ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

9 novembro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política social — Organização do tempo de trabalho — Diretiva 2003/88/CE — Artigo 7.o — Direito a férias anuais remuneradas — Reporte dos direitos a férias anuais remuneradas em caso de doença longa duração — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 31.o, n.o 2»

Nos processos apensos C‑271/22 a C‑275/22,

que têm por objeto cinco pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo conseil de prud’hommes d’Agen (Tribunal do Trabalho de Agen, França), por Decisões de 14 de fevereiro de 2022, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 21 de abril de 2022, nos processos

XT (C‑271/22),

KH (C‑272/22),

BX (C‑273/22),

FH (C‑274/22),

NW (C‑275/22)

contra

Keolis Agen SARL,

sendo interveniente:

Syndicat national des transports urbains SNTU-CFDT,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, P. G. Xuereb, T. von Danwitz (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de XT, KH, BX, FH e NW, por E. Delgado, avocate,

em representação da Keolis Agen SARL, por J. Daniel, avocat,

em representação do Governo Francês, por A. Daniel, B. Herbaut e N. Vincent, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por D. Martin e D. Recchia, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 23 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 7.o da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9), e do artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem XT, KH, BX, FH e NW, demandantes nos processos principais, à Keolis Agen SARL a respeito da recusa de esta última lhes permitir gozar os dias de férias por eles adquiridos e que não puderam usufruir devido a baixas por doença ou de lhes pagar a retribuição financeira por férias não gozadas após a cessação das respetivas relações de trabalho.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 7.o da Diretiva 2003/88, sob a epígrafe «Férias anuais», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais.

2.   O período mínimo de férias anuais remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira, exceto nos casos de cessação da relação de trabalho.»

Direito francês

4

Em conformidade com o artigo L. 3141‑3 do code du travail (Código do Trabalho), o trabalhador tem direito a dois dias úteis e meio de férias por cada mês de trabalho efetivo na mesma entidade patronal.

5

O artigo L. 3141‑5 deste código tem a seguinte redação:

«Para efeitos de determinação da duração das férias, são considerados períodos de trabalho efetivo:

1° os períodos de férias remuneradas;

[…]

5° os períodos, até ao limite de um ano ininterrupto, durante os quais a execução do contrato de trabalho é suspensa devido a acidente de trabalho ou a doença profissional;

[…]»

6

O artigo L. 3245‑1 do referido código prevê:

«A ação para pagamento ou recuperação de salários prescreve no prazo de três anos a contar da data em que é intentada pelo demandante ou da data em que este conheceu ou deveria ter conhecido os factos que a fundamentam. O pedido pode incidir sobre os montantes devidos a título dos três últimos anos a contar dessa data ou, em caso de cessação do contrato de trabalho, sobre os montantes devidos a título dos três anos que antecederam a cessação do contrato.»

7

O artigo D. 3141‑7 do mesmo código dispõe:

«O pagamento do subsídio de férias está sujeito às regras previstas no livro II para o pagamento dos salários.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

8

A Keolis Agen é uma empresa privada, titular de uma concessão de serviço público no setor dos transportes públicos de passageiros.

9

Alguns dos demandantes nos processos principais estão vinculados a esta empresa por meio de contratos de trabalho por tempo indeterminado, ao passo que outros estiveram assim vinculados antes de serem declarados incapazes para o trabalho e de verem resolvidos os seus contratos de trabalho.

10

Durante a vigência dos respetivos contratos de trabalho, os demandantes nos processos principais estiveram de baixa por doença mais de um ano. Por conseguinte, pediram à Keolis Agen para gozar dos dias de férias anuais remuneradas de que não puderam usufruir durante os períodos de doença respetivos e, no caso daqueles cujos contratos de trabalho cessaram, pediram uma retribuição financeira pelos dias de férias não gozados. Estes pedidos foram apresentados menos de quinze meses após o termo do período de referência de um ano durante o qual é possível exercer o direito a férias anuais remuneradas, e diziam apenas respeito aos direitos adquiridos durante, no máximo, dois períodos de referência consecutivos.

11

A Keolis Agen indeferiu os referidos pedidos com fundamento no artigo L. 3141‑5 do Código do Trabalho, pelo facto de os períodos de ausência em causa nos processos principais terem durado mais de um ano e não terem sido motivados por doença profissional.

