ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

29 de fevereiro de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Viagens organizadas e serviços de viagem conexos — Diretiva (UE) 2015/2302 — Artigo 12.o, n.o 2 — Direito de o viajante rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão — Circunstâncias inevitáveis e excecionais — Propagação da COVID‑19 — Circunstâncias que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino — Previsibilidade da ocorrência destes efeitos à data da declaração de rescisão — Acontecimentos posteriores à data de rescisão, mas antes do início da viagem organizada»

No processo C‑584/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha), por Decisão de 2 de agosto de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de setembro de 2022, no processo

QM

contra

Kiwi Tours GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal (relatora), presidente de secção, F. Biltgen, N. Wahl, J. Passer e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogada‑geral: L. Medina,

secretária: K. Hötzel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de junho de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação de QM, por J. Kummer e P. Wassermann, Rechtsanwälte,

em representação da Kiwi Tours GmbH, por S. Bergmann, Rechtsanwältin,

em representação do Governo Helénico, por A. Dimitrakopoulou, C. Kokkosi, S. Trekli e E. Tsaousi, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. Jokubauskaitė, B.‑R. Killmann e I. Rubene, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 21 de setembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho (JO 2015, L 326, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe QM à Kiwi Tours GmbH a respeito do direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados pelo viajante em causa ao abrigo do seu contrato de viagem organizada, incluindo o reembolso da taxa de rescisão que lhe foi aplicada, na sequência da rescisão deste contrato por este viajante devido ao risco sanitário ligado à propagação da COVID‑19.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 29 a 31 da Diretiva 2015/2302 têm a seguinte redação:

«(29)

Tendo em conta as especificidades dos contratos de viagem organizada, deverão ser estabelecidos os direitos e as obrigações das partes contratantes relativos aos períodos anterior e posterior ao início da viagem organizada, em especial se esta não for corretamente executada, ou em caso de alteração de determinadas circunstâncias.

(30)

Dado que as viagens organizadas são frequentemente adquiridas com uma grande antecedência em relação à data da sua realização, podem ocorrer acontecimentos imprevistos. Por conseguinte, o viajante deverá ter, em certas circunstâncias, o direito de ceder a sua posição no contrato de viagem organizada a outro viajante. Nessas situações, o organizador deverá poder recuperar as despesas em que incorrer, por exemplo se um subcontratante lhe exigir uma taxa para alterar o nome do viajante ou para cancelar o título de transporte e emitir um novo.

(31)

Os viajantes deverão também poder rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer altura antes do início da viagem organizada, mediante o pagamento de uma taxa de rescisão adequada, tendo em conta as economias de custos previsíveis e justificáveis e as receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. Deverão ter também o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem o pagamento de uma taxa de rescisão sempre que circunstâncias inevitáveis e excecionais afetem significativamente a execução da viagem organizada. Isso poderá abranger, por exemplo, situações de guerra, outros problemas sérios de segurança como o terrorismo, riscos significativos para a saúde humana como sejam surtos de doenças graves no destino da viagem, ou catástrofes naturais como inundações, terramotos, ou condições meteorológicas que impossibilitem viajar em segurança para o destino acordado no contrato de viagem organizada.»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», prevê:

«O objetivo da presente diretiva é contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e para alcançar um nível de defesa do consumidor elevado e o mais uniforme possível, através da aproximação de determinados aspetos das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de contratos celebrados entre viajantes e operadores relativos a viagens organizadas e serviços de viagem conexos.»

5

O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

12. “Circunstâncias inevitáveis e excecionais”, qualquer situação fora do controlo da parte que a invoca e cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis;

[…]»

6

O artigo 12.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Rescisão do contrato de viagem organizada e direito de retratação antes do início da viagem organizada», prevê, nos n.os 1 a 4:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o viajante possa rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer altura antes do início da viagem organizada. Caso rescinda o contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante pode ser obrigado a pagar ao organizador uma taxa de rescisão adequada e justificável. O contrato de viagem organizada pode estipular taxas de rescisão normalizadas razoáveis, baseadas na antecedência da rescisão do contrato relativamente ao início da viagem organizada e nas economias de custos e nas receitas esperadas em resultado da reafetação dos serviços de viagem. Na falta de taxas de rescisão normalizadas, o montante da taxa de rescisão corresponde ao preço da viagem organizada deduzido das economias de custos e das receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. A pedido do viajante, o organizador justifica o montante da taxa de rescisão.

