ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

29 de julho de 2024 (*)

« Reenvio prejudicial — Política social — Artigo 157.o TFUE — Igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional — Diretiva 2006/54/CE — Artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e artigo 4.o, primeiro parágrafo — Proibição de discriminação indireta em razão do sexo — Trabalho a tempo parcial — Diretiva 97/81/CE — Acordo‑Quadro relativo ao trabalho a tempo parcial — Cláusula 4 — Proibição de tratamento dos trabalhadores a tempo parcial em condições menos favoráveis do que os trabalhadores comparáveis a tempo inteiro — Pagamento de um complemento salarial apenas pelas horas extraordinárias prestadas pelos trabalhadores a tempo parcial que excedam o horário normal de trabalho fixado para os trabalhadores a tempo inteiro »

Nos processos apensos C‑184/22 e C‑185/22,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), por Decisões de 28 de outubro de 2021, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 10 de março de 2022, nos processos

IK (C‑184/22),

CM (C‑185/22)

contra

KfH Kuratorium für Dialyse und Nierentransplantation eV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb, A. Kumin (relator) e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de IK, por J. Windhorst, Rechtsanwältin,

–        em representação da KfH Kuratorium für Dialyse und Nierentransplantation eV, por K. M. Weber, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo Dinamarquês, por J. F. Kronborg, C. Maertens e V. Pasternak Jørgensen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo Norueguês, por T. Hostvedt Aarthun e I. Thue, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por D. Recchia, E. Schmidt e A. Szmytkowska, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 157.o TFUE, do artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e do artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional (JO 2006, L 204, p. 23), bem como da cláusula 4, n.os 1 e 2, do Acordo‑Quadro relativo ao trabalho a tempo parcial, celebrado em 6 de junho de 1997 (a seguir «acordo‑quadro»), que figura em anexo à Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO 1998, L 14, p. 9).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem IK (C‑184/22) e CM (C‑185/22) à sua entidade patronal, a KfH Kuratorium für Dialyse und Nierentransplantation eV, a respeito do pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias prestadas que excedam o horário normal de trabalho acordado nos seus contratos de trabalho.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 2006/54

3        O considerando 30 da Diretiva 2006/54 enuncia:

«[…] É […] necessário clarificar que a apreciação dos factos constitutivos da presunção de discriminação direta ou indireta continua a incumbir à instância nacional competente, de acordo com o direito nacional e/ou as práticas nacionais. […]»

4        O artigo 2.o, n.o 1, alíneas b) e e), da Diretiva 2006/54 dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)      “Discriminação indireta”: sempre que uma disposição, critério ou prática, aparentemente neutro, seja suscetível de colocar pessoas de um determinado sexo numa situação de desvantagem comparativamente com pessoas do outro sexo, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objetivamente justificado por um objetivo legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários;

[…]

e)      “Remuneração”: o salário ou vencimento ordinário, de base ou mínimo, e quaisquer outras regalias pagas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie, pela entidade patronal ao trabalhador pelo seu trabalho;»

5        O artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Proibição da discriminação», prevê, no seu primeiro parágrafo:

«Para um mesmo trabalho ou para um trabalho a que for atribuído um valor igual, é eliminada, no conjunto dos elementos e condições de remuneração, a discriminação, direta ou indireta, em razão do sexo.»

 AcordoQuadro

6        A cláusula 1, alínea a), do acordo‑quadro prevê que este tem por objeto «garantir a eliminação das discriminações em relação aos trabalhadores a tempo parcial e melhorar a qualidade do trabalho a tempo parcial».

7        A cláusula 2, n.o 1, do acordo‑quadro estipula:

«O presente acordo aplica‑se aos trabalhadores a tempo parcial, com contrato ou relação de trabalho definidos pela legislação, pelas convenções coletivas ou pelas práticas vigentes em cada Estado‑Membro.»

8        Nos termos da cláusula 3 do acordo‑quadro:

«1)      Para efeitos do presente acordo, por “trabalhador a tempo parcial” entende‑se o assalariado cujo tempo normal de trabalho, calculado numa base semanal ou como média ao longo de um período de emprego até um ano, é inferior ao tempo normal de trabalho de um trabalhador comparável a tempo inteiro.

2)      Para efeitos do presente acordo, “trabalhador comparável a tempo inteiro” significa um trabalhador a tempo inteiro do mesmo estabelecimento, com o mesmo contrato ou relação de emprego e que exerça funções iguais ou semelhantes, tendo em devida conta outros fatores, como antiguidade, qualificações, conhecimentos, etc.

[…]»

9        A cláusula 4 do acordo‑quadro, intitulada «Princípio de não discriminação», enuncia, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      No que respeita às condições de emprego, os trabalhadores a tempo parcial não devem ser tratados em condições menos favoráveis do que os trabalhadores comparáveis a tempo inteiro unicamente pelo facto de trabalharem a tempo parcial, a menos que, por razões objetivas, a diferença de tratamento se justifique.

2.      Sempre que apropriado, aplicar‑se‑á o princípio pro rata temporis

 Direito alemão

10      Nos termos do § 1 da Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz (Lei Geral relativa à Igualdade de Tratamento), de 14 de agosto de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 1897), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais (a seguir «AGG»), sob a epígrafe «Objetivo da lei»:

«A presente lei tem como objetivo prevenir ou eliminar uma desvantagem em razão da raça ou da origem étnica, do sexo, da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da identidade sexual.»

