ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

9 de novembro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Diretiva 2008/115/CE — Artigo 3.o, ponto 2 — Conceito de “situação irregular” — Diretiva 2013/32/UE — Requerente de proteção internacional — Artigo 9.o, n.o 1 — Direito de permanência no Estado‑Membro durante a apreciação do pedido — Decisão de regresso adotada antes da pronúncia de uma decisão de primeira instância que indefere o pedido de proteção internacional»

No processo C‑257/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Krajský soud v Brně (Tribunal Regional de Brno, República Checa), por Decisão de 28 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de abril de 2022, no processo

CD

contra

Ministerstvo vnitra České republiky, odbor azylové a migrační politiky,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: Z. Csehi, presidente de secção, E. Regan (relator), presidente da Quinta Secção, e D. Gratsias, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo Checo, por A. Edelmannová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Azéma, A. Katsimerou e M. Salyková, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.os 2 e 3, e do artigo 5.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98), lidos em conjugação com o artigo 2.o, o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe CD, um nacional argelino, ao Ministerstvo vnitra České republiky, odbor azylové a migrační politiky (Ministério da Administração Interna da República Checa, Serviço da Política de Asilo e Migração; a seguir «Ministério da Administração Interna»), a respeito de uma decisão de regresso adotada em relação a este nacional pelo Ředitelství služby cizinecké policie (Direção do Serviço da Polícia de Estrangeiros, República Checa; a seguir «Direção da Polícia de Estrangeiros») (a seguir «decisão de regresso em causa»).

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2008/115

3

Nos termos dos considerandos 9 e 12 da Diretiva 2008/115:

«(9)

Nos termos da Diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados‑Membros [JO 2005, L 326, p. 13], um nacional de país terceiro que tenha requerido asilo num Estado‑Membro não deverá considerar‑se em situação irregular no território desse Estado‑Membro enquanto não entrar em vigor a decisão de indeferimento do pedido ou a decisão que ponha termo ao seu direito de permanência enquanto requerente de asilo.

[…]

«(12)

Deverá ser resolvida a situação dos nacionais de países terceiros que se encontram em situação irregular, mas que ainda não podem ser repatriados. As condições básicas de subsistência dessas pessoas deverão ser definidas de acordo com a lei nacional. Para poderem provar a sua situação específica em caso de inspeções ou controlos administrativos, essas pessoas deverão obter confirmação escrita da situação em que se encontram. Os Estados‑Membros deverão gozar de amplo poder discricionário em relação à forma e ao formato da confirmação escrita, podendo também a incluir nas decisões relacionadas com o regresso tomadas ao abrigo da presente diretiva.»

4

O artigo 2.o da Diretiva 2008/115, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no n.o 1:

«A presente diretiva é aplicável aos nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado‑Membro.»

5

O artigo 3.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe, nos pontos 2 e 4:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

2)

“Situação irregular”, a presença, no território de um Estado‑Membro, de um nacional de país terceiro que não preencha ou tenha deixado de preencher as condições de entrada previstas no artigo 5.o do [Regulamento (CE) n.o 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2006, L 105, p. 1),] ou outras condições aplicáveis à entrada, permanência ou residência nesse Estado‑Membro;

[…]

4)

“Decisão de regresso”, uma decisão ou ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso;

[…]»

6

O artigo 5.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Não repulsão, interesse superior da criança, vida familiar e estado de saúde», dispõe, nomeadamente, que, na aplicação da mesma diretiva, os Estados‑Membros devem respeitar o princípio da não repulsão.

7

O artigo 6.o da Diretiva 2008/115, sob a epígrafe «Decisão de regresso», prevê, no n.o 1:

«Sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.»

