Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

11 de julho de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Regulamento (UE) 2016/679 — Artigo 2.°, n.° 2, alínea c) — Âmbito de aplicação — Exclusões — Atividades exclusivamente pessoais ou domésticas — Artigo 4.°, ponto 7 — Responsável pelo tratamento — Antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional — Artigo 15.° — Acesso da pessoa colocada sob o regime de curatela aos dados recolhidos por esse antigo curador durante o exercício das suas funções»

No processo C‑461/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Landgericht Hannover (Tribunal Regional de Hanôver, Alemanha), por Decisão de 28 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de julho de 2022, no processo

MK

contra

WB,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: O. Spineanu‑Matei, presidente de secção, J.‑C. Bonichot e L. S. Rossi (relatora), juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Bouchagiar, F. Erlbacher e H. Kranenborg, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.°, ponto 7, e do artigo 15.° do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1) (a seguir «RGPD»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe MK, pessoa singular domiciliada na Alemanha e colocada sob o regime de curatela, a WB, seu antigo curador, a respeito do acesso dessa pessoa aos dados e às informações que lhe dizem respeito recolhidas por WB durante o período em que este era responsável pela sua curatela.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do considerando 18 do RGPD:

«O presente regulamento não se aplica ao tratamento de dados pessoais efetuado por pessoas singulares no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas e, portanto, sem qualquer ligação com uma atividade profissional ou comercial. As atividades pessoais ou domésticas poderão incluir a troca de correspondência e a conservação de listas de endereços ou a atividade das redes sociais e do ambiente eletrónico no âmbito dessas atividades. Todavia, o presente regulamento é aplicável aos responsáveis pelo tratamento e aos subcontratantes que forneçam os meios para o tratamento dos dados pessoais dessas atividades pessoais ou domésticas.»

4        O artigo 2.° deste regulamento, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação material», prevê:

«1.      O presente regulamento aplica‑se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros ou a eles destinados.

2.      O presente regulamento não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

[...]

c)      Efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas;

[...]»

5        O artigo 4.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Definições», tem a seguinte redação:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[...]

7) “Responsável pelo tratamento”, a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado‑Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado‑Membro;

[...]»

6        O artigo 15.° deste regulamento, sob a epígrafe «Direito de acesso do titular dos dados», dispõe:

«1.      O titular dos dados tem o direito de obter do responsável pelo tratamento a confirmação de que os dados pessoais que lhe digam respeito são ou não objeto de tratamento e, se for esse o caso, o direito de aceder aos seus dados pessoais e às seguintes informações:

[...]

3.      O responsável pelo tratamento fornece uma cópia dos dados pessoais em fase de tratamento. [...]

[...]»

 Direito alemão

7        O § 1896, n.° 1, primeiro período, do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), na sua versão publicada em 2 de janeiro de 2002 (BGBl. 2002 I, p. 42) (a seguir «BGB»), prevê que, se, em razão de doença psíquica ou de deficiência física, mental ou psíquica, uma pessoa maior não puder cuidar total ou parcialmente dos seus interesses, o tribunal da curatela nomeia‑lhe, a seu pedido ou oficiosamente, um curador.

8        Segundo o § 1897, n.° 1, do BGB, o tribunal de curatela nomeia como curador uma pessoa singular capaz de cuidar legalmente dos interesses da pessoa sob curatela e de a assistir pessoalmente. O n.° 6 desse preceito dispõe que quem exercer funções de curatela a título profissional só deve ser nomeado curador quando não houver nenhuma outra pessoa capaz e disponível para exercer a curatela a título voluntário.

9        Ao abrigo do § 1902 do BGB, no âmbito das suas funções, o curador representa a pessoa colocada sob curatela em atos judiciais e extrajudiciais.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      WB, um advogado alemão que faz parte do círculo pessoal de MK, foi designado por um tribunal alemão para exercer, no âmbito das suas funções profissionais, as funções de curador de MK durante um certo tempo, até ser substituído nas suas funções e um novo curador ser nomeado.