11      O § 7 da AGG estabelece que os trabalhadores não podem ser discriminados por nenhum dos motivos enunciados no § 1, incluindo em razão do sexo.

12      O § 15 da referida lei, sob a epígrafe «Indemnização e ressarcimento de danos», tem a seguinte redação:

«(1)      Em caso de violação da proibição de discriminação, a entidade patronal é obrigada a indemnizar o dano causado por esta violação. […]

(2)      O trabalhador pode pedir uma indemnização pecuniária adequada por um dano não patrimonial. […]»

13      O § 3 da Gesetz zur Förderung der Entgelttransparenz zwischen Frauen und Männern (Entgelttransparenzgesetz) (Lei relativa à Promoção da Transparência Salarial entre Mulheres e Homens), de 30 de junho de 2017 (BGBl. 2017 I, p. 2152), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais, sob a epígrafe «Proibição da discriminação salarial direta e indireta em razão do sexo» enuncia, no seu n.o 1:

«É proibida a discriminação direta ou indireta em razão do sexo relativamente a todos os elementos e todas as condições de remuneração, sempre que o trabalho prestado for igual ou equivalente.»

14      O § 7, desta lei, sob a epígrafe «Obrigação de igualdade de remunerações», prevê:

«Nas relações laborais não é permitido acordar‑se ou pagar‑se uma remuneração mais reduzida, em razão do sexo do trabalhador, do que a remuneração acordada com ou paga a um trabalhador do sexo oposto, sempre que o trabalho prestado for igual ou equivalente.»

15      O § 4 da Gesetz über Teilzeitarbeit und befristete Arbeitsverträge (Lei relativa ao Contrato de Trabalho a Tempo Parcial e ao Trabalho a Termo), de 21 de dezembro de 2000 (BGBl. 2000 I, p. 1966), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais, intitulado «Proibição de discriminação», dispõe, no seu n.o 1:

«Um trabalhador a tempo parcial não deve ser tratado, pelo facto de prestar trabalho a tempo parcial, em condições menos favoráveis do que um trabalhador comparável a tempo inteiro, salvo se existirem razões objetivas que justifiquem um tratamento diferente. O trabalhador a tempo parcial deve obter uma remuneração ou outra prestação a título oneroso divisível que corresponda, pelo menos, à quota‑parte do horário do seu trabalho relativamente ao horário de trabalho de um trabalhador comparável a tempo inteiro.»

16      O § 10 da Manteltarifvertrag (Convenção Coletiva Geral) (a seguir «MTV»), celebrada entre o Vereinte Dienstleistungsgewerkschaft eV (ver.di), o Sindicato Unitário do Setor dos Serviços, e a recorrida nos processos principais, sob a epígrafe «Tempo de trabalho», prevê:

«1.      O horário normal de trabalho semanal de um trabalhador a tempo inteiro é, excluindo os intervalos, em média, de 38,5 horas.

[…]

O horário normal de trabalho diário de um trabalhador a tempo inteiro é, em média, de 7 horas e 42 minutos.

[…]

6.      Se o volume de trabalho exigir que sejam prestadas horas extraordinárias, deve ser dada a respetiva ordem. […] As horas extraordinárias devem ser limitadas a situações urgentes e distribuídas de maneira tão uniforme quanto possível por todos os trabalhadores.

7.      As horas extraordinárias são horas de trabalho impostas que excedem o horário normal de trabalho […], nos termos do plano de serviço ou da prática da empresa. São objeto de complemento salarial, em conformidade com o § 13, n.o 1, as horas extraordinárias prestadas que excedam o horário de trabalho mensal de um trabalhador a tempo inteiro e que não podem ser compensados nesse mesmo mês de calendário através da concessão de folgas.

[…]»

17      O § 13 da MTV, sob a epígrafe «Remuneração das horas extraordinárias, complementos salariais e compensação pelos serviços prestados fora do horário normal» enuncia:

«1.      A retribuição das horas extraordinárias, em conformidade com o § 10, n.o 7, da MTV corresponde, por cada hora extraordinária, a 1/167 do salário mensal acordado. O complemento salarial pelas horas extraordinárias, em conformidade com o § 10, n.o 7, segundo período, é de 30 %.

[…]»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

18      A recorrida nos processos principais é um prestador de serviços ambulatórios de diálise que opera em todo o território da República Federal da Alemanha.

19      IK e CM, que trabalham na KfH Kuratorium für Dialyse und Nierentransplantation eV como auxiliares de enfermagem a tempo parcial, são obrigadas a realizar, por força do seu contrato de trabalho, respetivamente, 40 % e 80 % do horário normal de trabalho semanal prestado por um trabalhador a tempo inteiro, que é fixado em 38,5 horas pelo § 10 da MTV.

20      Considerando que a recorrida nos processos principais é obrigada a pagar‑lhes um complemento salarial pelas horas extraordinárias prestadas, em conformidade com o § 10, n.o 7, da MTV, ou a registá‑las nas suas contas de tempo de trabalho, num crédito correspondente ao complemento salarial devido, as recorrentes nos processos principais intentaram uma ação no Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho, Alemanha), com vista a obterem um crédito de tempo de trabalho correspondente ao complemento salarial devido, bem como uma indemnização ao abrigo do § 15, n.o 2, da AGG.

