Processo C‑431/22

Scuola europea di Varese

contra

PD, na qualidade de titular das responsabilidades parentais relativas a NG
e
LC, na qualidade de titular das responsabilidades parentais relativas a NG

(pedido de decisão prejudicial apresentado pela Corte suprema di cassazione)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 21 de dezembro de 2023

«Reenvio prejudicial — Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias — Artigo 27.o, n.o 2 — Regulamento Geral das Escolas Europeias — Artigos 62.°, 66.° e 67.° — Contestação da decisão de um Conselho de Turma de não autorizar a passagem de um aluno para a classe seguinte do ciclo secundário — Falta de competência dos órgãos jurisdicionais nacionais — Competência exclusiva da Instância de Recurso das Escolas Europeias — Proteção jurisdicional efetiva»

  1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Conceito de ato adotado pelas instituições — Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias — Inclusão

    [Artigos 267.°, primeiro parágrafo, alínea b), e 352.° TFUE; Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias]

    (cf. n.os 50, 51)

  2. Acordos internacionais — Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias — Competência exclusiva da Instância de Recurso — Litígio relativo à legalidade da decisão de um Conselho de Turma de uma Escola Europeia de não autorizar a passagem de um aluno para a classe seguinte do ciclo secundário — Inclusão — Violação do princípio da proteção jurisdicional efetiva — Inexistência

    [Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias, artigo 27.o, n.o 2; Regulamento Geral das Escolas Europeias (2014), artigos 61.°, 62.°, 66.° e 67.°]

    (cf. n.os 54, 56, 67, 68, 74, 75, 78, 82, 84, 85, 89, 97‑99 e disp.)

Resumo

Uns pais foram notificados, na qualidade de titulares das responsabilidades parentais relativas ao seu filho menor, que era na altura aluno do quinto ano do ciclo secundário da Scuola europea di Varese (Escola Europeia de Varese, Itália), da decisão do Conselho de Turma competente de recusa da passagem do seu filho para a classe seguinte. Estes pais interpuseram no Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia (Tribunal Administrativo Regional da Lombardia, Itália) um recurso de anulação da referida decisão. Este órgão jurisdicional declarou‑se competente para conhecer esse recurso.

A Escola Europeia de Varese apresentou um pedido de apreciação prévia da questão da competência jurisdicional, nas secções unidas da Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália) ( 1 ), o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, a fim de que fosse declarada a incompetência dos órgãos jurisdicionais italianos para conhecer do presente litígio. Segundo essa escola, este litígio é da competência exclusiva da Instância de Recurso das Escolas Europeias (a seguir «Instância de Recurso»), por força das disposições conjugadas do artigo 27.o da Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias (a seguir «CEEE») ( 2 ) e do artigo 67.o, n.o 1, do Regulamento Geral das Escolas Europeias na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «RGEE de 2014») ( 3 ). Em contrapartida, os pais e o Ministério Público consideram que os órgãos jurisdicionais italianos têm competência para conhecer o referido litígio, pelo facto, nomeadamente, de por força do artigo 27.o, n.o 2, da CEEE, a competência jurisdicional exclusiva da Instância de Recurso se restringir aos atos lesivos do Conselho Superior ou do Conselho de Administração da escola.

Chamado a pronunciar‑se sobre esta questão prévia relativa à competência dos órgãos jurisdicionais italianos, o órgão jurisdicional de reenvio refere que já se pronunciou a favor dessa competência em circunstâncias análogas àquelas que caracterizam o presente litígio ( 4 ). Assim, declarou que a competência exclusiva da Instância de Recurso abrangia os atos prejudiciais praticados pelo Conselho Superior ou pelo Conselho de Administração de uma Escola Europeia, mas não os atos praticados por um Conselho de Turma dessa escola ( 5 ). O órgão jurisdicional de reenvio salienta, contudo, que à época em que se pronunciou nesse sentido, o RGEE então em vigor só previa um recurso limitado, interno às Escolas Europeias e de natureza meramente administrativa, contra as decisões de um Conselho de Turma que não autorizassem a passagem de um aluno para a classe seguinte e não consagrava ainda a possibilidade de recorrer para a Instância de Recurso, a título contencioso, no que respeita a essas decisões.

Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a circunstância de a possibilidade de um tal recurso jurisdicional ter, entretanto, sido consagrada no RGEE de 2005 e, subsequentemente, confirmada no artigo 67.o do RGEE de 2014, pode ser suscetível de justificar que se passe a reconhecer a competência exclusiva da Instância de Recurso para conhecer deste tipo de contenciosos. Segundo este órgão jurisdicional, tal solução parece poder encontrar apoio, nomeadamente, nos ensinamentos decorrentes do Acórdão Oberto e O’Leary ( 6 ), no qual o Tribunal de Justiça já admitiu, baseando‑se nas regras da Convenção de Viena ( 7 ), que podia validamente ser conferida à Instância de Recurso competência exclusiva para apreciar recursos dirigidos contra um ato do diretor de uma Escola Europeia prejudicial a um docente da mesma. Podem igualmente revelar‑se pertinentes, a este respeito, diversos documentos apresentados pela Escola Europeia de Varese e, em particular, as várias decisões ao abrigo das quais a Instância de Recurso se pronunciou sobre litígios relativos a decisões de Conselhos de Turma que recusaram a passagem de um aluno para a classe seguinte, desenvolvendo desse modo uma prática jurisdicional constante desde que lhe foi atribuída, pelo RGEE de 2005, competência para conhecer de tais litígios.

Salientado, todavia, que as diferenças de ordem factual existentes entre o Acórdão Oberto e O’Leary e o presente processo impedem que se considere que a interpretação do artigo 27.o, n.o 2, da CEEE se imponha com tal evidência que não suscite nenhuma dúvida razoável, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial.

No seu acórdão, o Tribunal considera que a Instância de Recurso tem competência exclusiva, em primeira e segunda instância, para decidir, após ter esgotado a via administrativa prevista no RGEE de 2014, sobre os litígios relativos à legalidade da decisão de um Conselho de Turma de uma Escola Europeia de não autorizar a passagem de um aluno para uma classe seguinte do ciclo secundário ( 8 ).

Apreciação do Tribunal de Justiça

A título preliminar, há que recordar que o sistema das Escolas Europeias é um sistema sui generis, que realiza, mediante um acordo internacional, uma forma de cooperação entre os Estados‑Membros e entre estes e a União Europeia. As Escolas Europeias constituem uma organização internacional que, apesar dos laços funcionais que a ligam à União, continua a ser formalmente distinta desta e dos seus Estados‑Membros. Por conseguinte, mesmo que a CEEE constitua, no que diz respeito à União, um ato adotado por uma instituição da União na aceção do artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE, é também regulada pelo direito internacional e, especialmente, do ponto de vista da sua interpretação, pelo direito internacional dos Tratados. Este direito foi codificado, no essencial, pela Convenção de Viena cujas normas são aplicáveis a um acordo concluído entre os Estados‑Membros e uma organização internacional, como a CEEE, na medida em que essas normas são a expressão do direito internacional geral de natureza consuetudinária. Esta última Convenção deve, consequentemente, ser interpretada em consonância com essas normas e, especialmente, em conformidade com as normas contidas no artigo 31.o da Convenção de Viena, que exprime o direito consuetudinário internacional.

Após ter recordado os termos do artigo 27.o, n.o 2, da CEEE, bem como o conteúdo e o alcance das disposições pertinentes do RGEE de 2014 ( 9 ), o Tribunal verifica se, de maneira análoga ao declarado no Acórdão Oberto e O’Leary a propósito de decisões do diretor de uma Escola Europeia, as regras enunciadas no artigo 31.o da Convenção de Viena permitem interpretar o artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da CEEE no sentido de que não se opõe a que a Instância de Recurso tenha, por força das disposições do RGEE de 2014, competência exclusiva para conhecer das decisões de não autorizar a passagem de um aluno de uma Escola Europeia para a classe seguinte, embora essas decisões não provenham do Conselho Superior ou do Conselho de Administração dessa escola, mas sim de um Conselho de Turma.

