ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

29 de julho de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Conservação dos habitats naturais, bem como da fauna e da flora selvagens — Diretiva 92/43/CEE — Artigos 2.o, 4.o, 11.o, 12.o, 14.o, 16.o e 17.o — Sistema de proteção rigorosa das espécies animais — Canis lupus (lobo) — Exploração cinegética — Avaliação do estado de conservação das populações da espécie em causa — Estado de conservação “desfavorável‑inadequado” desta espécie — Exploração incompatível com a manutenção ou com o restabelecimento da espécie num estado de conservação favorável — Consideração de todos os dados científicos mais recentes»

No processo C‑436/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Superior de Justicia de Castilla y León (Tribunal Superior de Justiça de Castela e Leão, Espanha), por Decisão de 30 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 1 de julho de 2022, no processo

Asociación para la Conservación y Estudio del Lobo Ibérico (ASCEL)

contra

Administración de la Comunidad de Castilla y León,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb, A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Asociación para la Conservación y Estudio del Lobo Ibérico (ASCEL), por M. J. Gil Ibáñez, abogada, e A. I. Fernández Marcos, procuradora,

em representação da Administración de la Comunidad de Castilla y León, por D. Vélez Berzosa, letrada,

em representação do Governo Espanhol, inicialmente por I. Herranz Elizalde, e, em seguida, por M. Morales Puerta, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por C. Hermes e E. Sanfrutos Cano, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 25 de janeiro de 2024,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 2, e dos artigos 4.o, 11.o, 12.o, 14.o, 16.o e 17.o da Diretiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens (JO 1992, L 206, p. 7) conforme alterada pela Diretiva 2013/17/CE do Conselho, de 13 de maio de 2013 (JO 2013, L 158, p. 193) (a seguir «Diretiva “habitats”»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Asociación para la Conservación y Estudio del Lobo Ibérico (ASCEL) (Associação para a Conservação e Estudo do Lobo Ibérico, Espanha) à Administración de la Comunidad de Castilla y León (Administração da Comunidade Autónoma de Castela e Leão, Espanha) a respeito de um pedido apresentado pela ASCEL com vista à anulação da decisão da Dirección General del Patrimonio Natural y Política Forestal de la Junta de Castilla y León (Direção‑Geral do Património Natural e Política Florestal de Castela e Leão, Espanha), que aprovou o plano regional de exploração do lobo nos territórios cinegéticos situados a norte do rio Douro em Castela e Leão para as épocas de 2019/2020, de 2020/2021 e de 2021/2022, de 9 de outubro de 2019 (a seguir «decisão de 9 de outubro de 2019»), e à condenação da recorrida no processo principal no pagamento de uma indemnização por cada espécime abatido durante essas épocas.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do primeiro considerando da diretiva «habitats»:

«[…] a preservação, a proteção e a melhoria do ambiente, incluindo a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, constituem objetivos essenciais de interesse geral da Comunidade [Europeia], tal como dispõe o artigo [191.o TFUE].»

4

O décimo quinto considerando da referida diretiva enuncia:

«[…] em complemento da Diretiva 79/409/CEE [do Conselho, de 2 de abril de 1979, relativa à conservação das aves selvagens (JO 1979, L 103, p. 1; EE 15 F2 p. 125)], convém prever um sistema geral de proteção para certas espécies de fauna e de flora; que devem ser previstas medidas de gestão para certas espécies, se o respetivo estatuto o justificar, incluindo a proibição de certas modalidades de captura ou abate, prevendo, ao mesmo tempo, a possibilidade de derrogações, sob certas condições.»

5

O artigo 1.o, alínea i), da Diretiva «habitats» dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

i)

Estado de conservação de uma espécie: o efeito do conjunto das influências que, atuando sobre a espécie em causa, podem afetar, a longo prazo, a repartição e a importância das suas populações no território a que se refere o artigo 2.o

[…]»

6

O artigo 2.o desta diretiva prevê:

«1.   A presente diretiva tem por objetivo contribuir para assegurar a biodiversidade através da conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens no território europeu dos Estados‑Membros em que o Tratado é aplicável.

2.   As medidas tomadas ao abrigo da presente diretiva destinam‑se a garantir a conservação ou o restabelecimento dos habitats naturais e das espécies selvagens de interesse comunitário num estado de conservação favorável.

3.   As medidas tomadas ao abrigo da presente diretiva devem ter em conta as exigências económicas, sociais e culturais, bem como as particularidades regionais e locais.»

7

O artigo 4.o da referida diretiva dispõe:

«1.   Com base nos critérios estabelecidos no anexo III (fase 1) e nas informações científicas pertinentes, cada Estado‑Membro proporá uma lista dos sítios, indicando os tipos de habitats naturais do anexo I e as espécies do anexo II (nativas do seu território) que tais sítios alojam. No caso das espécies animais que ocupam vastas zonas, esses sítios corresponderão a locais dentro da área de repartição natural das referidas espécies que representem os elementos físicos ou biológicos essenciais à sua vida ou reprodução. […]

A lista será enviada à Comissão nos três anos subsequentes à notificação da diretiva, ao mesmo tempo que as informações relativas a cada sítio. […]

[…]

4.   A partir do momento em que um sítio de importância comunitária tenha sido reconhecido nos termos do procedimento previsto no n.o 2, o Estado‑Membro em causa designará esse sítio como zona especial de conservação, o mais rapidamente possível e num prazo de seis anos, estabelecendo prioridades em função da importância dos sítios para a manutenção ou o restabelecimento do estado de conservação favorável de um tipo ou mais de habitats naturais a que se refere o anexo I ou de uma ou mais espécies a que se refere o anexo II e para a coerência da rede Natura 2000, por um lado, e em função das ameaças de degradação e de destruição que pesam sobre esses sítios, por outro.