Diretiva 2013/32/UE

8

O artigo 9.o da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60), sob a epígrafe «Direito de permanência no Estado‑Membro durante a apreciação do pedido», dispõe, no n.o 1:

«Os requerentes são autorizados a permanecer no Estado‑Membro, unicamente para efeitos do processo, até à pronúncia de uma decisão pelo órgão de decisão nos termos dos procedimentos em primeira instância contemplados no capítulo III. Esse direito de permanência não habilita o requerente de asilo à autorização de residência.»

9

O artigo 36.o da Diretiva 2013/32, sob a epígrafe «Conceito de país de origem seguro», dispõe:

«1.   Um país terceiro designado como país de origem seguro, nos termos da presente diretiva, só pode ser considerado, após uma apreciação individual do pedido, um país de origem seguro para um determinado requerente se:

a)

Esse requerente tiver a nacionalidade desse país; ou

b)

Esse requerente for apátrida e tiver tido anteriormente a sua residência habitual nesse país;

e não tiver invocado nenhum motivo grave para considerar que o país em questão não é um país de origem seguro, tendo em conta as circunstâncias pessoais do requerente no que respeita ao preenchimento das condições para beneficiar da proteção internacional, nos termos da Diretiva 2011/95/UE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9)].

2.   Os Estados‑Membros estabelecem na legislação nacional as regras e modalidades de aplicação do conceito de país de origem seguro.»

10

O artigo 37.o desta diretiva, sob a epígrafe «Designação nacional de países terceiros como países de origem seguros», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros podem manter ou aprovar legislação que preveja, em conformidade com o anexo I, a designação nacional de países de origem seguros para efeitos da apreciação de pedidos de proteção internacional.

2.   Os Estados‑Membros devem avaliar periodicamente a situação nos países terceiros designados como países de origem seguros nos termos do presente artigo.

[…]»

Direito checo

11

O artigo 120.oa, n.o 1, alínea b), da zákon č. 326/1999 Sb., o pobytu cizinců na území České republiky a o změně některých zákonů (Lei n.o 326/1999, relativa à Residência de Estrangeiros no Território da República Checa), na versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «Lei relativa à Residência de Estrangeiros»), dispõe:

«No âmbito de uma decisão de afastamento administrativo, em aplicação dos artigos 119.o e 120.o, a polícia é obrigada a solicitar ao ministério que emita um parecer vinculativo quanto à possibilidade de expulsão do estrangeiro do território (artigo 179.o); tal não é aplicável […] quando o estrangeiro é oriundo de um país de origem seguro, na aceção de outra disposição legal, e não tiver indicado circunstâncias que comprovem que pode estar exposto a um perigo real, na aceção do artigo 179.o»

12

Nos termos do artigo 179.o, n.os 1 e 2, da Lei relativa à Residência de Estrangeiros:

«(1)   O afastamento do território de um cidadão estrangeiro não é possível em caso de receio legítimo de que, no país de origem, o estrangeiro expulso possa efetivamente correr um perigo real se for reenviado para o Estado de que é nacional ou, se for apátrida, para o Estado da sua última residência permanente.

(2)   Para efeitos da presente lei, entende‑se por perigo real o regresso, em violação do artigo 3.o da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»)].»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

Em 30 de setembro de 2021, o recorrente no processo principal, nacional argelino, deslocou‑se a um centro de detenção para nacionais de países terceiros, onde apresentou um pedido de proteção internacional. Uma vez que residia no território checo sem autorização de residência nem documento de viagem válido, a polícia deu início, em 8 de outubro de 2021, a um procedimento de afastamento administrativo contra o recorrente no processo principal.

14

Durante a sua audição, o recorrente no processo principal afirmou que a Argélia não era um país seguro e que, nomeadamente, as autoridades estatais não estavam em condições de proteger os cidadãos argelinos. Referiu estar aí ameaçado de morte por parte da família da vítima de uma luta, no decurso da qual foi testemunha de um homicídio. Alegou que, embora um órgão jurisdicional argelino o tivesse julgado inocente, não podia, por receio desta ameaça, regressar a casa durante o dia, tendo de aguardar que chegasse a noite para o fazer.