A este respeito, no tocante ao artigo 31.o, n.o 1, da Convenção de Viena, o Tribunal recorda que, segundo esta disposição, um Tratado deve ser interpretado de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do Tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim. Assim, o Tribunal considera que, ainda que os atos dos Conselhos de Turma não estejam expressamente mencionados no artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da CEEE, o contexto normativo em que se inscreve esta disposição e os objetivos prosseguidos pela CEEE permitem considerar que a extensão da competência operada em favor da Instância de Recurso através das disposições do RGEE de 2014 não viola esta disposição da CEEE.

Quanto ao artigo 31.o, n.o 3, alíneas a) e b), da Convenção de Viena, importa recordar que, para efeitos da interpretação de um Tratado, se deverá ter em conta, simultaneamente com o contexto, por um lado, todos os acordos posteriores entre as Partes sobre a interpretação ou a aplicação das suas disposições e, por outro, todas as práticas seguidas posteriormente na aplicação do Tratado pelas quais se estabeleça o acordo das Partes sobre a interpretação do referido Tratado.

Neste âmbito, o Tribunal considera que a aprovação pelo Conselho Superior dos artigos 62.°, 66.° e 67.° do RGEE de 2014 e, antes disso, das disposições análogas que figuram no RGEE de 2005, bem como a aplicação destas disposições, sem interrupção desde então, tanto pelo Secretário‑Geral como pela Instância de Recurso, sem que as Partes Contratantes na CEEE tenham contestado essa aprovação e essa aplicação, são suscetíveis de atestar a existência senão de um acordo posterior entre essas Partes a propósito da interpretação desta Convenção e da aplicação das suas disposições na aceção do artigo 31.o, n.o 3, alínea a), da Convenção de Viena, pelo menos de uma prática que estabelece o acordo das Partes sobre essa interpretação na aceção do artigo 31.o, n.o 3, alínea b), desta última Convenção. Com efeito, a não contestação pelas Partes na CEEE dessa aplicação ininterrupta deve ser considerada uma conduta das Partes que traduz o seu consentimento tácito à referida aplicação e, portanto, uma prática dessa natureza. Ora, esse acordo e/ou essa prática são suscetíveis de prevalecer sobre a redação do artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da CEEE. Daqui resulta que esta disposição deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que as decisões dos Conselhos de Turma das Escolas Europeias que não autorizam a passagem de um aluno para a classe seguinte sejam, em princípio, entendidas como abrangidas pela referida disposição.

O Tribunal deduz daí que a Instância de Recurso tem, por força do artigo 67.o, n.o 1, do RGEE de 2014, competência exclusiva em primeira e em última instância para decidir, após ter sido esgotada a via administrativa instituída pelo artigo 62.o, n.o 1, deste regulamento, sobre qualquer litígio relativo à decisão do Conselho de Turma de uma Escola Europeia de não autorizar a passagem de um aluno para a classe seguinte do ciclo secundário e que essa competência exclusiva não viola o artigo 27.o, n.o 2, da CEEE.

Por outro lado, o Tribunal precisa que esta interpretação das disposições pertinentes da CEEE e do RGEE de 2014 não afeta o direito dos interessados a uma proteção jurisdicional efetiva.

No que respeita à CEEE, os princípios gerais de direito da União devem simultaneamente presidir à interpretação desta Convenção e ser devidamente tidos em consideração e respeitados pelos órgãos instituídos pela referida Convenção quando esses órgãos exercem as competências que resultam das regras por esta estabelecidas e adotam atos em conformidade com as suas disposições. Conforme resulta das decisões proferidas pela Instância de Recurso apresentadas pela Escola Europeia de Varese, as disposições do artigo 62.o, n.o 1, do RGEE de 2014, embora consagradas ao recurso administrativo interposto perante o Secretário‑Geral, condicionam, em consequência, igualmente também o alcance da competência jurisdicional desta Instância de Recurso em caso de recurso interposto pelos representantes legais do aluno contra uma decisão do Secretário‑Geral que decidiu desfavoravelmente o recurso administrativo inicialmente interposto perante este último.

