Processo C‑626/22

C. Z. e o.

contra

Ilva SpA in Amministrazione Straordinaria
e
Acciaierie d’Italia Holding SpA
e
Acciaierie d’Italia SpA

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Milano)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 25 de junho de 2024

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Artigo 191.o TFUE — Emissões industriais — Diretiva 2010/75/UE — Prevenção e controlo integrados da poluição — Artigos 1.°, 3.°, 8.°, 11.°, 12.°, 14.°, 18.°, 21.° e 23.° — Artigos 35.° e 37.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Procedimentos de emissão e reexame de uma licença de exploração de uma instalação — Medidas de proteção do ambiente e da saúde humana — Direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável»

  1. Estados‑Membros — Obrigações — Autoridade de caso julgado — Obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais — Obrigação de rever uma decisão judicial transitada em julgado — Inexistência — Jurisprudência nacional que interpreta uma disposição nacional de modo contrário ao direito da União — Obrigação de interpretar esta disposição em conformidade com o direito da União — Pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação do direito da União — Admissibilidade

    (Artigo 267.o TFUE)

    (cf. n.os 53, 54)

  2. Questões prejudiciais — Admissibilidade — Pedido relativo à interpretação de uma diretiva suscitado no âmbito de um litígio que opõe particulares a um estabelecimento industrial de interesse estratégico nacional — Litígio no processo principal que tem por objeto regras especiais adotadas em relação ao referido estabelecimento e que são abrangidas pelo âmbito de aplicação da diretiva a que o pedido de decisão prejudicial diz respeito — Admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

    (Artigos 267.° e 288.°, terceiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 56‑64)

  3. Ambiente — Proteção e controlo integrados da poluição — Diretiva 2010/75 — Emissão e reexame de uma licença de exploração de uma instalação — Condições — Obrigação de avaliação prévia dos efeitos da atividade da instalação no ambiente e na saúde humana

    (Artigos 191.° e 192.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 35.° e 37.°; Diretiva 2010/75 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerandos 2, 27 e 45, artigos 3.°, pontos 2 e 3, 4.°, n.o 1, 5.°, n.o 1, 8.°, n.o 2, segundo parágrafo, e 10.° a 27.° e anexos I e VII, parte 1)

    (cf. n.os 67‑95, 104, 105, disp. 1)

  4. Ambiente — Proteção e controlo integrados da poluição — Diretiva 2010/75 — Emissão e reexame de uma licença de exploração de uma instalação — Fixação dos valores‑limite de emissão de substâncias poluentes — Tomada em consideração de substâncias nocivas suscetíveis de ser emitidas pela instalação em causa — Alcance

    [Diretiva 2010/75 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 15 e artigos 3.°, ponto 6, 12.°, n.o 1, alínea f), 14.°, n.o 1, alínea a), 18.° e 21.°, n.o 5, alínea a)]

    (cf. n.os 109‑122, disp. 2)

  5. Ambiente — Proteção e controlo integrados da poluição — Diretiva 2010/75 — Licença de exploração de uma instalação — Prazo de adequação da instalação às medidas de proteção do ambiente e da saúde humana previstas por essa licença — Regulamentação nacional que prorroga repetidamente esse prazo — Inadmissibilidade em caso de perigos graves e significativos para a integridade do ambiente e da saúde humana

    (Diretiva 2010/75 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 43 e artigos 8.°, n.os 1 e 2, 13.°, n.o 5, 21.°, n.o 3, e 82.°, n.o 1)

    (cf. n.os 125‑128, 130‑132, disp. 3)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial pelo Tribunale di Milano (Tribunal de Primeira Instância de Milão, Itália), o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, precisa as condições de licenciamento de exploração de uma instalação nos termos da Diretiva 2010/75 relativa às emissões industriais ( 1 ).

A fábrica siderúrgica Ilva (a seguir «fábrica Ilva») está situada no município de Taranto (Itália) e é explorada com base numa «licença ambiental integrada» concedida em 2011.