[…]»

8

Nos termos do artigo 11.o da mesma diretiva, «[o]s Estados‑Membros assegurarão a vigilância do estado de conservação das espécies e habitats referidos no artigo 2.o, tendo especialmente em conta os tipos de habitat natural e as espécies prioritárias».

9

O artigo 12.o da Diretiva «habitats» dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para instituir um sistema de proteção rigorosa das espécies animais constantes do anexo IV[, alínea a),] dentro da sua área de repartição natural proibindo:

a)

Todas as formas de captura ou abate intencionais de espécimes dessas espécies capturados no meio natural;

b)

A perturbação intencional dessas espécies, nomeadamente durante o período de reprodução, de dependência, de hibernação e de migração;

c)

A destruição ou a recolha intencionais de ovos no meio natural;

d)

A deterioração ou a destruição dos locais de reprodução ou áreas de repouso.

[…]»

10

O artigo 14.o desta diretiva prevê:

«1.   Se considerarem necessário à luz da vigilância prevista no artigo 11.o, os Estados‑Membros tomarão as medidas adequadas para que a colheita e captura no meio natural de espécimes das espécies da fauna e da flora selvagens referidos no anexo V, bem como a sua exploração, sejam compatíveis com a sua manutenção num estado de conservação favorável.

2.   Se forem consideradas necessárias, essas medidas deverão incluir a prossecução da vigilância prevista no artigo 11.o, podendo ainda compreender, nomeadamente:

prescrições relativas ao acesso a determinados setores;

a proibição temporária ou local da captura ou colheita de espécimes no meio natural e da exploração de certas populações;

a regulamentação dos períodos e/ou dos modos de colheita e captura;

a aplicação, na colheita ou captura, de regras cinegéticas ou haliêuticas que respeitem a sua conservação;

a criação de um sistema de autorizações de colheita e captura ou de quotas;

a regulamentação da compra, venda, colocação no mercado, detenção ou transporte com vista à venda de espécimes;

a criação de espécies animais no cativeiro, bem como a propagação artificial de espécies vegetais, em condições estritamente controladas, com vista à redução da colheita no meio natural;

a avaliação do efeito das medidas adotadas.»

11

Ao abrigo do artigo 16.o, n.o 1, da referida diretiva:

«Desde que não exista outra solução satisfatória e que a derrogação não prejudique a manutenção das populações da espécie em causa na sua área de repartição natural, num estado de conservação favorável, os Estados‑Membros poderão derrogar o disposto nos artigos 12.o, 13.o e 14.o e nas alíneas a) e b) do artigo 15.o:

a)

No interesse da proteção da fauna e da flora selvagens e da conservação dos habitats naturais;

b)

Para evitar prejuízos sérios, nomeadamente às culturas, à criação de gado, às florestas, às zonas de pesca e às águas e a outras formas de propriedade;

c)

No interesse da saúde e da segurança públicas ou por outras razões imperativas ou de interesse público prioritário, incluindo razões de caráter social ou económico e a consequências benéficas de importância primordial para o ambiente;

d)

Para fins de investigação e de educação, de repovoamento e de reintrodução dessas espécies e para as operações de reprodução necessárias a esses fins, incluindo a reprodução artificial das plantas;

e)

Para permitir, em condições estritamente controladas e de uma forma seletiva e numa dimensão limitada, a captura ou detenção de um número limitado especificado pelas autoridades nacionais competentes de determinados espécimes das espécies constantes do anexo IV.»

12

O artigo 17.o, n.o 1, da mesma diretiva dispõe:

«De seis em seis anos, a contar do termo do prazo previsto no artigo 23.o, os Estados‑Membros elaborarão um relatório sobre a aplicação das disposições tomadas no âmbito da presente diretiva. Este relatório compreenderá nomeadamente informações relativas às medidas de conservação referidas no n.o 1 do artigo 6.o, bem como a avaliação da incidência dessas medidas sobre o estado de conservação dos tipos de habitat do anexo I e das espécies do anexo II e os principais resultados da vigilância referida no artigo 11.o Este relatório, conforme ao modelo do relatório elaborado pelo comité [instituído ao abrigo do artigo 20.o], será enviado à Comissão e posto à disposição do público.»

13

O anexo II da referida Diretiva «habitats», sob a epígrafe «Espécies animais e vegetais de interesse comunitário cuja conservação requer a designação de zonas especiais de conservação», menciona o Canis lupus, e indica que, entre as populações espanholas, apenas são visadas «as populações a sul do Douro».

14

O anexo IV desta diretiva, sob a epígrafe «Espécies animais e vegetais de interesse comunitário que exigem uma proteção rigorosa», faz referência ao Canis lupus«exceto […] as populações espanholas a norte do Douro […]».

15

O anexo V da referida diretiva, sob a epígrafe «Espécies animais e vegetais de interesse comunitário cuja captura ou colheita na natureza e exploração podem ser objeto de medidas de gestão», menciona, na sua alínea a), o Canis lupus, nomeadamente, as «populações espanholas a norte do Douro».

