ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

11 de julho de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 49.o TFUE — Concessões do domínio público marítimo — Caducidade e renovação — Legislação nacional que prevê a cessão ao Estado a título gratuito das construções não removíveis realizadas no domínio público — Restrição — Inexistência»

No processo C‑598/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 15 de setembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de setembro de 2022, no processo

Società Italiana Imprese Balneari Srl

contra

Comune di Rosignano Marittimo,

Ministero dell’Economia e delle Finanze,

Agenzia del demanio — Direzione regionale Toscana e Umbria,

Regione Toscana,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Terceira Secção, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec (relator), juízes,

advogada‑geral: T. Ćapeta,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Società Italiana Imprese Balneari Srl, por E. Nesi e R. Righi, avvocati,

em representação do Comune di Rosignano Marittimo, por R. Grassi, avvocato,

em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Palmieri e L. Delbono, avvocati dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por L. Armati, L. Malferrari e M. Mataija, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 8 de fevereiro de 2024,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.o e 56.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Società Italiana Imprese Balneari Srl (a seguir «SIIB») ao Comune Rosignano Marittimo (Município de Rosignano Marittimo, Itália; a seguir «Município»), a respeito de decisões pelas quais o Município considerou que, no termo de uma concessão de ocupação do domínio público marítimo à SIIB, as construções realizadas por esta última no referido domínio tinham sido adquiridas, a título gratuito, pelo Estado Italiano e, consequentemente, impôs o pagamento de taxas municipais mais elevadas.

Quadro jurídico

Direito da União

3

A Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO 2006, L 376, p. 36), prevê, no artigo 44.o, n.o 1, primeiro parágrafo:

«Os Estados‑Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento ao disposto na presente diretiva antes de 28 de dezembro de 2009.»

Direito italiano

4

O Codice della Navigazione (Código Marítimo), aprovado pelo Decreto Real n.o 327, de 30 de março de 1942 (GURI n.o 93, de 18 de abril de 1942), dispõe, no artigo 49.o, n.o 1, sob a epígrafe «Devolução das construções não removíveis»:

«Salvo convenção em contrário no ato de concessão, aquando da cessação da concessão, as construções não removíveis, realizadas na zona de domínio público revertem para o Estado, sem dar lugar a compensação ou reembolso, sem prejuízo da faculdade da autoridade concedente de ordenar a sua demolição, com a restituição do bem de domínio público no seu estado inicial.»

5

Nos termos do artigo 1.o, n.o 251, da legge n.o 296 — Disposizioni per la formazione del bilancio annuale e pluriennale dello Stato (legge finanziaria 2007) [Lei n.o 296 que estabelece as Disposições para a Elaboração do Orçamento Anual e Plurianual do Estado (Lei de Finanças de 2007)], de 27 de dezembro de 2006 (suplemento ordinário n.o 244 da GURI n.o 299, de 27 de dezembro de 2006), a apropriação para o domínio público de construções realizadas pelo concessionário implica que lhes seja aplicada uma taxa mais elevada, uma vez que estas construções são consideradas bens acessórios do domínio público.

6

O artigo 1.o do Decreto do Presidente do Conselho Regional n.o 52/R, de 24 de setembro de 2013, alterou o Decreto do Presidente do Conselho Regional da Toscana n.o 18/R de 2001, acrescentando, neste último, o artigo 44.o‑A, que prevê:

«Consideram‑se de fácil remoção e desmantelamento as construções e as estruturas utilizadas para o exercício de atividades turístico‑recreativas, realizadas quer acima quer abaixo do solo nas zonas do domínio público marítimo objeto de concessão, que […] possam ser integralmente removidas com recurso aos meios técnicos normais, com a consequente restituição das áreas no seu estado inicial, num prazo não superior a 90 dias.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

7

Desde 1928, a SIIB gere sem interrupção um estabelecimento balnear, localizado no território do Município, situado maioritariamente no domínio público marítimo. A SIIB alega ter edificado legalmente nesta zona uma série de construções, uma das quais foi objeto de um inventário de incorporação durante o ano de 1958. Outras construções foram realizadas posteriormente, entre 1964 e 1995.

8

Por Decisão de 20 de novembro de 2007, o Município classificou como bens acessórios do domínio público marítimo diversas construções existentes neste domínio e que foram consideradas de difícil remoção. Estas construções foram legalmente adquiridas pelo Município no termo da concessão n.o 36/2002, que abrangia o período compreendido entre 1 de janeiro de 1999 e 31 de dezembro de 2002 e que foi renovado, até 31 de dezembro de 2008, pela concessão n.o 27/2003.

