CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 7 de março de 2024 ( 1 )

Processo C‑774/22

JX

contra

FTI Touristik GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Competência judiciária — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Âmbito de aplicação — Processo que comporta um elemento internacional — Conceito — Competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores — Capítulo II, Secção 4 — Contrato de viagem organizada celebrado entre um consumidor e um operador turístico — Partes contratantes domiciliadas no mesmo Estado‑Membro — Contrato celebrado para efeitos de uma viagem para um país estrangeiro»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial, submetido pelo Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga, Alemanha), tem por objeto a interpretação do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial ( 2 ) (a seguir «Regulamento Bruxelas IA»).

2.

O pedido foi apresentado no âmbito de uma ação intentada por um consumidor com domicílio na Alemanha contra um operador turístico estabelecido no mesmo Estado, a propósito de um contrato relativo a um pacote de serviços de viagem reservado por esse consumidor para efeitos de uma viagem ao estrangeiro. O consumidor sofreu um contratempo a este respeito, devido alegadamente ao incumprimento, por parte do operador turístico, das suas obrigações legais. Esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se o Regulamento Bruxelas I‑A se aplica a tal litígio, de modo que o consumidor possa invocar as regras de competência protetoras nele previstas.

3.

O presente pedido de decisão prejudicial é importante por duas razões. Em primeiro lugar, dará ao Tribunal de Justiça a oportunidade de prestar esclarecimentos preciosos sobre o âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A e sobre o funcionamento dessas regras específicas. Em segundo lugar, a resposta dada pelo Tribunal de Justiça será importante para os viajantes e para as empresas do setor do turismo, onde tais litígios surgem frequentemente.

II. Quadro jurídico

A.   Regulamento Bruxelas I‑A

4.

Ao abrigo do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, «[o] consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte».

B.   Direito alemão

5.

O § 12.o do Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil, a seguir «ZPO»), sob a epígrafe «Regra geral de competência; definição», dispõe, no seu n.o 1, que «[o] tribunal do domicílio da pessoa singular é competente para apreciar todas as ações propostas contra a mesma, a menos que tenha sido estabelecido um foro exclusivo para uma ação».

6.

O § 17.o do ZPO, sob a epígrafe «Foro geral das pessoas coletivas», dispõe, no seu n.o 1, que «[o] foro geral d[as] […] sociedades […] é o da sua sede. É considerado sede, na ausência de outro, o lugar da sua administração».

III. Factos, processo principal e questão prejudicial

7.

JX é um particular com domicílio em Nuremberga (Alemanha). Em 15 de dezembro de 2021, celebrou um contrato de viagem organizada com a FTI Touristik GmbH (a seguir «FTI»), um operador turístico estabelecido em Munique (Alemanha), por intermédio de uma agência de viagens estabelecida em Nuremberga, para efeitos de uma viagem ao estrangeiro.

8.

Em seguida, JX intentou uma ação contra a FTI no Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga). JX alega que não foi devidamente informado das obrigações de entrada e de visto no país em causa e pede uma indemnização no montante de 1499,86 euros.

9.

JX alegou que o órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado, enquanto tribunal do lugar do seu domicílio, dispõe de competência tanto internacional como territorial para conhecer do seu pedido, com base no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. Em resposta, a FTI sustentou que esse órgão jurisdicional não tem competência territorial e deveria indeferir o pedido com esse fundamento. As regras deste regulamento não se aplicam às situações puramente internas. O litígio em causa é qualificado como tal, uma vez que ambas as partes têm domicílio no mesmo Estado‑Membro. Do ponto de vista da FTI, são aplicáveis, então, as regras do ZPO que conferem a competência a outros órgãos jurisdicionais.

10.

Nestas circunstâncias, o Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 18.o, n.o 1, do [Regulamento Bruxelas I‑A], ser interpretado no sentido de que, além de regulamentar a competência internacional, esta disposição também contém uma norma relativa à competência territorial dos tribunais nacionais em matéria de contratos de viagem que o órgão jurisdicional de reenvio deve aplicar, nos casos em que tanto o consumidor, na qualidade de viajante, como a sua contraparte, o operador turístico, têm sede no mesmo Estado‑Membro, mas o destino na viagem não se situa nesse Estado‑Membro mas no estrangeiro (as denominadas “falsas situações nacionais”), tendo por consequência que o consumidor pode, em complemento das disposições nacionais relativas à competência, demandar o operador turístico com base em direitos resultantes do contrato no tribunal do seu domicílio?»

11.

A FTI, o Governo Checo e a Comissão apresentaram observações escritas. Não foi realizada audiência no presente processo.

IV. Apreciação

12.

O presente processo tem como antecedente o contratempo sofrido por um consumidor no âmbito de uma viagem que lhe foi vendida como «férias organizadas» ( 3 ) por um operador turístico. Esta situação é, infelizmente, bastante comum. Aproximadamente nas últimas três décadas, o turismo tornou‑se uma indústria de massas e estas «viagens organizadas» representam uma parte significativa do mercado das viagens. Embora muitos consumidores sejam atraídos pela comodidade oferecida por tal «viagem organizada» no que respeita ao planeamento, as promessas que aí são feitas nem sempre são cumpridas. Demasiadas vezes, os viajantes deparam‑se com problemas (tal como parece ter acontecido com JX ( 4 )) quando se deslocam ao seu destino de férias, ou descobrem, quando chegam, que o hotel é de qualidade inferior ou, pior, sofrem acidentes no local devido à negligência de prestadores locais mal selecionados ( 5 ).

13.

Para proteger os viajantes de tais contratempos, o legislador da União adotou a Diretiva relativa às viagens organizadas. Este instrumento estabelece direitos importantes dos consumidores e as obrigações correspondentes para os operadores turísticos no que diz respeito a essas viagens organizadas. Designadamente, impõe a estes operadores a obrigação de fornecer aos viajantes, antes da celebração de qualquer contrato, informações sobre, inter alia, as exigências em matéria de passaporte e de visto no país de destino previsto ( 6 ). No processo principal, JX considera que a FTI não cumpriu essa obrigação de informação em seu detrimento e solicita uma indemnização. Para este efeito, intentou uma ação junto do órgão jurisdicional de reenvio, que é o tribunal do seu domicílio em Nuremberga.