12

Por considerarem este indeferimento contrário ao direito da União Europeia e, nomeadamente, ao artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 e ao artigo 31.o, n.o 2, da Carta, os demandantes nos processos principais intentaram uma ação no conseil de prud’hommes d’Agen (Tribunal do Trabalho de Agen, França), que é o órgão jurisdicional de reenvio nos presentes processos.

13

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas, por um lado, quanto à questão de saber se os demandantes nos processos principais podem invocar o direito a férias anuais remuneradas previsto no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 perante a Keolis Agen, isto é, uma empresa privada, titular de uma concessão de serviço público.

14

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o direito nacional não prevê expressamente um período de reporte dos direitos a férias anuais remuneradas adquiridos durante uma baixa por doença de longa duração. Este órgão jurisdicional recorda que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, particularmente, a que resulta do Acórdão de 22 de novembro de 2011, KHS (C‑214/10, EU:C:2011:761), é admissível um período de reporte de quinze meses se o período de referência que confere direito a férias anuais remuneradas for de um ano. Além disso, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) adotou semelhante período de quinze meses na sua jurisprudência. Em contrapartida, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) admitiu, na sua jurisprudência, a possibilidade de um reporte ilimitado dos direitos a férias anuais remuneradas acumulados devido a uma baixa por doença de longa duração. Tendo em conta estas divergências jurisprudenciais, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se, por um lado, sobre o período de reporte considerado razoável e, por outro, sobre se, na falta de uma disposição nacional que o delimite, um período de reporte ilimitado pode eventualmente ser compatível com o direito da União.

15

Nestas condições, o conseil de prud’hommes d’Agen (Tribunal do Trabalho de Agen) decidiu suspender as instâncias e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 7.o, n.o 1, da [Diretiva 2003/88] ser interpretado no sentido de que é diretamente aplicável às relações entre um operador privado de transportes, que dispõe de uma única concessão de serviço público, e os seus trabalhadores, tendo em conta, em especial, a liberalização do setor dos transportes ferroviários de passageiros?

2)

Qual o período razoável de reporte das quatro semanas de férias remuneradas adquiridas, na aceção do artigo 7.o, n.o 1, da [Diretiva 2003/88], havendo um período de aquisição do direito a férias remuneradas de um ano?

3)

A aplicação de um prazo de reporte ilimitado na falta de uma disposição nacional, regulamentar ou convencional, que regule o referido reporte, é contrária ao artigo 7.o, n.o 1, da [Diretiva 2003/88]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

16

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que um trabalhador pode invocar o direito a férias anuais remuneradas perante a sua entidade patronal, ainda que esta seja uma empresa privada, titular de uma concessão de serviço público.

17

A título preliminar, há que recordar que o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 não pode, em princípio, ser invocado num litígio entre particulares (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2015, Fenoll,C‑316/13, EU:C:2015:200, n.o 48).

18

No entanto, é jurisprudência constante que esta disposição reflete e concretiza o direito fundamental a um período anual de férias remuneradas, consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 26 e jurisprudência referida).

19

Consequentemente, há que examinar a primeira questão não só à luz do artigo 7.o da Diretiva 2003/88 mas também à luz do artigo 31.o, n.o 2, da Carta.

20

Há que recordar que, como resulta da própria redação do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, todos os trabalhadores beneficiam de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas. Este direito a férias anuais remuneradas deve ser considerado um princípio do direito social da União que reveste especial importância, cuja aplicação pelas autoridades nacionais competentes apenas pode ser efetuada dentro dos limites expressamente enunciados pela própria Diretiva 2003/88 (Acórdão de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 24 e jurisprudência referida).

21

A este título, há que observar que o direito a férias anuais remuneradas não só reveste, enquanto princípio do direito social da União, uma especial importância, como está também expressamente consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta, à qual o artigo 6.o, n.o 1, TUE reconhece o mesmo valor jurídico que os Tratados (Acórdão de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 25 e jurisprudência referida).

22

Neste contexto, enquanto o artigo 31.o, n.o 2, da Carta garante o direito de todos os trabalhadores a um período anual de férias remuneradas, o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 aplica este princípio ao fixar a duração do referido período (Acórdão de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 26 e jurisprudência referida).