Direito espanhol

16

A Ley 4/1996 de Caza de Castilla y León (Lei 4/1996 relativa à Caça em Castela e Leão), de 12 de julho de 1996 (BOE n.o 210, de 30 de agosto de 1996, p. 26650), na redação que lhe foi dada pela Ley 9/2019 (Lei 9/2019), de 28 de março de 2019 (BOE n.o 91, de 16 de abril de 2019, p. 39643) (a seguir «Lei 4/1996»), designava, no seu artigo 7.o e no seu anexo I, o lobo (Canis lupus) como uma «espécie cinegética que pode ser objeto de caça» a norte do rio Douro. A Lei 4/1996 foi revogada pela Ley 4/2021 de Caza y de Gestión Sostenible de los Recursos Cinegéticos de Castilla y León (Lei 4/2021 relativa à Caça e à Gestão Sustentável dos Recursos Cinegéticos de Castela e Leão), de 1 de julho de 2021 (BOE n.o 172, de 20 de julho de 2021, p. 86581), que, no seu artigo 6.o e no seu anexo I.3, também designa o lobo como tal. O anexo II, ponto 4, alínea f), da Lei 4/2021 prevê que é autorizada a caça desta espécie durante o seguinte período: do quarto domingo do mês de setembro ao quarto domingo do mês de fevereiro do ano seguinte. No anexo IV, ponto 2, desta última lei, o valor de cada lobo caçado é fixado em 6000 euros.

17

A Ley 42/2007 del Patrimonio Natural y de la Biodiversidad (Lei 42/2007 do Património Natural e Biodiversidade), de 13 de dezembro de 2007 (BOE n.o 299, de 14 de dezembro de 2007, p. 51275), prevê, no seu artigo 65.o, n.o 1, que a caça e a pesca nas águas continentais só podem ter por objeto as espécies indicadas pelas Comunidades Autónomas, designação essa que em caso algum poderá afetar as espécies incluídas na Listagem de Espécies Selvagens em Regime de Proteção Especial, nem as espécies cuja caça ou pesca é proibida pela União Europeia.

18

O Real Decreto 139/2011 para el desarrollo del Listado de especies Silvestres en Régimen de Protección Especial y del Catálogo Español de Especies Amenazadas (Decreto Real 139/2011 para a execução da Listagem de Espécies Selvagens em Regime de Proteção Especial e do Inventário Espanhol de Espécies Ameaçadas), de 4 de fevereiro de 2011 (BOE n.o 46, de 23 de fevereiro de 2011, p. 20912), inclui, no seu anexo, a lista das espécies selvagens que são objeto de um regime de proteção especial e que, sendo caso disso, estão inscritas no inventário espanhol de espécies ameaçadas. Este anexo foi alterado pela Orden TED/980/2021, por la que se modifica el Anexo del Real Decreto 139/2011, de 4 de febrero, para el desarrollo del Listado de Especies Silvestres en Régimen de Protección Especial y del Catálogo Español de Especies Amenazadas (Decreto Ministerial TED/980/2021 que altera o anexo do Real Decreto 139/2011, de 4 de fevereiro de 2011, para a execução da Listagem de Espécies Selvagens em Regime de Proteção Especial e do Inventário Espanhol de Espécies Ameaçadas), de 20 de setembro de 2021 (BOE n.o 226, de 21 de setembro de 2021, p. 115283), a fim de incluir na lista das espécies selvagens que são objeto de um regime de proteção rigorosa todas as populações espanholas de lobos. Este Decreto Ministerial permite contudo que as medidas de recolha e captura de espécimes que tenham sido adotadas pelas Comunidades Autónomas antes da entrada em vigor do referido Decreto continuem a ser aplicadas, sob reserva do cumprimento de determinadas condições e limites. Concretamente, deve demonstrar‑se, com base nos melhores conhecimentos disponíveis, que essas medidas não afetam de forma negativa o estado de conservação favorável da espécie em causa.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

Através da decisão de 9 de outubro de 2019, a Direção‑Geral do Património Natural e Política Florestal de Castela e Leão aprovou o plano regional de exploração do lobo nos territórios cinegéticos situados a norte do rio Douro em Castela e Leão para as épocas de 2019/2020, de 2020/2021 e de 2021/2022.

20

Este plano baseia‑se num censo regional dos lobos que remonta aos anos de 2012 e 2013, que se inscreve no âmbito de um censo nacional levado a cabo entre 2012 e 2014 e em relatórios anuais de monitorização que exigem um menor esforço de prospeção e acompanhamento do que o requerido para a elaboração de um censo. Com base nos dados disponíveis e mediante a aplicação de diferentes fatores, o referido plano estimava que em Castela e Leão existiam 1051 exemplares de lobos a norte do rio Douro antes da época de caça. O censo nacional identificou 297 matilhas em Espanha, das quais 179 provinham do censo realizado em Castela e Leão, ou seja 60,3 % do total registado a nível nacional. De acordo com as conclusões deste plano, uma taxa de mortalidade anual superior a 35 % implicaria uma diminuição da população desta espécie.

21

Em 14 de novembro de 2019, a ASCEL interpôs recurso da decisão de 9 de outubro de 2019, ao qual foi negado provimento por despacho de 9 de março de 2020 do Consejero de Fomento y Medio Ambiante (Ministro da Comunidade Autónoma para o Desenvolvimento e do Ambiente) da Comunidade Autónoma de Castela e Leão.

22

Em 17 de fevereiro de 2020, a ASCEL interpôs recurso para a Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Superior de Justicia de Castilla y León (Tribunal Superior de Justiça de Castela e Leão, Espanha), aqui órgão jurisdicional de reenvio. Nesse recurso, a ASCEL pede a anulação do despacho que rejeitou o seu recurso da decisão de 9 de outubro de 2019 e a anulação dessa decisão. Além disso, dada a impossibilidade de restabelecer a situação jurídica anterior à adoção da referida decisão, uma vez que os lobos em causa foram abatidos, a ASCEL pede que a recorrida no processo principal seja condenada no pagamento de uma indemnização pelo prejuízo causado à fauna selvagem, equivalente ao valor económico de cada espécime abatido nas épocas de 2019/2020, de 2020/2021 e de 2021/2022, ou seja, um montante de 9261 euros por lobo.