9

Em 23 de setembro de 2008, o Município notificou a SIIB do início do processo de apropriação, para o domínio público, dos bens acessórios ainda não adquiridos, sem que, todavia o tenha concluído.

10

Em seguida, adjudicou a esta sociedade a concessão relativa ao domínio público marítimo n.o 181/2009, válida por um período de seis anos, de 1 de janeiro de 2009 a 31 de dezembro de 2014 (a seguir «concessão de 2009»).

11

Invocando o artigo 1.o do Decreto do Presidente do Conselho Regional de Toscana n.o 52/R, de 24 de setembro de 2013, a SIIB apresentou uma declaração segundo a qual todas as construções situadas no domínio público podiam ser removidas em 90 dias, pelo que deviam ser consideradas como de fácil remoção.

12

O Município reconheceu esta qualificação às construções em causa numa Decisão de 3 de fevereiro de 2014, que posteriormente revogou, por Decisão de 26 de novembro de 2014, com o fundamento de que as construções situadas no domínio público concessionado já tinham sido adquiridas pelo Estado ao abrigo do artigo 49.o do Código Marítimo.

13

A SIIB impugnou esta última decisão no Tribunale amministrativo regionale per la Toscana (Tribunal Administrativo Regional da Toscana, Itália).

14

Por Decisão de 16 de abril de 2015, o Município reafirmou que os edifícios construídos na zona concessionada pertenciam ao domínio público. Por conseguinte, aplicou‑lhes uma taxa mais elevada pelo período compreendido entre 2009 e 2015, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 251, da Lei n.o 296, de 27 de dezembro de 2006. O Município, através de outros atos, fixou os montantes devidos para os anos seguintes.

15

A SIIB impugnou também no mesmo órgão jurisdicional as decisões mencionadas no número anterior. Este último negou provimento a todos os recursos por Sentença de 10 de março de 2021, da qual a SIIB interpôs recurso para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

16

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) indica que o artigo 49.o do Código Marítimo é interpretado no sentido de que a aquisição de bens pelo Estado ocorre automaticamente no termo da concessão, mesmo em caso de renovação desta, desde que a renovação implique uma rutura da continuidade entre os títulos de ocupação do domínio público. Em contrapartida, em caso de prorrogação da concessão antes do seu normal termo, as construções realizadas pelos concessionários no domínio público continuam a ser propriedade privada exclusiva do concessionário até ao termo efetivo ou à revogação antecipada da concessão e não é devida nenhuma taxa no que respeita a estas construções.

17

Resulta da decisão de reenvio que, em primeira instância, o Tribunale amministrativo regionale per la Toscana (Tribunal Administrativo Regional da Toscana) declarou que tanto o inventário de incorporação de 1958 como a concessão de 2009 produziram efeitos que se tornaram definitivos, por a SIIB não os ter contestado em tempo útil. Este órgão jurisdicional acrescentou que a qualificação das construções realizadas pela SIIB no domínio público marítimo como construções de difícil remoção e como bens acessórios deste domínio não resultava de uma decisão unilateral do Município, mas de um mútuo acordo materializado pelo título de concessão assinado por ambas as partes.

18

O referido órgão jurisdicional excluiu, nomeadamente, a possibilidade de a aplicação do artigo 49.o do Código Marítimo implicar uma expropriação de facto do concessionário sem indemnização. Com efeito, a aquisição gratuita, pelo Estado, das construções não removíveis realizadas no domínio público só ocorre, nos termos desta disposição, na falta de convenção em contrário no ato de concessão. Por conseguinte, a regra da aquisição a título gratuito só se aplica com o consentimento das partes.

19

No entanto, a SIIB alega que, em caso de renovação de uma concessão, a apropriação para o domínio público marítimo do Estado, sem indemnização, das construções de difícil remoção realizadas pelo concessionário no referido domínio é contrária ao direito da União, nomeadamente aos artigos 49.o e 56.o TFUE, conforme interpretados no Acórdão de 28 de janeiro de 2016, Laezza (C‑375/14, EU:C:2016:60). De acordo com a jurisprudência do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), a apropriação a título gratuito para o referido domínio justifica‑se pela necessidade de garantir que as construções não removíveis destinadas a aí permanecer estejam à inteira disposição do concedente. Ora, quando a concessão, em vez de terminar, é renovada sem interrupção, o efeito de acesso previsto pelo artigo 49.o do Código Marítimo é injustificado. Além disso, este efeito torna menos atrativo o estabelecimento de operadores económicos de outros Estados‑Membros interessados no mesmo bem e impõe ao concessionário um sacrifício desproporcionado dos seus direitos, uma vez que deve ceder os seus bens ao Estado sem contrapartida.