21      Em apoio da sua ação, as recorrentes nos processos principais alegaram que, pelo facto de não lhes ter pago um complemento salarial pelas horas extraordinárias prestadas que excedam o horário de trabalho acordado no seu contrato de trabalho e de não ter registado, nas suas contas de tempo de trabalho, um crédito de tempo correspondente ao complemento salarial que lhes é devido, a recorrida nos processos principais as tratou em condições menos favoráveis do que as trabalhadoras a tempo inteiro por estas trabalharem a tempo parcial. Além disso, alegaram ter sofrido uma discriminação indireta em razão do sexo, uma vez que a recorrida nos processos principais emprega maioritariamente mulheres a tempo parcial.

22      Tendo o Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho) julgado estas ações improcedentes, as recorrentes nos processos principais interpuseram recurso das sentenças desse órgão jurisdicional no Landesarbeitsgericht Hessen (Tribunal Superior do Trabalho de Hessen, Alemanha), que condenou a recorrida nos processos principais a creditar as contas de tempo de trabalho destas últimas correspondentes ao complemento salarial devido pelas horas extraordinárias que prestaram, mas julgou improcedente o pedido das recorrentes nos processos principais destinado ao pagamento de uma indemnização ao abrigo do § 15, n.o 2, da AGG.

23      As recorrentes nos processos principais interpuseram recurso de «Revision» no Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio, com vista a obterem o pagamento da referida indemnização. A recorrida nos processos principais, por sua vez, interpôs neste órgão jurisdicional um recurso subordinado da sua condenação em creditar as respetivas contas de tempo de trabalho.

24      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para decidir sobre o direito à indemnização, na aceção do § 15 da AGG, das recorrentes nos processos principais, é necessário saber se estas foram objeto de uma discriminação em razão do sexo, em violação do § 7 da AGG.

25      Considera também que, para se pronunciar sobre o recurso subordinado interposto pela recorrida nos processos principais contra a sua condenação em creditar as contas de tempo de trabalho das recorrentes nos processos principais, é determinante saber se estas foram objeto de discriminação pelo facto de serem trabalhadoras a tempo parcial.

26      Nestas condições, o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, redigidas de maneira idêntica nos processos apensos C‑184/22 e C‑185/22:

«1)      Devem o artigo 157.o TFUE e os artigos 2.o, n.o 1, alínea b), e 4.o, [primeiro parágrafo], da Diretiva [2006/54] ser interpretados no sentido de que um regime convencional nacional que apenas prevê o pagamento de [um complemento] por horas extraordinárias relativamente ao tempo trabalhado a mais sobre o horário de trabalho normal de um trabalhador a tempo inteiro constitui uma diferença de tratamento entre trabalhadores a tempo inteiro e trabalhadores a tempo parcial?

2)      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à primeira questão:

a)      Devem o artigo 157.o TFUE e os artigos 2.o, n.o 1, alínea b), e 4.o, [primeiro parágrafo], da Diretiva [2006/54], ser interpretados no sentido de que, nesse caso, para que se possa concluir que a diferença de tratamento afeta um número significativamente mais elevado de mulheres do que de homens, não basta que entre os trabalhadores a tempo parcial haja um número significativamente mais elevado de mulheres do que de homens, sendo, além disso, necessário que entre os trabalhadores a tempo inteiro haja um número significativamente mais elevado de homens ou que estes perfaçam uma parte [significativamente] maior da totalidade dos trabalhadores?

b)      Impõe‑se outra conclusão, também em relação ao artigo 157.o TFUE e à [Diretiva 2006/54], do que foi declarado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 26 de janeiro de 2021, Szpital Kliniczny im. dra J. Babińskiego Samodzielny Publiczny Zakład Opieki Zdrowotnej w Krakowie [(C‑16/19, EU:C:2021:64)], n.os 25 a 36, que considerou que a diferença de tratamento num grupo de trabalhadores com deficiência também pode ser abrangida pelo conceito de “discriminação” na aceção do artigo 2.o da Diretiva 2000/78/CE [do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p.16)]?

3)      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à primeira questão e responda [à segunda questão, alíneas a) e b),] no sentido de que [em casos como os dos processos principais] é possível considerar que a diferença de tratamento ao nível da remuneração afeta um número significativamente mais elevado de mulheres do que de homens: devem o artigo 157.o TFUE e os artigos 2.o, n.o 1, alínea b), e 4.o, [primeiro parágrafo], da Diretiva [2006/54], ser interpretados no sentido de que pode constituir um objetivo legítimo que os parceiros sociais estabeleçam um regime — como o referido na primeira questão — através do qual, por um lado, se prevê desincentivar a entidade patronal de ordenar a prestação de horas extraordinárias, compensando os trabalhadores com um complemento por horas extraordinárias sempre que trabalhem para além do acordado, mas que, por outro lado, se destina simultaneamente a evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam tratados de uma maneira menos favorável do que os trabalhadores a tempo parcial, prevendo que só [é devido um complemento] em relação às horas extraordinárias que excedam o tempo de trabalho mensal de um trabalhador a tempo inteiro?

4)      Deve a cláusula 4, n.o 1, do [Acordo‑Quadro] anexo à [Diretiva 97/81], ser interpretada no sentido de que um regime convencional nacional que apenas prevê o pagamento de [um complemento] por horas extraordinárias relativamente ao tempo trabalhado a mais sobre o horário de trabalho normal de um trabalhador a tempo inteiro constitui uma diferença de tratamento entre trabalhadores a tempo inteiro e trabalhadores a tempo parcial?