Apesar de uma apreensão em 2012, esta fábrica foi autorizada, ao abrigo de regras derrogatórias especiais, a prosseguir a sua atividade de produção durante um período de 36 meses, desde que respeitasse um plano de medidas ambientais e sanitárias. A data‑limite para o cumprimento deste plano foi adiada várias vezes, num período total de vários anos, apesar de a atividade em causa apresentar perigos graves e significativos para a integridade do ambiente e da saúde das populações vizinhas.

Neste contexto, os recorrentes, que defendem os direitos de cerca de 300000 habitantes do município de Taranto e dos municípios limítrofes, intentaram no órgão jurisdicional de reenvio uma ação coletiva destinada, nomeadamente, a obter a cessação da exploração da fábrica Ilva ou de certas partes desta devido à poluição causada pelas suas emissões industriais e aos danos que dela resultam para a saúde humana.

Na medida em que a regulamentação italiana não condiciona a concessão ou o reexame de uma licença de exploração industrial à avaliação prévia dos efeitos da instalação na saúde humana, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu interrogar o Tribunal de Justiça sobre a necessidade dessa avaliação, sobre o alcance do exame das autoridades competentes bem como sobre o prazo concedido ao operador de uma instalação para dar cumprimento às condições fixadas na licença concedida.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, no que respeita à necessidade de proceder a uma avaliação que englobe os efeitos da atividade da instalação em causa na saúde humana, o Tribunal de Justiça recorda que a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, bem como a proteção da saúde humana, são dois componentes estreitamente ligados da política da União em matéria de ambiente. Ao estabelecer regras relativas à prevenção e ao controlo integrados da poluição proveniente das atividades industriais, a Diretiva 2010/75 concretiza as obrigações da União em matéria de proteção do ambiente e da saúde humana decorrentes, nomeadamente, do artigo 191.o TFUE, contribuindo desse modo para a proteção do direito a viver num ambiente adequado à saúde e ao bem‑estar dos indivíduos. O Tribunal de Justiça remete, a este respeito, para os artigos 35.° e 37.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e constata a relação estreita existente entre a proteção do ambiente e a proteção da saúde humana.

Entre as condições de licenciamento da exploração previstas nesta diretiva figura a obrigação de o operador tomar todas as medidas preventivas adequadas contra a «poluição», bem como medidas de monitorização das emissões para o ambiente. Esse operador deve igualmente assegurar‑se de que a sua exploração não causa nenhuma «poluição importante». Além disso, as condições de licenciamento são reexaminadas quando a «poluição» causada pela instalação o justificar. A periodicidade deste reexame deve ser adaptada à extensão e à natureza da instalação e ter em conta, nomeadamente, as especificidades do local em que a atividade industrial é desenvolvida e, em particular, a proximidade de habitações.

A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta que o conceito de «poluição», mencionado na Diretiva 2010/75, inclui os danos causados, ou suscetíveis de serem causados, tanto ao ambiente como à saúde humana. Esta relação estreita que existe entre a proteção da qualidade do ambiente e a da saúde humana é, de resto, corroborada não só pelas disposições do direito primário da União, como por várias disposições da Diretiva 2010/75 e pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. No que respeita precisamente à poluição causada pela fábrica Ilva, este último órgão jurisdicional declarou assim a violação do direito dos recorrentes ao respeito da vida privada e familiar, baseando‑se nos efeitos poluentes das emissões desta fábrica tanto no ambiente como na saúde das pessoas ( 2 ).

Daqui resulta que o operador de uma instalação abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2010/75 deve, no seu pedido de licenciamento, fornecer, nomeadamente, as informações adequadas sobre as emissões provenientes da sua instalação e seguidamente, ao longo de todo o período de exploração, assegurar o cumprimento das obrigações e medidas previstas por esta diretiva, através de uma avaliação contínua dos efeitos das atividades da referida instalação tanto no ambiente como na saúde humana.

