Processos apensos C‑498/22 a C‑500/22
Novo Banco, S. A. ‑ Sucursal en España
contra
C.F.O
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha)]
Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 5 de setembro de 2024
«Reenvio prejudicial — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24/CE — Artigos 3.° e 6.° — Medida de saneamento adotada em relação a uma instituição de crédito — Transmissão das obrigações e das responsabilidades dessa instituição de crédito a um “banco de transição” antes da propositura de uma ação judicial para pagamento do crédito detido sobre a referida instituição de crédito — Retransmissão de algumas dessas obrigações e responsabilidades à mesma instituição de crédito — Lei do Estado‑Membro de instauração do processo em causa (lex concursus) — Efeitos de uma medida de saneamento noutros Estados‑Membros — Reconhecimento mútuo — Efeitos do incumprimento da obrigação de publicidade da medida de saneamento — Artigos 17.°, 21.°, 38.° e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Proteção jurisdicional efetiva — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Artigo 6.o, n.o 1 — Cláusulas abusivas — Princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima — Legitimidade passiva do “banco de transição”»
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Instituições de crédito — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24 — Medida de saneamento de uma instituição de crédito adotada no Estado‑Membro de origem — Falta de publicação da referida medida — Reconhecimento, por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, dos efeitos desta medida — Medida que transmitiu parcialmente as obrigações e responsabilidades da instituição de crédito a um banco de transição — Admissibilidade
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 21.o, n.o 2, e artigo 47.o, primeiro parágrafo; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerandos 4 e 16, artigo 3.o, n.o 2, e artigo 6.o)
(cf. n.os 75, 76, 85, 96, 97, disp. 1)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Instituições de crédito — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24 — Processos pendentes — Efeitos de medidas de saneamento num processo pendente — Aplicação da lex concursus — Exceções previstas pela diretiva
(Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerandos 23 e 30, artigo 2.o, artigo 3.o, n.o 2, e artigo 32.o)
(cf. n.o 77)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Instituições de crédito — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24 — Medida de saneamento de uma instituição de crédito adotada no Estado‑Membro de origem — Obrigação de publicação — Requisitos — Afetação dos direitos de terceiros no Estado‑Membro de acolhimento — Existência no Estado‑Membro de origem de um recurso da decisão de aplicação da referida medida — Alcance, para a fixação do prazo de recurso, em caso de falta de publicação da referida medida
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.o; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 3.o, n.os 1 e 2, artigo 6.o, n.os 1 a 5 e artigo 83.o, n.o 4)
(cf. n.os 78‑80, 82‑84, 88‑93)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Instituições de crédito — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24 — Medida de saneamento de uma instituição de crédito adotada no Estado‑Membro de origem — Falta de publicação da referida medida — Aplicação das normas nacionais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos cidadãos pelo direito da União — Requisitos — Observância dos princípios da equivalência e da efetividade — Respeito do direito à ação
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.o; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 6.o)
(cf. n.os 86 e 87)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Instituições de crédito — Saneamento e liquidação das instituições de crédito — Diretiva 2001/24 — Medida de saneamento de uma instituição de crédito adotada no Estado‑Membro de origem — Reconhecimento dos efeitos das medidas de saneamento no Estado‑Membro de acolhimento — Violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade — Inexistência
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 21.o, n.o 2; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 3.o, n.o 2)
(cf. n.o 94)
Direito da União Europeia — Princípios — Proteção da confiança legítima — Requisitos — Garantias precisas fornecidas pela administração — Invocação por um particular em relação a um banco de transição criado no âmbito de medidas de saneamento de uma instituição de crédito — Inadmissibilidade — Instituição de crédito que foi temporariamente controlada por uma autoridade pública — Não incidência
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.o, primeiro parágrafo; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 3.o, n.o 2)
(cf. n.os 101‑104, disp. 2)
Proteção dos consumidores — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Diretiva 93/13 — Direitos fundamentais — Direito de propriedade — Medidas de saneamento de uma instituição de crédito adotadas no Estado‑Membro de origem em aplicação da Diretiva 2001/24 — Medidas que preveem a criação de um banco de transição — Medidas que preveem a manutenção no passivo da instituição de crédito que foi objeto destas medidas da obrigação de pagar os montantes devidos a título de responsabilidade pré‑contratual ou contratual — Reconhecimento dos efeitos dessa medida no Estado‑Membro de acolhimento — Admissibilidade — Verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 17.o, artigo 38.o, e artigo 52.o, n.o 1; Diretiva 2001/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 3.o, n.o 2; Diretiva 93/13 do Conselho, artigo 6.o, n.o 1)
(cf. n.os 109‑132, 137‑147, disp. 3)
Resumo
Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) em três processos distintos, o Tribunal de Justiça decide sobre a interpretação de determinadas disposições da Diretiva 2001/24 relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito ( 1 ), da Diretiva 93/13 relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores ( 2 ), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima.
Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem o Novo Banco, S. A. ‑ Sucursal en España (a seguir «Novo Banco») a vários dos seus clientes a respeito do impacto, em diversos contratos de produtos e serviços financeiros, das medidas de saneamento tomadas, em 2014 e 2015, pelo Banco de Portugal em relação ao Banco Espírito Santo, S. A. (BES), uma instituição de crédito portuguesa, e à sua sucursal espanhola (a seguir «BES Espanha»), ao qual sucedeu o Novo Banco enquanto banco de transição e para o qual foram transferidos determinados elementos do ativo, do passivo e extrapatrimoniais do BES.
No processo C‑498/22, o recorrente pediu que fosse declarada a nulidade de uma cláusula denominada «cláusula “de taxa mínima”», contida num contrato de mútuo com garantia hipotecária inicialmente celebrado com o BES Espanha e posteriormente transferido para o Novo Banco na sequência das medidas de saneamento, por considerar que esta cláusula tinha caráter abusivo, e que fossem reembolsados os montantes indevidamente pagos em aplicação da mesma cláusula. No processo C‑499/22, os recorrentes pediram a anulação dos seus contratos financeiros, a restituição das quantias recebidas por cada uma das partes e a indemnização pelas perdas sofridas com a aquisição destes produtos financeiros, por erro no consentimento decorrente da insuficiência das informações fornecidas pelo BES Espanha. No entanto, o Novo Banco contestou a transmissão de todos os elementos do passivo do BES Espanha e, em especial dos créditos e das indemnizações relacionados com a anulação pedida de determinadas cláusulas de contratos celebrados por este último. No processo C‑500/22, o recorrente reclamou, por sua vez, ao Novo Banco, além da restituição do valor nominal de uma obrigação prioritária que tinha chegado ao seu termo, o pagamento dos rendimentos dessa obrigação adquirida no BES, que tinha sido transferida para o Novo Banco em virtude das medidas de saneamento adotadas em 2014. No entanto, o Novo Banco considerou que, em 2015, o Banco de Portugal tinha «retransmitido» ao BES os elementos do passivo associados à mesma obrigação e que, por conseguinte, tinha fundamento para recusar esse pagamento.
Salientando que as medidas de saneamento adotadas em relação ao BES estão abrangidas pelo direito da União e que estas não foram objeto da publicação prevista no artigo 6.o, n.os 1 a 4, da Diretiva 2001/24, não obstante serem suscetíveis de afetar terceiros e, em especial, de impedi‑los de interpor recurso dessas medidas, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, antes de mais, sobre a compatibilidade da obrigação de reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos dessas medidas de saneamento com o princípio da proteção jurisdicional efetiva, o princípio da igualdade e da proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade, o princípio da segurança jurídica e o princípio da proteção da confiança legítima. Em seguida, interroga‑se sobre a questão de saber se o reconhecimento dos efeitos das medidas de saneamento não constitui uma ingerência desproporcionada no direito de propriedade dos clientes do Novo Banco. Por último, no processo C‑498/22, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se a «fragmentação» da relação contratual que vincula o consumidor ao Novo Banco e que resulta das medidas de saneamento em causa no processo principal não leva a que esse consumidor suporte as consequências pecuniárias da cláusula «de taxa mínima», judicialmente declarada abusiva, em violação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu submeter ao Tribunal de Justiça várias questões prejudiciais.