5)      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à quarta questão: deve a cláusula 4, n.o 1, do [Acordo‑Quadro] anexo à [Diretiva 97/81], ser interpretada no sentido de que pode constituir uma razão objetiva que os parceiros sociais estabeleçam um regime — como o referido na quarta questão — através do qual, por um lado, se prevê desincentivar a entidade patronal de ordenar a prestação de horas extraordinárias, compensando os trabalhadores com um complemento por horas extraordinárias sempre que trabalhem para além do acordado, mas que, por outro lado, se destina simultaneamente a evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam tratados de maneira menos favorável do que os trabalhadores a tempo parcial, através da previsão de que só [é devido um complemento] em relação às horas extraordinárias que excedam o tempo de trabalho mensal de um trabalhador a tempo inteiro?»

27      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de abril de 2022, os processos C‑184/22 e C‑185/22 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à quarta e quinta questões

28      Com as quarta e quinta questões, que importa examinar em conjunto e em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a cláusula 4, n.os 1 e 2, do acordo‑quadro deve ser interpretada no sentido de que uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho previsto para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui um tratamento «menos favorável» dos trabalhadores a tempo parcial, na aceção desta cláusula 4, n.o 1, e se este tratamento pode ser justificado com a prossecução, por um lado, do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho e, por outro, do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

29      A título preliminar, há que observar que não é contestado, no caso em apreço, que as recorrentes nos processos principais são trabalhadoras a tempo parcial, na aceção da cláusula 3 do acordo‑quadro. Também não é contestado que a MTV se aplica aos seus contratos de trabalho.

30      No que respeita à interpretação da cláusula 4 do acordo‑quadro, há que recordar, antes de mais, que este último visa, por um lado, promover o trabalho a tempo parcial e, por outro, eliminar as discriminações entre os trabalhadores a tempo parcial e os trabalhadores a tempo inteiro, como resulta expressamente da cláusula 1, alínea a), do acordo‑quadro (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 36 e jurisprudência referida).

31      Atendendo a estes objetivos, a cláusula 4 do acordo‑quadro deve ser entendida como a expressão de um princípio de direito social da União que não pode ser interpretado de modo restritivo (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 38 e jurisprudência referida).

32      Em seguida, em conformidade com o objetivo de eliminação das discriminações entre trabalhadores a tempo parcial e trabalhadores a tempo inteiro, enunciado na cláusula 1, alínea a), do acordo‑quadro, a cláusula 4 deste acordo‑quadro, opõe‑se, no que respeita às condições de emprego, a que os trabalhadores a tempo parcial sejam tratados em condições «menos favoráveis» do que os trabalhadores comparáveis a tempo inteiro unicamente pelo facto de trabalharem a tempo parcial, a menos que, por razões objetivas, a diferença de tratamento se justifique (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 39 e jurisprudência referida).

33      Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que esta cláusula se destina a aplicar o princípio da não discriminação aos trabalhadores a tempo parcial para impedir que uma relação laboral desta natureza seja utilizada por um empregador para privar estes trabalhadores de direitos que são reconhecidos aos trabalhadores a tempo inteiro (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 40 e jurisprudência referida).

34      Assim, em primeiro lugar, quanto à questão de saber se, no caso em apreço, o complemento salarial pelas horas extraordinárias está abrangido pelo conceito de «condições de emprego» referido na cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro, há que salientar que o Tribunal de Justiça já declarou que estas condições englobam as condições relativas às remunerações (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 41 e jurisprudência referida).

35      Em segundo lugar, quanto à comparabilidade das situações das pessoas que trabalham a tempo inteiro como auxiliares de enfermagem e as que trabalham a tempo parcial como auxiliares de enfermagem, como as recorrentes nos processos principais, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, para apreciar se os trabalhadores exercem funções iguais ou semelhantes, na aceção da cláusula 3, n.o 2, do acordo‑quadro, cumpre averiguar se, atendendo a uma globalidade de fatores, como a natureza do trabalho, as condições de formação e as condições de trabalho, se pode considerar que esses trabalhadores se encontram numa situação comparável (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 44 e jurisprudência referida).

36      Se se provar que, quando trabalham, os trabalhadores a tempo parcial exercem as mesmas funções que os trabalhadores a tempo inteiro contratados pelo mesmo empregador ou ocupam o mesmo posto de trabalho que estes, em princípio há que considerar comparáveis as situações destas duas categorias de trabalhadores (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 45 e jurisprudência referida).

37      No entanto, a este respeito, há que recordar que cabe ao órgão jurisdicional nacional, o único competente para apreciar os factos, determinar se, tendo em conta a natureza concreta das atividades concretamente exercidas pelos trabalhadores em questão, lhes pode ser atribuído um valor igual (Acórdão de 3 de junho de 2021, Tesco Stores, C‑624/19, EU:C:2021:429, n.o 30 e jurisprudência referida).

38      No caso em apreço, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece que a recorrida nos processos principais não contesta que as prestações efetuadas pelas recorrentes nos processos principais são comparáveis às efetuadas pelos trabalhadores que emprega a tempo inteiro.