Do mesmo modo, incumbe às autoridades nacionais competentes prever que tal avaliação faça parte integrante dos procedimentos de concessão e de reexame de uma licença de exploração e constitua uma condição prévia à concessão ou ao reexame dessa licença. Quando essa avaliação revela resultados que demonstram o caráter inaceitável do perigo para a saúde de uma população numerosa exposta a emissões poluentes, a licença em causa deve ser objeto de reexame a curto prazo. Ora, no caso em apreço, o impacto no ambiente e na saúde humana de substâncias poluentes provenientes da fábrica Ilva, a saber, partículas finas PM2,5 e PM10, cobre, mercúrio e naftaleno provenientes de fontes difusas, não foi avaliado no âmbito das licenças ambientais em causa.

Em segundo lugar, no que respeita ao alcance da avaliação que incumbe às autoridades competentes, estas têm de tomar em consideração, além das substâncias poluentes previsíveis atendendo à natureza e ao tipo de atividade industrial em causa, todas as substâncias objeto de emissões cientificamente reconhecidas como nocivas suscetíveis de ser emitidas pela instalação em causa, em volume significativo, tendo em conta a sua natureza e o seu potencial de transferência de poluição de um meio físico para outro. Em conformidade com o princípio da prevenção, a determinação do volume de substâncias poluentes cuja emissão pode ser licenciada deve estar ligada ao grau de nocividade das substâncias em causa.

Por conseguinte, o operador de uma instalação está obrigado a fornecer, no seu pedido de licença de exploração, informações sobre a natureza, o volume e o possível efeito nocivo das emissões suscetíveis de ser produzidas pela referida instalação, para que as autoridades competentes possam fixar valores‑limite relativamente a essas emissões, unicamente com a exceção daquelas que, pela sua natureza ou volume, não sejam suscetíveis de constituir um risco para o ambiente ou para a saúde humana.

O procedimento de reexame de uma licença não se pode limitar, por seu turno, a fixar valores‑limite apenas para as substâncias poluentes cuja emissão era previsível e foi tida em consideração no procedimento de licença inicial. A este respeito, deve ser tida em conta a experiência adquirida durante a exploração da instalação em causa e, por conseguinte, das emissões efetivamente verificadas. Se o cumprimento das normas de qualidade ambiental necessitar da imposição à instalação em causa de valores‑limite de emissão mais estritos, devem então ser incluídas nas licenças condições suplementares, sem prejuízo de outras medidas que possam ser tomadas para respeitar as referidas normas.

Em terceiro lugar, quanto ao prazo concedido ao operador de uma instalação para dar cumprimento à licença de exploração, o Tribunal de Justiça indica, a título preliminar, que, para instalações como as da fábrica Ilva, as autoridades nacionais competentes dispunham, nos termos da Diretiva 2010/75, de um prazo até 28 de fevereiro de 2016 para adaptar as condições de licenciamento às novas técnicas disponíveis. Em caso de incumprimento das condições de licenciamento de exploração de uma instalação, os Estados‑Membros são obrigados, por força desta diretiva, a tomar as medidas necessárias para garantir imediatamente o cumprimento dessas condições.

À luz destas considerações, o Tribunal de Justiça conclui que a Diretiva 2010/75 se opõe a uma legislação nacional por força da qual o prazo concedido ao operador de uma instalação para dar cumprimento às medidas de proteção do ambiente e da saúde humana previstas na licença de exploração dessa instalação foi objeto de prorrogações repetidas, embora tenham sido identificados perigos graves e significativos para a integridade do ambiente e da saúde humana. Acrescenta que, quando a atividade apresenta semelhantes perigos, o funcionamento da instalação em causa é, em conformidade com esta diretiva, interrompido.


( 1 ) Diretiva 2010/75/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição) (JO 2010, L 334, p. 17, e retificação no JO 2012, L 158, p. 25).

( 2 ) TEDH, 24 de janeiro de 2019, Cordella e o. c. Itália, CE:ECHR:2019:0124JUD005441413.