14.

Na atual fase preliminar do processo principal, esse órgão jurisdicional deve determinar se é efetivamente competente para conhecer desse processo. A este respeito, questiona‑se sobre a questão de saber se o artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A é relevante. Esta disposição, que faz parte de uma secção deste regulamento dedicada aos processos relativos a determinados contratos celebrados por consumidores, a saber, a Secção 4 do Capítulo II (a seguir «Secção 4»), contém duas regras de competência a favor do consumidor quando atua na qualidade de demandante. Mais precisamente, nos termos do artigo 18.o, n.o 1, este último pode intentar uma ação contra a «outra parte no contrato» (ou seja, o fornecedor) quer i) «nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte» (forum rei), quer ii) «no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio» (forum actoris).

15.

A questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio centra‑se na regra do forum actoris expressa no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A e suscita duas perguntas a este respeito. Em primeiro lugar, esse órgão jurisdicional pretende saber se esta regra é aplicável a um processo como o instaurado por JX contra a FTI. Em segundo lugar, admitindo que seja esse o caso, esse órgão jurisdicional interroga‑se se esta regra limita‑se a atribuir competência (internacional) aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde o consumidor tem o seu domicílio, enquanto as regras processuais desse Estado determinam que tribunal tem competência (territorial) no seu território para conhecer desse processo ou se atribui diretamente competência (tanto internacional como territorial) ao tribunal desse domicílio.

16.

Considerações pragmáticas estão na base destas interrogações. Se, por um lado, a regra em causa for aplicável ao processo instaurado por JX contra FTI e determinar a competência tanto internacional como territorial, então, o órgão jurisdicional de reenvio é competente, com base nessa regra, para decidir o processo (uma vez que é, recordo, o tribunal do domicílio desse consumidor). Se, por outro lado, esta regra não for aplicável a esse processo ou se limitar a atribuir competência internacional aos órgãos jurisdicionais alemães, o órgão jurisdicional de reenvio não dispõe dessa competência. De uma forma ou de outra, as regras processuais alemãs atribuiriam a competência territorial ao tribunal do domicílio do demandado, em Munique ( 7 ).

17.

Como vou explicar nos números seguintes, é claro que a regra do forum actoris para os consumidores prevista no artigo 18.o, n.o 1 do Regulamento Bruxelas I‑A confere diretamente competência internacional e territorial ao tribunal do domicílio do consumidor (Secção A). Todavia, esta regra só se aplica aos casos que contenham um elemento internacional (Secção B). Aqui reside o cerne do presente processo. Com efeito, existe incerteza quanto à questão de saber se esta exigência está satisfeita quando ambas as partes (consumidor e fornecedor) estão domiciliadas no mesmo Estado‑Membro, sendo o único elemento internacional o destino da viagem para a qual foi celebrado o contrato de viagem organizada em causa (Secção C).

A.   A regra do forum actoris para os consumidores determina tanto a competência internacional como a competência territorial

18.

As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio relativas à função da regra do forum actoris para os consumidores exigem uma resposta breve. Esta decorre da própria letra do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. Uma comparação das duas disposições que contém é esclarecedora a este respeito. A regra do forum rei refere‑se aos «tribunais do Estado‑Membro» em que o profissional estiver domiciliado. Em contrapartida, a regra do forum actoris refere‑se ao «tribunal do lugar» onde o consumidor tiver domicílio. Esta diferença terminológica não é trivial. Foi redigido precisamente para indicar que, enquanto a primeira regra se limita a atribuir competência internacional ao sistema jurisdicional do Estado designado, considerado no seu conjunto, a segunda regra confere competência tanto internacional como territorial ao tribunal do domicílio do consumidor, independentemente da repartição de competências alternativamente prevista pelas regras processuais desse Estado ( 8 ).

19.

Contrariamente ao que sustenta a FTI, esta interpretação reflete exatamente a intenção do legislador da União. Este último procurou, com a regra em causa, permitir ao consumidor agir «o mais perto possível do seu domicílio» ( 9 ). Se as regras processuais do Estado‑Membro do domicílio do consumidor determinassem qual é o órgão jurisdicional competente desse Estado para conhecer dos seus pedidos, este resultado não seria muitas vezes atingido, precisamente porque, em Estados‑Membros como a Alemanha, essas regras designariam o tribunal da sede do fornecedor, que pode ser longe do domicílio do consumidor (aspeto ao qual voltarei adiante) ( 10 ).

B.   A regra do forum actoris para os consumidores só se aplica aos casos que contêm um elemento internacional

20.

Para que a regra do forum actoris, prevista no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, se aplique e determine a competência sobre um determinado processo, devem ser cumpridas duas exigências cumulativas. Primeiro, logicamente, este processo deve estar abrangido pelo âmbito de aplicação material do regime de competência (a seguir «regime de Bruxelas») em que esta regra se insere. Segundo, certos requisitos, próprios desta regra, devem estar preenchidos.

21.

A segunda exigência não é contestada no caso em apreço. Os requisitos em questão, que decorrem de ume leitura conjunta do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, estão, claramente cumpridos: o demandante tem estatuto de «consumidor», uma vez que se trata de um pedido «em matéria de contrato» ( 11 ) que celebrou «para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional» com um fornecedor; este contrato enquadra‑se nas categorias estabelecidas no artigo 17.o, n.o 1 (aspeto que analisarei mais pormenorizadamente posteriormente) ( 12 ); e o demandado no pedido é «a outra parte [nesse] contrato».

22.