39      Em terceiro lugar, quanto à questão de saber se existe uma diferença de tratamento entre as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial, como as recorrentes nos processos principais, e as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro, resulta das decisões de reenvio que um auxiliar de enfermagem a tempo parcial recebe um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho semanal de uma pessoa que trabalha como auxiliar de enfermagem a tempo inteiro, que, no caso em apreço, segundo o § 10, n.o 1 da MTV, é de 38,5 horas.

40      Assim, uma pessoa que trabalhe como auxiliar de enfermagem a tempo parcial deve cumprir o mesmo número de horas de trabalho que uma pessoa que trabalha como auxiliar de enfermagem a tempo inteiro para beneficiar do complemento salarial pelas horas extraordinárias, independentemente do horário normal de trabalho acordado individualmente no contrato de trabalho desta pessoa que trabalha como auxiliar de enfermagem a tempo parcial, pelo que não pode atingir, ou com uma probabilidade claramente menor do que uma pessoa que trabalha como auxiliar de enfermagem a tempo inteiro, o número de horas de trabalho exigido para beneficiar do referido complemento salarial.

41      Embora, como refere o órgão jurisdicional de reenvio, a remuneração pelas horas extraordinárias pareça igual para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial e para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro, uma vez que o direito a este complemento se constitui apenas acima do limiar de 38,5 horas de trabalho semanal para todas estas pessoas, no entanto, há que salientar que a fixação deste limiar uniforme tanto para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro como para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial representa, para estas últimas, tendo em conta o horário normal de trabalho acordado nos seus contratos, um fardo maior, dado que pelo menos uma parte das horas prestadas que excedem este horário normal de trabalho, ainda que remuneradas, não dão direito a um complemento. Com efeito, as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro recebem um complemento pelas horas extraordinárias a partir da primeira hora de trabalho prestada que exceda o seu horário normal de trabalho, a saber, 38,5 horas semanais de trabalho, ao passo que as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial não recebem um complemento pelas horas de trabalho que excedam o horário normal de trabalho acordado nos seus contratos de trabalho, mas abaixo do horário normal de trabalho fixado para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro.

42      Assim, as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial, que prestem horas de trabalho que excedam o horário normal de trabalho acordado nos seus contratos de trabalho sem beneficiarem de um complemento salarial, são objeto de um tratamento desigual relativamente às pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro, que recebem um complemento salarial pelas horas prestadas que excedam as 38,5 horas semanais de trabalho (v., neste sentido, Acórdão de 27 de maio de 2004, Elsner‑Lakeberg C‑285/02, EU:C:2004:320, n.o 17).

43      Ora, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, a remuneração dos trabalhadores a tempo parcial deve ser equivalente à dos trabalhadores a tempo inteiro, sob reserva da aplicação do princípio pro rata temporis enunciado na cláusula 4, n.o 2, do acordo‑quadro (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 53 e jurisprudência referida).

44      Consequentemente, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que, para as pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo parcial, como as recorrentes nos processos principais, o número de horas de trabalho acima do qual recebem um complemento salarial não é reduzido pro rata temporis em função do horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho, afigura‑se que estas são objeto de um tratamento «menos favorável» em relação às pessoas que trabalham como auxiliares de enfermagem a tempo inteiro, proibido pela cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro, a menos que esta diferença de tratamento se justifique por uma «razão objetiva», na aceção desta cláusula (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 49 e jurisprudência referida).

45      A este respeito, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, tendo em conta todos os elementos pertinentes, se a diferença de tratamento em causa nos processos principais que tenha constatado pode ser considerada justificada por uma «razão objetiva».

46      Nesta perspetiva, há que recordar que, embora, no âmbito do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça não tenha competência para apreciar os factos e aplicar as normas do direito da União a um caso determinado, incumbe‑lhe fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todas as indicações necessárias para o guiar nessa apreciação (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 55 e jurisprudência referida).

47      A este respeito, há que salientar que o conceito de «razões objetivas», na aceção da cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro, exige que a diferença de tratamento constatada seja justificada pela existência de elementos precisos e concretos, que caracterizem a condição de emprego em questão, no contexto específico em que esta se insere, e com base em critérios objetivos e transparentes, para poder garantir que esta diferença responde a uma verdadeira necessidade, que é suscetível de alcançar o objetivo prosseguido e que é necessária para esse efeito. Estes elementos podem resultar, nomeadamente, da natureza particular das tarefas para cuja realização foram celebrados contratos a tempo parcial e das características inerentes às mesmas ou, eventualmente, da prossecução de um objetivo legítimo de política social de um Estado‑Membro (Acórdão de 19 de outubro de 2023, Lufthansa CityLine, C‑660/20, EU:C:2023:789, n.o 58 e jurisprudência referida).

48      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, por um lado, o objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado para estes trabalhadores e, por outro, o objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial são suscetíveis de constituir «razões objetivas», na aceção da cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro.

49      No que respeita ao primeiro destes objetivos, há que salientar que a aplicação da regulamentação nacional em causa nos processos principais tem como consequência que as horas prestadas pelos trabalhadores a tempo parcial que excedam o horário normal de trabalho acordado nos seus contratos de trabalho sem ultrapassar o horário normal de trabalho fixado para um trabalhador a tempo inteiro, ou seja, 38,5 horas semanais, constituam um encargo financeiro menos significativo para a entidade patronal que o mesmo número de horas extraordinárias prestadas por um trabalhador a tempo inteiro, uma vez que estas horas não dão origem a um complemento. Assim, para os trabalhadores a tempo parcial, esta regulamentação produz o efeito contrário ao pretendido, uma vez que, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, incentiva, na realidade, a entidade patronal a ordenar a prestação de horas extraordinárias aos trabalhadores a tempo parcial e não aos trabalhadores a tempo inteiro.