2.   Não obstante o disposto no n.o 1, o viajante tem direito a rescindir o contrato de viagem organizada antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino. Em caso de rescisão do contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante tem direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados para a viagem organizada mas não tem direito a uma indemnização adicional.

3.   O organizador pode rescindir o contrato de viagem organizada e reembolsar integralmente o viajante dos pagamentos que este tenha efetuado pela viagem organizada, não sendo todavia obrigado a pagar uma indemnização adicional se:

[…]

b)

O organizador for impedido de executar o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais e notificar o viajante da rescisão do contrato, sem demora injustificada, antes do início da viagem organizada.

4.   O organizador efetua os reembolsos exigidos nos termos dos n.os 2 e 3 ou, no que diz respeito ao n.o 1, reembolsa todos os pagamentos efetuados pelo viajante ou por conta deste para a viagem organizada, deduzidos da taxa de rescisão adequada. Esses reembolsos são efetuados ao viajante sem demora injustificada e, em todo o caso, no máximo no prazo de 14 dias após a rescisão do contrato de viagem organizada.»

7

O artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 dispõe:

«Os viajantes não podem renunciar aos direitos que lhes são conferidos pelas disposições nacionais de transposição da presente diretiva.»

Direito alemão

8

O § 651h do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código Civil»), sob a epígrafe «Rescisão antes do início da viagem organizada», prevê:

«1.   Antes do início da viagem, o viajante pode rescindir o contrato a qualquer momento. Se o viajante rescindir o contrato, o organizador perde o direito de receber o preço acordado para a viagem organizada. No entanto, o organizador pode exigir uma indemnização adequada.

2.   O contrato pode prever, nomeadamente mediante condições contratuais gerais, montantes fixos de indemnização adequados, que serão determinados com base nos seguintes critérios:

1)

o período decorrido entre a declaração de rescisão e o início da viagem organizada,

2)

as despesas em que o organizador previsivelmente irá economizar, e

3)

as receitas previsíveis resultantes da reafetação dos serviços de viagem.

Caso o contrato não preveja montantes fixos de indemnização, o montante da indemnização será determinado em função do preço da viagem organizada menos o valor das despesas economizadas pelo organizador, bem como das receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. A pedido do viajante, o organizador é obrigado a fundamentar o montante da indemnização.

3.   Em derrogação do terceiro período do n.o 1, o organizador não pode exigir o pagamento de uma indemnização caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte de pessoas para o local de destino. As circunstâncias são inevitáveis e excecionais, na aceção do presente número, quando escapam ao controlo da parte que as invoca e cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

9

Em janeiro de 2020, QM reservou, para si e para a sua mulher, na Kiwi Tours, uma viagem ao Japão que se deveria realizar entre 3 e 12 de abril de 2020. O preço total desta viagem organizada ascendia a 6148 euros, dos quais QM pagou um adiantamento de 1230 euros.

10

Na sequência de uma série de medidas adotadas pelas autoridades japonesas relativas à propagação da COVID‑19, QM, por carta de 1 de março de 2020, rescindiu o referido contrato de viagem organizada devido ao risco para a saúde que a COVID‑19 representava.

11

A Kiwi Tours emitiu então uma fatura referente à taxa de rescisão, no montante adicional de 307 euros, que QM pagou.

12

Em 26 de março de 2020, o Japão adotou uma medida de proibição de entrada no seu território. QM pediu então à Kiwi Tours o reembolso desta taxa de rescisão, o que esta operadora turística recusou.