Apreciação do Tribunal de Justiça
Em primeiro lugar, quanto à questão de saber se o direito da União ( 3 ) se opõe, na falta da publicação prevista no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2001/24, ao reconhecimento, por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de origem, dos efeitos de uma medida de saneamento adotada, antes de esse órgão jurisdicional vir a conhecer da causa, em relação a uma instituição de crédito e que transmitiu parcialmente as obrigações e responsabilidades desta última a um banco de transição, o Tribunal de Justiça recorda, antes de mais, que, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva, as medidas de saneamento são, em princípio, aplicadas de acordo com as leis do Estado‑Membro de origem e produzem os seus efeitos de acordo com a legislação desse Estado‑Membro, em toda a União, sem nenhuma outra formalidade. Esta diretiva assenta, assim, nos princípios da unidade e da universalidade e estabelece como princípio o reconhecimento mútuo das medidas de saneamento e dos seus efeitos. Quanto à obrigação de publicação das medidas de saneamento ( 4 ), esta está condicionada ao cumprimento de dois requisitos cumulativos. Por um lado, estas medidas devem ser suscetíveis de afetar os direitos de terceiros no Estado‑Membro de acolhimento e, por outro, deve haver, no Estado‑Membro de origem, a possibilidade de recorrer da decisão de aplicação das referidas medidas ( 5 ).
O Tribunal de Justiça considera que o objeto do artigo 6.o, n.os 1 a 4, da Diretiva 2001/24 consiste em regular a informação dos credores da instituição de crédito afetada pelas medidas de saneamento, para lhes permitir exercer, no Estado‑Membro de origem, o direito de recurso das decisões de aplicação das medidas de saneamento desta instituição, no respeito pelo princípio da igualdade de tratamento entre os credores ( 6 ). Uma vez que as medidas de saneamento são aplicáveis independentemente das medidas previstas no artigo 6.o ( 7 ), a falta de publicação das medidas de saneamento adotadas no Estado‑Membro de origem não tem por efeito por em causa os princípios da unidade e da universalidade, bem como do reconhecimento mútuo dos efeitos destas medidas no Estado‑Membro de acolhimento. Essa falta de publicação não implica, portanto, nem a declaração de invalidade dessas medidas nem a inoponibilidade dos seus efeitos no Estado‑Membro de acolhimento.
No entanto, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais destinadas a assegurar a salvaguarda dos direitos que o direito da União confere aos particulares, no respeito do princípio da equivalência, do princípio da efetividade e do direito à ação consagrado no artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta.
A publicação prevista no artigo 6.o da Diretiva 2001/24 tem por objetivo assegurar, no Estado‑Membro de origem, a proteção do direito de recurso que assiste aos interessados das decisões de aplicação de medidas de saneamento de uma instituição de crédito, incluindo, nomeadamente, o dos credores dessa instituição estabelecidos no Estado‑Membro de acolhimento. Assim, quando as medidas de saneamento não são publicadas em conformidade com as exigências previstas nesta disposição, o direito do Estado‑Membro de origem deve permitir que as pessoas cujos direitos garantidos pelo direito da União são afetados por essas medidas e que residem no Estado‑Membro de acolhimento interponham recurso dessas medidas num prazo razoável a partir do momento em que estas pessoas sejam notificadas das referidas medidas, delas tenham conhecimento ou delas devam razoavelmente ter conhecimento.
No que respeita ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, garantido pelo artigo 21.o, n.o 2, da Carta, o Tribunal de Justiça declara que não se alega nem se demonstra que o reconhecimento dos efeitos das medidas de saneamento no Estado‑Membro de acolhimento, conforme impõe o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2001/24, se aplique de forma diferente em função da nacionalidade do particular. Por último, no que se refere ao princípio da segurança jurídica, recorda que este exige que as regras jurídicas sejam claras e precisas e que a sua aplicação seja previsível para os particulares, em especial quando possam ter consequências desfavoráveis para os indivíduos e para as empresas.