50      Daqui resulta que a fixação de um limiar uniforme para os trabalhadores a tempo parcial e para os trabalhadores a tempo inteiro, quanto à concessão de um complemento salarial pelas horas extraordinárias, não é, no caso de trabalhadores a tempo parcial, suscetível de alcançar o objetivo de dissuadir as entidades patronais de ordenarem aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias.

51      No que respeita ao segundo dos objetivos referidos no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que este objetivo visa evitar um tratamento alegadamente desfavorável dos trabalhadores a tempo inteiro em relação aos trabalhadores a tempo parcial. O raciocínio subjacente a este objetivo baseia‑se na premissa segundo a qual o facto de obrigar uma entidade patronal que pede a um trabalhador a tempo parcial que preste horas extraordinárias a pagar a este trabalhador um complemento salarial pelas horas extraordinárias a contar da primeira hora de trabalho prestada pelo referido trabalhador que exceda o horário de trabalho individualmente acordado no seu contrato de trabalho, como faz para os trabalhadores a tempo inteiro, resultaria num tratamento menos favorável destes últimos trabalhadores. Ora, esta premissa é errada, uma vez que, nesta hipótese, os trabalhadores a tempo inteiro são, no que respeita às horas extraordinárias, tratados de forma idêntica aos trabalhadores a tempo parcial, sem prejuízo da aplicação do princípio pro rata temporis.

52      Daqui resulta que este segundo objetivo também não é suscetível de justificar a diferença de tratamento em causa nos processos principais.

53      Tendo em conta o que precede, há que responder às quarta e quinta questões que a cláusula 4, n.os 1 e 2, do acordo‑quadro deve ser interpretada no sentido de que uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho previsto para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui um tratamento «menos favorável» dos trabalhadores a tempo parcial, na aceção desta cláusula 4, n.o 1, que não pode ser justificado com a prossecução, por um lado, do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho e, por outro, do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

 Quanto à primeira a terceira questões

54      Com as primeira a terceira questões, que importa examinar em conjunto e em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 157.o TFUE, o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e o artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54 devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho fixado para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui uma discriminação indireta em razão do sexo, mesmo quando existe uma proporção significativamente maior de mulheres do que de homens entre os trabalhadores a tempo inteiro e, por outro, que esta discriminação pode ser justificada com a prossecução do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho, bem como do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

55      Nos termos do artigo 157.o, n.o 1, TFUE, «[o]s Estados‑Membros assegurarão a aplicação do princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, por trabalho igual ou de valor igual». Além disso, o artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54 enuncia que «[p]ara um mesmo trabalho ou para um trabalho a que for atribuído um valor igual, é eliminada, no conjunto dos elementos e condições de remuneração, a discriminação, direta ou indireta, em razão do sexo». O artigo 2.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva define o conceito de «discriminação indireta» no sentido de que esta existe «sempre que uma disposição, critério ou prática, aparentemente neutro, seja suscetível de colocar pessoas de um determinado sexo numa situação de desvantagem comparativamente com pessoas do outro sexo, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objetivamente justificado por um objetivo legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários».

56      A este respeito, há que observar, primeiro, à semelhança do advogado‑geral no n.o 33 das suas conclusões, que uma regulamentação nacional como a que está em causa nos processos principais não resulta numa discriminação direta, uma vez que se aplica indistintamente aos trabalhadores do sexo masculino e aos trabalhadores do sexo feminino.

57      Segundo, no que respeita à questão de saber se esta regulamentação constitui uma discriminação indireta, na aceção do artigo 157.o TFUE e da Diretiva 2006/54, há que recordar, em primeiro lugar, que uma regulamentação como a regulamentação nacional em causa nos processos principais prejudica, como constatado no n.o 44 do presente acórdão, os trabalhadores a tempo parcial em relação aos trabalhadores a tempo inteiro, uma vez que, para as horas de trabalho prestadas que excedam o horário de trabalho acordado nos seus contratos de trabalho sem ultrapassar o horário normal de trabalho fixado para os trabalhadores a tempo inteiro, a saber, 38,5 horas semanais, não beneficiam de um complemento salarial, ao passo que estes últimos trabalhadores recebem um complemento salarial a partir da primeira hora prestada que exceda essas 38,5 horas semanais de trabalho.

58      Em segundo lugar, para que uma medida aparentemente neutra constitua uma discriminação indireta, na aceção destas disposições, deve ter como resultado, na prática, prejudicar de maneira particular as pessoas de um sexo relativamente às pessoas do outro sexo. A este respeito, resulta do considerando 30 da Diretiva 2006/54 e da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a apreciação dos factos constitutivos da presunção de discriminação indireta incumbe à instância jurisdicional nacional, em conformidade com o direito nacional e/ou as práticas nacionais que podem prever, em especial, que a discriminação indireta pode ser demonstrada por quaisquer meios, incluindo através de dados estatísticos (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Schuch‑Ghannadan, C‑274/18, EU:C:2019:828, n.o 46 e jurisprudência referida).