13

O Amtsgericht (Tribunal de Primeira Instância, Alemanha), chamado a pronunciar‑se sobre um pedido de reembolso apresentado por QM, condenou a Kiwi Tours ao reembolso integral da taxa de rescisão que este tinha pago. O Landgericht (Tribunal Regional, Alemanha), chamado a conhecer do recurso interposto pela Kiwi Tours, indeferiu este pedido de reembolso, considerando que, à data da rescisão do contrato de viagem organizada em causa no processo principal, não era possível considerar, com base numa apreciação ex ante, que existiam «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do § 651h, n.o 3, do Código Civil. Por conseguinte, QM não tinha o direito de rescindir este contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão.

14

Chamado a conhecer de um recurso de cassação interposto por QM, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio, salienta que o Landgericht (Tribunal Regional) considerou corretamente, em sede de recurso, que estavam preenchidos os requisitos que regem, no § 651h, n.o 3, do Código Civil, disposição adotada para efeitos da transposição do artigo 12.o da Diretiva 2015/2302 para o direito interno, o direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão, nomeadamente, quando, segundo um «prognóstico» efetuado antes do início da viagem em causa, a realização desta viagem implica riscos sanitários significativos para o viajante. No entanto, a apreciação que este Landgericht (Tribunal Regional) efetuou no caso em apreço quanto à existência deste risco está viciada por erros de direito. Assim, não se pode excluir que, se tivesse procedido a uma apreciação correta deste risco, o referido Landgericht (Tribunal Regional) tinha chegado à conclusão de que uma viagem ao Japão implicava, já à data da rescisão do contrato de viagem em causa no processo principal, riscos sérios e graves para a saúde dos viajantes.

15

Assim, o órgão jurisdicional de reenvio indica que deve, em princípio, em conformidade com o direito processual alemão, remeter o processo ao mesmo Landgericht (Tribunal Regional) para que este se pronuncie sobre esta questão. No entanto, poderia ele próprio decidir do recurso interposto da sentença do Amtsgericht (Tribunal de Primeira Instância), negando‑lhe provimento, se as circunstâncias ocorridas após a rescisão do contrato de viagem em causa no processo principal também fossem relevantes para efeitos da apreciação da existência do direito de QM rescindir o seu contrato de viagem sem pagar uma taxa de rescisão. Com efeito, é facto assente que, em última análise, a realização desta viagem não era possível devido à adoção pelas autoridades japonesas, em 26 de março de 2020, da medida de proibição de entrada no território, tendo em conta a propagação da COVID‑19.

16

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio tende a considerar que, em conformidade com o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302, importa também ter em consideração as circunstâncias que só se verificam após a rescisão do contrato de viagem organizada em causa.

17

Antes de mais, embora o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva preveja formalmente um caso de rescisão distinto do previsto no n.o 1 deste artigo, tal distinção só é relevante, no essencial, para determinar as consequências jurídicas da rescisão em causa, uma vez que este artigo 12.o, n.o 2, prevê, em derrogação do n.o 1 deste artigo, a inexistência do direito ao pagamento de uma taxa de rescisão. Ora, estas consequências jurídicas dependem, por força do referido artigo 12.o, n.o 2, não dos motivos em que o viajante em causa se baseou para cancelar a sua viagem, mas apenas da existência efetiva de circunstâncias que afetem consideravelmente a realização da viagem.

18

Em seguida, o objetivo do pagamento de uma taxa de rescisão corrobora esta interpretação, independentemente de esta taxa ser considerada uma «prestação análoga a uma indemnização» ou uma «substituição do preço da viagem». Com efeito, na hipótese de se vir a verificar, após a rescisão do contrato de viagem organizada celebrado, que a realização desta viagem ficou comprometida e que, por conseguinte, o organizador da referida viagem estava obrigado, em todo o caso, a reembolsar a totalidade do preço da referida viagem, mesmo que o viajante em causa não tivesse rescindido o seu contrato de viagem, não existe um dano resultante desta rescisão, nem um direito ao pagamento de uma substituição do preço da viagem em causa, uma vez que este direito só se justifica se este operador tivesse direito ao pagamento do preço dessa viagem, na ausência da referida rescisão.

