ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

2 de março de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2014/41/UE — Decisão europeia de investigação — Artigo 1.o, n.o 1 — Conceito de “autoridade judiciária” — Artigo 2.o, alínea c) — Conceito de “autoridade de emissão” — Decisão emitida por uma Administração Tributária sem validação por um juiz ou magistrado do Ministério Público — Administração tributária que assume os direitos e as obrigações do Ministério Público no quadro de um inquérito criminal fiscal»

No processo C‑16/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Graz (Tribunal Regional Superior de Graz, Áustria), por Decisão de 21 de dezembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de janeiro de 2022, no processo relativo ao reconhecimento e à execução de uma decisão europeia de investigação em que está em causa

MS,

sendo intervenientes:

Staatsanwaltschaft Graz,

Finanzamt für Steuerstrafsachen und Steuerfahndung Düsseldorf,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de secção, M. Safjan, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de MS, por J. Herbst, Rechtsanwalt,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e M.‑T. Rappersberger, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por J. Möller, P. Busche, M. Hellmann e D. Klebs, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e do artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um pedido de execução, na Áustria, de uma decisão europeia de investigação emitida pelo Finanzamt für Steuerstrafsachen und Steuerfahndung Düsseldorf (Serviço de Investigação de Infrações Tributárias de Dusseldórfia, Alemanha) (a seguir «Serviço de Investigação de Infrações Tributárias de Dusseldórfia») relativamente a MS.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 5 a 8 da Diretiva 2014/41 têm a seguinte redação:

«(5)

[...] ficou claro que o enquadramento existente para a recolha de elementos de prova é excessivamente fragmentado e complexo. Por conseguinte, é necessária uma nova abordagem.

(6)

No Programa de Estocolmo, aprovado pelo Conselho Europeu de [10 e 11] de dezembro de 2009, o Conselho Europeu considerou que os trabalhos para a criação de um sistema global de obtenção de elementos de prova nos processos de dimensão transfronteiriça, com base no princípio do reconhecimento mútuo, deveriam ser prosseguidos. O Conselho Europeu indicou que os instrumentos existentes neste domínio constituíam um regime fragmentário e que era necessária uma nova abordagem baseada no princípio do reconhecimento mútuo mas tendo em conta a flexibilidade do sistema tradicional de auxílio judiciário mútuo. Por conseguinte, o Conselho Europeu apelou à criação de um sistema global, destinado a substituir todos os instrumentos existentes neste domínio, incluindo a Decisão‑Quadro 2008/978/JAI [do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativa a um mandado europeu de obtenção de provas destinado à obtenção de objetos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais (JO 2008, L 350, p. 72)], que abranja tanto quanto possível todos os tipos de elementos de prova, que contenha prazos de execução e que limite, tanto quanto possível, os motivos de recusa.

(7)

Esta nova abordagem deve assentar num instrumento único, denominado decisão europeia de investigação (DEI). Deve ser emitida uma DEI para que uma ou várias medidas específicas de investigação sejam realizadas no Estado que executa a DEI (“Estado de execução”) tendo em vista a recolha de elementos de prova. A execução deve incluir a obtenção de elementos de prova que já estejam na posse da autoridade de execução.

(8)

A DEI deverá ter um âmbito horizontal, aplicando‑se, por conseguinte, a todas as medidas de investigação que visam recolher elementos de prova. […]»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «A decisão europeia de investigação e a obrigação de a executar», prevê, no n.o 1, primeiro parágrafo:

«A decisão europeia de investigação (DEI) é uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro (“Estado de emissão”) para que sejam executadas noutro Estado‑Membro (“Estado de execução”) uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com a presente diretiva.»

5

Nos termos do artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições»:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

c)

“Autoridade de emissão”:

i)

um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público competente no processo em causa; ou

ii)

qualquer outra autoridade competente definida pelo Estado de emissão e que, no caso em apreço, atue enquanto autoridade de investigação num processo penal com competência para ordenar a obtenção de elementos de prova no processo de acordo com a lei nacional. Além disso, antes de ser transmitida à autoridade de execução, a DEI é validada por um juiz, por um tribunal, por um juiz de instrução ou por um magistrado do Ministério Público no Estado de emissão, após análise da sua conformidade com as condições de emissão de uma DEI ao abrigo da presente diretiva, designadamente as condições previstas no artigo 6.o, n.o 1. Se a DEI tiver sido validada por uma autoridade judiciária, esta também pode ser equiparada a autoridade de emissão para efeitos de transmissão da DEI;