59      No que respeita aos dados estatísticos, há que recordar, antes de mais, que compete ao juiz nacional apreciar em que medida estes dados que lhe foram apresentados e que caracterizam a situação da mão de obra são válidos e podem ser tomados em consideração, isto é, nomeadamente, se esses dados não são expressão de fenómenos puramente fortuitos ou conjunturais e, de um modo geral, se são significativos (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Schuch‑Ghannadan, C‑274/18, EU:C:2019:828, n.o 48 e jurisprudência referida).

60      Em seguida, quando o órgão jurisdicional nacional dispõe destes dados, é jurisprudência constante, por um lado, que lhe cabe tomar em consideração o conjunto dos trabalhadores sujeitos à regulamentação nacional na qual a diferença de tratamento tem origem e, por outro, que o melhor método de comparação consiste em comparar as proporções respetivas de trabalhadores que são e que não são afetados pela norma em causa, entre a mão de obra masculina e as mesmas proporções entre a mão de obra feminina (Acórdãos de 6 de dezembro de 2007, Voß, C‑300/06, EU:C:2007:757, n.o 41 e jurisprudência referida, e de 3 de outubro de 2019, Schuch‑Ghannadan, C‑274/18, EU:C:2019:828, n.o 47 e jurisprudência referida).

61      No caso em apreço, resulta das decisões de reenvio, que se referem aos dados estatísticos fornecidos pela recorrida nos processos principais, que esta emprega mais de 5 000 pessoas em todos os seus locais, 76,96 % das quais são mulheres. Da totalidade destes trabalhadores 52,78 % trabalham a tempo parcial. Entre os trabalhadores a tempo parcial, 84,74 % são mulheres e 15,26 % são homens, e entre os trabalhadores a tempo inteiro, 68,20 % são mulheres e 31,80 % são homens. Por conseguinte, os trabalhadores femininos estão em maioria tanto no grupo que está em «vantagem» como no grupo que está em «desvantagem» pela regulamentação nacional em causa nos processos principais.

62      Nesta situação, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se pode ser constatada uma discriminação indireta mesmo que o grupo de trabalhadores a tempo inteiro, que não sofre essa desvantagem, não seja constituído por um número consideravelmente mais elevado de homens do que de mulheres.

63      A este respeito, importa recordar que, como o advogado‑geral observa nos n.os 36 a 40 das suas conclusões, a definição do conceito de «discriminação indireta», consagrada no artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2006/54, formulada, aliás, nos mesmos termos da definição constante do artigo 1.o, n.o 2, segundo travessão, da Diretiva 2002/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, que altera a Diretiva 76/207/CEE do Conselho relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho (JO 2002, L 269, p. 15), à semelhança das outras disposições da Diretiva 2006/54, não faz referência a elementos quantitativos no âmbito da análise da discriminação indireta. Com efeito, a referida definição adota uma abordagem qualitativa, segundo a qual importa verificar se a medida nacional em causa é suscetível, pela sua própria natureza, de «prejudicar particularmente» pessoas de um sexo em relação a pessoas de outro sexo. Daqui resulta que o juiz nacional deve analisar a globalidade dos elementos pertinentes de natureza qualitativa para determinar se tal desvantagem existe tomando em consideração o conjunto dos trabalhadores sujeitos à regulamentação nacional na qual assenta a diferença de tratamento em causa.

64      Neste contexto, os dados estatísticos constituem apenas um elemento entre outros a que o juiz pode recorrer e ao qual o Tribunal de Justiça se refere, quando existam, com vista a caracterizar a existência de uma discriminação indireta no âmbito da aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres. Assim, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a existência dessa particular desvantagem pode ser demonstrada, designadamente, se se provar que uma regulamentação nacional afeta negativamente uma proporção significativamente maior de pessoas de um dos sexos do que do outro (Acórdão de 5 de maio de 2022, BVAEB, C‑405/20, EU:C:2022:347, n.o 49 e jurisprudência referida).

65      A este respeito, há que observar, por um lado, que, segundo a própria redação do artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2006/54, a discriminação indireta se refere unicamente a uma disposição, critério ou prática que seja «suscetível de colocar» pessoas de um determinado sexo numa situação de desvantagem comparativamente com pessoas do outro sexo. Por conseguinte, resulta dos termos desta disposição que uma discriminação indireta se pode caracterizar pelo simples facto de pessoas de um sexo serem particularmente prejudicadas comparativamente a pessoas do outro sexo.

66      Por outro lado, como salientou a Comissão Europeia, parece resultar dos dados estatísticos que figuram no pedido de decisão prejudicial que apenas 35 % dos trabalhadores masculinos empregados pela recorrida nos processos principais, sujeitos à regulamentação nacional em causa nos processos principais, trabalham a tempo parcial e são afetados negativamente por esta regulamentação, ao passo que a proporção de trabalhadores femininos que trabalham a tempo parcial e são afetados negativamente pela referida regulamentação parece ser significativamente maior, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

67      Daqui resulta que, para que uma discriminação indireta em razão do sexo possa ser verificada em circunstâncias como as dos processos principais, não é necessário que haja, entre os empregados a tempo inteiro, consideravelmente mais homens do que mulheres, desde que estejam preenchidos os requisitos decorrentes da jurisprudência referida nos n.os 60 e 64 do presente acórdão.