No caso em apreço, segundo as disposições da Diretiva 2001/24, o Estado‑Membro de acolhimento tem de assegurar o reconhecimento, no seu território, dos efeitos das medidas de saneamento adotadas no Estado‑Membro de origem, não obstante a circunstância de não terem sido objeto da publicação prevista nesta diretiva. Tendo estas medidas sido objeto de várias medidas de publicidade no momento da propositura das respetivas ações pelos clientes do Novo Banco nos órgãos jurisdicionais espanhóis, tais clientes dispunham de todos os elementos necessários para tomar, com pleno conhecimento de causa, uma decisão quanto à propositura dessas ações e para identificar com certeza a entidade contra a qual estas últimas deviam ser intentadas.
Assim, o direito da União ( 8 ) não se opõe, na falta da publicação prevista no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2001/24, ao reconhecimento, por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de origem, dos efeitos de uma medida de saneamento adotada, antes de esse órgão jurisdicional vir a conhecer da causa, em relação a uma instituição de crédito e que transmitiu parcialmente as obrigações e responsabilidades desta última a um banco de transição.
O Tribunal de Justiça examina, em segundo lugar, a questão de saber se o direito da União ( 9 ) se opõe ao reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos de uma medida de saneamento adotada no Estado‑Membro de origem em relação a uma instituição de crédito e que transmitiu parcialmente as obrigações e responsabilidades desta última a um banco de transição, controlado por uma autoridade pública que aplica o direito da União, quando os clientes desse banco de transição alegam ter depositado a sua confiança legítima no facto de o referido banco de transição também ter assumido posteriormente o passivo correspondente a todas as obrigações e responsabilidades dessa instituição de crédito para com esses clientes ( 10 ).
A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta que, o princípio da proteção da confiança legítima insere‑se entre os princípios fundamentais da União que devem ser respeitados pelas instituições da União, mas também pelos Estados‑Membros quando adotam medidas através das quais aplicam o direito da União, o direito de invocar este princípio é extensível, por conseguinte, a todos os particulares em quem uma autoridade administrativa crie expectativas fundadas devido a garantias precisas por ela dadas. No entanto, o direito de um particular invocar o referido princípio só é extensível, no direito da União, a garantias precisas que lhe tenham sido dadas por uma autoridade pública.
No caso em apreço, o Novo Banco foi criado sob a forma de uma instituição de crédito de direito privado que opera no mercado concorrencial dos serviços bancários e financeiros, desprovida de qualquer poder que exorbite o direito comum para o cumprimento de uma missão de serviço público. O Tribunal de Justiça concluiu que este não pode, assim, ser considerado uma autoridade administrativa que aplica o direito da União, pelo que o particular não pode invocar, no caso em apreço, o princípio da proteção da confiança legítima.
Por conseguinte, os particulares não podem invocar o princípio da proteção da confiança legítima em relação a um banco de transição, organismo de direito privado desprovido de prerrogativas exorbitantes de direito comum, criado no âmbito de medidas de saneamento de uma instituição de crédito de que aqueles eram inicialmente clientes com o objetivo de acionar a responsabilidade desse banco de transição por obrigações pré‑contratuais e contratuais associadas aos contratos anteriormente celebrados com essa instituição de crédito ( 11 ). A simples circunstância de esta instituição de crédito ter sido temporariamente controlada por uma autoridade pública, com vista à sua privatização, não pode fazer da mesma instituição de crédito, que opera no mercado concorrencial dos serviços bancários e financeiros, uma autoridade administrativa nacional.
O Tribunal de Justiça responde, em terceiro e último lugar, à questão de saber se o artigo 17.o da Carta e o princípio da segurança jurídica se opõem ao reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos das medidas de saneamento adotadas no Estado‑Membro de origem em aplicação da Diretiva 2001/24, que preveem a criação de um banco de transição e a manutenção no passivo do banco que foi objeto dessas medidas da obrigação de pagar os montantes devidos a título de responsabilidade pré‑contratual ou contratual ( 12 ). Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio também se interroga quanto à compatibilidade desse reconhecimento com o artigo 38.o da Carta ( 13 ), e com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 ( 14 ).