Não obstante, um requisito adicional para a aplicação do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, resulta da primeira exigência. Em especial, enquanto o artigo 1.o, n.o 1, desse regulamento que define o âmbito de aplicação do regime de Bruxelas, nad diz sobre esta questão ( 13 ), o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a partir do seu Acórdão Owusu ( 14 ), que este regime só se aplica às relações jurídicas de «caráter internacional», ou seja, que tenham conexão com vários países ( 15 ).

23.

Este requisito implícito de «internacionalidade» decorre (e é inevitável à luz) da base jurídica do Regulamento Bruxelas I‑A, a saber, o artigo 81.o, n.o 2, TFUE. Esta disposição permite à União adotar medidas para a execução dos objetivos estabelecidos nesse artigo 81.o, n.o 1, que diz respeito à cooperação judiciária em «matéria civil que [tenha] incidência transfronteiriça». Em contrapartida, a União Europeia não dispõe de competência para regulamentar a competência em matéria civil desprovida de tal «incidência». Por conseguinte, este regulamento deve ser interpretado em conformidade.

24.

Este requisito está também em conformidade com o próprio objetivo do Regulamento Bruxelas I‑A. Enquanto instrumento de direito internacional privado (da União), foi concebido para o cenário em que um tribunal nacional é chamado a resolver um caso com conexão com um (ou mais) países que não o seu. Com efeito, estas conexões geram a possibilidade de os órgãos jurisdicionais desse outro país (ou desses outros países) conhecerem do litígio e, por extensão, levantam a questão de saber se é apropriado que o órgão jurisdicional no qual o processo foi instaurado conheça do litígio. O objetivo principal do regime de Bruxelas é resolver tais conflitos internacionais de competência. Embora algumas das suas regras, incluindo a regra do forum actoris para os consumidores, determinem tanto a competência internacional como a competência territorial (v. n.o 18, supra), estas resolvem a segunda questão de forma acessória, apenas para os casos em que a primeira questão se possa colocar. A sua função não é resolver os conflitos de competência internos em situações puramente internas ( 16 ).

25.

Resulta das considerações precedentes que a regra do forum actoris para os consumidores, à semelhança de todas as outras regras de competência previstas no Regulamento Bruxelas I‑A, só se aplica quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a decidir um processo que comporta um «elemento internacional» (ou seja, uma conexão pertinente com outro país). Neste caso, esta regra determina tanto a competência internacional como a competência territorial. Em contrapartida, não interfere com a repartição da competência territorial em situações puramente internas.

C.   Quanto à existência de um elemento internacional suficiente no presente processo

26.

Tendo isto sido esclarecido, como explica o órgão jurisdicional de reenvio, existe um debate aceso na Alemanha ( 17 ) sobre a questão de saber se o «elemento internacional» exigido para a aplicação do referido artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A está presente quando um tribunal de um Estado‑Membro é chamado a pronunciar‑se sobre um litígio entre um consumidor domiciliado nesse Estado e um operador turístico local, relacionado com a execução de um contrato de viagem organizada, celebrado para uma viagem ao estrangeiro (cenário que parece ser bastante comum) ( 18 ). Para além da tecnicidade desta questão, a questão material é a de saber se o consumidor, também nesta hipótese, pode recorrer ao tribunal do seu domicílio ao abrigo da regra do forum actoris prevista nessa disposição.

27.

O órgão jurisdicional de reenvio explica que a jurisprudência e a doutrina alemãs contêm pontos de vista divergentes sobre tais «falsas situações nacionais» (unechte Inlandsfälle, para retomar os termos desse órgão jurisdicional). A doutrina maioritária, que é sustentada pela FTI e pelo Governo Checo perante o Tribunal de Justiça, é que o artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A não se aplica a essas situações. A relação contratual em causa não apresenta o «caráter internacional» exigido quando as partes (o consumidor e o operador turístico) estão domiciliadas no mesmo Estado‑Membro. O facto de o destino da viagem para a qual o contrato foi celebrado se situar num país estrangeiro não é uma consideração relevante a este respeito. Segundo a doutrina minoritária, apoiada, no caso em apreço, pela Comissão, esta regra aplica‑se mesmo que as partes no litígio tenham domicílio no mesmo Estado. O destino estrangeiro da viagem confere à sua relação um caráter internacional.

28.

Na minha opinião, a doutrina minoritária é, de facto, a correta. Com efeito, deve ser adotado um entendimento amplo do conceito de «elemento internacional» para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A (1). Nos casos relacionados com a execução de um contrato de viagem organizada, o destino estrangeiro da viagem é um «elemento internacional» relevante a esse respeito (2). Por último, nem os termos nem o objetivo da Secção 4 requerem uma interpretação diferente (3).

1. Quanto à conceção ampla do «elemento internacional»

29.

A título preliminar, há que constatar que, embora o Regulamento Bruxelas I‑A não defina o «elemento internacional» exigido para a aplicação das suas regras, esse conceito deve ser interpretado de forma autónoma, por referência ao regime geral e aos objetivos deste regulamento, a fim de assegurar a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros ( 19 ).

30.

Na sua jurisprudência, desde o Acórdão Owusu, o Tribunal de Justiça adota geralmente, a este respeito, uma abordagem pragmática. Em seu entender, e em conformidade com a explicação dada no n.o 24, supra, um processo instaurado num tribunal de um Estado‑Membro contém um «elemento internacional» relevante quando este último «seja suscetível de levantar questões relativas à determinação da competência internacional desse órgão jurisdicional» ( 20 ). Por outras palavras, o regime de Bruxelas é desencadeado quando um processo apresenta um fator de conexão com um país estrangeiro — quer se trate de outro Estado‑Membro ou de um Estado terceiro — suficiente para gerar a possibilidade dos órgãos jurisdicionais desse país conhecerem desse litígio ( 21 ) e, por extensão, levanta a questão de saber se é apropriado (ou não) que o órgão jurisdicional no qual o processo foi instaurado o faça. Com efeito, em tal cenário, o regime em questão é um instrumento necessário para que esse órgão jurisdicional resolva essa questão.

31.