[…]»

6

O artigo 4.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Tipos de processos para os quais pode ser emitida uma DEI», dispõe:

«A DEI pode ser emitida:

a)

Relativamente a processos penais instaurados por uma autoridade judiciária, ou que possam ser instaurados perante uma tal autoridade, relativamente a uma infração penal ao abrigo do direito interno do Estado de emissão;

b)

Em processos instaurados pelas autoridades administrativas em processos referentes a atos puníveis ao abrigo do direito interno do Estado de emissão, por configurarem uma infração à lei; e quando caiba recurso da decisão para um tribunal competente, nomeadamente em matéria penal;

c)

Em processos instaurados pelas autoridades judiciárias em processos referentes a atos puníveis ao abrigo do direito interno do Estado de emissão, por configurarem uma infração à lei; e quando caiba recurso da decisão para um órgão jurisdicional competente, nomeadamente, em matéria penal; e

d)

Em conexão com processos referidos nas alíneas a), b) e c), relativos a crimes ou infrações à lei pelos quais uma pessoa coletiva possa ser responsabilizada ou punida no Estado de emissão.»

7

O artigo 33.o da Diretiva 2014/41, sob a epígrafe «Notificações», prevê, nos n.os 1 e 2:

«1.   Até 22 de maio de 2017, cada Estado‑Membro comunica à Comissão [Europeia] o seguinte:

a)

A autoridade ou autoridades que, de acordo com o seu direito nacional, são competentes nos termos do artigo 2.o, alíneas c) e d), quando esse Estado‑Membro for o Estado de emissão ou o Estado de execução;

[…]

2.   Cada Estado‑Membro pode também fornecer à Comissão a lista dos documentos necessários que exige nos termos do artigo 22.o, n.o 4.»

8

O formulário relativo à decisão europeia de investigação, que figura no anexo A desta diretiva, contém, entre outros, uma secção K, na qual deve, nomeadamente, ser indicado o tipo de autoridade que emitiu a decisão europeia de investigação, a saber, uma autoridade judiciária ou qualquer outra autoridade competente definida na lei do Estado de emissão. Este formulário também contém uma secção L, na qual devem ser indicados, se necessário, os dados da autoridade judiciária que validou a decisão europeia de investigação.

Direito alemão

9

Por carta de notificação da Representação Permanente da República Federal da Alemanha junto da União Europeia de 14 de março de 2017, este Estado‑Membro indicou, em conformidade com o artigo 33.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/41:

«De acordo com as regras de competência dos Länder aplicáveis, na Alemanha, podem ser autoridades de emissão e de execução, por um lado, todas as autoridades judiciárias, e, portanto, nomeadamente o Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof [(procurador‑geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha)], as procuradorias, as procuradorias gerais e a Zentrale Stelle in Ludwigsburg [(Serviço Central de Investigação dos Crimes Nacionais Socialistas dos Ministérios da Justiça dos Länder de Ludwigsburg, Alemanha)], bem como todos os tribunais competentes em matéria penal.

Por outro lado, podem também ser autoridades de emissão e de execução as autoridades administrativas que, nos termos do direito alemão, são competentes em matéria de ação penal e de repressão das infrações administrativas.

Quanto aos pedidos que as autoridades administrativas alemãs dirigem a outros Estados‑Membros da União, está previsto, em conformidade com o artigo 2.o, alínea c), da [Diretiva 2014/41], que estes devem, em princípio, ser confirmados pela procuradoria junto do tribunal regional em cuja jurisdição a autoridade administrativa tem a sua sede. Em derrogação do que precede, os Länder podem atribuir a competência para essa confirmação a um tribunal ou derrogar a competência territorial da procuradoria responsável pela confirmação […]

Os pedidos das autoridades tributárias alemãs, que, nos termos do § 386, n.o 2, da Abgabenordung [Código Tributário alemão, na versão publicada em 1 de outubro de 2002 (BGBl. 2002 I, p. 3866; BGBl. 2003 I, p. 61)], conduzem autonomamente os inquéritos penais, não têm de ser confirmados por uma autoridade judiciária ou por um tribunal. Nesse caso, por força das disposições conjugadas do § 399, n.o 1, do Código Tributário alemão e do § 77, n.o 1, [da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei alemã da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), na versão publicada em 27 de junho de 1994 (BGBl. 1994 I, p. 1537)], as autoridades tributárias assumem os direitos e as obrigações do Ministério Público, atuando assim elas próprias na qualidade de autoridade judiciária na aceção do artigo 2.o, alínea c), da [Diretiva 2014/41].»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