19

Por último, as considerações de defesa do consumidor militam também a favor da tomada em consideração de circunstâncias que só se verificam após a rescisão do contrato de viagem organizada em causa. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, um elevado nível de proteção dos viajantes exige que, mesmo em caso de rescisão prematura do seu contrato de viagem, o viajante em causa não tenha de realizar pagamentos por uma viagem cuja realização se venha posteriormente a revelar comprometida. Com efeito, em situações de incerteza, esses viajantes poderiam ser dissuadidos de exercer em tempo útil o seu direito de rescisão sem pagar uma taxa. Além disso, esta possibilidade de rescisão sem pagar uma taxa não teria por efeito permitir aos referidos viajantes especular sobre a persistência de uma crise emergente. Em contrapartida, fazer depender este direito de rescisão sem pagar uma taxa da data da rescisão encorajaria, concretamente, a adotar um comportamento especulativo, nomeadamente por parte do organizador em causa, que poderia ser levado a abster‑se de rescindir o contrato de viagem até pouco tempo antes do início da mesma, deixando assim em aberto a possibilidade de os viajantes rescindirem a sua viagem de qualquer forma e a pagarem taxas de rescisão, o que lhe seria financeiramente mais benéfico.

20

O órgão jurisdicional de reenvio considera que os fundamentos precedentes não são postos em causa pelo prazo de reembolso máximo de catorze dias após a rescisão, previsto no artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2015/2302. Com efeito, não se pode deduzir desta disposição que o montante da taxa de rescisão deve ser definitivamente fixado, o mais tardar, no termo desse prazo. Do mesmo modo, este órgão jurisdicional considera que não há que interpretar os n.os 1 e 2 do artigo 12.o desta diretiva no sentido de que preveem, respetivamente, uma regra e uma exceção, tendo estes números por objetivo encontrar um equilíbrio adequado entre o interesse legítimo do operador turístico em ser remunerado e o objetivo de um elevado nível de proteção dos viajantes.

21

Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva [2015/2302] ser interpretado no sentido de que, para apreciar a justificação da rescisão, apenas são determinantes as circunstâncias inevitáveis e excecionais que já se verificavam à data da rescisão, ou no sentido de que também devem ser tidas em consideração as circunstâncias inevitáveis e excecionais que só se verificam efetivamente após a rescisão, mas antes do início da viagem planeada?»

Quanto à questão prejudicial

22

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se se verificaram «circunstâncias inevitáveis e excecionais», que «afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», na aceção desta disposição, há que ter em consideração apenas a situação existente na data em que o viajante rescindiu o seu contrato de viagem, ou também as circunstâncias inevitáveis e excecionais posteriores a esta data, mas que ocorreram antes do início da viagem organizada em causa.

23

A este respeito, há que recordar que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 prevê que «caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», um viajante tem direito a rescindir um contrato de viagem organizada antes do início dessa viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão e a obter o reembolso integral dos pagamentos efetuados para a referida viagem organizada.

24

O conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302, é definido no artigo 3.o, ponto 12, desta diretiva como «qualquer situação fora do controlo da parte que a invoca e cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis».

25

O considerando 31 da diretiva especifica o alcance deste conceito, indicando que «[i]sso poderá abranger, por exemplo, situações de guerra, outros problemas sérios de segurança como o terrorismo, riscos significativos para a saúde humana como sejam surtos de doenças graves no destino da viagem, ou catástrofes naturais como inundações, terramotos, ou condições meteorológicas que impossibilitem viajar em segurança para o destino acordado no contrato de viagem organizada».

26

Em primeiro lugar, resulta da redação do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 que o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão deve imperativamente ser exercido «antes do início da viagem organizada».

27

Uma vez que o exercício deste direito está sujeito ao requisito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais […] que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», este requisito deve necessariamente estar preenchido na data desta rescisão, isto é, «antes do início da viagem organizada».

28

Assim, para apreciar se o referido requisito está preenchido, importa, de um ponto de vista temporal, ter como referência a data da rescisão do contrato de viagem organizada em causa.

