalo de tempo próximo; e

–        o conjunto das sanções aplicadas corresponda à gravidade das infrações.

V.      Conclusão

52.      À luz das considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial submetida pelo Tribunalul Bucureşti (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia) do seguinte modo:

O artigo 50.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, lido em conjugação com o artigo 52.°, n.° 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um fornecedor de gás natural seja sancionado por meio de dois autos de infração distintos, um elaborado pela autoridade de proteção dos consumidores e o outro pela entidade reguladora da energia, desde que:

–        os procedimentos e as sanções se baseiem em normas jurídicas diferentes que prosseguem objetivos de interesse geral distintos e complementares, justificando assim um cúmulo de procedimentos e de sanções;

–        existam regras claras e concretas que permitam prever quais os atos e omissões que podem ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções e assegurar a coordenação entre as duas autoridades competentes;

–        os dois procedimentos tenham sido conduzidos de maneira suficientemente coordenada num intervalo de tempo próximo; e

–        o conjunto das sanções aplicadas corresponda à gravidade das infrações.


1      Língua original: francês.


2      Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 485, de 16 de julho de 2012.


3      A ANPC acusou a recorrente de ter enviado sucessivamente aos consumidores propostas com preços diferentes e, consequentemente, de os ter induzido em erro. Com efeito, a recorrente terá comunicado aos consumidores uma alteração do preço fixado na proposta inicial após um período de apenas três meses, quando o preço inicial deveria ser válido pelo período de doze meses.


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO 2009, L 211, p. 94).


5      Acórdão de 13 de junho de 2017, Florescu e o. (C‑258/14, EU:C:2017:448, n.° 44 e jurisprudência referida).


6      Mais concretamente, a Lei n.° 123/2012 transpõe para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva 2009/73, ao passo que a Lei n.° 363/2007 transpõe a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 («Diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO 2005, L 149, p. 22).


7      Acórdão de 15 de outubro de 2002, Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão (C‑238/99 P, C‑244/99 P, C‑245/99 P, C‑247/99 P, C‑250/99 P a C‑252/99 P e C‑254/99 P, EU:C:2002:582, n.° 59).


8      Acórdãos de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.° 25), e de 22 de março de 2022, bpost (C‑117/20, a seguir «Acórdão bpost», EU:C:2022:202, n.° 22 e jurisprudência referida).


9      Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.os 41, 44, 46, 49, 53 e 55).


10      Acórdão bpost, n.° 25 e jurisprudência referida. V., igualmente, TEDH, 8 de junho de 1976, Engel e o. c. Países Baixos (CE:ECHR:1976:0608JUD000510071, § 82)


11      Acórdão bpost, n.° 26.


12      Acórdãos de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.° 31), e de 14 de setembro de 2023, Volkswagen Group Italia e Volkswagen Aktiengesellschaft (C‑27/22, EU:C:2023:663, n.° 49).


13      Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193, n.° 33).


14      Mais especificamente, a violação da obrigação prevista no artigo 143.°, n.° 1, alínea k), da Lei n.° 123/2012 constitui uma contraordenação, sujeita a uma coima de 20 000 a 400 000 RON (entre cerca de 4 057 euros e cerca de 81 147 euros).


15      A decisão de reenvio não contém nenhuma referência ao montante das coimas previstas na legislação aplicável. Do mesmo modo, as observações das partes não fornecem nenhuma informação adicional sobre o intervalo das potenciais coimas.


16      Acórdão de 4 de maio de 2023, MV — 98 (C‑97/21, EU:C:2023:371, n.° 46).


17      Importa salientar que o montante desta sanção tem em conta várias contraordenações identificadas pela ANRE.


18      Embora a decisão de reenvio não mencione a aplicação de uma coima à Engie com base na legislação nacional acima referida, decorre das observações escritas tanto da recorrente como do Governo Romeno que, além da obrigação imposta à Engie, de repor o preço inicial acordado com os clientes em causa, a ANPC aplicou‑lhe uma coima no montante de 150 000 RON (cerca de 30 000 euros).


19      Além disso, recordo que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a severidade reduzida de uma coima não é, por si só, suficiente para impedir que a mesma seja qualificada de «sanção penal» (TEDH, 6 de outubro de 2020, Pfenning Distributie S.R.L c. Roménia, CE:ECHR:2020:1006JUD007588213, § 27). V., além disso, igualmente TEDH, 8 de julho de 2019, Mihalache c. Roménia (CE:ECHR:2019:0708JUD005401210, § 62).


20      Acórdão bpost, n.° 28.


21      Acórdão bpost, n.° 29.


22      Acórdão de 14 de setembro de 2023, Volkswagen Group Italia e Volkswagen Aktiengesellschaft (C‑27/22, EU:C:2023:663, n.° 59).


23      Note‑se que, embora esta informação não conste da decisão de reenvio, foi fornecida pelo Governo Romeno nas suas observações escritas e posteriormente confirmada na fase oral do processo, sem que tenha sido contestada pelas outras partes presentes na audiência.


24      Acórdão bpost, n.° 33.


25      Acórdão bpost, n.° 34 e jurisprudência referida.


26      Acórdão bpost, n.os 31, 33, 36 e 37.


27      Segundo estas partes, a ANRE sancionou a Engie por ter violado a obrigação de transparência, quando da elaboração da proposta normalizada, ao passo que a ANPC sancionou a Engie por ter adotado práticas comerciais enganosas ou agressivas que consistiam no envio de notificações sucessivas relativas à alteração das tarifas.


28      Acórdão de 11 de janeiro de 2024, Societatea Civilă Profesională de Avocaţi AB & CD (C‑252/22, EU:C:2024:13, n.° 38).


29      V., neste sentido, Acórdão bpost, n.° 38.


30      V., neste sentido, Acórdão bpost, n.° 50.


31      Acórdão bpost, n.° 49.


32      Saliento, para os devidos efeitos, que a observância da transparência dos preços constitui apenas um objetivo indireto da proteção dos consumidores.


33      V., por analogia, Acórdão bpost, n.° 47.


34      Com efeito, embora a proteção dos consumidores seja prosseguida «diretamente» enquanto objetivo principal do direito dos consumidores, só é prosseguida «indiretamente» no âmbito da legislação setorial da energia que visa principalmente garantir o bom funcionamento do mercado em causa.


35      Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.° 46 e jurisprudência referida).


36      Acórdão bpost, n.° 51.