68      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, neste contexto, se o Acórdão de 26 de janeiro de 2021, Szpital Kliniczny im. dra J. Babińskiego Samodzielny Publiczny Zakład Opieki Zdrowotnej w Krakowie (C‑16/19, EU:C:2021:64, n.os 25 a 36), do qual resulta que o princípio da igualdade de tratamento, consagrado pela Diretiva 2000/78, se destina a proteger um trabalhador com uma deficiência, na aceção desta diretiva, de qualquer discriminação baseada na mesma, não só em relação aos trabalhadores não portadores de deficiência mas também em relação a outros trabalhadores com deficiência, é pertinente no caso em apreço.

69      A este respeito, basta observar que, no processo que deu origem ao acórdão referido no número anterior, a diferença de tratamento apenas dizia respeito aos membros de um mesmo grupo protegido na aceção da Diretiva 2000/78, a saber, os trabalhadores com uma deficiência, ao passo que, nos processos principais, esta diferença diz respeito aos trabalhadores do sexo feminino em relação aos trabalhadores do sexo masculino. Por conseguinte, o referido acórdão não é pertinente para responder à primeira a terceira questões.

70      Esta interpretação é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça respeitante à Diretiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24). Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «discriminação em razão do sexo», que figura no artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, só podia dizer respeito aos casos de discriminação entre trabalhadores do sexo masculino, por um lado, e trabalhadores do sexo feminino, por outro, e que esta disposição não podia ser entendida no sentido de que constitui uma disposição do direito da União que garanta a igualdade de tratamento em sentido lato, isto é, igualmente entre pessoas que pertençam ao mesmo sexo [Acórdão de 12 de maio de 2021, INSS (Complemento de pensão para as mães — II), C‑130/20, EU:C:2021:381, n.os 21 e 22].

71      Terceiro, no caso de o órgão jurisdicional de reenvio, com base nos dados estatísticos apresentados pela recorrida nos processos principais e, se for caso disso, noutros elementos de facto pertinentes, concluir que a regulamentação nacional em causa nos processos principais coloca os trabalhadores do sexo feminino em particular desvantagem em relação aos trabalhadores do sexo masculino, esta regulamentação é contrária ao artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2006/54, exceto se for objetivamente justificada por um objetivo legítimo e se os meios para alcançar esse objetivo forem adequados e necessários (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Schuch‑Ghannadan, C‑274/18, EU:C:2019:828, n.o 49).

72      A este respeito, há que recordar que resulta dos n.os 44 a 52 do presente acórdão que um tratamento «menos favorável» dos trabalhadores a tempo parcial em relação aos trabalhadores a tempo inteiro, resultante de uma regulamentação como a regulamentação nacional em causa nos processos principais, não é suscetível de ser justificado com a prossecução, por um lado, do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho e, por outro, do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial. Ora, esta interpretação é válida, mutatis mutandis, no que respeita à justificação de uma discriminação indireta em razão do sexo, referida no artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e no artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54, que resulta da referida regulamentação.

73      Resulta do que precede que há que responder às primeira a terceira questões que o artigo 157.o TFUE, o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e o artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54 devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho fixado para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui uma discriminação indireta em razão do sexo se se provar que esta regulamentação prejudica uma proporção significativamente maior de pessoas do sexo feminino em relação a pessoas do sexo masculino sem que seja também necessário que o grupo de trabalhadores que não é prejudicado pela referida regulamentação, a saber, os trabalhadores a tempo inteiro, seja constituído por um número consideravelmente mais elevado de homens do que de mulheres, e, por outro, que esta discriminação não pode ser justificada com a prossecução do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho, bem como do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

 Quanto às despesas

74      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      A cláusula 4, n.os 1 e 2, do AcordoQuadro relativo ao trabalho a tempo parcial, celebrado em 6 de junho de 1997, que figura em anexo à Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordoquadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES,

deve ser interpretada no sentido de que:

uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho previsto para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui um tratamento «menos favorável» dos trabalhadores a tempo parcial, na aceção desta cláusula 4, n.o 1, que não é suscetível de ser justificado com a prossecução, por um lado, do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho e, por outro, do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

2)      O artigo 157.o TFUE, bem como o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), e o artigo 4.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional,

devem ser interpretados no sentido de que:

por um lado, uma regulamentação nacional que, para os trabalhadores a tempo parcial, prevê o pagamento de um complemento salarial pelas horas extraordinárias apenas relativamente às horas de trabalho prestadas que excedam o horário normal de trabalho fixado para os trabalhadores a tempo inteiro que se encontrem numa situação comparável constitui uma discriminação indireta em razão do sexo se se provar que esta regulamentação prejudica uma proporção significativamente maior de pessoas do sexo feminino em relação a pessoas do sexo masculino sem que seja também necessário que o grupo de trabalhadores que não é prejudicado pela referida regulamentação, a saber, os trabalhadores a tempo inteiro, seja constituído por um número consideravelmente mais elevado de homens do que de mulheres, e, por outro, esta discriminação não pode ser justificada com a prossecução do objetivo de dissuadir a entidade patronal de ordenar aos trabalhadores a prestação de horas extraordinárias que excedam o horário de trabalho individualmente acordado nos seus contratos de trabalho, bem como do objetivo de evitar que os trabalhadores a tempo inteiro sejam objeto de um tratamento menos favorável em relação aos trabalhadores a tempo parcial.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.