29

Por conseguinte, por um lado, uma vez que o mesmo requisito exige a ocorrência de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», deve considerar‑se que este está preenchido quando estas circunstâncias se verificavam efetivamente à data da rescisão do contrato de viagem organizada em causa, o que implica que exista, nessa data, uma situação que corresponda à definição do conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», conforme definido no artigo 3.o, ponto 12, da Diretiva 2015/2302 e ilustrado no considerando 31 desta última.

30

Por outro lado, uma vez que estas circunstâncias devem afetar «consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», e que estes efeitos só se manifestam definitivamente na data prevista para a realização da viagem organizada em causa, a sua apreciação reveste necessariamente um caráter prospetivo.

31

Daqui resulta que esta apreciação se deve basear num prognóstico no que respeita à probabilidade de as circunstâncias inevitáveis e excecionais invocadas pelo viajante em causa afetarem «consideravelmente a realização da viagem organizada», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302.

32

Além disso, para apreciar a probabilidade e o impacto destes efeitos, há que ter em conta a perspetiva de um viajante médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, no sentido de que este viajante podia razoavelmente considerar a possibilidade de as circunstâncias inevitáveis e excecionais invocadas pelo viajante em causa afetarem consideravelmente a realização da sua viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino (v., neste sentido, Acórdão de 29 de fevereiro de 2024, Tez Tour, C‑299/22, EU:C:2024:XXX, n.o 71).

33

No que respeita, em segundo lugar, ao impacto que podem ter, neste contexto, as «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302, posteriores à rescisão do contrato, há que considerar que estas circunstâncias não podem ser tidas em consideração.

34

A este respeito, primeiro, contrariamente ao que parece sugerir o órgão jurisdicional de reenvio, o direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão, previsto neste artigo 12.o, n.o 2, não pode depender, de forma autónoma, nem da situação existente à data da rescisão desse contrato nem da situação existente numa data posterior a essa rescisão e anterior ao início da viagem organizada.

35

Com efeito, a tomada em consideração da situação nestas diferentes datas podia dar origem a resultados contraditórios ou mesmo incongruentes. De acordo com esta abordagem, o direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão poderia, inicialmente, à data da rescisão do contrato em causa, ser reconhecido ao viajante em questão, e em seguida, após esta rescisão, revelar‑se retroativamente extinto devido a acontecimentos posteriores. Pelo contrário, este direito poderia, inicialmente, ser recusado a esse viajante nesta última data e depois, devido a tais acontecimentos, ser‑lhe reconhecido, como a advogada‑geral também salientou no n.o 44 das suas conclusões.

36

Além disso, o contexto do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 corrobora a interpretação desta disposição mencionada no n.o 33 do presente acórdão, uma vez que a articulação entre este n.o 2 e o n.o 1 do referido artigo 12.o confirma a incoerência de uma solução como a referida no número anterior do presente acórdão. Com efeito, embora estas duas disposições confiram ao referido viajante dois direitos de rescisão distintos, uma única rescisão do contrato de viagem organizada em causa poderia estar abrangida, consoante a evolução da situação após a rescisão deste contrato de viagem, alternativamente, pela primeira ou pela segunda das referidas disposições.

37

Por conseguinte, há que tomar em consideração uma data específica para apreciar se a rescisão do contrato de viagem organizada em causa ocorreu em «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302.

38

Ora, segundo, como resulta da constatação efetuada no n.o 29 do presente acórdão, esta data é a data da rescisão do contrato de viagem em causa.

39

Neste contexto, terceiro, impõe‑se, por várias razões, uma interpretação do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 que exclua que uma data posterior à da rescisão do contrato de viagem em causa possa ser tida em consideração.

40

Antes de mais, admitir que o exercício, pelo viajante em causa, do direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão, previsto nesta disposição, está sujeito a um requisito cujo cumprimento só poderia, em última análise, ser verificado a posteriori, equivaleria a tornar aleatória, na perspetiva deste viajante, a relação que a referida disposição estabelece entre esta rescisão e a ocorrência de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção da mesma disposição.