10

O Serviço de Investigação de Infrações Tributárias de Dusseldórfia conduz um inquérito por fraude fiscal contra MS. Esta, enquanto gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada, é suspeita de não ter declarado, no período compreendido entre 2015 e fevereiro de 2020, o volume de negócios gerado pela exploração de uma casa de prostituição, omissão essa que tem um impacto fiscal de cerca de 1,6 milhões de euros.

11

Para efeitos do inquérito, esse serviço emitiu uma decisão europeia de investigação, que, em 23 de julho de 2020, transmitiu ao Staatsanwaltschaft Graz (Ministério Público de Graz, Áustria). Nessa decisão, o referido serviço solicitou ao Ministério Público de Graz a recolha, num banco situado na Áustria, de documentos relativos a duas contas bancárias abertas em nome de MS, referentes ao período compreendido entre 1 de janeiro de 2015 e 28 de fevereiro de 2020.

12

Na secção K da referida decisão, foi indicado que esta foi emitida por uma «autoridade judiciária». Por conseguinte, o serviço competente não preencheu a secção L da mesma decisão, na qual, em caso de validação desta última por uma autoridade judiciária, têm de figurar os dados dessa autoridade.

13

Resulta da decisão de reenvio que, em conformidade com o Strafprozessordnung (Código de Processo Penal austríaco), um banco só pode ser obrigado a prestar informações sobre contas bancárias e a transmitir documentos relativos a essas contas ao abrigo de uma medida de investigação, que tem de ser ordenada pelo Ministério Público com base numa autorização judicial.

14

Por Despacho proferido em 5 de agosto de 2020, a requerimento do Ministério Público de Graz, a Haft‑ und Rechtsschutzrichterin (juíza da prisão e da proteção judicial) junto do Landesgericht für Strafsachen Graz (Tribunal Criminal Regional de Graz, Áustria) autorizou a execução da decisão europeia de investigação referida no n.o 11 do presente acórdão. Em 7 de agosto de 2020, o Ministério Público de Graz ordenou a execução da medida requerida.

15

MS interpôs recurso do Despacho de 5 de agosto de 2020 no Oberlandesgericht Graz (Tribunal Regional Superior de Graz, Áustria), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Nesse órgão jurisdicional, MS alega que o Serviço de Investigação de Infrações Tributárias de Dusseldórfia não é uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, nem uma «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva. Por conseguinte, esse serviço não é competente para emitir uma decisão europeia de investigação.

16

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que lhe é pedido para se pronunciar sobre a licitude da execução da decisão europeia de investigação emitida pelo Serviço de Investigação de Infrações Tributárias de Dusseldórfia. Especifica que esta decisão não foi validada por uma autoridade judiciária, como previsto no artigo 2.o, alínea c), ii), da Diretiva 2014/41 quando a autoridade de emissão é uma autoridade que não um juiz, um tribunal, um juiz de instrução ou um magistrado do Ministério Público competente no processo em causa. Por conseguinte, é necessário determinar se a Administração Tributária, autorizada nos termos do direito alemão, no que respeita a determinadas infrações penais, a assumir os direitos e as obrigações do Ministério Público, pode ser equiparada a uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, e a um «magistrado do Ministério Público», na aceção do artigo 2.o, alínea c), i), da referida diretiva.

17

Segundo esse órgão jurisdicional, os argumentos relativos à redação e à ratio destas disposições, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas) (C‑584/19, EU:C:2020:1002), e pelo advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona nas suas Conclusões no processo Finanzamt für Steuerstrafsachen und Steuerfahndung Münster (C‑66/20, EU:C:2021:200), opõem‑se a essa equiparação.

18

Neste contexto, sublinha que a posição institucional da Administração Tributária, que não é mencionada na lista das autoridades judiciárias que figura no artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41 como autoridade de emissão, se distingue claramente da do Ministério Público, que é mencionado, ele sim, nessa lista.