20

O Município recorda, por seu turno, que tinha adjudicado a concessão de 2009 aquando da renovação da concessão n.o 27/2003, não de forma automática, mas na sequência de uma instrução específica no âmbito da qual fez uso do seu poder discricionário. Previu‑se então que a nova concessão seria considerada uma concessão totalmente distinta da anterior. Além disso, a inexistência de convenção em contrário no ato de concessão comprova que o concessionário considerou que a perda da propriedade das construções realizadas era compatível com o equilíbrio económico geral da concessão.

21

Em resposta a um pedido de informações do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio indicou, em 8 de setembro de 2023, que a SIIB mantinha um interesse em agir contra a apropriação para o domínio público marítimo do Estado das construções não removíveis que aí tinha realizado, que podia, nomeadamente, invocar no âmbito de um recurso da decisão do concedente que lhe impõe o pagamento de taxas mais elevadas. Este órgão jurisdicional especificou também que a transferência para o património do Estado da propriedade dessas construções ocorre automaticamente no termo da concessão de ocupação do domínio público. A eventual declaração, por via administrativa ou judicial, do direito de propriedade do Estado sobre estas construções tem caráter meramente declarativo e permite ao concedente aumentar o montante da taxa.

22

O referido órgão jurisdicional indicou que, no caso em apreço, a apropriação das construções não removíveis realizadas pela SIIB para o domínio público marítimo ocorreu em 31 de dezembro de 2008, no termo da concessão n.o 27/2003. Esta apropriação levou o Município a aplicar à SIIB uma taxa mais elevada desde 2009.

23

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio especificou, em substância, que o Código Marítimo se aplica indiferentemente aos operadores económicos italianos e aos de outros Estados‑Membros.

24

Nestas circunstâncias, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 49.o e 56.o TFUE e os princípios decorrentes do Acórdão Laezza (C‑375/14), se forem considerados aplicáveis, opõem‑se à interpretação de uma disposição de direito nacional como o artigo 49.o [do Código Marítimo] no sentido de que impõe a cessão pelo concessionário, a título gratuito e sem indemnização, no termo da concessão, quando esta seja renovada, sem interrupção, ainda que por força de uma nova decisão, das construções realizadas na zona do domínio público que fazem parte do complexo de bens organizados para o exercício da atividade balnear, podendo este efeito de apropriação imediata pelo Estado configurar uma restrição que excede o necessário para alcançar o objetivo efetivamente visado pelo legislador nacional e, portanto, desproporcionado relativamente a esse objetivo?»

Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

25

Por requerimento que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 17 de abril de 2024, a SIIB pediu a reabertura da fase oral do processo, em aplicação do artigo 83.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

26

Em apoio do seu pedido, a SIIB alega que, no n.o 103 das suas conclusões, a advogada‑geral excedeu o objeto da questão prejudicial, ao concluir, implícita mas necessariamente, pela inexistência de violação do artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») pela legislação nacional em causa no processo principal.

27

Nestas circunstâncias, a SIIB pede a realização de uma audiência para que a questão da pertinência do artigo 17.o da Carta no âmbito do presente processo possa ser objeto de debate contraditório.

28

A este respeito, importa recordar, por um lado, que o Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e o Regulamento de Processo não preveem a possibilidade de os interessados referidos no artigo 23.o deste Estatuto apresentarem observações em resposta às conclusões apresentadas pelo advogado‑geral (Despacho de 4 de fevereiro de 2000, Emesa Sugar,C‑17/98, EU:C:2000:69, n.o 2, e Acórdão de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques, C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 40 e jurisprudência referida).

29

Por outro lado, por força do artigo 252.o, segundo parágrafo, TFUE, cabe ao advogado‑geral apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção. Não se trata, portanto, de um parecer destinado aos juízes ou às partes que emane de uma autoridade externa ao Tribunal de Justiça, mas da opinião individual, fundamentada e expressa publicamente, de um membro da própria instituição. Nestas circunstâncias, as conclusões do advogado‑geral não podem ser debatidas pelas partes. Além disso, o Tribunal de Justiça não está vinculado nem por essas conclusões nem pela fundamentação em que o advogado‑geral baseia essas conclusões. Por conseguinte, o desacordo de uma parte com as conclusões do advogado‑geral, sejam quais forem as questões nelas examinadas, não constitui, em si mesmo, um fundamento justificativo da reabertura da fase oral do processo (Acórdão de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques, C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 41 e jurisprudência referida).