23

Ora, o direito a um período de férias anuais remuneradas, consagrado na esfera jurídica de todos os trabalhadores pelo artigo 31.o, n.o 2, da Carta, reveste, quanto à sua própria existência, um caráter simultaneamente imperativo e incondicional, não carecendo esta segunda vertente, com efeito, de ser concretizada por disposições do direito da União ou do direito nacional, as quais são apenas chamadas para especificar a duração exata das férias anuais e, se for caso disso, certas condições do exercício deste direito. Daqui decorre que a referida disposição basta, por si só, para conferir aos particulares um direito que pode ser invocado enquanto tal num litígio que os oponha à sua entidade patronal numa situação abrangida pelo direito da União e que, consequentemente, se insere no âmbito de aplicação da Carta (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Max‑Planck‑Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften, C‑684/16, EU:C:2018:874, n.o 74 e jurisprudência referida).

24

O artigo 31.o, n.o 2, da Carta tem, assim, em particular, como consequência, no que respeita às situações abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, que o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que opõe um trabalhador à sua entidade patronal que tenha a qualidade de particular deve afastar a aplicação de uma legislação nacional que viole o princípio segundo o qual um trabalhador não pode ser privado de um direito adquirido a férias anuais remuneradas no termo do período de referência e/ou do período de reporte fixado pelo direito nacional quando esse trabalhador não tenha podido gozar das suas férias ou, correlativamente, do benefício da retribuição financeira que as substitui no termo da relação de trabalho, enquanto direito consubstancial a esse direito às férias anuais remuneradas (v., neste sentido, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Max‑Planck‑Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften, C‑684/16, EU:C:2018:874, n.os 75 e 81).

25

Neste contexto, é facto assente que, em determinadas situações específicas nas quais o trabalhador está incapacitado de exercer as suas funções, um Estado‑Membro não pode fazer depender o direito a férias anuais remuneradas da obrigação de ter efetivamente trabalhado (Acórdão de 25 de junho de 2020, Varhoven kasatsionen sad na Republika Bulgaria e Iccrea Banca, C‑762/18 e C‑37/19, EU:C:2020:504, n.o 59).

26

Assim é, designadamente, no que diz respeito aos trabalhadores ausentes do trabalho devido a baixa por doença durante o período de referência. Com efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, no que respeita ao direito a férias anuais remuneradas, estes trabalhadores são equiparados aos trabalhadores que trabalharam efetivamente durante esse período (Acórdão de 25 de junho de 2020, Varhoven kasatsionen sad na Republika Bulgaria e Iccrea Banca, C‑762/18 e C‑37/19, EU:C:2020:504, n.o 60).

27

Por conseguinte, no caso em apreço, os demandantes nos processos principais podem invocar o direito a férias anuais remuneradas, consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta e concretizado no artigo 7.o da Diretiva 2003/88, perante a sua entidade patronal, independentemente da sua qualidade de empresa privada, titular de uma concessão de serviço público, cabendo ao órgão jurisdicional de reenvio afastar a aplicação de uma legislação nacional contrária a essas disposições do direito da União.

28

Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 31.o, n.o 2, da Carta e o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 devem ser interpretados no sentido de que um trabalhador pode invocar o direito a férias anuais remuneradas, consagrado na primeira destas disposições e concretizado na segunda, perante a sua entidade patronal, sendo irrelevante, a este respeito, a circunstância de esta última ser uma empresa privada, titular de uma concessão de serviço público.

Quanto à segunda questão

29

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede em substância ao Tribunal de Justiça que defina o período de reporte aplicável ao direito a férias anuais remuneradas, previsto no artigo 7.o da Diretiva 2003/88, no caso de o período de referência ser de um ano.

30

Em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou nas práticas nacionais.

31

Assim, como resulta dos próprios termos do artigo 7.o da Diretiva 2003/88 e da jurisprudência do Tribunal de Justiça, cabe aos Estados‑Membros definir, na sua legislação interna, as condições de exercício e de execução do direito a férias anuais remuneradas, precisando as circunstâncias concretas em que os trabalhadores podem fazer uso desse direito [v., neste sentido, Acórdão de 22 de setembro de 2022, LB (Prescrição do direito a férias anuais remuneradas), C‑120/21, EU:C:2022:718, n.o 24 e jurisprudência referida].

