ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

15 de junho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Segurança social — Regulamento (CE) n.o 883/2004 — Artigo 3.o, n.o 1, alínea a) — Conceito de “prestações por doença” — Âmbito de aplicação — Livre circulação de trabalhadores — Artigo 45.o TFUE — Regulamento (CE) n.o 492/2011 — Artigo 7.o, n.o 2 — Vantagens sociais — Diferença de tratamento — Justificações — COVID‑19 — Confinamento de trabalhadores ordenado pela autoridade sanitária nacional — Compensação dos referidos trabalhadores pelo empregador — Reembolso do empregador pela autoridade competente — Exclusão dos trabalhadores fronteiriços confinados ao abrigo de uma medida tomada pela autoridade do seu Estado de residência»

No processo C‑411/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 24 de maio de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de junho de 2022, no processo

Thermalhotel Fontana Hotelbetriebsgesellschaft mbH

sendo interveniente:

Bezirkshauptmannschaft Südoststeiermark,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: M. L. Arastey Sahún, presidente de secção, F. Biltgen (relator) e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Thermalhotel Fontana Hotelbetriebsgesellschaft mbH, por T. Katalan, Rechtsanwältin,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e F. Werni, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por O. Serdula, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo finlandês, por M. Pere, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e D. Martin, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social (JO 2004, L 166, p. 1; retificação JO 2004, L 200, p. 1), bem como do artigo 45.o TFUE e do artigo 7.o do Regulamento (UE) n.o 492/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativo à livre circulação dos trabalhadores na União (JO 2011, L 141, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Thermalhotel Fontana Hotelbetriebsgesellschaft mbH (a seguir «Thermalhotel Fontana») à Bezirkshauptmannschaft Südoststeiermark (autoridade administrativa distrital da Estíria Sul Oriental, Áustria, a seguir «Autoridade Administrativa») a respeito da recusa desta última em compensar a Thermalhotel Fontana pelos montantes não auferidos pelos seus trabalhadores durante os períodos de confinamento nos respetivos domicílios na Eslovénia e na Hungria, impostos pelas autoridades competentes desses Estados‑Membros em virtude da pandemia de COVID‑19.

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento n.o 883/2004

3

O artigo 3.o do Regulamento n.o 883/2004, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação material», prevê, no seu n.o 1:

«O presente regulamento aplica‑se a todas as legislações relativas aos ramos da segurança social que digam respeito a:

a)

Prestações por doença;

[…]»

4

Nos termos do artigo 5.o deste regulamento:

«Salvo disposição em contrário do presente regulamento e tendo em conta as disposições especiais de aplicação, aplicam‑se as seguintes disposições:

[…]

b)

Se, nos termos da legislação do Estado‑Membro competente, forem atribuídos efeitos jurídicos à ocorrência de certos factos ou acontecimentos, esse Estado‑Membro deve ter em conta os factos ou acontecimentos semelhantes correspondentes ocorridos noutro Estado‑Membro, como se tivessem ocorrido no seu próprio território.»

Regulamento n.o 492/2011

5

O artigo 7.o do Regulamento n.o 492/2011 dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   O trabalhador nacional de um Estado‑Membro não pode ser sujeito no território de outro Estado‑Membro, em razão da sua nacionalidade, a um tratamento diferente daquele que é concedido aos trabalhadores nacionais no que respeita a todas as condições de emprego e de trabalho, nomeadamente em matéria de remuneração, de despedimento e de reintegração profissional ou de reemprego, se ficar desempregado.

2.   O trabalhador referido no n.o 1 beneficia das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais.»

Direito austríaco

6

A Epidemiegesetz 1950 (Lei relativa às Epidemias de 1950), de 14 de outubro de 1950 (BGBl. 186/1950), é aplicável ao litígio no processo principal na sua versão de 25 de setembro de 2020 (BGBl. I, 104/2020), no que respeita aos seus § § 7 e 32, e na sua versão de 24 de julho de 2006 (BGBl. I, 114/2006), quanto ao seu § 17 (a seguir «EpiG»).