30

No entanto, em conformidade com o artigo 83.o do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido, ou quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

31

Não é o que acontece neste caso.

32

Primeiro, importa observar que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tem por objeto a interpretação dos artigos 49.o e 56.o TFUE, que consagram, respetivamente, as liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços. Este órgão jurisdicional não questionou especificamente o Tribunal de Justiça sobre a interpretação do artigo 17.o da Carta, relativo ao direito de propriedade.

33

Segundo, no n.o 103 das suas conclusões, a advogada‑geral limitou‑se a mencionar uma jurisprudência existente do Tribunal de Justiça segundo a qual o exame de uma restrição representada pela legislação nacional à luz do artigo 49.o TFUE abrange igualmente eventuais restrições ao exercício dos direitos e liberdades previstos nos artigos 15.o a 17.o da Carta, pelo que não é necessária uma análise autónoma do direito de propriedade consagrado no artigo 17.o da Carta (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet,C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 50 e de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 56).

34

Dado que, com o seu pedido de reabertura da fase oral do processo, a SIIB procura, na realidade, refutar esta última apreciação, basta recordar que resulta da jurisprudência referida no n.o 29 do presente acórdão que o desacordo de uma parte com as conclusões do advogado‑geral, sejam quais forem as questões que este último examina nestas conclusões, não constitui, por si, um fundamento justificativo da reabertura da fase oral do processo.

35

Terceiro, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera que dispõe de todos os elementos necessários para responder à questão que lhe é submetida.

36

Nestas circunstâncias, não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

37

Nas suas observações escritas, o Governo Italiano alega a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial, com o fundamento de que a questão submetida ao Tribunal de Justiça não é pertinente para decidir o litígio no processo principal.

38

A este respeito, cumpre recordar que, de acordo com jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio no processo principal e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competências exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Daqui resulta que uma questão prejudicial relativa ao direito da União beneficia de uma presunção de pertinência que pode ser ilidível, nomeadamente, se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 1981, Foglia,244/80, EU:C:1981:302, n.os 15 e 18; de 7 de setembro de 1999, Beck e Bergdorf, C‑355/97, EU:C:1999:391, n.o 22, e de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 42).

39

No caso em apreço, em resposta a um pedido de informações do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio indicou que a SIIB mantinha um interesse em agir contra a apropriação para o domínio público marítimo das construções não removíveis que tinha realizado, uma vez que esta apropriação se traduziu num aumento da taxa de ocupação de domínio público que devia pagar. De acordo com este órgão jurisdicional, a SIIB pode contestar a referida apropriação no âmbito de um recurso da decisão pela qual o concedente lhe impõe, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 251, da Lei n.o 296, de 27 de dezembro de 2006, o pagamento de uma taxa mais elevada.

40

Daqui resulta que uma resposta do Tribunal de Justiça à questão submetida é útil para decidir o litígio no processo principal.

41

Além disso, ainda que este litígio apresente um caráter puramente interno, basta salientar, à semelhança da Comissão Europeia, que o Código Marítimo se aplica indistintamente aos operadores económicos italianos e aos provenientes de outros Estados‑Membros. Por conseguinte, de acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, não se pode, excluir que operadores estabelecidos noutros Estados‑Membros tenham estado ou estejam interessados em fazer uso das liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços para exercer atividades no território italiano e, consequentemente, que esta legislação seja suscetível de produzir efeitos que não estão confinados ao referido território.

42

Nestas circunstâncias, o pedido de decisão prejudicial é admissível na parte em que se refere ao artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten,C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 50).

43

Por conseguinte, há que responder ao pedido de decisão prejudicial.

Quanto à questão prejudicial

44

Uma vez que, na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio refere os artigos 49.o e 56.o TFUE, que consagram, respetivamente, a liberdade de estabelecimento e a liberdade de prestação de serviços, há que especificar que a adjudicação de uma concessão de ocupação do domínio público marítimo implica necessariamente o acesso do concessionário ao território do Estado‑Membro de acolhimento para efeitos de uma participação estável e continuada, por um período relativamente longo, na vida económica deste Estado. Daqui resulta que a adjudicação de tal concessão está abrangida pelo direito de estabelecimento previsto no artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de novembro de 1995, Gebhard,C‑55/94, EU:C:1995:411, n.o 25; de 11 de março de 2010, Attanasio Group,C‑384/08, EU:C:2010:133, n.o 39; e de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis,C‑201/15, EU:C:2016:972, n.o 50).