41

Em seguida, o artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2015/2302 impõe ao organizador da viagem organizada a obrigação de reembolsar integralmente o viajante em causa dos pagamentos efetuados para esta viagem organizada, sem demora injustificada e, «em qualquer caso», no máximo no prazo de 14 dias após esta rescisão, nomeadamente, na sequência da rescisão sem pagar uma taxa de rescisão prevista no artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva. Este prazo visa garantir que este viajante possa, pouco tempo após esta rescisão, dispor livremente do montante que pagou para efeitos dessa viagem organizada (Acórdão de 8 de junho de 2023, UFC – Que choisir e CLCV, C‑407/21, EU:C:2023:449, n.o 30).

42

Ora, a imposição deste prazo máximo sugere que este organizador deve, em princípio, estar em condições de determinar, imediatamente após a rescisão do contrato de viagem organizada em causa e, por conseguinte, sem aguardar a evolução da situação, se é ou não justificada a invocação, pelo mesmo viajante, do direito de rescindir o seu contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão e, em caso afirmativo, de adotar as medidas necessárias para garantir que o reembolso integral dos pagamentos efetuados para a viagem organizada ocorrerá no prazo fixado.

43

Por último, o objetivo da Diretiva 2015/2302, que consiste, ao abrigo do seu artigo 1.o, designadamente em assegurar um nível de defesa do consumidor elevado, corrobora esta interpretação.

44

Com efeito, por um lado, uma vez que o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva reconhece ao viajante em causa, na hipótese de ocorrência de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», o direito de rescisão, independentemente do direito de rescisão de que dispõe o organizador em causa ao abrigo do artigo 12.o, n.o 3, da referida diretiva, importa que este viajante, para que possa utilmente invocar o seu direito, esteja, à data da rescisão, em condições de apreciar se os requisitos que regem o exercício deste direito estão preenchidos.

45

Em contrapartida, fazer depender a possibilidade de exercer o referido direito do desenrolar dos acontecimentos posteriores à declaração de rescisão permitiria manter uma situação de incerteza que só seria dissipada na data prevista para o início da viagem organizada.

46

Por outro lado, é facto assente que considerar decisivo, para efeitos do exercício do direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão, previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302, o desenrolar dos acontecimentos posteriores à rescisão deste contrato, mas antes do início da viagem organizada em causa, poderia melhorar a proteção do viajante em causa, na hipótese de estes impedirem efetivamente a execução do referido contrato. No entanto, o contrário é igualmente válido na hipótese de se vir a verificar, após a rescisão do mesmo contrato, que esta viagem organizada é, no entanto, exequível na sequência de uma melhoria inesperada da situação em causa. Com efeito, nesta última hipótese, este viajante estaria privado do direito de rescindir o seu contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão, apesar de se ter baseado, à data da rescisão do seu contrato de viagem, num prognóstico adequado da probabilidade de tal impedimento.

47

No caso em apreço, resulta das explicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio que, no litígio no processo principal, a alegação de que a propagação gradual ou mesmo a pandemia da COVID‑19 constituem «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302, serviu de base ao viajante em causa para rescindir o seu contrato de viagem organizada sem pagar uma taxa de rescisão.

48

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que uma crise sanitária mundial como a pandemia da COVID‑19 deve, enquanto tal, ser considerada suscetível de ser abrangida pelo conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 (Acórdão de 8 de junho de 2023, UFC – Que choisir e CLCV, C‑407/21, EU:C:2023:449, n.o 45).

49

Tendo em conta tudo o que precede, há que responder à questão submetida que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se se verificaram «circunstâncias inevitáveis e excecionais», que «afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», na aceção desta disposição, há que ter em consideração apenas a situação existente na data em que o viajante rescindiu o seu contrato de viagem.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

O artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

para determinar se se verificaram «circunstâncias inevitáveis e excecionais», que «afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino», na aceção desta disposição, há que ter em consideração apenas a situação existente na data em que o viajante rescindiu o seu contrato de viagem.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.