Na minha opinião, este critério deve ser aplicado de forma generosa. Para que o Regulamento Bruxelas I‑A cumpra o seu objetivo, deve aplicar‑se sempre ( 22 ) que surjam questões de competência internacional, nomeadamente, para evitar que eventuais conflitos de competência se transformem em verdadeiros conflitos. Além disso, dado que os objetivos de segurança jurídica e de previsibilidade prosseguidos por este instrumento ( 23 ) pressupõem que as partes no litígio possam facilmente prever qual o regime de competência que será aplicável ao seu litígio e que o tribunal do Estado‑Membro demandado determine facilmente a sua competência ( 24 ), não se deve complicar excessivamente a questão. Não se trata de verificar se os órgãos jurisdicionais estrangeiros têm efetivamente competência no caso em apreço ( 25 ). Basta que o fator de conexão entre o processo e o país estrangeiro em questão constitua uma razão plausível para que os seus órgãos jurisdicionais conheçam desse litígio.

32.

O caráter internacional de um processo decorre frequentemente do facto de o demandante e o demandado terem domicílio em Estados diferentes. Com efeito, o facto de um litigante estar domiciliado no respetivo território de qualquer um dos Estados constitui uma razão plausível para que os órgãos jurisdicionais de cada Estado se declarem competentes para conhecer do processo (como demonstram diversas disposições do Regulamento Bruxelas I‑A, entre as quais o artigo 18.o, n.o 1). No entanto, não é o único cenário possível. Como alega a Comissão, quando as partes no litígio têm domicílio num mesmo Estado, o caráter internacional do processo pode resultar de diversos fatores relacionados, inter alia, com o objeto do litígio ( 26 ).

33.

Embora pretenda deixar para a secção seguinte a aplicação do critério acima exposto ao presente processo, vou apresentar aqui alguns exemplos. Por exemplo, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a decidir um processo que, por um lado, diz respeito a dois litigantes domiciliados nesse Estado, mas, por outro, tem por objeto um ilícito ocorrido no estrangeiro ou o arrendamento de um imóvel situado noutro país, aplica‑se o Regulamento Bruxelas I‑A ( 27 ). Em ambos os exemplos, o critério de conexão do processo com um país estrangeiro é «suscetível de levantar questões relativas à determinação da competência internacional desse órgão jurisdicional». Com efeito, o facto de o ilícito ocorrer no território desse país estrangeiro ou de o imóvel em causa se situar aí constituem razões plausíveis para que os seus órgãos jurisdicionais se declarem competentes para conhecer do processo ( 28 ). O Regulamento Bruxelas I‑A confirma esta análise, uma vez que estes elementos constituem critérios de competência explícitos nos termos, respetivamente, do artigo 7.o, n.o 2 e do artigo 24.o, n.o 1 ( 29 ). Do mesmo modo, no Acórdão IRnova ( 30 ), o Tribunal de Justiça considerou corretamente que um litígio que opõe duas partes domiciliadas no mesmo Estado‑Membro a respeito do direito a patentes registadas em países terceiros possui um caráter «internacional». Quando um país tiver concedido uma patente, os seus órgãos jurisdicionais podem conhecer, de forma plausível, dos litígios que digam respeito a essa patente ( 31 ).

34.

É certo que o Tribunal de Justiça adotou uma abordagem um pouco diferente face ao «elemento internacional» exigido na aceção do Regulamento Bruxelas I‑A nos Acórdãos Parking and Interplastics ( 32 ), Generalno konsulstvo na Republika Bulgaria ( 33 ) e Inkreal ( 34 ).

35.

Num dos processos apensos que deu origem ao primeiro acórdão, foi submetida aos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro uma ação contra um demandado domiciliado nesse Estado por um demandante domiciliado noutro Estado. A Comissão expressou dúvidas quanto à presença do «elemento internacional» exigido para a aplicação do regime de Bruxelas. Embora isso fosse evidente na sequência do Acórdão Owusu, e o Tribunal de Justiça se tenha referido a esse acórdão, acrescentou um argumento suplementar. Em substância, o Tribunal de Justiça referiu‑se a outro instrumento da União, o Regulamento (CE) n.o 1896/2006 que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento ( 35 ), que se aplica apenas aos «casos transfronteiriços», e define este conceito como «[um caso] em que pelo menos uma das partes tem domicílio ou residência habitual num Estado‑Membro distinto do Estado‑Membro do tribunal demandado». Segundo o Tribunal de Justiça, esta definição pode «em princípio» servir para estabelecer o caráter internacional do processo na aceção do Regulamento Bruxelas I‑A, uma vez que há que assegurar a coerência entre os conceitos equivalentes destes dois instrumentos. Convenientemente, o Tribunal de Justiça declarou, alguns meses antes, que a situação em que o demandante tem o seu domicílio num Estado‑Membro diferente do do órgão jurisdicional chamado a decidir corresponde a esta definição ( 36 ).

36.

No segundo acórdão, o Tribunal de Justiça seguiu, abertamente, o acórdão anterior e, sem qualquer referência à sua linha jurisprudencial principal, aplicou em seguida a definição do conceito de «litígio transfronteiriço» prevista no Regulamento n.o 1896/2006 para reconhecer que uma ação intentada por uma pessoa com domicílio num Estado‑Membro contra o consulado desse Estado noutro país, relativamente aos serviços prestados por essa pessoa ao consulado nesse país, era (evidentemente) «internacional» para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A. Por último, no terceiro acórdão, o Tribunal de Justiça referiu‑se, primeiro, a esta definição e, segundo, ao critério referido no n.o 30 das presentes conclusões para decidir que a celebração, pelos litigantes domiciliados num Estado‑Membro, de pactos atributivos de jurisdição a favor dos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro constitui um «elemento internacional» suficiente para desencadear a aplicação deste regulamento ( 37 ).

37.