15

Através da decisão de regresso em causa, adotada em 12 de outubro de 2021, a Direção da Polícia de Estrangeiros ordenou o afastamento administrativo do recorrente no processo principal e fixou um período de um ano, durante o qual lhe seria recusada a entrada no território dos Estados‑Membros.

16

A Direção da Polícia de Estrangeiros considerou que não havia motivos que impedissem o afastamento do recorrente no processo principal do território checo, uma vez que não havia receio legítimo de um perigo real no país de origem, na aceção do artigo 179.o, n.os 1 e 2, da Lei relativa à Residência de Estrangeiros.

17

A este respeito, a Direção da Polícia de Estrangeiros verificou que a Argélia estava incluída na lista de países de origem seguros constante da vyhláška č. 328/2015 Sb., kterou se provádí zákon o azylu a zákon č. 221/2003 Sb., o dočasné ochraně cizinců (Portaria n.o 328/2015, que executa a Lei sobre o Asilo e a Lei n.o 221/2003, relativa à Proteção Temporária de Estrangeiros (a seguir «Portaria n.o 328/2015»).

18

Tendo o Ministério da Administração Interna negado provimento ao recurso administrativo, interposto pelo recorrente no processo principal, da decisão de regresso em causa por Decisão de 6 de dezembro de 2021, este recorrente interpôs recurso para o Krajský soud v Brně (Tribunal Regional de Brno, República Checa), o órgão jurisdicional de reenvio. Perante este último, alegou, nomeadamente, que esta decisão se baseia em considerações gerais de que a Argélia é um país de origem seguro, por força da Portaria n.o 328/2015, quando deveria ter sido feita uma apreciação individual da sua situação.

19

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se o direito da União se opõe a que, para analisar se uma decisão de regresso tomada relativamente a um nacional de país terceiro viola o princípio da não repulsão, um Estado‑Membro, por um lado, aplique, no âmbito do regime de regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, previsto na Diretiva 2008/115, o conceito de «país de origem seguro», constante do artigo 36.o da Diretiva 2013/32, e, por outro, interprete este princípio da não repulsão no sentido de que abrange exclusivamente a proibição de maus tratos.

20

No que respeita ao conceito de «país de origem seguro», o órgão jurisdicional de reenvio considera que, embora este não figure na Diretiva 2008/115, a sua utilização no âmbito do procedimento de regresso implica simplificações processuais para a polícia, uma vez que esta está dispensada da obrigação de proceder, no caso específico de um nacional de país terceiro repatriado, a uma avaliação concreta da existência de um risco de violação do princípio da não repulsão no país de destino. Todavia, a utilização deste conceito colocaria o nacional de país terceiro em apreço numa situação mais difícil, uma vez que estaria obrigado a ilidir a presunção de segurança do seu país de origem.

21

No que respeita ao princípio da não repulsão, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o artigo 19.o, n.o 2, da Carta e o artigo 3.o da CEDH, conforme interpretação jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, conferem a este princípio um alcance mais amplo do que aquele que decorre do artigo 179.o, n.o 2, da Lei relativa à Residência de Estrangeiros, a qual restringe a sua aplicação à proibição de maus tratos.

22

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a República Checa não cumpriu a obrigação que lhe incumbe, por força do artigo 37.o, n.o 2, da Diretiva 2013/32, de avaliar periodicamente a situação nos países terceiros designados como países de origem seguros nos termos deste artigo. Assim, em seu entender, coloca‑se, especialmente, a questão de saber se, quatro anos após a publicação das fontes em que se baseava a designação da Argélia como país de origem seguro e três anos após a referência daquele país na Portaria n.o 328/2015, a conclusão relativa ao caráter seguro da Argélia continua a ser justificada.