45

Além disso, por força do artigo 57.o, primeiro parágrafo, TFUE, as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços só são aplicáveis na medida em que, nomeadamente, não sejam aplicáveis as disposições relativas ao direito de estabelecimento. Por conseguinte, há que excluir o artigo 56.o TFUE.

46

Por outro lado, uma vez que decorre do artigo 44.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/123 que esta é inaplicável ratione temporis ao litígio no processo principal, a questão prejudicial deve ser examinada apenas à luz do artigo 49.o TFUE.

47

Nestas circunstâncias, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma norma nacional que dispõe que, no termo de uma concessão de ocupação do domínio público e salvo convenção em contrário no ato de concessão, o concessionário está obrigado a ceder, imediatamente, gratuitamente e sem indemnização, as construções não removíveis que realizou na zona concessionada, mesmo em caso de renovação da concessão.

48

O artigo 49.o, primeiro parágrafo, TFUE proíbe as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Como resulta de jurisprudência constante, devem ser consideradas restrições à livre prestação de serviços todas as medidas que, embora aplicáveis sem discriminação em razão da nacionalidade, proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício da liberdade garantida pelo artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France,C‑442/02, EU:C:2004:586, n.o 11; de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis,C‑201/15, EU:C:2016:972, n.o 48, e de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 61).

49

No entanto, uma legislação nacional oponível a todos os operadores que exerçam atividades no território nacional, que não tem por objeto regular as condições relativas ao estabelecimento dos operadores económicos em causa e cujos eventuais efeitos restritivos sobre a liberdade de estabelecimento são demasiado aleatórios e indiretos para que se possa considerar que a obrigação que estabelece é suscetível de entravar essa liberdade, não viola a proibição assim estabelecida pelo artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de junho de 1996, Semeraro Casa Uno e o., C‑418/93 a C‑421/93, C‑460/93 a C‑462/93, C‑464/93, C‑9/94 a C‑11/94, C‑14/94, C‑15/94, C‑23/94, C‑24/94 e C‑332/94, EU:C:1996:242, n.o 32, e de 6 de outubro de 2022, Contship Italia,C‑433/21 e C‑434/21, EU:C:2022:760, n.o 45).

50

No caso em apreço, como resulta do n.o 23 do presente acórdão, é facto assente que o artigo 49.o do Código Marítimo é oponível a todos os operadores que exerçam atividades no território italiano. Por conseguinte, como a advogada‑geral salientou no n.o 51 das suas conclusões, todos os operadores económicos se confrontam com a mesma preocupação de saber se é economicamente viável concorrer a uma concessão sabendo que, após o seu termo, as construções não removíveis realizadas serão incorporadas no domínio público.

51

Além disso, esta disposição não se refere, enquanto tal, às condições de estabelecimento dos concessionários autorizados a explorar uma atividade turístico‑recreativa no domínio público marítimo italiano. Com efeito, a referida disposição prevê apenas que, no termo da concessão e salvo convenção em contrário no ato de concessão, as construções não removíveis realizadas pelo concessionário serão incorporadas imediatamente e sem compensação financeira no domínio público marítimo.

52

Embora o artigo 49.o do Código Marítimo não tenha, por conseguinte, por objeto regular as condições relativas ao estabelecimento das empresas em causa, há também que verificar que não produz sequer efeitos restritivos na aceção da jurisprudência referida no n.o 49 do presente acórdão.

53

A este respeito, há que salientar que o artigo 49.o do Código Marítimo se limita a retirar as consequências dos princípios fundamentais do domínio público. Com efeito, como a advogada‑geral salientou no n.o 47 das suas conclusões, a apropriação gratuita e sem indemnização pela entidade pública concedente das construções não removíveis realizadas pelo concessionário no domínio público constitui a própria essência da inalienabilidade do domínio público.

54

O princípio da inalienabilidade implica, nomeadamente, que o domínio público continue a ser propriedade de entidades públicas e que as autorizações de ocupação do domínio público sejam precárias, no sentido de que têm uma duração determinada e são, além disso, revogáveis.