7

Nos termos do §7 da EpiG, sob a epígrafe «Confinamento dos doentes»:

«(1)   As doenças cuja notificação é obrigatória, que podem implicar medidas de isolamento das pessoas doentes, suspeitas de estarem doentes ou suspeitas de estarem contaminadas, serão designadas por decreto.

(1a)   A fim de prevenir a propagação de uma doença, cuja notificação é obrigatória, designada por decreto referido no n.o 1, as pessoas doentes, suspeitas de estarem doentes, ou suspeitas de estarem contaminadas, podem ser confinadas ou restringidas nos seus contactos com o exterior se, tendo em conta a natureza da doença e o comportamento da pessoa em questão, existir um risco grave e significativo para a saúde de outras pessoas, que não possa ser eliminado por medidas menos restritivas. […]

[…]»

8

O § 17 da EpiG, sob a epígrafe «Vigilância de determinadas pessoas», dispõe, no seu n.o 1:

«As pessoas que devam ser consideradas portadoras de germes de uma doença, cuja notificação é obrigatória, podem ser sujeitas a uma observação ou a uma vigilância especial de polícia sanitária. Essas pessoas podem ser sujeitas a uma obrigação especial de notificação, a um exame médico periódico e, se necessário, à desinfeção e ao confinamento na sua habitação; se o confinamento na habitação não puder ser realizado de forma razoável, o confinamento e o abastecimento podem ser ordenados em locais previstos para esse efeito.»

9

O § 32 da EpiG, sob a epígrafe «Compensação por lucros cessantes ou por montantes não auferidos», tem a seguinte redação:

«(1)   Deve ser concedida às pessoas singulares e coletivas, bem como às sociedades unipessoais de direito comercial, uma compensação pelos danos patrimoniais sofridos por estarem impedidas de exercer a sua atividade profissional, se e na medida em que

(1) tenham sido confinadas em conformidade com os § § 7 ou 17,

[…]

e que daí tenham resultado lucros cessantes ou montantes não auferidos.

[…]

(2)   A compensação é devida por cada dia abrangido pela decisão administrativa a que se refere o n.o 1.

(3)   A compensação das pessoas vinculadas por um contrato de trabalho é calculada em função da remuneração habitual na aceção da Lei relativa à Manutenção da Remuneração [Entgeltfortzahlungsgesetz], BGBl. n.o 399/1974. Os empregadores estão obrigados a pagar o montante da compensação atribuída nas datas em que a remuneração é habitualmente paga aos trabalhadores na empresa. A partir do momento em que procede a esse pagamento, o empregador fica sub‑rogado no direito à compensação perante o Estado federal […]

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10

A Thermalhotel Fontana tem sede na Áustria, onde explora um hotel.

11

Durante o quarto trimestre de 2020, vários trabalhadores desse hotel foram submetidos a testes de despistagem da COVID‑19, cujo resultado positivo foi comunicado pela Thermalhotel Fontana à autoridade sanitária austríaca.

12

Atendendo ao facto de esses trabalhadores residirem na Eslovénia e na Hungria, esta autoridade não lhes impôs as medidas de confinamento previstas nas disposições da EpiG, mas avisou as autoridades competentes desses Estados‑Membros, as quais ordenaram que os referidos trabalhadores cumprissem períodos de confinamento nos respetivos domicílios.

13

Durante esses períodos de confinamento, a Thermalhotel Fontana continuou a pagar remunerações aos trabalhadores em questão em conformidade, como resulta das observações do Governo austríaco, com as disposições relevantes do Código Civil e da Angestelltengesetz (Lei relativa aos Trabalhadores por Conta de Outrem) (BGBl. no 292/1921), na versão resultante da Bundesgesetz (Lei Federal) (BGBl., I no 74/2019), aplicáveis ao presente caso pelo facto de o contrato de trabalho daqueles trabalhadores ser regulado pelo direito austríaco.

14

Por cartas de 1 de dezembro de 2020, em aplicação do § 32 da EpiG, a Thermalhotel Fontana solicitou à autoridade administrativa a compensação pelos montantes não auferidos por esses trabalhadores durante os respetivos períodos de confinamento, considerando‑se sub‑rogada no direito daqueles trabalhadores a uma compensação pelo pagamento da remuneração durante os referidos períodos. Por Decisões de 29 de dezembro de 2020, estes pedidos foram indeferidos.