23

Nestas circunstâncias, o Krajský soud v Brně (Tribunal Regional de Brno) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 4.o, n.os 2 e 3, e 5.o in fine da [Diretiva 2008/115], em conjugação com os artigos 2.o, 4.o e 19.o, n.o 2[,] da [Carta], ser interpretados no sentido de que se opõem a que, ao analisar se uma decisão de regresso na aceção do artigo 6.o da [Diretiva 2008/115], dá origem à violação do princípio da não repulsão, se aplique o conceito de país de origem seguro, na aceção dos artigos 36.o e 37.o da [Diretiva 2013/32], em conjugação com uma definição restritiva do princípio da não repulsão no sentido de que abrange exclusivamente a proibição de maus tratos na aceção do artigo 4.o da [Carta] e do artigo 3.o da [CEDH]?»

Quanto à questão prejudicial

24

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.os 2 e 3, e o artigo 5.o da Diretiva 2008/115, lidos em conjugação com o artigo 2.o, o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que o princípio da não repulsão se opõe à adoção de uma decisão de regresso relativamente a um nacional de país terceiro em situação irregular no território de um Estado‑Membro quando este nacional alegue, perante as autoridades deste último, que sofreria, no seu país de origem, ameaças à sua vida por parte de particulares e se este Estado‑Membro pode recorrer ao conceito de «país de origem seguro», na aceção dos artigos 36.o e 37.o da Diretiva 2013/32, para apreciar o risco de uma violação deste princípio em tais circunstâncias.

25

Nas suas observações escritas, a Comissão Europeia manifestou dúvidas a respeito da admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial. Em especial, observou que parece resultar dos autos do processo nacional que o pedido de proteção internacional não foi examinado pelas autoridades competentes antes do início do procedimento de afastamento, caso em que as disposições nacionais, que transpõem a Diretiva 2008/115, não deveriam, de modo nenhum, ter sido aplicadas no caso em apreço. A Comissão salientou também que, no âmbito do recurso interposto da decisão de regresso em causa no órgão jurisdicional de reenvio, o recorrente alegou, nomeadamente, que tinha sido erradamente instaurado um procedimento de afastamento contra si, quando o seu pedido de proteção internacional ainda não tinha sido analisado.

26

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, em 30 de setembro de 2021, o recorrente no processo principal apresentou um pedido de proteção internacional à República Checa e que, em 12 de outubro de 2021, a Direção da Polícia de Estrangeiros adotou, a seu respeito, a decisão de regresso em causa, acompanhada de uma proibição de entrada.

27

Na sequência de dois pedidos de informações do Tribunal de Justiça, de 26 de janeiro e de 1 de março de 2023, nos termos do artigo 62.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio confirmou, nomeadamente, que, por um lado, por Decisão de 25 de novembro de 2021, o Ministério da Administração Interna indeferiu o pedido de proteção internacional do recorrente no processo principal e, por outro, no âmbito do recurso que lhe foi submetido contra a decisão de regresso em causa, este recorrente alegou, designadamente, que, tendo em conta o seu pedido de proteção internacional, não devia ter sido sujeito a um procedimento de afastamento.

28

A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob sua própria responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional, nomeadamente, se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou quando o problema for hipotético (Acórdão de 12 de janeiro de 2023, Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság, C‑132/21, EU:C:2023:2, n.o 24 e jurisprudência referida).

29

Ora, no caso em apreço, a Direção da Polícia de Estrangeiros adotou uma decisão de regresso em relação ao recorrente no processo principal. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio conhece de um litígio que tem por objeto a legalidade desta decisão e a questão submetida é relativa à interpretação de disposições da Diretiva 2008/115 e da Diretiva 2013/32 que são pertinentes atendendo aos fundamentos de ilegalidade da referida decisão e que são, segundo a decisão de reenvio, invocados pelo recorrente no processo principal. Assim, não decorre de forma manifesta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a interpretação solicitada do direito da União não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou, ainda, que o problema suscitado pelo órgão jurisdicional de reenvio seja hipotético.

30

Por conseguinte, contrariamente ao que a Comissão sugere, a questão submetida não é inadmissível.