Ora, um recurso judicial, mesmo que assim delimitado, não afeta o princípio da proteção jurisdicional efetiva, desde que por «violação de uma regra do direito relativa ao processo a adotar para a passagem para a classe seguinte», na aceção do artigo 62.o, n.o 1, do RGEE de 2014, se entenda, em sentido amplo, a violação de qualquer regra tanto estritamente processual como substantiva que deva necessariamente ser observada nas deliberações dos Conselhos de Turma. Entre essas regras figuram, nomeadamente, os princípios gerais do direito da União aplicáveis cujo respeito deve, consequentemente, ser assegurado pela Instância de Recurso quando é chamada a apreciar um recurso de uma decisão do Conselho de Turma de não autorizar a passagem de um aluno para a classe seguinte.

Quanto ao alcance da fiscalização exercida por esta Instância de Recurso no que toca à fundamentação dessa decisão do Conselho de Turma, o princípio da proteção jurisdicional efetiva exige assim, nomeadamente, que, sem prejuízo da ampla margem de apreciação supramencionada inerente à função deliberativa atribuída ao Conselho de Turma, essa fiscalização incida, pelo menos, sobre a verificação da ausência de excesso ou desvio de poder, erro de direito ou erro manifesto de apreciação.


( 1 ) Com fundamento no artigo 41.o do Código de Processo Civil italiano, nos termos do qual: «Enquanto o processo não for julgado em primeira instância quanto ao mérito, qualquer parte pode pedir às secções unidas da [Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália)] que aprecie as questões de competência [...]».

( 2 ) Convenção relativa ao Estatuto das Escolas Europeias, celebrada no Luxemburgo em 21 de junho de 1994, entre os Estados‑Membros e as Comunidades Europeias (JO 1994, L 212, p. 3). Nos termos do artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da CEEE, «[a] Instância de Recurso tem competência exclusiva em primeira e em última instância para decidir, após ter sido esgotada a via administrativa, sobre qualquer litígio relativo à aplicação da presente Convenção às pessoas nela referidas, com exclusão do pessoal administrativo e auxiliar, relativo à legalidade de um ato, baseado na Convenção ou em regras definidas ao abrigo da mesma, prejudicial a essas pessoas praticado pelo Conselho Superior ou pelo Conselho de Administração de uma escola no exercício das atribuições que lhes são conferidas pela [mesma] Convenção».
O artigo 27.o, n.o 2, segundo parágrafo, da CEEE esclarece que as condições e as regras de execução desses procedimentos serão definidas, segundo os casos, pelo Estatuto do pessoal docente, pelo regime aplicável aos diretores de curso ou pelo Regulamento Geral das Escolas Europeias.

( 3 ) Regulamento Geral das Escolas Europeias, na sua versão n.o 2014‑03‑D‑14‑fr‑11. Nos termos do artigo 67.o, n.o 1, do RGEE de 2014, «[a]s decisões administrativas, expressas ou tácitas, tomadas em relação aos recursos referidos no artigo anterior podem ser objeto de recurso contencioso interposto pelos representantes legais dos alunos, diretamente afetados pela decisão controvertida, perante a Instância de Recurso prevista no artigo 27.o, da [CEEE]».

( 4 ) Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), Acórdão de 15 de março de 1999, ECLI:IT:CASS:1999:138CIV.

( 5 ) Nos termos das disposições conjugadas do artigo 6.o, segundo parágrafo, e do artigo 27.o, n.os 1, 2 e 7, da CEEE.

( 6 ) Acórdão de 11 de março de 2015, Oberto e O’Leary (C‑464/13 e C‑465/13, EU:C:2015:163), a seguir «Acórdão Oberto e O’Leary».

( 7 ) Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969, Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331).

( 8 ) Por força das disposições conjugadas do artigo 27.o, n.o 2, da CEEE e dos artigos 61.°, 62.°, 66.° e 67.° do RGEE de 2014.

( 9 ) Artigo 61.o, A, n.o 1, artigo 62.o, n.os 1 e 2, artigo 66.o, n.os 1 e 5, e artigo 67.o, n.o 1, do RGEE de 2014.