23

O órgão jurisdicional de reenvio observa que o relatório enviado pelo Reino de Espanha à Comissão em 2019, em aplicação do artigo 17.o da Diretiva «habitats», para o período de 2013‑2018 (a seguir «relatório de 2019») indicava que o lobo se encontrava num estado de conservação «desfavorável‑inadequado» nas regiões mediterrânica, atlântica e alpina, sendo que as duas primeiras regiões incluem o território de Castela e Leão.

24

No entanto, ao abrigo do artigo 7.o e do anexo I da Lei 4/1996, o lobo era designado como «espécie cinegética que pode ser objeto de caça» a norte do rio Douro.

25

O referido órgão jurisdicional tem dúvidas a respeito da compatibilidade desta designação à luz da Diretiva «habitats» e também se interroga a respeito do alcance, do conteúdo e da fonte dos relatórios científicos suscetíveis de fundamentar as decisões relativas ao estado de conservação do lobo e, consequentemente, as medidas destinadas a que a captura e a colheita na natureza de espécimes das espécies da fauna e da flora selvagens mencionadas no anexo V desta diretiva, bem como a exploração dessas espécies, sejam compatíveis com a manutenção dessas espécies num estado de conservação favorável.

26

Nestas condições, o Tribunal Superior de Justicia de Castilla y León (Tribunal Superior de Justiça de Castela e Leão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«Uma vez que todas as medidas tomadas por um Estado‑Membro ao abrigo da [Diretiva “habitats”], de acordo com o seu artigo 2.o, n.o 2, se destinam a garantir a conservação ou o restabelecimento das espécies animais de interesse comunitário, como é o caso do lobo [(Canis lupus)], num estado de conservação favorável:

1)

Os artigos 2.o, n.o 2, 4.o, 11.o, 12.o, 14.o, 16.o e 17.o da [Diretiva “habitats”] opõem‑se a que uma lei regional [como a Lei 4/1996, e posteriormente a Lei 4/2021], declare o lobo espécie cinegética e objeto de caça e, em consequência, autorize a exploração territorial do lobo nas áreas cinegéticas durante as épocas de [20192020, 2020/2021 e 2021/2022], quando o seu estado de conservação é “desfavorável‑inadequado”, segundo o relatório para o sexénio de 2013 a 2018 que a Espanha enviou à Comissão Europeia em 2019, motivo pelo qual o Estado (o Estado‑Membro, artigo 4.o da Diretiva “habitats”) incluiu todas as populações espanholas de lobo na listagem de espécies selvagens em regime de proteção especial e no inventário espanhol de espécies ameaçadas, concedendo igualmente uma proteção rigorosa às populações situadas a norte do Douro?

2)

É compatível com esta finalidade que o lobo seja objeto de uma proteção diferente consoante se encontre a norte ou a sul do rio Douro, tendo em conta que: (i) cientificamente essa distinção é atualmente considerada inadequada (ii) a avaliação do seu estado de conservação nas três regiões que ocupa em Espanha, a alpina, a atlântica e a mediterrânea, é desfavorável no período de 2013 a 2018 (iii) é uma espécie objeto de proteção rigorosa em praticamente todos os Estados‑Membros e, especialmente, por se tratar de uma região partilhada, em Portugal, e (iv) segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a área de repartição natural e o âmbito territorial a ter em conta para avaliar o seu estado de conservação, é mais conforme com a referida diretiva e com o disposto no seu artigo 2.o, n.o 3, que o lobo fosse incluído, sem distinguir entre o norte e o sul do Douro, nos anexos II e IV de modo que a sua captura e abate só fosse possível quando não haja outra solução satisfatória nos termos e com os requisitos previstos no artigo 16.o?

No caso de se considerar que este tratamento distinto é justificado,

3)

o termo “exploração” do artigo 14.o da Diretiva inclui a sua exploração cinegética, isto é, a sua caça, face à especial importância desta espécie ([que] é prioritária nos restantes âmbitos territoriais), tendo em conta que até agora essa caça foi permitida e que a sua situação no período de 2013 a 2018 é desfavorável?

4)

o artigo 14.o da Diretiva “habitats” opõe‑se à declaração, por lei, do lobo como espécie cinegética e objeto de caça [artigo 7.o e anexo I da [Lei 4/1996], e à aprovação de um plano de exploração regional do lobo nas áreas cinegéticas situadas a norte do rio Douro para as épocas de [2019/2020, 2020/2021 e 2021/2022], sem dados que permitam apreciar se foi dado cumprimento à vigilância prevista no artigo 11.o da Diretiva, sem censos desde [2012/2013] e sem informação suficiente, objetiva, científica e atual da situação do lobo que tenha servido para ordenar o plano de explorações regionais, quando, durante o período 2013 a 2018 nas três regiões ocupadas pelo lobo em Espanha, a alpina, a atlântica e a mediterrânea, a avaliação do seu estado de conservação é desfavorável?

5)

Por força do disposto nos artigos 4.o, 11.o e 17.o da Diretiva “habitats”, os relatórios a considerar para determinar o estado de conservação do lobo (os níveis populacionais atuais e reais, a repartição geográfica atual, a taxa de reprodução, etc.) são os elaborados pelo Estado‑Membro de seis em seis anos ou, se necessário, num período inferior, através de um Comité Científico como o criado pelo [Decreto Real] 139/2011, tendo em conta que as suas populações são abrangidas por diferentes Comunidades Autónomas e a necessidade de efetuar a avaliação das medidas de uma população local “em maior escala”, na aceção do Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2019, [Luonnonsuojeluyhdistys Tapiola (C‑674/17, EU:C:2019:851)]?»