19

Assim, diferentemente do Ministério Público, a Administração Tributária é uma entidade administrativa, que faz parte do poder executivo, competente em matéria fiscal e integrada na estrutura hierárquica do Ministério das Finanças alemão, sem gozar de autonomia, independência e liberdade de ação. Está investida do poder de conduzir uma investigação criminal autonomamente apenas em relação a determinadas infrações penais, e somente enquanto ela própria não remeter esse processo ao Ministério Público ou este não avocar o referido processo, o que é possível a qualquer momento e sem motivo especial. Quando o Ministério Público conduz o inquérito, a Administração Tributária tem somente os mesmos direitos e obrigações que os atribuídos às entidades policiais. Quando conduz o inquérito autonomamente, a Administração Tributária limita‑se a «assumir» os direitos e as obrigações atribuídos ao Ministério Público no inquérito criminal, sem os deter ela própria.

20

Em contrapartida, a posição institucional do Ministério Público caracteriza‑se pelo facto de atuar perante os tribunais na qualidade de garante da legalidade, de participar efetivamente na administração da justiça e de servir o interesse geral do cumprimento da lei.

21

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio admite que, visto assumir os direitos e as obrigações do Ministério Público, também é possível equiparar a Administração Tributária a uma «autoridade judiciária» e a uma «autoridade de emissão», na aceção, respetivamente, do artigo 1.o, n.o 1, e do artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41.

22

Com efeito, entende que resulta do Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferências falsificadas) (C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.os 51 e 56 a 73), que, para efeitos da qualificação de uma entidade referida no artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41 de «autoridade de emissão», a única condição prende‑se com a sua competência no processo em causa e a emissão da decisão europeia de investigação no cumprimento das garantias previstas nesta diretiva.

23

Nestas circunstâncias, o Oberlandesgericht Graz (Tribunal Regional Superior de Graz) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 1.o, n.o 1, [primeiro parágrafo], e o artigo 2.o, alínea c), [i)], da [Diretiva 2014/41] ser interpretados no sentido de que também se deve considerar “autoridade judiciária” e “autoridade de emissão”, na aceção destas disposições, um Finanzamt für Steuerstrafsachen und Steuerfahndung (Unidade de Investigação de Infrações Tributárias alemã) habilitado, nos termos das disposições nacionais, a assumir os direitos e as obrigações do Ministério Público no que respeita a certas infrações?»

Quanto à questão prejudicial

24

Com a sua única questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e o artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41 devem ser interpretados no sentido de que a Administração Tributária de um Estado‑Membro que, embora integrando o poder executivo deste último, conduz, em conformidade com o direito nacional, inquéritos criminais fiscais autonomamente, em vez do Ministério Público e assumindo os direitos e as obrigações conferidos a este último, pode ser qualificada de «autoridade judiciária» e de «autoridade de emissão», na aceção, respetivamente, de uma ou outra destas disposições.

25

Para efeitos da interpretação destas disposições, deve ter‑se em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte [v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 49 e jurisprudência referida].

26

Em primeiro lugar, no que respeita à interpretação literal, importa recordar que o artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/41 define a decisão europeia de investigação como uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro para que sejam executadas noutro Estado‑Membro uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com esta diretiva.

27

O conceito de «autoridade judiciária» utilizado nesta disposição não é aí definido. Por conseguinte, a referida disposição deve ser lida em conjugação com as demais disposições Diretiva 2014/41, em especial com o seu artigo 2.o, alínea c).

28

Esta última disposição define o que se deve entender por «autoridade de emissão» para efeitos desta diretiva. Assim, nos termos do artigo 2.o, alínea c), i), da referida diretiva, constitui uma autoridade de emissão «um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público competente no processo em causa». Nos termos do artigo 2.o, alínea c), ii), da mesma diretiva, também constitui uma autoridade de emissão «qualquer outra autoridade competente definida pelo Estado de emissão e que, no caso em apreço, atue enquanto autoridade de investigação num processo penal com competência para ordenar a obtenção de elementos de prova no processo de acordo com a lei nacional». Resulta, ainda, desta última disposição que, quando uma decisão europeia de investigação é emitida por essa «outra autoridade», deve ser validada por uma autoridade judiciária, a saber, um juiz, um tribunal, um juiz de instrução ou um magistrado do Ministério Público no Estado de emissão, antes de ser transmitida à autoridade de execução.

29

Decorre, assim, dos termos claros do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 que esta disposição distingue entre duas categorias de autoridades de emissão, referidas, respetivamente, nas suas subalíneas i) e ii).