15

O Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria, Áustria) negou provimento aos recursos dessas decisões. Ao constatar que os documentos anexados aos pedidos de compensação eram decisões ou atestados emitidos por autoridades estrangeiras que impunham uma medida de confinamento aos trabalhadores em questão, este órgão jurisdicional declarou que só uma decisão baseada numa medida administrativa tomada em aplicação da EpiG e que implicasse uma perda de montantes a auferir pelos trabalhadores dava origem a um direito a compensação nos termos dessa lei.

16

A Thermalhotel Fontana interpôs recurso extraordinário de «Revision» dessas decisões para o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), órgão jurisdicional de reenvio, contestando a conformidade do § 32, n.os 1 e 3, da EpiG, conforme interpretado pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria), com o artigo 45.o TFUE e com o Regulamento n.o 883/2004.

17

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, se a compensação prevista no § 32 da EpiG fosse qualificada de «prestação por doença» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 883/2004, as autoridades e os órgãos jurisdicionais austríacos deveriam, em conformidade com o artigo 5.o, alínea b), do mesmo, levar em consideração uma decisão de confinamento tomada por outro Estado‑Membro como se tivesse sido tomada por uma autoridade austríaca. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio considera que não é esse o caso e que, por conseguinte, a referida compensação não é abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento. A este respeito, salienta, em primeiro lugar, que o beneficiário, impedido de exercer a sua atividade profissional, é compensado pelos montantes não auferidos sem, necessariamente, estar doente, podendo ser‑lhe imposta uma medida de confinamento em razão de uma simples suspeita de doença ou de contaminação. Em segundo lugar, a imposição de uma medida de confinamento não visa a cura da pessoa confinada, mas a proteção da população contra o contágio por essa pessoa, sendo que a compensação prevista no § 32 da EpiG não tem por objetivo compensar as despesas de doença ou de tratamento.

18

No que se refere ao artigo 45.o TFUE e ao artigo 7.o do Regulamento n.o 492/2011, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a legislação nacional em causa impõe indiretamente, como condição da compensação do empregador, que os seus trabalhadores residam em território nacional e que, por conseguinte, esta condição é constitutiva de uma desigualdade de tratamento entre trabalhadores que é indiretamente baseada na nacionalidade dos mesmos. A este respeito, salienta que trabalhadores fronteiriços como os empregados pela Thermalhotel Fontana, que tiveram um resultado positivo nos testes de despistagem da COVID‑19, não foram, ao contrário dos trabalhadores residentes na Áustria que se encontravam na mesma situação, confinados pela autoridade austríaca. No entanto, foram submetidos a medidas de confinamento comparáveis às impostas por essa autoridade por força das medidas em vigor no seu Estado‑Membro de residência e para as quais a EpiG não prevê o direito a compensação pelos montantes não auferidos. O órgão jurisdicional de reenvio considera que a circunstância de ser o empregador, depois de ter procedido ao pagamento da remuneração devida aos trabalhadores assim confinados, a invocar o direito a uma compensação que deriva do direito dos trabalhadores em questão, não tem nenhuma incidência nesta análise.

19

Esse órgão jurisdicional considera que tal desigualdade de tratamento pode ter como justificação possível a saúde pública, uma vez que o respeito das decisões de confinamento só pode ser fiscalizado pelas autoridades austríacas no território nacional, onde a situação pandémica pode ser diferente da existente noutro Estado‑Membro. Outra justificação poderia residir no facto de o Estado austríaco apenas ser responsável pelo entrave à atividade por conta de outrem do trabalhador submetido a uma medida de confinamento ordenada pelas autoridades austríacas. Por conseguinte, os trabalhadores fronteiriços sujeitos a medidas de confinamento impostas pelas autoridades do seu Estado‑Membro de residência poderiam ser reencaminhados para este Estado com vista a solicitarem o benefício dos regimes de compensação aí eventualmente existentes. De qualquer modo, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta dúvidas quanto ao caráter proporcional da desigualdade de tratamento em questão.