No que respeita ao direito de propriedade reconhecido no artigo 17.o, n.o 1, da Carta, o Tribunal de Justiça esclarece, por um lado, que a proteção conferida por esta disposição tem por objeto direitos que têm valor patrimonial do qual decorre uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo desses direitos pelo e a favor do seu titular. As ações ou obrigações negociáveis nos mercados de capitais são suscetíveis de constituir direitos desse tipo que podiam beneficiar da proteção garantida pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta. A este respeito, o crédito e a obrigação em causa nos processos C‑498/22 e C‑500/22 revestem um valor patrimonial que permite aos seus detentores pelo menos alegar terem criado a «expectativa legítima» de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade, pelo que podem beneficiar da proteção garantida pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta. No que respeita ao crédito subjacente no processo C‑499/22, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se esse crédito cumpre os requisitos acima referidos, em especial, se a jurisprudência nacional que consagra a obrigação de informação pré‑contratual da instituição de crédito está suficientemente demonstrada para que a pessoa que invoca a violação dessa obrigação possa criar a «expectativa legítima» de obter o gozo efetivo deste crédito.
O Tribunal de Justiça recorda, por outro lado, que, segundo a sua própria jurisprudência, a adoção pelo Estado‑Membro de origem de medidas de saneamento, que preveem, nomeadamente, a transferência de elementos do ativo de uma instituição de crédito para um banco de transição, constitui uma regulamentação da utilização dos bens, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, terceiro período, da Carta, suscetível de lesar o direito de propriedade dos credores dessa instituição de crédito, como sejam os titulares de obrigações, cujos créditos não foram transmitidos para esse banco de transição. Assim, o Tribunal de Justiça verifica se, à luz dos requisitos enunciados nesta disposição, lida em conjugação com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, os efeitos, no Estado‑Membro de acolhimento, das medidas de saneamento por força das quais os créditos em causa são afetos ao passivo do BES Espanha são previstos por lei, respeitam o conteúdo essencial do direito de propriedade e são proporcionados, tendo em conta, nomeadamente, o objetivo de interesse geral a que correspondem as medidas de saneamento e o reconhecimento dos seus efeitos, igualmente prosseguido pela União, a saber, garantir a estabilidade do sistema bancário, em especial da zona euro, e evitar um risco sistémico.
Quanto à alegada violação do princípio da segurança jurídica, o Tribunal de Justiça confirma que as medidas de saneamento em causa estão abrangidas pelo artigo 2.o, sétimo travessão, da Diretiva 2001/24. O Tribunal de Justiça constata igualmente que os credores nos processos principais podiam esperar que certas responsabilidades, como as resultantes da insuficiência da informação pré‑contratual dada pelo BES Espanha, na causa principal no processo C‑499/22, ou certas contingências, como as que são objeto dos litígios principais nos processos C‑498/22 e C‑500/22, não fossem transferidas para o banco de transição em causa ( 15 ).
Por último, no que respeita à conformidade dessas medidas com o direito dos consumidores de beneficiarem de um elevado nível de defesa dos consumidores, como resulta do artigo 38.o da Carta e da Diretiva 93/13, o Tribunal de Justiça recorda que, tendo em conta a natureza e a importância do interesse público que a proteção dos consumidores constitui, a Diretiva 93/13 impõe aos Estados‑Membros que prevejam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização de cláusulas abusivas nos contratos entre um profissional e os consumidores. Para tal, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais afastarem a aplicação das cláusulas abusivas para que estas não produzam efeitos vinculativos para o consumidor em causa, salvo se este a isso se opuser. Uma cláusula contratual declarada abusiva deve ser considerada, em princípio, como nunca tendo existido, pelo que não pode produzir efeitos em relação ao consumidor em causa. No entanto, a proteção do consumidor não é absoluta. Assim, embora exista um claro interesse geral em assegurar, em toda a União, uma proteção forte e coerente dos investidores e dos credores, não se pode considerar que esse interesse prevaleça, em todas as circunstâncias, sobre o interesse geral que consiste em garantir a estabilidade do sistema bancário e em evitar um risco sistémico.