30

Assim, o artigo 2.o, alínea c), i), desta diretiva designa expressamente como «autoridades de emissão» os juízes, os tribunais, os juízes de instrução ou os magistrados do Ministério Público, na condição de serem competentes no processo em causa [v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.os 50 e 51].

31

Estas quatro autoridades partilham a característica comum de poderem participar na administração da justiça [v., por analogia, Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 60]. Aliás, em conformidade com esta apreciação, são, como resulta do artigo 2.o, alínea c), ii), da Diretiva 2014/41, qualificadas de «autoridades judiciárias», na aceção desta diretiva.

32

Além disso, como resulta da própria redação do artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41, em especial da utilização da conjunção coordenativa «ou», esta disposição enumera exaustivamente estas quatro autoridades.

33

Esta interpretação é corroborada pelo artigo 2.o, alínea c), ii), desta diretiva, que prevê que o conceito de «autoridade de emissão» abrange uma segunda categoria de autoridades. Esta categoria cobre qualquer «outra» autoridade que não as referidas no artigo 2.o, alínea c), i), da referida diretiva, na condição de essa autoridade ser competente para atuar enquanto autoridade de investigação num processo penal [v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, Spetsializirana prokuratura (Dados de tráfego e de localização), C‑724/19, EU:C:2021:1020, n.o 29]. Uma decisão europeia de investigação emitida por tal autoridade deve, antes da sua transmissão à autoridade de execução, ser validada por uma «autoridade judiciária» prevista no artigo 2.o, alínea c), i), da mesma diretiva.

34

Por conseguinte, a referência a «qualquer outra autoridade», feita no artigo 2.o, alínea c), ii), da Diretiva 2014/41, indica claramente que qualquer autoridade que não seja um juiz, um tribunal, um juiz de instrução ou um magistrado do Ministério Público, referidos no artigo 2.o, alínea c), i), desta diretiva, deve ser examinada à luz do artigo 2.o, alínea c), ii), da referida diretiva. Uma autoridade não judiciária, como uma autoridade administrativa, pode, portanto, caber no conceito de «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), ii), da Diretiva 2014/41, nas condições recordadas no n.o 33 do presente acórdão.

35

Daqui resulta que o artigo 2.o, alínea c), desta diretiva reflete, nas suas subalíneas i) e ii), a distinção, inerente ao princípio da separação de poderes que caracteriza o funcionamento de um Estado de direito, entre o poder judicial e o poder executivo. Com efeito, as autoridades judiciárias são tradicionalmente entendidas como as autoridades que participam na administração da justiça, por oposição, designadamente, às autoridades administrativas, que fazem parte do poder executivo (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Poltorak, C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 35).

36

Decorre do exposto que, tendo em conta a sua redação, o artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 distingue entre duas categorias de autoridades de emissão, que se excluem mutuamente. A situação de qualquer autoridade que não seja expressamente mencionada na enumeração constante da subalínea i) desta disposição deve ser examinada ao abrigo da alínea ii) da mesma.

37

Ora, as Administrações Tributárias dos Estados‑Membros não figuram entre as autoridades assim taxativamente enumeradas na subalínea i) da referida disposição. Estas devem, portanto, ser consideradas autoridades de emissão na aceção do artigo 2.o, alínea c), ii), desta diretiva, desde que estejam reunidas as condições previstas nesta disposição.

38

Em segundo lugar, o contexto em que se insere o artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 e o seu objetivo também confirmam a interpretação literal desta disposição exposta no n.o 36 do presente acórdão.

39

Com efeito, no que respeita à interpretação contextual, importa, primeiro, observar que o artigo 4.o da Diretiva 2014/41, que determina os tipos de procedimentos para os quais pode ser emitida uma decisão europeia de investigação, identifica, a este título, tanto os processos instaurados por uma «autoridade judiciária» como os processos instaurados por «autoridades administrativas». Este artigo vem assim corroborar a pertinência da distinção entre estes dois tipos de autoridades no quadro legal instituído por esta diretiva e, mais especificamente, pelo seu artigo 2.o, alínea c).

40

Segundo, resulta da leitura conjugada das disposições que figuram no artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e no artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 que a emissão de uma decisão europeia de investigação, que é uma decisão judiciária, requer, em todo o caso, a intervenção de uma autoridade judiciária. Com efeito, tal decisão deve ser emitida por essa própria autoridade, ou ser por ela validada, quando emitida por «outra autoridade», na aceção do artigo 2.o, alínea c), ii), desta diretiva.