31

Todavia, segundo jurisprudência constante, no contexto do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído no artigo 267.o TFUE, incumbe ao Tribunal de Justiça fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a apreciação do litígio que lhe foi submetido, quer o órgão jurisdicional de reenvio lhes tenha ou não feito referência no enunciado da sua questão (Acórdão de 21 de setembro de 2017, Aviva, C‑605/15, EU:C:2017:718, n.o 21 e jurisprudência referida).

32

No caso em apreço, em conformidade com esta jurisprudência, há que abordar, previamente, a questão da própria aplicabilidade da Diretiva 2008/115 em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, no qual a decisão de regresso é adotada antes da pronúncia da decisão de primeira instância que indefere o pedido de proteção internacional.

33

Antes de mais, há que salientar que a ordem para abandonar o território em causa no processo principal constitui uma «decisão de regresso», na aceção do artigo 3.o, ponto 4, da Diretiva 2008/115, ou seja, uma decisão ou um ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare um dever de regresso.

34

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, esta é aplicável aos nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado‑Membro. No que respeita, mais especificamente, às decisões de regresso, o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva prevê que os Estados‑Membros devem, em princípio, emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.

35

Para determinar se pode ser adotada uma decisão de regresso relativamente a um nacional de um país terceiro durante o período que decorre entre a apresentação por este de um pedido de proteção internacional e a pronúncia da decisão de primeira instância sobre este pedido, importa, por conseguinte, examinar se este nacional se encontra, durante este período, em situação irregular, na aceção da Diretiva 2008/115 (v., por analogia, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 38).

36

A este respeito, resulta da definição do conceito de «situação irregular», que figura no artigo 3.o, ponto 2, desta diretiva, que qualquer nacional de um país terceiro que se encontre no território de um Estado‑Membro sem preencher as condições de entrada, permanência ou residência no mesmo está, por este simples facto, em situação irregular (Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 39 e jurisprudência referida).

37

No entanto, em conformidade com o artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32, um requerente de proteção internacional é autorizado a permanecer no território do Estado‑Membro onde apresentou este pedido, unicamente para efeitos do processo, até à pronúncia da decisão de primeira instância que indefere o referido pedido. Embora este direito de permanência nesse território não constitua, segundo os termos expressos desta disposição, um direito a uma autorização de residência, decorre, porém, nomeadamente do considerando 9 da Diretiva 2008/115, que o referido direito de permanência obsta a que a situação de um requerente de proteção internacional seja qualificada como «irregular», nos termos desta diretiva, durante o período que decorre entre a apresentação do seu pedido de proteção internacional e a pronúncia da decisão de primeira instância sobre o mesmo. [v., neste sentido, Acórdão de 16 de novembro de 2021, Comissão/Hungria (Criminalização da assistência aos requerentes de asilo), C‑821/19, EU:C:2021:930, n.o 137 e jurisprudência referida].

38

Como resulta inequivocamente da redação do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32, o direito de permanência no Estado‑Membro onde o requerente apresentou o pedido de proteção internacional, previsto nesta disposição, cessa com a pronúncia, pelas autoridades competentes deste Estado‑Membro, da decisão de primeira instância que indefere o pedido do requerente. Na falta de um direito ou de uma autorização de residência concedida ao requerente com base noutro fundamento jurídico, nomeadamente ao abrigo do artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2008/115, que permita ao requerente, cujo pedido tenha sido indeferido, preencher as condições de entrada, de permanência ou de residência no Estado‑Membro em questão, esta decisão de indeferimento tem como consequência que, assim que é adotada, tal requerente deixa de preencher estas condições, pelo que a sua situação passa a ser irregular (v., por analogia, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 41).