32

Como salientaram os demandantes nos processos principais, o Governo Francês e a Comissão nas suas observações escritas, não cabe ao Tribunal de Justiça, quando decide a título prejudicial, definir o período de reporte aplicável ao direito a férias anuais remuneradas, previsto no artigo 7.o da referida diretiva, posto que a determinação deste período faz parte das condições de exercício e de execução do direito a férias anuais remuneradas e incumbe, por isso, ao Estado‑Membro em causa. Ao interpretar o artigo 7.o da referida diretiva, o Tribunal de Justiça só pode examinar se o período de reporte fixado pelo Estado‑Membro em causa não é suscetível de violar esse direito a férias anuais remuneradas.

33

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não é competente para responder à segunda questão prejudicial.

Quanto à terceira questão

34

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional e/ou a uma prática nacional que, no caso de não existir uma disposição nacional que preveja um limite temporal expresso para o reporte de direitos adquiridos a férias anuais remuneradas e não exercidos devido a uma baixa por doença de longa duração, permite deferir pedidos de férias anuais remuneradas apresentados por um trabalhador após o termo do período de referência que confere direito a estas férias.

Quanto à admissibilidade

35

O Governo Francês e a Comissão alegam que a terceira questão é inadmissível.

36

Segundo o Governo Francês, o quadro jurídico, conforme apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio, é incorreto e baseia‑se, designadamente, numa interpretação errada da jurisprudência da Cour de cassation (Tribunal de Cassação), da qual não resulta que o direito nacional permite um reporte ilimitado dos direitos a férias anuais remuneradas acumulados durante uma baixa por doença de longa duração. Este Governo sustenta que, não existindo uma disposição expressa de direito nacional a este respeito, é aplicável o prazo de prescrição ordinário de três anos, previsto no artigo L. 3245‑1 do Código do Trabalho. Consequentemente, a questão submetida é hipotética e não tem relação com a realidade dos litígios nos processos principais.

37

Por seu turno, a Comissão recorda, particularmente, que XT, o demandante no processo principal no processo C‑271/22, antes de ser despedido, esteve de baixa ininterrupta entre 9 de janeiro de 2017 e 31 de outubro de 2018, que o seu despedimento ocorreu em 3 de dezembro de 2018 e que o pedido de retribuição financeira foi por ele apresentado em 3 de janeiro de 2019, isto é, um mês após o referido despedimento e menos de treze meses após o período de referência para os direitos a férias remuneradas adquiridos em 2017. Assim sendo, não é necessário, no âmbito dos litígios nos processos principais, apreciar a legalidade de um eventual reporte ilimitado de direitos a férias anuais remuneradas, pelo que esta terceira questão prejudicial deve ser declarada inadmissível por ser hipotética.

38

A este respeito, há que recordar que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua própria responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 15 de dezembro de 2022, Veejaam e Espo, C‑470/20, EU:C:2022:981, n.o 51 e jurisprudência referida).

39

No caso em apreço, há que observar que o órgão jurisdicional de reenvio definiu claramente o quadro factual e regulamentar em que se enquadra a terceira questão, indicando as razões pelas quais considera que o direito nacional não prevê um limite temporal ao reporte dos direitos a férias anuais remuneradas. Além disso, expôs claramente em que medida é necessária uma resposta a esta questão para poder decidir sobre o eventual reporte dos direitos em causa nos processos principais. Nestas condições, não é manifesto que a referida questão seja de natureza hipotética ou que não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto dos litígios nos processos principais, pelo que a presunção de pertinência referida no número anterior não pode ser posta em causa.

40

Dito isto, resulta dos esclarecimentos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio que os pedidos dos demandantes nos processos principais foram apresentados à Keolis Agen menos de quinze meses após o termo do período de referência em causa e que os mesmos se limitavam aos direitos relativos a dois períodos de referência consecutivos. Por conseguinte, há que considerar que a terceira questão se refere apenas a estas circunstâncias, que resultam do quadro factual em que a mesma foi submetida ao Tribunal de Justiça.