Quanto à tramitação processual no Tribunal de Justiça

27

O órgão jurisdicional de reenvio solicitou ao Tribunal de Justiça que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação acelerada ao abrigo do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

28

Em apoio deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio indicou, por um lado, que o estado de conservação do lobo em Espanha é desfavorável e, por outro, que o período de autorização da caça em causa começaria no quarto domingo do mês de setembro de 2022.

29

O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada, em derrogação das disposições daquele regulamento.

30

Importa recordar que a aplicação da tramitação acelerada pode ser justificada quando exista um forte risco de ocorrência de consequências irremediáveis para o ambiente enquanto se aguarda a decisão do Tribunal de Justiça [Acórdão de 7 de fevereiro de 2023, Confédération paysanne e o. (Mutagénese aleatória in vitro), C‑688/21, EU:C:2023:75, n.o 27].

31

Em 14 de julho de 2022, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu que não havia que deferir o pedido referido no n.o 27 do presente acórdão.

32

Com efeito, embora o órgão jurisdicional de reenvio saliente que, no que respeita à época de 2022/2023, o período em causa de autorização da caça começaria no quarto domingo do mês de setembro de 2022, há que salientar que o litígio no processo principal apenas diz respeito à aprovação do plano de exploração regional do lobo nos territórios cinegéticos situados a norte do rio Douro em Castela e Leão para as três épocas de 2019/2020, de 2020/2021 e de 2021/2022.

33

Nestas circunstâncias, e uma vez que não existem elementos adicionais, não é possível concluir que, no processo principal, existe um elevado risco de ocorrência de consequências irremediáveis para o ambiente enquanto se aguarda a decisão do Tribunal de Justiça, na aceção da jurisprudência referida no n.o 30 do presente acórdão.

34

O presidente do Tribunal de Justiça decidiu, no entanto, conceder tratamento prioritário ao presente processo, ao abrigo do artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

35

O Governo Espanhol e a Administração da Comunidade Autónoma de Castela e Leão alegam que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível por vários motivos.

36

O Governo Espanhol sustenta que o pedido de decisão prejudicial já não é pertinente para a solução do litígio no processo principal uma vez que, no seu Acórdão n.o 99/2022, de 13 de julho de 2022, o Tribunal Constitucional (Tribunal Constitucional, Espanha) declarou inconstitucionais as disposições pertinentes da Lei 4/2021, e nomeadamente o seu anexo II, n.o 4, alínea f), nomeadamente pelo facto de estas disposições violarem o Decreto Ministerial TED/980/2021.

37

Por seu turno, a Administração da Comunidade Autónoma de Castela e Leão alega que o reenvio prejudicial é inadmissível por várias razões. Em primeiro lugar, segundo aquela Administração, para decidir o litígio no processo principal não é necessário interpretar uma disposição do direito da União, mas sim proceder a uma apreciação dos elementos de prova que foram juntos aos autos. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio já se pronunciou num recurso, interposto pela mesma recorrente contra um plano semelhante, assente nos mesmos argumentos que os invocados no processo principal. Além do mais, no caso em apreço, a recorrente não levantou dúvidas quanto à interpretação do direito da União. Em terceiro lugar, o litígio no processo principal é artificial.

38

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 21 de dezembro de 2023, Infraestruturas de Portugal e Futrifer Indústrias Ferroviárias, C‑66/22, EU:C:2023:1016, n.o 33 e jurisprudência referida).

39

Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 7 de abril de 2022, Avio Lucos,C‑116/20, EU:C:2022:273, n.o 38 e jurisprudência referida).

40

No caso em apreço, há que salientar que o processo principal diz respeito, nomeadamente, à compatibilidade da regulamentação nacional em causa, que designa o lobo como uma espécie cinegética que pode ser objeto de caça, com o direito da União, bem como à questão de saber se os danos causados à população de lobos pela caça realizada sob a égide das regulamentações regionais anteriores à decisão do Tribunal Constitucional referida no n.o 36 do presente acórdão deve dar lugar a indemnização. Ora, esta decisão só diz respeito ao período posterior a 2021, ao passo que o processo principal tem por objeto as épocas de caça que remontam ao ano de 2019. Por conseguinte, a compatibilidade das regulamentações regionais em causa no processo principal com o direito da União continua a ter interesse para a solução do litígio no processo principal.

41

Assim, não é manifesto que a interpretação solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal nem que o problema seja hipotético, na aceção da jurisprudência referida no n.o 39 do presente acórdão. Por outro lado, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas.

42

Por conseguinte, os fundamentos de inadmissibilidade invocados pelo Governo Espanhol e pela Administração da Comunidade Autónoma de Castela e Leão devem ser rejeitados.

43

Decorre do exposto que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto às questões prejudiciais

44

Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 2.o, 4.o, 11.o, 12.o, 14.o, 16.o e 17.o da Diretiva «habitats» devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado‑Membro ao abrigo da qual o lobo é designado como uma espécie cujos espécimes podem ser caçados numa parte do território desse Estado‑Membro na qual o lobo não está abrangido pela proteção rigorosa prevista no artigo 12.o, n.o 1, da referida diretiva, não obstante o seu estado de conservação ter sido considerado desfavorável em todo o território do referido Estado‑Membro.

45

Este órgão jurisdicional interroga‑se, especialmente, sobre a interpretação do artigo 14.o desta diretiva e tem dúvidas quanto à compatibilidade com este artigo do plano de exploração regional do lobo nos territórios cinegéticos situados a norte do rio Douro em Castela e Leão, uma vez que o estado de conservação desta espécie nas três regiões espanholas abrangidas pelo referido plano, a saber, as regiões alpina, atlântica e mediterrânica, durante o período de 2013‑2018, foi considerado desfavorável.