20

Nestas condições, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O montante de uma compensação concedida aos trabalhadores pelos prejuízos financeiros sofridos durante o seu [confinamento], como pessoas [doentes] ou que se suspeita estarem [doentes] com COVID‑19 ou de poderem transmitir este vírus, pelos [danos patrimoniais] causados pelo facto de estarem impedidos de desenvolver a sua atividade remunerada, e que deve inicialmente ser paga pelo empregador aos trabalhadores, ficando o empregador, a partir do momento em que procede ao pagamento, sub‑rogado no direito a essa compensação perante o Estado federal, constitui uma prestação por doença na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do [Regulamento n.o 883/2004]?

2)

Devem os artigos 45.o TFUE e 7.o do [Regulamento 492/2011], ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional segundo a qual a concessão de uma compensação pela perda de remuneração sofrida pelos trabalhadores em razão de um resultado positivo num teste [de despistagem] à COVID‑19 (devendo essa compensação ser inicialmente paga pelo empregador aos trabalhadores e ficando o empregador, a partir do momento em que procede ao pagamento, sub‑rogado no direito a essa compensação perante o Estado federal) depende de o [confinamento] ser ordenado por uma autoridade nacional com base num regulamento nacional em matéria de epidemias, de modo que esta compensação não é concedida a trabalhadores fronteiriços que têm domicílio noutro Estado‑Membro e cujo [confinamento] (“quarentena”) é ordenado pela autoridade sanitária do seu Estado de residência?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

21

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 883/2004 deve ser interpretado no sentido de que a compensação, financiada pelo Estado, que é concedida aos trabalhadores por conta de outrem pelos danos patrimoniais causados pelo entrave à sua atividade profissional durante o seu confinamento como pessoas doentes ou suspeitas de estarem doentes com COVID‑19 ou de estarem contaminadas com o respetivo vírus, constitui uma «prestação por doença», na aceção desta disposição, e está, portanto, abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento.

22

A este respeito, cabe recordar que a distinção entre prestações abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 883/2004 e as prestações dele excluídas reside essencialmente nos elementos constitutivos de cada prestação, nomeadamente nas suas finalidades e nas condições de concessão, e não no facto de uma prestação ser ou não qualificada de prestação de segurança social por uma legislação nacional [Acórdão de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de saúde públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 28 e jurisprudência referida].

23

Resulta assim de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma prestação pode ser considerada uma prestação de segurança social se, por um lado, for concedida aos beneficiários independentemente de qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais, com base numa situação definida na lei, e, por outro, se tiver por base um dos riscos expressamente enumerados no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004. Estas duas condições são cumulativas [Acórdão de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de saúde públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 29 e jurisprudência referida].

24

No que diz respeito à primeira condição enunciada no número anterior, importa recordar que a mesma está preenchida quando a concessão da prestação respeita critérios objetivos, que, uma vez preenchidos, atribuem direito à prestação sem que a autoridade competente possa tomar em consideração outras circunstâncias pessoais [Acórdão de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de saúde públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 30 e jurisprudência referida].

25

No caso em apreço, importa constatar que a primeira condição referida está preenchida, visto que a prestação em causa no processo principal é concedida com base em critérios objetivos legalmente definidos, sem que a autoridade competente tenha em conta outras circunstâncias pessoais dos trabalhadores por conta de outrem além da colocação em confinamento e do montante da sua remuneração habitual.

26

Quanto à segunda condição enunciada no n.o 23 do presente acórdão, importa recordar que o artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento menciona expressamente as «prestações por doença».

27

A este propósito, o Tribunal de Justiça declarou que as «prestações por doença», na aceção desta disposição, têm por finalidade essencial a cura do doente, prestando‑lhe os cuidados que o seu estado exige, e abrangem, assim, o risco associado a um estado patológico [Acórdão de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de saúde públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 32 e jurisprudência referida].

28

Ora, não é esse o caso de uma compensação como a prevista no § 32 da EpiG.