55

Em conformidade com este princípio, o quadro normativo aplicável, no caso em apreço, a uma concessão de ocupação do domínio público fixa, sem nenhum equívoco, o termo da autorização de ocupação que é concedida. Daqui resulta que, desde a celebração do contrato de concessão, a SIIB não podia ignorar que a autorização de ocupação do domínio público que lhe tinha sido atribuída era precária e revogável.

56

Por outro lado, afigura‑se que os eventuais efeitos restritivos deste artigo 49.o, n.o 1, na liberdade de estabelecimento são demasiado aleatórios e indiretos, na aceção da jurisprudência referida no n.o 49 do presente acórdão, para que se possa considerar que esta disposição é suscetível de entravar a referida liberdade.

57

Com efeito, uma vez que o referido artigo 49.o, n.o 1, prevê expressamente a possibilidade de derrogar por contrato o princípio da apropriação imediata sem nenhuma indemnização ou reembolso das construções não removíveis realizadas pelo concessionário no domínio público marítimo, esta disposição evidencia a dimensão contratual, e, assim, consensual, de uma concessão de ocupação do domínio público. Daqui resulta que a apropriação imediata, gratuita e sem indemnização das construções não removíveis realizadas pelo concessionário neste domínio não pode ser entendida como um modo de cessão forçada destas construções.

58

Por último, a questão de saber se se trata de uma renovação ou da primeira adjudicação de uma concessão não pode ter nenhuma incidência na apreciação do artigo 49.o, n.o 1, do Código Marítimo. A este respeito, basta observar que a renovação de uma concessão de ocupação do domínio público se traduz na sucessão de dois títulos de ocupação do domínio público e não na perpetuação ou prorrogação do primeiro. De resto, tal interpretação é suscetível de garantir que a adjudicação de uma concessão só possa ocorrer na sequência de um procedimento de concurso que coloque todos os candidatos e proponentes em pé de igualdade.

59

Importa ainda esclarecer que a interpretação do artigo 49.o TFUE que figura nos n.os 50 a 58 do presente acórdão não é posta em causa pelos «princípios decorrentes do Acórdão [de 28 de janeiro de 2016,] Laezza, [(C‑375/14, EU:C:2016:60)]» que o órgão jurisdicional de reenvio refere na sua questão.

60

Nesse processo, que dizia respeito ao setor dos jogos de fortuna ou azar, os concessionários, para exercer a sua atividade económica, utilizavam bens de que eram verdadeiramente proprietários. Em contrapartida, no presente processo e como o Governo Italiano alegou nas suas observações escritas, a autorização de ocupação do domínio público marítimo de que beneficiava a SIIB apenas lhe conferia um simples direito de superfície de caráter transitório sobre as construções não removíveis que tinha realizado nesse domínio.

61

Além disso, decorre do n.o 43 do Acórdão de 28 de janeiro de 2016, Laezza (C‑375/14, EU:C:2016:60), que uma medida que ordenava a cessão a título gratuito da utilização de bens necessários à exploração dos jogos de fortuna ou azar estava abrangida pelo registo da sanção, dado que era imposta ao concessionário e este não a podia negociar. Em contrapartida, no presente processo, a questão de saber se as construções realizadas pelo concessionário no domínio público durante a concessão devem integrar o domínio público gratuitamente faz parte de uma negociação contratual entre a entidade pública concedente e o seu concessionário. Com efeito, nos termos do artigo 49.o do Código Marítimo, é apenas a título supletivo («Salvo convenção em contrário no ato de concessão») que, «aquando da cessação da concessão, as construções não removíveis, realizadas na zona de domínio público, revertem para o Estado, sem dar lugar a compensação ou reembolso, sem prejuízo da faculdade da autoridade concedente de ordenar a sua demolição, com a restituição do bem de domínio público no seu estado inicial».

62

Consequentemente, há que responder à questão apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma norma nacional que dispõe que, no termo de uma concessão de ocupação do domínio público e salvo convenção em contrário no ato de concessão, o concessionário está obrigado a ceder, imediatamente, gratuitamente e sem indemnização, as construções não removíveis que realizou na zona concessionada, mesmo em caso de renovação da concessão.

Quanto às despesas

63

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que:

 

não se opõe a uma norma nacional que dispõe que, no termo de uma concessão de ocupação do domínio público e salvo convenção em contrário no ato de concessão, o concessionário está obrigado a ceder, imediatamente, gratuitamente e sem indemnização, as construções não removíveis que realizou na zona concessionada, mesmo em caso de renovação da concessão.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.