Partilho da crítica expressa pelos comentadores sobre esta nova abordagem à «internacionalidade» ( 38 ). Certamente, a vontade de assegurar a consistência do direito da União é louvável. Nesse sentido, as definições e a interpretação dadas para um instrumento da União podem, por vezes, ser transpostas para outro. No entanto, nem sempre é este o caso. É necessária prudência a este respeito, uma vez que conceitos semelhantes podem, em contextos diferentes, ter significados (muito) diferentes. Só quando existe uma proximidade suficiente entre os regimes gerais e os objetivos dos instrumentos em questão é que esse exercício se justifica. Não é o que sucede no presente caso. Embora o Regulamento Bruxelas I‑A e o Regulamento 1896/2006 se insiram, como indicou o Tribunal de Justiça, no domínio da cooperação judiciária em matéria civil com incidência transfronteiriça, a proximidade termina aqui.

38.

Por um lado, o Regulamento n.o 1896/2006 foi adotado para fazer face às dificuldades enfrentadas pelos credores que procuram cobrar créditos não contestados de devedores noutros Estados‑Membros. Este visa simplificar e acelerar a cobrança desses créditos, através da criação de um procedimento uniforme que permita a um credor obter, da parte de um tribunal de um Estado‑Membro, uma decisão judicial relativa a esse crédito, que pode ser facilmente executada no Estado‑Membro onde se encontram os bens do devedor, garantindo simultaneamente condições idênticas em matéria de direitos de defesa em toda a União Europeia ( 39 ). A definição de «caso transfronteiriço» dada por este regulamento, baseada no respetivo domicílio das partes e na sede do órgão jurisdicional chamado a decidir, tem, neste contexto, uma certa lógica. Quando as partes estão domiciliadas no mesmo Estado, as vias de recurso abertas pelos órgãos jurisdicionais desse Estado, por força do seu direito processual, são geralmente suficientes para garantir que o credor recupere rapidamente o seu crédito. Por conseguinte, o procedimento previsto por este regulamento não é necessário.

39.

Por outro lado, o Regulamento Bruxelas I‑A visa unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial. Essa definição é demasiado restrita e, por conseguinte, inadequada para esse fim. Conforme explicado nos n.os 32 e 33, supra, podem colocar‑se questões de competência internacional mesmo quando os litigantes têm domicílio no mesmo Estado‑Membro e os órgãos jurisdicionais desse Estado são chamados a pronunciar‑se ( 40 ). Além disso, este instrumento contém também regras relativas ao reconhecimento e à execução de decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. Para desempenharem o seu papel, estas regras devem aplicar‑se sempre que as autoridades de um Estado‑Membro sejam obrigadas a reconhecer ou a executar uma decisão proferida por um tribunal de outro Estado‑Membro, mesmo quando se trate de um litígio interno que oponha duas pessoas domiciliadas neste último Estado ( 41 ). Esta definição também não abarca esta situação.

40.

Dito isto, os Acórdãos Parking and Interplastics ( 42 ), Generalno konsulstvo na Republika Bulgaria ( 43 ) e Inkreal ( 44 ) podem ser conciliáveis com a linha jurisprudencial principal, desde que lidos no seguinte sentido. Uma vez que o conceito de «caso transfronteiriço», conforme definido no Regulamento 1896/2006, é mais restrito do que o conceito de «elemento internacional» utilizado para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A, se um litígio for «transfronteiriço», na aceção do primeiro regulamento, então, a fortiori, reveste «caráter internacional» na aceção do segundo regulamento. No entanto, um litígio pode muito bem ser «internacional», embora não corresponda à definição de «caso transfronteiriço».

41.

No entanto, para evitar qualquer incerteza suplementar quanto ao âmbito de aplicação «internacional» do regime de Bruxelas, convido o Tribunal de Justiça a abster‑se, no futuro, de se referir ao Regulamento n.o 1896/2006 neste contexto. Se o Tribunal de Justiça pretender inspirar‑se e assegurar a coerência com outros instrumentos sobre esta questão, o Regulamento (CE) n.o 593/2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) ( 45 ) e o Regulamento (CE) n.o 864/2007 relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) ( 46 ) são mais apropriados, como se verá adiante. Estes instrumentos são equivalentes ao Regulamento Bruxelas I‑A em matéria de conflitos de leis e o próprio legislador da União pretendeu interpretar de forma coerente o âmbito de aplicação material destes três regulamentos ( 47 ).

2. O destino da viagem é um «elemento internacional» relevante

42.

À luz da explicação dada na secção anterior, não há dúvida, na minha opinião, de que, como sustenta a Comissão, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a conhecer de um litígio que, por um lado, diz respeito a litigantes domiciliados nesse Estado, mas, por outro, tem por objeto a execução de um contrato de viagem organizada celebrado para efeitos de uma viagem com destino a um país estrangeiro, o destino da viagem constitui um «elemento internacional» relevante, que desencadeia as regras de competência previstas no Regulamento Bruxelas I‑A ( 48 ).

43.

O lugar de destino da viagem é também o lugar onde, nos termos do contrato de viagem organizada, os serviços (na sua maioria) foram ou deveriam ter sido prestados ao viajante (o voo aterraria nas proximidades, o hotel estaria localizado lá, e por aí adiante). Por outras palavras, este contrato foi ou devia ter sido executado no destino. Na minha opinião, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a decidir um litígio relativo à execução de um contrato e o lugar de cumprimento se situa num país estrangeiro, esse fator é «suscetível de levantar questões relativas à determinação da competência internacional desse órgão jurisdicional» ( 49 ). Uma conexão deste tipo levanta a possibilidade de os órgãos jurisdicionais desse país conhecerem do litígio. A este respeito, a objeção de FTI de acordo com a qual essa conexão é «meramente factual» e não «normativa» (o que quer que seja que essa última expressão queira dizer ao certo) ( 50 ) deixa‑me perplexo. Com efeito, essa conexão «factual» é a verdadeira razão pela qual se pode imaginar que os órgãos jurisdicionais desse país decidem tal processo (uma vez que a sua proximidade geográfica com o local de execução do contrato pode ser conveniente para decidir tal processo, em especial, no que diz respeito à recolha dos elementos de prova pertinentes). Isso é confirmado pelo facto de o local de execução do contrato, precisamente por essa razão, ser um critério opcional de atribuição de competência em litígios contratuais na União Europeia ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A ( 51 ), bem como em muitos Estados ( 52 ).