46

A título preliminar, importa recordar que, no seu primeiro considerando, a Diretiva «habitats» indica que a preservação, a proteção e a melhoria do ambiente, incluindo a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, constituem objetivos essenciais de interesse geral da União.

47

Importa antes de mais recordar que, por força do artigo 12.o da Diretiva «habitats», lido em conjugação com o anexo IV, alínea a), desta diretiva, o lobo faz parte das espécies «de interesse comunitário» cuja «proteção rigorosa», na aceção do mesmo artigo, deve ser assegurada.

48

Este regime de proteção rigorosa visa, nomeadamente, as populações de lobos situadas a sul do rio Douro, que estão expressamente inscritas no anexo II da Diretiva «habitats», enquanto espécie «de interesse comunitário cuja conservação exige a designação de zonas especiais de conservação».

49

As populações espanholas de lobo que se encontram a norte deste rio estão inscritas no anexo V da diretiva «habitats» cuja captura no estado selvagem e exploração podem ser objeto de medidas de gestão e que, por conseguinte, são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 14.o desta diretiva.

50

A este respeito, cumpre salientar que a circunstância de uma espécie animal ou vegetal de interesse comunitário estar inscrita no anexo V da Diretiva «habitats» não implica que o seu estado de conservação deva, em princípio, ser considerado favorável. Com efeito, além de serem os Estados‑Membros a comunicar à Comissão o estatuto dessas espécies no seu território, importa constatar que a referida inscrição apenas implica que, à luz da obrigação de vigilância prevista no artigo 11.o desta diretiva e a fim de garantir o objetivo desta última, esta espécie «pode» ser objeto de medidas de gestão, ao contrário das espécies inscritas no anexo IV, alínea a), da referida diretiva, que, em qualquer caso, beneficiam do sistema de proteção rigorosa previsto no artigo 12.o da mesma diretiva.

51

Com efeito, essa inscrição não pode ser interpretada num sentido contrário ao objetivo prosseguido pela diretiva «habitats», que, como resulta do seu artigo 2.o, n.o 1, é contribuir para assegurar a biodiversidade através da conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens no território europeu dos Estados‑Membros, uma vez que o n.o 2 deste artigo prevê expressamente que as medidas tomadas ao abrigo dessa diretiva se destinam a garantir a conservação ou o restabelecimento dos habitats naturais e das espécies selvagens de interesse comunitário num estado de conservação favorável.

52

No que respeita às medidas de gestão de que podem ser objeto as espécies inscritas no anexo V da diretiva «habitats», como é o caso das populações de lobos que se encontram a norte do rio Douro, importa em primeiro lugar salientar que, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 1, desta diretiva, «[s]e considerarem necessário à luz da vigilância prevista no artigo 11.o, os Estados‑Membros tomarão as medidas adequadas para que a colheita e captura no meio natural de espécimes das espécies da fauna e da flora selvagens referidos no anexo V, bem como a sua exploração, sejam compatíveis com a sua manutenção num estado de conservação favorável».

53

Resulta da própria letra deste artigo que os Estados‑Membros dispõem de uma certa margem de apreciação para, em aplicação da referida disposição, determinarem se é necessário adotar medidas suscetíveis de limitar a exploração das espécies inscritas no anexo V da Diretiva «habitats».

54

A este respeito, há que constatar, por um lado, que, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 2, desta diretiva, essas medidas podem dizer respeito ao acesso a determinados setores, à proibição da captura ou colheita de espécimes no meio natural e à exploração de determinadas populações ou ainda à criação de um sistema de quotas. Por conseguinte, caso incluam regras cinegéticas ao abrigo do quarto travessão desta disposição, há que constatar que as medidas adotadas com base neste artigo são suscetíveis de restringir, e não de alargar, a captura das espécies em causa.

55

Por outro lado, como salienta a Comissão, a margem de apreciação mencionada no n.o 53 do presente acórdão é limitada pela obrigação de assegurar que a captura dos espécimes de uma espécie no meio natural e a exploração desses espécimes são compatíveis com a manutenção dessa espécie num estado de conservação favorável.

56

Com efeito, cabe recordar que qualquer medida tomada por um Estado‑Membro com base na Diretiva «habitats» deve ter por objetivo, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, desta diretiva, garantir a conservação ou o restabelecimento das espécies selvagens de interesse comunitário num estado de conservação favorável.

57

Além disso, como decorre do décimo quinto considerando da diretiva «habitats», o legislador da União considerou que há que prever um sistema geral de proteção para certas espécies de fauna e de flora e que devem ser previstas medidas de gestão para certas espécies, «se o respetivo estatuto o justificar», incluindo a proibição de certas modalidades de captura ou abate, prevendo, ao mesmo tempo, a possibilidade de derrogações, sob certas condições. Deste modo, como decorre da oração subordinada «se o respetivo estatuto o justificar», a adoção das referidas medidas deve ser justificada pela necessidade de manter ou restabelecer as espécies em causa num estado de conservação favorável.

58

Daqui decorre, como no essencial salientou a advogada‑geral no n.o 71 das suas conclusões, que o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva «habitats» deve ser interpretado no sentido de que a exploração cinegética pode ser restringida ou proibida se tal for necessário para manter ou restabelecer a espécie em causa num estado de conservação favorável.