41

Daqui resulta que a terceira questão é admissível na medida em que diz respeito a pedidos de férias anuais remuneradas apresentados por um trabalhador menos de quinze meses após o termo do período de referência que confere direito a estas férias e limitados a dois períodos de referência consecutivos.

Quanto ao mérito

42

Como resulta da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, recordada no n.o 31 do presente acórdão, cabe aos Estados‑Membros definir, na sua legislação interna, as condições de exercício e de execução do direito a férias anuais remuneradas, precisando em que circunstâncias concretas podem os trabalhadores fazer uso desse direito.

43

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que a fixação de um período de reporte de férias anuais não gozadas no termo do período de referência faz parte das condições de exercício e de execução do direito a férias anuais remuneradas, pelo que, em princípio, é da competência dos Estados‑Membros (Acórdão de 22 de novembro de 2011, KHS,C‑214/10, EU:C:2011:761, n.o 25 e jurisprudência referida).

44

Assim, o Tribunal de Justiça precisou que o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 não se opõe, em princípio, a uma legislação nacional que fixa as modalidades de exercício do direito a férias anuais remuneradas expressamente conferido por essa diretiva, incluindo mesmo a perda do direito no final de um período de referência ou de um período de reporte, desde que o trabalhador que perdeu o direito a férias anuais remuneradas tenha tido efetivamente a possibilidade de exercer o direito que a referida diretiva lhe confere [Acórdão de 22 de setembro de 2022, LB (Prescrição do direito a férias anuais remuneradas), C‑120/21, EU:C:2022:718, n.o 25 e jurisprudência referida].

45

Com efeito, segundo jurisprudência constante, podem ser introduzidas restrições ao direito fundamental a férias anuais remuneradas, consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta, no respeito dos requisitos estritos previstos no seu artigo 52.o, n.o 1, a saber, desde que essas restrições sejam previstas na lei, respeitem o conteúdo essencial desse direito e, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União [v., neste sentido, Acórdãos de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 33, e LB (Prescrição do direito a férias anuais remuneradas), C‑120/21, EU:C:2022:718, n.o 36].

46

Assim, no contexto específico no qual os trabalhadores em causa tenham sido impedidos de exercer o seu direito a férias anuais remuneradas devido a ausência do trabalho por motivo de doença, o Tribunal de Justiça admitiu essas restrições e declarou que, embora um trabalhador incapacitado para o trabalho durante vários períodos de referência consecutivos tenha, em princípio, o direito de acumular ilimitadamente todos os direitos a férias anuais remuneradas adquiridos durante o período em que esteve ausente do trabalho, tal acumulação ilimitada deixa de corresponder à própria finalidade do direito a férias anuais remuneradas (v., neste sentido, Acórdão de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 34 e jurisprudência referida).

47

A este título, há que recordar que o direito a férias anuais remuneradas tem uma dupla finalidade, a saber, permitir ao trabalhador dispor de um período de descanso em ligação com a execução das tarefas que lhe incumbem nos termos do seu contrato de trabalho, por um lado, e dispor de um período de descontração e de lazer, por outro. O direito a férias anuais remuneradas adquirido por um trabalhador incapacitado para o trabalho durante vários períodos de referência consecutivos só pode responder às duas vertentes da sua finalidade, na medida em que o reporte não ultrapasse um certo limite temporal. Na verdade, para lá desse limite, as férias anuais perdem o seu efeito positivo para o trabalhador, enquanto tempo de descanso, mantendo apenas a sua qualidade de período de descontração e de lazer (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de novembro de 2011, KHS,C‑214/10, EU:C:2011:761, n.os 31 e 33, e de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 27 e jurisprudência referida).

48

Por conseguinte, atendendo às circunstâncias em que se encontra um trabalhador incapacitado para o trabalho durante vários períodos de referência consecutivos, o Tribunal de Justiça declarou que, à luz não apenas da proteção do trabalhador que a Diretiva 2003/88 prossegue, mas também da proteção da entidade patronal, confrontada com um risco de acumulação significativa de períodos de ausência do trabalhador e com as dificuldades que estes poderiam implicar para a organização do trabalho, o artigo 7.o desta diretiva não se opõe a disposições nem a práticas nacionais que limitam a acumulação dos direitos a férias anuais remuneradas através de um período de reporte no termo do qual estes direitos se extinguem, desde que o referido período de reporte garanta nomeadamente ao trabalhador a possibilidade de dispor, caso o necessite, de períodos de descanso suscetíveis de serem escalonados, planificados e que estejam disponíveis a mais longo prazo, e que aquele período ultrapasse substancialmente a duração do período de referência para o qual tenha sido concedido (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de maio de 2012, Neidel,C‑337/10, EU:C:2012:263, n.o 41, e de 22 de setembro de 2022, Fraport e St. Vincenz‑Krankenhaus, C‑518/20 e C‑727/20, EU:C:2022:707, n.o 36 e jurisprudência referida).