44.

O Acórdão Owusu corrobora diretamente esta interpretação. Recordo que, nesse processo, Owusu, que tinha domicílio no território do Reino Unido (na altura um Estado‑Membro), tinha celebrado um contrato de locação de férias com Jackson, também com domicílio no Reino Unido, a propósito de uma moradia na Jamaica. Owusu foi vítima de um acidente trágico na Jamaica, alegadamente devido às condições perigosas do lugar, e intentou uma ação contra Jackson por responsabilidade contratual. O Tribunal de Justiça considerou facilmente que o processo continha um «elemento internacional» pertinente para efeitos do regime de Bruxelas ( 53 ). O facto de dizer respeito à execução (deficiente) de um contrato na Jamaica era suficiente a este respeito, uma vez que este fator claramente levantava a possibilidade de os órgãos jurisdicionais desse país conhecerem desse litígio. A situação em causa no presente processo é semelhante.

45.

Na minha opinião, também se pode fazer uma analogia com o Regulamento Roma I e com a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça. À semelhança do Regulamento Bruxelas I‑A em matéria de competência judiciária, este instrumento determina a lei aplicável a um contrato quando a situação «[implique] um conflito de leis» ( 54 ). A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as regras do Regulamento Roma I são aplicáveis a qualquer relação contratual com um «elemento internacional». Com efeito, é somente quando esse contrato apresenta conexões com um país (ou países) diferente(s) do do órgão jurisdicional em que a ação foi intentada que esse contrato pode, potencialmente, ser regido por leis nacionais diferentes, em conflito, e que este órgão jurisdicional se pode interrogar sobre que lei aplicar para resolver um litígio. Nos termos da mesma jurisprudência, esse conceito de «elemento internacional» não está limitado aos domicílios respetivos das partes contratantes. O facto de o contrato dever ser cumprido noutro país constitui um «elemento» desse tipo ( 55 ). Essa conexão obviamente «[implica] um conflito de leis». O tribunal onde foi intentada a ação pode considerar a possibilidade de a lei do país de execução ser aplicável em vez da sua própria lei ( 56 ). Por conseguinte, as regras deste regulamento são necessárias para resolver este conflito ( 57 ).

46.

Contrariamente ao que a FTI deixa entender, esta interpretação não é, na minha opinião, posta em causa pelo Acórdão Maletic do Tribunal de Justiça ( 58 ), mesmo admitindo que este último criou uma certa incerteza a este respeito.

47.

Nesse processo, um casal de consumidores com domicílio na Áustria reservou, junto de um operador turístico estabelecido no mesmo Estado, umas férias organizadas ao Egito através do sítio Internet de uma agência de viagens estabelecida na Alemanha. Na sequência de um problema relativo ao seu hotel egípcio, os viajantes processaram tanto o agente de viagens como o operador turístico, por violação do contrato, perante o tribunal do lugar do seu domicílio, em aplicação da regra do forum actoris (então) prevista no artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. O órgão jurisdicional de reenvio perguntou se esta regra se aplicava ao operador turístico, uma vez que tinha a sua sede no mesmo Estado que os consumidores.

48.

O Tribunal de Justiça respondeu que as regras em causa eram aplicável aos dois demandados, mas adotou, de forma crucial, um raciocínio algo complicado a este respeito. O Tribunal de Justiça decidiu que «mesmo supondo que uma operação única, como a que levou [os consumidores] a reservar e a pagar a sua viagem organizada no sítio web [do agente de viagem], possa ser cindida em duas relações contratuais distintas com, por um lado, a agência de viagens em linha […] e, por outro, o operador de viagens […], esta última relação contratual não poderia ser qualificada de “puramente interna”, pois estaria indissociavelmente ligada à primeira relação contratual, tendo sido realizada por intermédio da referida agência de viagens situada noutro Estado‑Membro» ( 59 ).

49.

Muitos comentadores sublinharam o caráter complexo deste raciocínio e ficaram perplexos por o Tribunal de Justiça não mencionar o destino estrangeiro da viagem, uma vez que este fator teria demonstrado, de forma evidente, o caráter internacional do processo ( 60 ). No entanto, na minha opinião, o silêncio do Tribunal de Justiça sobre este ponto não deve ser entendido no sentido de que significa que este fator não constitui, em seu entender, um «elemento internacional» relevante. Existe uma simples explicação das razões pelas quais o Tribunal de Justiça se concentrou no caráter «indissociável» das ligações existentes entre os consumidores, a agência de viagens e o operador turístico. Existiam, de facto, duas questões distintas relativas à aplicação da regra do forum actoris para os consumidores nesses casos, nomeadamente, i) se os pedidos apresentados contra ambos os demandados eram «internacionais»; e (ii) se cada um deles pode ser considerado como «a outra parte no contrato» para efeitos desta regra ( 61 ). Com o seu raciocínio, o Tribunal de Justiça deu uma resposta sumária a ambas as questões: ao abrigo dessa regra, só existia uma relação contratual internacional, podendo a agência de viagens e o operador turístico, enquanto «outra[s] parte[s]» nessa relação, ser chamados a responder perante os órgãos jurisdicionais do domicílio dos consumidores. Em contrapartida, a referência ao destino da viagem teria resolvido a primeira questão, mas teria deixado a segunda em aberto. Daí a razão pela qual o Tribunal de Justiça não «mobilizou» esse fator na sua decisão.

50.