59

Em segundo lugar, importa observar que, ao abrigo do artigo 11.o da Diretiva «habitats», incumbe aos Estados‑Membros assegurar a vigilância do estado de conservação das espécies e habitats referidos no artigo 2.o dessa diretiva, tendo especialmente em conta os tipos de habitat natural e as espécies prioritárias. Esta vigilância é essencial para assegurar o respeito das condições enunciadas no artigo 14.o desta diretiva e para determinar a necessidade de tomar medidas que assegurem a compatibilidade da exploração dessa espécie com a manutenção de um estado de conservação favorável, sendo que tal vigilância constitui, em si mesma, uma das medidas necessárias para assegurar a conservação da referida espécie. Por conseguinte, uma espécie não pode ser explorada no plano cinegético e caçada se não for assegurada uma vigilância eficaz do seu estado de conservação.

60

Em conformidade com a definição que figura no artigo 1.o, alínea i), da Diretiva «habitats», o estado de conservação de uma espécie é considerado favorável sempre que, primeiro, os dados relativos à dinâmica das populações da espécie em causa indicarem que essa espécie continua e é suscetível de continuar a longo prazo a constituir um elemento vital dos habitats naturais a que pertence. Segundo, a área de repartição natural dessa espécie não diminuir nem correr o perigo de diminuir num futuro previsível. Terceiro, deve existir e continuar provavelmente a existir um habitat suficientemente amplo para que as populações da referida espécie se mantenham a longo prazo (Acórdão de 10 de outubro de 2019, Luonnonsuojeluyhdistys Tapiola,C‑674/17, EU:C:2019:851, n.o 56).

61

O conceito de «área de repartição natural», que constitui um dos critérios a tomar em consideração para determinar se o estado de conservação de uma espécie é favorável, é, no caso de espécies animais protegidas que ocupam vastas zonas, como é o caso do lobo, mais amplo do que o espaço geográfico que contém os elementos físicos ou biológicos essenciais à vida e à reprodução dessas espécies (Acórdão de 11 de junho de 2020, Alianța pentru combaterea abuzurilor,C‑88/19, EU:C:2020:458, n.o 38).

62

Além disso, uma vez que o impacto da captura no meio natural e da exploração da espécie em causa no seu estado de conservação deve ser avaliado «à luz da vigilância prevista no artigo 11.o» da Diretiva «habitats», os Estados‑Membros, quando tomam decisões que autorizam a caça da referida espécie, devem, em aplicação do artigo 14.o, n.o 1, da referida diretiva, justificar essas decisões e fornecer os dados de vigilância em que as referidas decisões se baseiam.

63

Importa, não só, ter em conta os dados relativos às populações da espécie em causa, que é objeto da medida de exploração em questão, mas também o impacto desta medida no estado de conservação dessa espécie em maior escala, ao nível da região biogeográfica ou ainda, sempre que possível, a nível transfronteiriço (v., neste sentido, Acórdão de 10 de outubro de 2019, Luonnonsuojeluyhdistys Tapiola,C‑674/17, EU:C:2019:851, n.o 61).

64

A este respeito, há que salientar que o artigo 17.o da diretiva «habitats» exige que os Estados‑Membros elaborem e enviem à Comissão, de seis em seis anos, um relatório sobre a aplicação desta diretiva, com vista à concretização do objetivo de manutenção de um «estado de conservação favorável», definido no artigo 1.o da referida diretiva. Este relatório deve incluir os principais resultados da vigilância referida no artigo 11.o da diretiva em causa. Esse relatório deve ser composto por três partes, concretamente, uma parte que contém informações gerais sobre a aplicação desta mesma diretiva, uma parte relativa à avaliação do estado de conservação das diferentes espécies e uma parte consagrada aos habitats. O relatório em questão deve abranger todos os habitats e espécies que se encontram no território do Estado‑Membro em causa.

65

Daqui resulta que a avaliação do estado de conservação de uma espécie e a avaliação da oportunidade da adoção de medidas baseadas no artigo 14.o da Diretiva «habitats» devem ser levadas a cabo, não só, tendo em conta o relatório elaborado em aplicação do artigo 17.o desta diretiva, mas também os dados científicos mais recentes, obtidos graças à vigilância prevista no artigo 11.o da referida diretiva. Estas avaliações não devem ser efetuadas apenas a nível local, mas também a nível da região biogeográfica, ou mesmo a nível transfronteiriço.

66

Além disso, esta vigilância deve ser objeto de especial atenção sempre que a espécie em causa figurar no anexo II e no anexo IV, alínea a), desta diretiva, para certas regiões, e no anexo V da referida diretiva, para regiões vizinhas, e quando, nesses anexos, a espécie em questão for considerada de modo geral como «uma espécie de interesse comunitário».

67

Todavia, no caso em apreço, como resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo o relatório de 2019, que deve ser considerado como documento de referência, relevante para a determinação do estado de conservação do lobo em Espanha durante o período em causa no processo principal, as populações de lobos em Espanha encontram‑se num estado de conservação «desfavorável‑inadequado» nas três regiões biogeográficas ocupadas pelo lobo nesse Estado‑Membro, a saber, as regiões alpina, atlântica e mediterrânica, incluindo as regiões situadas a norte e a sul do rio Douro.

68

Além disso, resulta dessas indicações que a Comunidade Autónoma de Castela e Leão não teve em conta esse relatório na elaboração do plano de exploração para as épocas de 2019/2020, de 2020/2021 e de 2021/2022.

69

Ora, sempre que uma espécie animal se encontre num estado de conservação desfavorável, como no caso em apreço, de acordo com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, as autoridades competentes, conforme salientou no essencial a advogada‑geral no n.o 91 das suas conclusões, devem tomar medidas na aceção do artigo 14.o da Diretiva «habitats» para melhorar o estado de conservação da espécie em causa, para que, no futuro, as suas populações atinjam um estado de conservação favorável duradouro. A restrição ou a proibição da caça na sequência da conclusão de que o estado de conservação desta espécie é desfavorável pode então ser considerada como uma medida necessária ao restabelecimento de um estado de conservação favorável desta espécie.