49

Em especial, no que respeita a períodos de referência de um ano, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 não se opõe a disposições ou práticas nacionais que limitam, através de um período de reporte de quinze meses, no termo do qual o direito a férias anuais remuneradas se extingue, a acumulação dos direitos a essas férias de um trabalhador incapacitado para o trabalho durante vários períodos de referência consecutivos, com o fundamento de que tais disposições ou práticas nacionais não violam a finalidade desse direito (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2011, KHS,C‑214/10, EU:C:2011:761, n.os 43 e 44).

50

Nos casos em apreço, foi salientado no n.o 40 do presente acórdão que, embora o órgão jurisdicional de reenvio tenha assinalado que o direito nacional não prevê expressamente um limite temporal para o reporte dos direitos a férias anuais remuneradas adquiridos e não exercidos devido a uma baixa por doença de longa duração, resulta igualmente dos seus esclarecimentos que os pedidos dos demandantes nos processos principais foram apresentados à Keolis Agen menos de quinze meses após o termo do período de referência em causa e que se limitavam aos direitos relativos a dois períodos de referência consecutivos.

51

Uma vez que, por força do artigo 7.o da Diretiva 2003/88, cabe aos Estados‑Membros definir as condições de exercício do direito a férias anuais remuneradas e, a este título, estabelecer limites temporais para o reporte deste direito quando tal for necessário para não violar a finalidade deste direito, respeitando as exigências recordadas no n.o 45 do presente acórdão, segundo o qual os Estados‑Membros devem, nomeadamente, garantir que esses limites estão previstos na lei, o referido artigo não obsta a que uma legislação e/ou prática nacional permita deferir pedidos de férias anuais remuneradas apresentados menos de quinze meses após o termo do período de referência em causa e limitados apenas aos direitos adquiridos e não exercidos, devido a uma baixa por doença de longa duração, durante dois períodos de referência consecutivos.

52

Com efeito, à luz da jurisprudência recordada nos n.os 47 e 48 do presente acórdão, convém salientar, por um lado, que esse reporte não viola a finalidade do direito a férias anuais remuneradas, dado que estas férias conservam a sua qualidade de período de descanso dos trabalhadores em causa, e, por outro, que esse reporte não parece ser suscetível de expor a entidade patronal ao risco de uma acumulação significativa de períodos de ausência do trabalhador.

53

Assim, há que responder à terceira questão que o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional e/ou a uma prática nacional que, não existindo uma disposição nacional que preveja um limite temporal expresso para o reporte de direitos adquiridos a férias anuais remuneradas e não exercidos devido a uma baixa por doença de longa duração, permite deferir pedidos de férias anuais remuneradas apresentados por um trabalhador menos de quinze meses após o termo do período de referência que confere direito a estas férias e limitados a dois períodos de referência consecutivos.

Quanto às despesas

54

Revestindo os processos, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 7.o da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, devem ser interpretados no sentido de que um trabalhador pode invocar o direito a férias anuais remuneradas, consagrado na primeira destas disposições e concretizado na segunda, perante a sua entidade patronal, sendo irrelevante, a este respeito, a circunstância de esta última ser uma empresa privada, titular de uma concessão de serviço público.

 

2)

O artigo 7.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional e/ou a uma prática nacional que, não existindo uma disposição nacional que preveja um limite temporal expresso para o reporte de direitos adquiridos a férias anuais remuneradas e não exercidos devido a uma baixa por doença de longa duração, permite deferir pedidos de férias anuais remuneradas apresentados por um trabalhador menos de quinze meses após o termo do período de referência que confere direito a estas férias e limitados a dois períodos de referência consecutivos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.