Também não estou convencido que o argumento do Governo Checo de que a interpretação sugerida nestas conclusões resultaria nos operadores turísticos serem processados de modo inesperado junto dos tribunais do domicilio dos seus clientes de modo contrário ao objetivo de previsibilidade prosseguido pelo Regulamento Bruxelas I‑A. Claramente, uma empresa ativa num setor internacional como o turismo é «razoavelmente previsível» que pode estar sujeita a um regime de competência desenhado para processos internacionais quando organiza e vende viagens para países estrangeiros ( 62 ).

51.

Em conclusão, devo precisar que, na minha opinião, não há que distinguir consoante o pedido do viajante diga especificamente respeito a um acidente sofrido por este no destino da viagem (em total analogia com Owusu), aos quartos do hotel sem qualidade ou, como no processo principal, o facto de o viajante nunca ter efetuado a viagem por não ter sido informado de que necessitava de visto ou porque nunca recebeu o seu bilhete de avião (e por aí adiante). Embora a conexão entre o pedido e o país estrangeiro possa ser mais forte em alguns casos do que noutros, recordo que não se deve complicar excessivamente a avaliação sobre a questão de saber se um litígio contêm um elemento internacional (v. n.o 31, supra). Não é necessário que o órgão jurisdicional do Estado‑Membro onde foi intentada a ação proceda a uma análise aprofundada do mérito do pedido para decidir essa simples questão. Qualquer processo que implique um pedido de um viajante contra um operador turístico relativo a problemas, independentemente da sua natureza precisa, sofridos pelo primeiro no âmbito de uma viagem ao estrangeiro organizada e vendida como «viagem organizada» pelo segundo, deve ser considerado internacional para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A, pelas razões acima expostas. O destino da viagem é um fator fácil de verificar e torna previsível o regime de competência aplicável às partes, tal como explicado no número anterior.

3. Nem os termos nem o objetivo da Secção 4 requerem uma interpretação diferente

52.

Ao contrário do que alega FTI, a interpretação sugerida nas presentes conclusões não é posta em causa pelo facto de a regra do forum actoris prevista no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, enquanto disposição excecional, dever ser objeto de interpretação estrita ( 63 ).

53.

Desde já, recordo que a exigência (implícita) de um «elemento internacional», que está no cerne do presente processo, define de forma geral o âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A. Assim sendo, esta exigência, em bom rigor, está abrangida pelo artigo 1.o, n.o 1 (v. n.o 22,supra), não pelo artigo 18.o, n.o 1 deste regulamento. Logicamente, deve ser medida recorrendo ao mesmo critério para todas as regras de competência previstas por este regulamento, independentemente da natureza da disposição específica em causa ( 64 ).

54.

Terminada esta observação preliminar, é claro para mim que interpretar esta exigência no sentido de que a regra do forum actoris prevista no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A se aplica a processos que envolvam um consumidor e um fornecedor domiciliados no mesmo Estado em relação a um contrato que foi, ou teve de ser, cumprido noutro Estado, não está em conflito com os termos da Secção 4.

55.

Começando pelo artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, recordo que este último exige, para a aplicação da Secção 4, que um contrato seja celebrado entre um consumidor e um fornecedor e que esse contrato esteja abrangido por uma das categorias referidas nas alíneas a) a c) desta disposição. As alíneas a) e b) dizem respeito a tipos de contratos (respetivamente, os contratos de compra e venda, a prestações, de bens móveis corpóreos e os contratos de crédito), sem nenhuma referência ao domicílio respetivo das partes contratantes. A alínea c) exige em todos os outros contratos (incluindo, portanto, os contratos de viagens organizadas), que o fornecedor tenha uma «atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor ou que dirija essa atividade, por quaisquer meios, a esse Estado‑Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado‑Membro, desde que o contrato seja abrangido por essa atividade». Não há nada, na redação desta disposição que indique, nem sequer que sugira, que o consumidor e o fornecedor devam necessariamente estar domiciliados em Estados diferentes ( 65 ). É evidente que um fornecedor pode ter «atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor» quando tem sede nesse país.

56.

Em segundo lugar, os termos do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A não limita a regra do forum actoris aos casos em que o consumidor e o profissional têm domicílio em Estados diferentes. Pelo contrário, esta disposição precisa que a regra em questão se aplica «independentemente do domicílio da outra parte». Estou bem consciente de que, como a FTI menciona, o aditamento desses termos tinha por objetivo permitir aos consumidores invocar esta regra contra fornecedores domiciliados em Estados terceiros ( 66 ). O facto é que, como salienta a Comissão, esses termos são suficientemente amplos para também abranger a situação em que o fornecedor está domiciliado no mesmo Estado‑Membro que o consumidor.

57.

Por fim, o artigo 19.o, n.o 1 do Regulamento Bruxelas I‑A, que impõe limites ao recurso aos pactos atributivos de jurisdição em matéria de direito dos consumidores, permite expressamente esses acordos quando sejam celebrados entre um consumidor e um fornecedor «ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado‑Membro», sob certas condições (v. n.o 3 desse artigo). É evidente que o legislador da União Europeia previu a possibilidade de as regras enunciadas na Secção 4, incluindo o artigo 18.o, n.o 1, se aplicarem mesmo neste cenário (desde que o processo contenha outro elemento internacional pertinente).

58.

A aplicação da regra do forum actoris prevista no artigo 18.o, n.o 1 do Regulamento Bruxelas I‑A a processos em que o consumidor e o fornecedor têm domicílio no mesmo Estado, mas o contrato em causa foi ou devia ser cumprido noutro país também não vai além do exigido pelo objetivo específico da Secção 4.

59.

Recordo que as regras da Secção 4 visam proteger o consumidor, enquanto parte considerada economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o fornecedor ( 67 ). Em especial, a regra do forum actoris em questão fá‑lo facilitando (em grande medida) o acesso do consumidor à justiça, para que não seja desencorajado de fazer valer os seus direitos ( 68 ).

60.