29

Com efeito, por um lado, para obter essa compensação é irrelevante que a pessoa sujeita a uma medida de confinamento ao abrigo da EpiG esteja efetivamente doente ou não, ou que, no caso em apreço, o risco relacionado com a doença COVID‑19 se concretize ou não, uma vez que é suficiente que, para ser confinada dessa forma, se suspeite que essa pessoa esteja doente com COVID‑19 ou tenha sido contaminada com o respetivo vírus. Por outro lado, o confinamento que está na base desta compensação não é imposto com o objetivo de curar a pessoa confinada, mas sim de proteger a população do contágio por esta pessoa.

30

Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 883/2004 deve ser interpretado no sentido de que a compensação, financiada pelo Estado, que é concedida aos trabalhadores por conta de outrem pelos danos patrimoniais causados pelo entrave à sua atividade profissional durante o seu confinamento enquanto pessoas doentes ou suspeitas de estarem doentes com COVID‑19 ou de estarem contaminadas pelo respetivo vírus, não constitui uma «prestação por doença», na aceção desta disposição, e, por conseguinte, não está abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento.

Quanto à segunda questão

31

Tendo em conta a resposta negativa dada à primeira questão, há que responder à segunda questão, através da qual o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 45.o TFUE e o artigo 7.o do Regulamento n.o 492/2011 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual a atribuição de uma compensação pelos montantes não auferidos pelos trabalhadores devido a um confinamento ordenado na sequência de um resultado positivo no teste de despistagem da COVID‑19 está sujeita à condição de que a medida de confinamento tenha sido ordenada por uma autoridade desse Estado‑Membro ao abrigo dessa legislação.

32

A este respeito, importa recordar que o artigo 45.o, n.o 2, TFUE prevê que a livre circulação dos trabalhadores implica a supressão de toda e qualquer discriminação, em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados‑Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e às outras condições de trabalho.

33

O princípio da igualdade de tratamento enunciado nesta disposição está igualmente plasmado no artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 492/2011, que precisa que o trabalhador nacional de um Estado‑Membro beneficia, no território dos outros Estados‑Membros, das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais (Acórdão de 28 de abril de 2022, Gerencia Regional de Salud de Castilla y León, C‑86/21, EU:C:2022:310, n.o 29 e jurisprudência referida).

34

Além disso, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 7.o, n.o 2, do referido regulamento beneficia indistintamente os trabalhadores migrantes que residem num Estado‑Membro de acolhimento e os trabalhadores fronteiriços que exercem a sua atividade por conta de outrem neste último Estado‑Membro, mas residem noutro Estado‑Membro [Acórdão de 2 de abril de 2020, Caisse pour l’avenir des enfants (Filho do cônjuge de um trabalhador fronteiriço), C‑802/18, EU:C:2020:269, n.o 26 e jurisprudência referida].

35

O conceito de «vantagem social» que o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 492/2011 estende aos trabalhadores nacionais de outros Estados‑Membros engloba todas as vantagens, associadas ou não a um contrato de trabalho, que geralmente são reconhecidas aos trabalhadores nacionais, devido principalmente à sua qualidade objetiva de trabalhadores ou pelo simples facto de residirem no território nacional, e cujo alargamento aos trabalhadores nacionais de outros Estados‑Membros se afigura apto a facilitar a sua mobilidade no interior da União e, por conseguinte, a sua integração no Estado‑Membro de acolhimento, sendo que a referência feita nesta disposição às vantagens sociais não pode ser interpretada restritivamente [Acórdão de 16 de junho de 2022, Comissão/Áustria (Indexação das prestações familiares), C‑328/20, EU:C:2022:468, n.o 95 e jurisprudência referida].

36

Cumpre considerar que uma compensação, como a prevista no § 32 da EpiG, constitui uma «vantagem social». Com efeito, segundo os próprios termos do n.o 1 desse artigo, a referida compensação é paga, nomeadamente, às pessoas confinadas ao abrigo desta lei em virtude dos danos patrimoniais causados pelo entrave à sua atividade profissional.