70

Com efeito, como recordado no n.o 56 do presente acórdão, em qualquer caso, a adoção de medidas baseadas neste artigo só é permitida se as mesmas contribuírem para a manutenção ou para o restabelecimento das espécies em causa num estado de conservação favorável. Assim, embora as análises efetuadas no Estado‑Membro em causa a respeito das espécies que figuram no anexo V da Diretiva «habitats» forneçam resultados suscetíveis de demonstrar que é necessária uma intervenção a nível nacional, esse Estado‑Membro pode limitar, e não alargar, as atividades referidas nesse artigo, para que a captura no meio natural de espécimes dessas espécies seja compatível com os objetivos da referida diretiva.

71

Como salientou a advogada‑geral no n.o 99 das suas conclusões, tal medida impõe‑se, especialmente, quando o estado de conservação da espécie em causa for desfavorável, sobretudo, devido à perda de espécimes. No entanto, mesmo que essas perdas se devam principalmente a outras razões, pode revelar‑se necessário não autorizar a caça, dado que tal causaria perdas suplementares.

72

Com efeito, por força do princípio da precaução consagrado no artigo 191.o, n.o 2, TFUE, se o exame dos melhores dados científicos disponíveis deixar subsistir uma incerteza sobre a questão de saber se a exploração de uma espécie de interesse comunitário é compatível com a sua manutenção num estado de conservação favorável, o Estado‑Membro em causa deve abster‑se de autorizar tal exploração (v., neste sentido, Acórdão de 10 de outubro de 2019, C‑674/17Luonnonsuojeluyhdistys Tapiola, EU:C:2019:851, n.o 66).

73

Por último, cumpre observar que o princípio da precaução implica que, havendo incertezas quanto à existência ou à extensão de riscos, podem ser tomadas medidas de proteção sem que seja necessário esperar que a realidade e a gravidade de tais riscos sejam plenamente demonstradas (v., neste sentido, Acórdão de 6 de maio de 2021, Bayer CropScience e Bayer/Comissão, C‑499/18 P, EU:C:2021:367, n.o 80).

74

Decorre do acima exposto que medidas de proteção de uma espécie, como a restrição ou a proibição da caça, podem ser consideradas necessárias quando, com base nos melhores conhecimentos científicos disponíveis, subsista uma incerteza quanto aos riscos existentes para a manutenção dessa espécie num estado de conservação favorável.

75

Além disso, há que salientar que, como resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, o Reino de Espanha adotou o Decreto Ministerial TED/980/2021, que incluiu toda a população espanhola de lobos, inclusive a de Castela e Leão a norte do rio Douro, na listagem nacional das espécies selvagens em regime de proteção rigorosa.

76

A este respeito, cabe salientar que, embora a Diretiva «habitats» retome a distinção entre as populações de lobos situadas, respetivamente, a sul e a norte do rio Douro, em conformidade com o artigo 193.o TFUE, as medidas de proteção adotadas ao abrigo do artigo 192.o TFUE, que constitui o fundamento jurídico desta diretiva, não obstam a que cada Estado‑Membro mantenha ou estabeleça medidas de proteção reforçadas.

77

Acresce que, no contexto da proteção rigorosa das espécies naturais ao abrigo do artigo 12.o da Diretiva «habitats», a captura e o abate só podem ser admitidos a título derrogatório, desde que não exista outra solução satisfatória e que a derrogação não prejudique a manutenção das populações da espécie em causa na sua área de repartição natural num estado de conservação favorável, e em conformidade com as exigências do artigo 16.o desta diretiva. Além disso, o Tribunal de Justiça indicou que uma derrogação baseada no artigo 16.o, n.o 1, da Diretiva «habitats» só pode ser objeto de uma aplicação concreta e pontual para responder a exigências precisas e a situações específicas (Acórdão de 10 de outubro de 2019, Luonnonsuojeluyhdistys Tapiola,C‑674/17, EU:C:2019:851, n.o 41 e jurisprudência referida).

78

Tendo em conta as considerações acima expostas, há que responder às questões submetidas que o artigo 14.o da Diretiva «habitats» deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro ao abrigo da qual o lobo é designado como uma espécie cujos espécimes podem ser caçados numa parte do território desse Estado‑Membro em que o lobo não está abrangido pela proteção rigorosa prevista no artigo 12.o, n.o 1, desta diretiva, não obstante o estado de conservação desta espécie no referido Estado‑Membro estar qualificado de «desfavorável‑inadequado». A este respeito, há que ter em conta o relatório elaborado de seis em seis anos em aplicação do artigo 17.o da referida diretiva, todos os dados científicos mais recentes, incluindo os obtidos graças à vigilância prevista no artigo 11.o da mesma diretiva, bem como o princípio da precaução consagrado no artigo 191.o, n.o 2, TFUE.

Quanto às despesas

79

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 14.o da Diretiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, conforme alterada pela Diretiva 2013/17/CE do Conselho, de 13 de maio de 2013,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro ao abrigo da qual o lobo é designado como uma espécie cujos espécimes podem ser caçados numa parte do território desse Estado‑Membro em que o lobo não está abrangido pela proteção rigorosa prevista no artigo 12.o, n.o 1, desta diretiva, não obstante o estado de conservação desta espécie no referido Estado‑Membro estar qualificado de «desfavorável‑inadequado». A este respeito, há que ter em conta o relatório elaborado de seis em seis anos em aplicação do artigo 17.o da referida diretiva, todos os dados científicos mais recentes, incluindo os obtidos graças à vigilância prevista no artigo 11.o da mesma diretiva, bem como o princípio da precaução consagrado no artigo 191.o, n.o 2, TFUE.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.