39

Por conseguinte, uma vez que durante o período compreendido entre a apresentação do pedido de proteção internacional e a pronúncia da decisão de primeira instância relativa ao mesmo, a existência de uma autorização de permanência exclui a irregularidade da permanência do requerente e, portanto, a aplicação da Diretiva 2008/115 a seu respeito, no decurso deste período não pode ser adotada uma decisão de regresso a seu respeito (v., neste sentido, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.os 46, 58 e 59).

40

Em contrapartida, pode, em princípio, ser adotada uma decisão de regresso contra o interessado, logo que ocorra o indeferimento do pedido de proteção internacional ou cumulativamente com este num único ato administrativo (v., neste sentido, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 59).

41

Não obstante, não se pode inferir das considerações expostas nos n.os 33 a 40 do presente acórdão que, previamente ao seu pedido de proteção internacional, na hipótese de a decisão de regresso ter por objeto afastar um nacional de país terceiro devido ao caráter irregular da sua situação, esta circunstância justifica que a autoridade competente do Estado‑Membro, ao qual este nacional de país terceiro apresentou um pedido de proteção internacional, possa adotar esta decisão de regresso após a apresentação deste pedido, mas antes da pronúncia de uma decisão em primeira instância sobre o mesmo.

42

É certo que, como o Tribunal de Justiça já declarou, resulta do considerando 12 da Diretiva 2008/115 que esta é aplicável a nacionais de países terceiros que, embora em situação irregular, estejam autorizados a permanecer legalmente no território do Estado‑Membro em causa, uma vez que ainda não podem ser repatriados. Todavia, como decorre do n.o 37 do presente acórdão, o artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32, lido à luz do considerando 9 da Diretiva 2008/115, deve ser interpretado no sentido de que o direito de o requerente de proteção internacional de permanecer no território do Estado‑Membro em causa durante o período que decorre entre a apresentação do seu pedido e a pronúncia da decisão de primeira instância sobre este pedido obsta a que, durante este período, a situação do interessado seja qualificada de «irregular», na aceção da Diretiva 2008/115 (v., neste sentido, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.os 46 e 47). A este respeito, é irrelevante que a decisão de regresso seja relativa ao período, que precede a apresentação do seu pedido de proteção internacional, durante o qual este requerente se encontrava em situação irregular no território do Estado‑Membro em causa.

43

Tendo em conta as considerações expostas nos n.os 33 à 42 do presente acórdão, não há que responder à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio de saber se as disposições do direito da União e, em especial, as da Diretiva 2008/115, referidas no n.o 24 do presente acórdão, se opõem à adoção de uma decisão de regresso relativamente a um nacional de país terceiro em situação irregular no território de um Estado‑Membro, nas circunstâncias descritas neste mesmo número do presente acórdão e se este Estado‑Membro pode recorrer ao conceito de «país de origem seguro», na aceção dos artigos 36.o e 37.o da Diretiva 2013/32, para efeitos da apreciação do risco de uma violação do princípio da não repulsão em caso de adoção de tal decisão.

44

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder ao pedido de decisão prejudicial que o artigo 2.o, n.o 1, e o artigo 3.o, ponto 2, da Diretiva 2008/115, lidos à luz do considerando 9 desta diretiva e em conjugação com o artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que seja adotada uma decisão de regresso, ao abrigo do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, em relação a um nacional de país terceiro depois de este ter apresentado um pedido de proteção internacional, mas antes de ter sido proferida uma decisão em primeira instância sobre este pedido, sendo este entendimento válido independentemente do período de residência fixado na referida decisão de regresso.

Quanto às despesas

45

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

O artigo 2.o, n.o 1, e o artigo 3.o, ponto 2, da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, lidos à luz do considerando 9 desta diretiva e em conjugação com o artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

se opõem a que seja adotada uma decisão de regresso, ao abrigo do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, em relação a um nacional de país terceiro depois de este ter apresentado um pedido de proteção internacional, mas antes de ter sido proferida uma decisão em primeira instância sobre este pedido, sendo este entendimento válido independentemente do período de residência fixado na referida decisão de regresso.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: checo.