41

Como sucede com a redação destas disposições, o seu contexto leva a distinguir claramente entre as autoridades judiciárias e as outras autoridades que podem emitir uma decisão europeia de investigação.

42

No que respeita ao objetivo da Diretiva 2014/41, importa recordar que, como resulta dos seus considerandos 5 a 8, esta diretiva se destina a substituir o quadro fragmentado e complexo existente até à adoção da referida diretiva em matéria de obtenção de elementos de prova nos processos penais de dimensão transfronteiriça e pretende, ao instituir um sistema simplificado e mais eficaz baseado num instrumento único denominado «decisão europeia de investigação», facilitar e a acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros [Acórdão de 16 de dezembro de 2021, Spetsializirana prokuratura (Dados de tráfego e de localização), C‑724/19, EU:C:2021:1020, n.o 36 e jurisprudência referida].

43

A este respeito, o objetivo de cooperação simplificada e eficaz entre os Estados‑Membros requer uma identificação simples e inequívoca da autoridade que emitiu a decisão europeia de investigação para determinar se tal decisão deve, ou não, ser objeto de validação por uma autoridade judiciária em aplicação do artigo 2.o, alínea c), ii), da Diretiva 2014/41. A interpretação, adotada no n.o 36 do presente acórdão, segundo a qual as duas categorias de autoridades de emissão, na aceção do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, se excluem mutuamente, permite alcançar esse objetivo, uma vez que é de molde a permitir determinar, inequivocamente, se uma autoridade de emissão se subsume na subalínea i) ou na subalínea ii) desta disposição.

44

Decorre do exposto que tanto a redação do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 como o contexto em que esta disposição se insere e o objetivo prosseguido por esta diretiva se opõem à interpretação funcional evocada pelos Governos austríaco e alemão, segundo a qual, quando, por força do direito nacional, uma Administração Tributária assume os direitos e as obrigações atribuídos ao magistrado do Ministério Público, essa Administração deve ser‑lhe equiparada e, portanto, qualificada de «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), i), da referida diretiva.

45

Com efeito, esta interpretação implicaria que uma Administração Tributária integrasse, em função do quadro legal em que exercesse os seus poderes, as autoridades de emissão referidas quer no artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41 quer no seu artigo 2.o, alínea c), ii). Além disso, a referida interpretação desvirtuaria a distinção clara feita por esta diretiva entre autoridades judiciárias e autoridades administrativas. Implicaria também, quando essa Administração estivesse abrangida pela primeira destas disposições, a possibilidade de emissão de uma decisão europeia de investigação por uma Administração Tributária dependente do poder executivo, sem nenhuma intervenção de uma autoridade judiciária. Tal abordagem geraria, assim, uma fonte de insegurança jurídica e poderia complexificar o sistema de execução da decisão europeia de investigação, bem como, desse modo, pôr em causa a instauração de um sistema simplificado e eficaz de cooperação entre os Estados‑Membros em matéria penal.

46

Atendendo a todos os fundamentos expostos, há que responder à questão submetida que o artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e o artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41 devem ser interpretados no sentido de que:

a Administração Tributária de um Estado‑Membro que, embora integrando o poder executivo deste último, conduz, em conformidade com o direito nacional, inquéritos criminais fiscais autonomamente, em vez do Ministério Público e assumindo os direitos e as obrigações conferidos a este último, não pode ser qualificada de «autoridade judiciária» e de «autoridade de emissão», na aceção, respetivamente, de uma ou outra destas disposições;

essa Administração é, em contrapartida, suscetível de integrar o conceito de «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), ii), da referida diretiva, desde que as condições enunciadas nessa disposição sejam respeitadas.

Quanto às despesas

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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e o artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

a Administração Tributária de um Estado‑Membro que, embora integrando o poder executivo deste último, conduz, em conformidade com o direito nacional, inquéritos criminais fiscais autonomamente, em vez do Ministério Público e assumindo os direitos e as obrigações conferidos a este último, não pode ser qualificada de «autoridade judiciária» e de «autoridade de emissão», na aceção, respetivamente, de uma ou outra destas disposições;

 

essa Administração é, em contrapartida, suscetível de integrar o conceito de «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), ii), da referida diretiva, desde que as condições enunciadas nessa disposição sejam respeitadas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.