37

É jurisprudência constante que a regra da igualdade de tratamento inscrita no artigo 45.o, n.o 2, TFUE e no artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 492/2011 proíbe não só as discriminações manifestas, baseadas na nacionalidade, mas também todas as formas dissimuladas de discriminação que, por aplicação de outros critérios de diferenciação, conduzem, de facto, ao mesmo resultado. Assim, uma disposição de direito nacional, ainda que indistintamente aplicável em razão da nacionalidade, deve ser considerada indiretamente discriminatória quando, pela própria natureza, possa afetar mais os trabalhadores nacionais de outros Estados‑Membros do que os trabalhadores nacionais, com o consequente risco de prejudicar especialmente os primeiros, a menos que seja objetivamente justificada e proporcionada ao objetivo prosseguido (Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Caisse nationale d’assurance pension, C‑731/21, EU:C:2022:969, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida).

38

No litígio no processo principal, é ponto assente que a compensação referida no § 32 da EpiG só é concedida às pessoas confinadas ao abrigo desta lei, designadamente dos seus §§ 7 e 17. Resulta da decisão de reenvio que as pessoas assim confinadas geralmente residem no território austríaco. Em contrapartida, os trabalhadores fronteiriços em causa no processo principal, que residem noutro Estado‑Membro, não foram confinados ao abrigo da referida lei, mas sim em aplicação da legislação sanitária do seu Estado de residência. Por conseguinte, os danos patrimoniais causados pelo seu confinamento não são compensados ao abrigo do referido § 32.

39

Daqui resulta, como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, que a elegibilidade para essa compensação está indiretamente ligada a um requisito de residência no território austríaco. Ora, em conformidade com os critérios decorrentes da jurisprudência referida no n.o 37 do presente acórdão, tal requisito de residência no território nacional constitui, na falta de justificação, uma discriminação indireta, na medida em que é suscetível, pela sua própria natureza, de afetar mais os trabalhadores migrantes do que os trabalhadores nacionais e, consequentemente, pode desfavorecer mais particularmente os primeiros (v., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2020, PF e o., C‑830/18, EU:C:2020:275, n.o 31 e jurisprudência referida).

40

Esta conclusão não é afetada pela circunstância de, por força do § 32, n.o 3, da EpiG, serem os empregadores dos trabalhadores afetados por uma medida de confinamento nos termos dessa lei quem está obrigado a pagar‑lhes o montante da compensação e quem, por esse facto, detém um crédito sobre o Estado, ao passo que, para os trabalhadores fronteiriços, confinados nos termos da legislação sanitária de outro Estado‑Membro, os referidos empregadores não têm direito, com base na EpiG, a serem compensados pelo Estado austríaco pela remuneração que continuaram a pagar‑lhes durante o seu confinamento.

41

Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que as regras em matéria de livre circulação dos trabalhadores poderiam facilmente ser votadas ao insucesso se, para escaparem às proibições estabelecidas nessas regras, bastasse que os Estados‑Membros impusessem aos empregadores obrigações ou condições de emprego de um trabalhador, que, caso lhe fossem diretamente impostas, constituiriam restrições ao exercício do direito de livre circulação suscetíveis de serem invocadas pelo trabalhador em causa ao abrigo do artigo 45.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 4 de setembro de 2014, Schiebel Aircraft, C‑474/12, EU:C:2014:2139, n.o 26 e jurisprudência referida).

42

Quanto à existência de uma justificação objetiva, na aceção da jurisprudência referida no n.o 37 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio e o Governo austríaco mencionam o objetivo de saúde pública, posto que a compensação pelos montantes não auferidos durante o período de confinamento visa favorecer o respeito deste último enquanto medida tomada pelas autoridades sanitárias para reduzir o nível das infeções. Neste contexto, a compensação limitada às medidas de confinamento ordenadas ao abrigo da EpiG justifica‑se pelo facto de o respeito dessas medidas só poder ser fiscalizado no território nacional.

43

A este respeito, há que considerar que é no interesse da saúde pública, que designadamente permite, em conformidade com o artigo 45.o, n.o 3, TFUE, limitar a livre circulação dos trabalhadores, que são impostas medidas de confinamento, como as que estão em causa no processo principal, e que é previsto o pagamento de uma compensação para incentivar o seu cumprimento.