11      MK pretende propor uma ação judicial para obter a liquidação das contas e o acesso, em conformidade com o artigo 15.° do RGPD, aos dados pessoais que lhe dizem respeito que WB recolheu durante o exercício das referidas funções.

12      Para este efeito, MK apresentou um pedido de assistência judiciária no Amtsgericht Hannover (Tribunal de Primeira Instância de Hanôver, Alemanha), que indeferiu esse pedido na parte em que dizia respeito à apresentação de um pedido de acesso com base no artigo 15.° RGPD, com o fundamento de que um curador que exerce as suas funções no âmbito das suas funções profissionais, não constitui um «responsável pelo tratamento», na aceção do artigo 4.°, ponto 7, desse regulamento. Além disso, o referido regulamento rege a relação entre o titular dos dados e um responsável pelo tratamento. Ora, ao abrigo do § 1902 BGB, o curador legalmente designado é o representante legal do titular dos dados. Por conseguinte, os dados pessoais relativos a essa pessoa podem ser tratados pelo curador em nome da referida pessoa sem que haja «dicotomia entre o curador e o titular dos dados», segundo a expressão utilizada pela jurisprudência dos tribunais alemães.

13      MK contestou o indeferimento do seu pedido de assistência judiciária no órgão jurisdicional de reenvio.

14      Este órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à questão de saber se uma pessoa que exerceu a título profissional as funções de curador pode ser qualificada de «responsável pelo tratamento», na aceção do RGPD.

15      Por outro lado, o referido órgão jurisdicional pergunta‑se se, tendo em conta o artigo 2.°, n.° 2, alínea c), do RGPD, esse regulamento é aplicável no processo principal, uma vez que WB faz parte do círculo pessoal de MK, sem, no entanto, submeter uma questão prejudicial especificamente a esse respeito.

16      Nestas condições, o Landgericht Hannover (Tribunal Regional de Hanôver, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O curador legalmente nomeado que exerce esta atividade a título profissional é responsável pelo tratamento de dados na aceção do artigo 4.°, ponto 7, do [RGPD]?

2)      Deve este curador comunicar informações em conformidade com o artigo 15.° do [RGPD]?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

17      Segundo a Comissão Europeia, o pedido de decisão prejudicial não está em conformidade com o artigo 94.°, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, uma vez que não contém uma descrição suficiente das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação das disposições do direito da União em causa, pois esse órgão jurisdicional limita‑se a criticar a decisão do Amtsgericht Hannover (Tribunal de Primeira Instância de Hanôver), sem expor os motivos que lhe permitiram duvidar da interpretação dada por este do RGPD.

18      A este respeito, importa recordar que a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que coloca ou que, pelo menos, explicite as hipóteses factuais em que essas questões assentam. As exigências de conteúdo de um pedido de decisão prejudicial figuram expressamente no artigo 94.° do Regulamento de Processo, devendo o órgão jurisdicional de reenvio, no quadro da cooperação instituída pelo artigo 267.° TFUE, delas ter conhecimento e respeitá‑las escrupulosamente (Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.os 18 e 19, e jurisprudência referida).

19      No processo em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se é correta a interpretação das disposições do RGPD dada pelo Amtsgericht Hannover (Tribunal de Primeira Instância de Hanôver), segundo a qual, em substância, esse regulamento não é aplicável ao litígio no processo principal e, em todo o caso, um anterior curador não pode ser considerado um «responsável pelo tratamento», na aceção do referido regulamento. Sendo certo que o órgão jurisdicional de reenvio não disponibiliza as razões que o levaram a duvidar dessa interpretação, não é menos verdade que expõe de forma precisa a argumentação seguida pelo Amtsgericht Hannover (Tribunal de Primeira Instância de Hanôver), o que permite apreender o alcance das questões submetidas.

20      Por outro lado, a interpretação dessas disposições é pertinente para decidir o litígio no processo principal, uma vez que o pedido de assistência judiciária apresentado por MK visa apresentar um pedido com base no artigo 15.° RGPD, cuja aplicação pressupõe a interpretação do conceito de «responsável pelo tratamento» na aceção do artigo 4.°, ponto 7, desse regulamento.