No caso em apreço, a proteção do consumidor contra a utilização de cláusulas abusivas nos contratos celebrados com um profissional, conforme resulta do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, não pode ir ao ponto de ignorar a repartição das responsabilidades patrimoniais entre a instituição de crédito em situação de insolvência e o banco de transição, tal como esta repartição foi fixada nas medidas de saneamento adotadas pelo Estado‑Membro de origem. Com efeito, se a proteção conferida pela Diretiva 93/13 devesse autorizar cada consumidor do Estado‑Membro de acolhimento, credor da instituição de crédito em situação de insolvência, a contrariar o reconhecimento das medidas através das quais a repartição das responsabilidades patrimoniais entre esta e o banco de transição foi decidida pelo Estado‑Membro de origem, a intervenção das autoridades públicas desse Estado‑Membro poderia ficar privada de efeito útil em todos os Estados‑Membros nos quais a instituição de crédito em situação de insolvência tem sucursais.
Por conseguinte, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, lido à luz do artigo 38.o da Carta, bem como o artigo 17.o da Carta e o princípio da segurança jurídica não se opõem, em princípio, ao reconhecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, dos efeitos das medidas de saneamento adotadas no Estado‑Membro de origem em aplicação da Diretiva 2001/24, que preveem a criação de um banco de transição e a manutenção no passivo da instituição de crédito que foi objeto dessas medidas da obrigação de pagar os montantes devidos a título de responsabilidade pré‑contratual ou contratual.
( 1 ) Diretiva 2001/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito (JO 2001, L 125, p. 15).
( 2 ) Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).
( 3 ) Mais especificamente, trata‑se do artigo 3.o, n.o 2, e do artigo 6.o da Diretiva 2001/24, lidos à luz do artigo 21.o, n.o 2, e do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, bem como do princípio da segurança jurídica.
( 4 ) Em conformidade com o artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2001/24, cabe às autoridades competentes do Estado‑Membro de origem publicar o extrato, o objeto e o fundamento jurídico da decisão tomada, os prazos de recurso, em particular e de forma facilmente compreensível o termo desses prazos e, de forma precisa, o endereço das autoridades ou do órgão jurisdicional competentes para conhecer do recurso.
( 5 ) Artigo 6.o, n.os 1 a 3, da Diretiva 2001/24.
( 6 ) V. considerando 12 da Diretiva 2001/24.
( 7 ) Artigo 6.o, n.o 5, da Diretiva 2001/24.
( 8 ) Artigo 3.o, n.o 2, e artigo 6.o da Diretiva 2001/24, lidos à luz do artigo 21.o, n.o 2, e do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, bem como do princípio da segurança jurídica.
( 9 ) Mais especificamente, o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2001/24, lido à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, bem como do princípio da segurança jurídica.
( 10 ) Trata‑se das segundas questões nos processos C‑408/22 e C‑499/22
( 11 ) O Tribunal de Justiça retira esta conclusão do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2001/24, lido à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta e do princípio da segurança jurídica.
( 12 ) Trata‑se das terceiras questões nos processos C‑498/22 e C‑499/22, e da segunda questão no processo C‑500/22.
( 13 ) Nos processos C‑498/22 e C‑499/22.
( 14 ) No processo C‑498/22. Por força do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/12, «[o]s Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas».
( 15 ) No processo C‑500/22, o Tribunal de Justiça declara que a alteração retroativa da identidade do devedor do crédito em causa pode razoavelmente ser justificada pelo objetivo de interesse geral que consiste em garantir a estabilidade do sistema bancário e evitar um risco sistémico, mas que cabe, no entanto, ao órgão jurisdicional de reenvio, à luz das circunstâncias específicas que estão na origem desse processo, verificar o respeito pelo princípio da proporcionalidade.