44

Todavia, a compensação limitada às pessoas confinadas ao abrigo da legislação nacional, neste caso a EpiG, com exclusão, nomeadamente, dos trabalhadores migrantes confinados por força das medidas sanitárias em vigor no seu Estado‑Membro de residência, não parece adequada para atingir esse objetivo. Com efeito, a compensação desses trabalhadores migrantes também poderia encorajá‑los a respeitar o confinamento que lhes foi imposto em benefício da saúde pública. Além disso, quanto à possibilidade de fiscalização do cumprimento do confinamento, afigura‑se, sob reserva de verificação a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, que a compensação referida no § 32 do EpiG é concedida às pessoas elegíveis pelo facto de lhes ter sido imposta uma medida de confinamento e não pelo facto de essas pessoas lhe terem dado cumprimento.

45

O órgão jurisdicional de reenvio e o Governo austríaco alegam igualmente, como eventual justificação, que a compensação limitada às pessoas confinadas ao abrigo da EpiG decorre do facto de o Estado austríaco só ser responsável em relação a essas pessoas pelo entrave à atividade profissional causado pela medida de confinamento e de os trabalhadores migrantes confinados ao abrigo da legislação sanitária do seu Estado‑Membro de residência poderem orientar‑se para as autoridades competentes desse Estado a fim de invocarem o seu eventual direito a uma compensação ao abrigo dessa legislação.

46

Ora, tal argumentação não diz respeito, enquanto tal, a um objetivo particular suscetível de justificar um entrave à livre circulação dos trabalhadores. Na medida em que, como observa, designadamente, o Governo checo, a referida argumentação se baseia na preocupação de limitar o custo financeiro da compensação prevista na § 32 da EpiG, há que recordar que, embora considerações de ordem orçamental possam estar na base das opções de política social de um Estado‑Membro e influenciar a natureza ou o alcance das medidas de proteção social que esse Estado pretenda adotar, tais considerações não constituem, todavia, em si mesmas, um objetivo prosseguido por essa política, não sendo, por consequência, suscetíveis de justificar uma discriminação em detrimento dos trabalhadores migrantes (Acórdão de 20 de junho de 2013, Giersch e o., C‑20/12, EU:C:2013:411, n.o 51 e jurisprudência referida).

47

Neste contexto, ainda que, como sustenta o Governo austríaco, a recusa em compensar os montantes não auferidos em razão das medidas de confinamento não ordenadas nos termos do § 32 da EpiG se destine a evitar o enriquecimento sem causa de trabalhadores migrantes igualmente compensados pelo seu Estado‑Membro de residência pelo confinamento imposto pelas autoridades competentes desse Estado, importa concluir que tal recusa vai além do necessário para evitar uma eventual compensação excessiva. Com efeito, como a Comissão salientou, para afastar essa possibilidade, é suficiente que, ao atribuírem a compensação, as autoridades austríacas tenham em conta a compensação já paga ou devida nos termos da legislação de outro Estado‑Membro, se for caso disso, reduzindo o seu montante.

48

Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que o artigo 45.o TFUE e o artigo 7.o do Regulamento n.o 492/2011 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual a atribuição de uma compensação pelos montantes não auferidos pelos trabalhadores em razão de um confinamento ordenado na sequência de um resultado positivo no teste de despistagem da COVID‑19 está sujeita à condição de a medida de confinamento ter sido ordenada por uma autoridade desse Estado‑Membro ao abrigo dessa legislação.

Quanto às despesas

49

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

1)

O artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social,

deve ser interpretado no sentido de que:

a compensação, financiada pelo Estado, que é concedida aos trabalhadores por conta de outrem pelos danos patrimoniais causados pelo entrave à sua atividade profissional durante o seu confinamento enquanto pessoas doentes ou suspeitas de estarem doentes com COVID‑19 ou de estarem contaminadas com o respetivo vírus, não constitui uma «prestação por doença», na aceção desta disposição, e, por conseguinte, não está abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento.

 

2)

O artigo 45.o TFUE e o artigo 7.o do Regulamento (UE) n.o 492/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativo à livre circulação dos trabalhadores na União,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual a atribuição de uma compensação pelos montantes não auferidos pelos trabalhadores em razão de um confinamento ordenado na sequência de um resultado positivo no teste de despistagem da COVID‑19 está sujeita à condição de a medida de confinamento ter sido ordenada por uma autoridade desse Estado‑Membro ao abrigo dessa legislação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.