21      Consequentemente, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto às questões prejudiciais

22      Com as suas questões, que devem ser tratadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.°, ponto 7, do RGPD deve ser interpretado no sentido de que um antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional relativamente a uma pessoa colocada sob a sua curatela deve ser qualificado de «responsável pelo tratamento», na aceção desta disposição, dizendo os dados pessoais que estejam na sua posse respeito a essa pessoa, e que esse tratamento deve respeitar todas as disposições deste regulamento, nomeadamente o seu artigo 15.°

23      A título preliminar, importa precisar, em resposta às dúvidas expressas por esse órgão jurisdicional relativamente à aplicabilidade do RGPD ao litígio que lhe foi submetido, que, nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea c), do referido regulamento, cujo alcance é esclarecido pelo seu considerando 18, o mesmo regulamento não se aplica ao tratamento de dados pessoais efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas e, portanto, sem nenhuma ligação com atividades profissionais ou comerciais.

24      Esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que exclui do âmbito de aplicação do RGPD a atividade de curador exercida a título profissional por uma pessoa singular.

25      A circunstância, mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de o curador em causa no processo principal ter sido escolhido no círculo pessoal da pessoa sob a sua curatela não pode pôr em causa esta conclusão.

26      No que respeita à questão de saber se um antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional relativamente a uma pessoa colocada sob a sua curatela deve ser qualificado de «responsável pelo tratamento» dos dados pessoais relativos a essa pessoa, importa salientar que um curador, devido às missões que lhe são atribuídas pelo direito nacional, é levado a efetuar diferentes atividades para a referida pessoa, no âmbito das quais determina também as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais da mesma pessoa, na aceção do artigo 4.°, ponto 7, do RGPD.

27      As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio prendem‑se com a circunstância de, em conformidade com as regras de direito alemão que regem a curatela, o curador ser o representante legal da pessoa sob a sua curatela e agir por conta e em nome desta.

28      Todavia, como especifica o próprio órgão jurisdicional de reenvio, no processo em apreço, MK pede, em todo o caso, o acesso aos dados pessoais que lhe dizem respeito que não estão na posse do seu curador atual, mas do seu antigo curador, WB, agora destituído das suas funções, e que ainda estão em posse deste último.

29      Como observa a Comissão, um antigo administrador é, portanto, um terceiro em relação a uma pessoa que foi colocada sob a sua curatela no passado.

30      Daqui resulta que um antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional relativamente a uma pessoa colocada sob a sua curatela deve ser qualificado de «responsável pelo tratamento» dos dados pessoais que estejam na sua posse relativamente a essa pessoa e que, por conseguinte, é obrigado a tratar esses dados em conformidade com o RGPD e, em especial, com as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 15.° do mesmo, conforme eventualmente limitadas em aplicação do artigo 23.° deste regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 16 de janeiro de 2024, Österreichische Datenschutzbehörde, C‑33/22, EU:C:2024:46, n.os 54 a 56).

31      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 4.°, ponto 7, do Regulamento 2016/679 deve ser interpretado no sentido de que um antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional relativamente a uma pessoa colocada sob a sua curatela deve ser qualificado de «responsável pelo tratamento», na aceção desta disposição, de dados pessoais que estejam na sua posse relativos a essa pessoa e de que esse tratamento tem de respeitar todas as disposições deste regulamento, nomeadamente o seu artigo 15.°

 Quanto às despesas

32      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 4.°, ponto 7, alínea c), do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados),

deve ser interpretado no sentido de que:

um antigo curador que exerceu as suas funções a título profissional relativamente a uma pessoa colocada sob a sua curatela deve ser qualificado de «responsável pelo tratamento», na aceção desta disposição, de dados pessoais que estejam na sua posse relativos a essa pessoa e de que esse tratamento tem de respeitar todas as disposições deste regulamento, nomeadamente o seu artigo 15.°

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.