A este respeito, a FTI sustenta, na sequência da posição dominante acima exposta, que a única hipótese que o legislador da União quis evitar com esta regra foi que o consumidor fosse obrigado a intentar a sua ação junto dos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro. O legislador pretendeu proteger o consumidor de ser sujeito a um sistema jurídico estrangeiro, que funciona numa língua com a qual pode não está familiarizado, bem como à «distância pesada» que pode separar esse consumidor desses órgãos jurisdicionais estrangeiros. Esta proteção especial não se justifica quando o consumidor e o fornecedor estão domiciliados no mesmo Estado. Nesse caso, os órgãos jurisdicionais desse Estado são necessariamente competentes.

61.

Na minha opinião, se o facto de o consumidor ser dissuadido de fazer valer os seus direitos pelas dificuldades inerentes à propositura de uma ação contra um fornecedor num país estrangeiro é manifestamente o cenário principal que o legislador tinha em mente ( 69 ), esse não é o único cenário. Se assim fosse, o legislador ter‑se‑ia limitado a permitir ao consumidor intentar uma ação nos tribunais do Estado‑Membro do seu domicílio. O facto de o artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A ir mais longe, e permitir ao consumidor demandar o órgão jurisdicional específico do seu domicílio, mostra que os redatores estavam preocupados com o facto de o consumidor poder também ser dissuadido de agir se o tribunal competente, embora se encontrasse no Estado‑Membro em que residem, não fosse o do seu domicílio. Como o Tribunal de Justiça já salientou num contexto diferente ( 70 ), as distâncias que separam o consumidor do órgão jurisdicional competente poderiam também ser «pesadas» no mesmo Estado‑Membro — por exemplo, se o tribunal do domicílio do fornecedor fosse numa cidade remota —, por vezes mais do que entre dois Estados‑Membros ( 71 ), e dificultar a sua comparência ( 72 ). Ora, não se pode deixar de observar que o legislador também pretendeu evitar esta situação.

62.

A objeção da FTI segundo a qual as regras processuais dos Estados‑Membros não exigem sempre que o consumidor se apresente pessoalmente ou permitem, por vezes, uma audiência à distância, de modo que esse transtorno pode não ocorrer na prática, não é convincente. Poder‑se‑ia também objetar que, por força dessas regras processuais, o órgão jurisdicional competente, por vezes, se encontra relativamente próximo do domicílio do consumidor ( 73 ). No entanto, em outros casos, o consumidor pode ter de comparecer pessoalmente e o tribunal competente pode estar muito longe. Do mesmo modo, se o consumidor tivesse de agir noutro Estado‑Membro, poderia acontecer que algumas vezes conhecesse a língua e estivesse familiarizado com o processo dos seus órgãos jurisdicionais, o que poderia também ser‑lhes próximo. Pelo contrário, noutras situações, todo o processo poderia ser inteiramente estranho ao consumidor. Em suma, como alega a Comissão, a aplicação da regra do forum actoris prevista no n.o 1 do artigo 18 do Regulamento Bruxelas I‑A não pode depender de uma apreciação casuística das dificuldades práticas que o consumidor efetivamente enfrentaria no caso em apreço. Caso contrário, o alcance dessa regra seria imprevisível. Presume‑se que estas dificuldades existem na maioria dos casos e são tratadas em conformidade.

V. Conclusão

63.

Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga, Alemanha) do seguinte modo:

O artigo 1.o, n.o 1 e o artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, lidos em conjunto,

devem ser interpretados no sentido de que

a regra de competência a favor do tribunal do domicílio do consumidor, prevista na segunda disposição, é aplicável a uma ação intentada por um consumidor domiciliado no território de um Estado‑Membro contra um operador turístico domiciliado no mesmo Estado, a propósito de um contrato de viagem organizada celebrado para efeitos de uma viagem com destino a um país estrangeiro. Esta regra confere a esses órgãos jurisdicionais uma competência tanto internacional como territorial, sem referência às regras de repartição da competência territorial em vigor nesse Estado‑Membro.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (JO 2012, L 351, p. 1).

( 3 ) Uma «viagem organizada» é uma combinação de pelo menos dois tipos de serviços de viagem (como um voo e alojamento), para efeitos da mesma viagem, geralmente adquiridos num único ponto de venda e/ou vendidos a um preço global ou publicitados como uma viagem organizada (ver artigo 3.o, n.o 2 da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho (JO 2015, L 326, p. 1) (a seguir «Diretiva relativa às viagens organizadas»).

( 4 ) A decisão de reenvio não explica o que aconteceu a JX. É claro que, se este não tinha o visto exigido, não conseguiu chegar ao seu destino de férias.

( 5 ) V. Latil, C., «L’exécution défectueuse du contrat de vente de voyages à forfait en droit international privé», Revue critique de droit international privé, 2017, p. 199.

( 6 ) V, artigo 5.o, n.o 1, alínea f), da Diretiva relativa às viagens organizadas.

( 7 ) V. n.os 5, 6 e 9 supra.

( 8 ) V., inter alia, Mankowski, P., Nielsen, P. A., «Article 18», em Magnus, U., e Mankowski, P., Brussels Ibis Regulation. — Commentary, Otto Schmidt, Colónia, 2016, pp. 512 a 513, § 10, e Dickinson, A., Lein, E., The Brussels I Regulation Recast, Oxford University Press, Oxford, 2015, § 6.67. V., por analogia, Acórdãos de 3 de maio de 2007, Color Drack (C‑386/05, EU:C:2007:262, n.o 30); de 15 de julho de 2021, Volvo e o. (C‑30/20, EU:C:2021:604, n.o 33); e de 30 de junho de 2022, Allianz Elementar Versicherung (C‑652/20, EU:C:2022:514, n.o 38).

( 9 ) Comissão Europeia, Proposta de Regulamento (CE) do Conselho relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [COM(99) 348 final (JO 1999, C 376E, p. 1), exposição de motivos, p. 17.

( 10 ) V., inter alia, Mankowski, P., Nielsen, P. A., op. cit., pp. 512 a 513, § 10.

( 11 ) É o que acontece mesmo quando a ação não se baseia no contrato de consumo per se, mas na violação de uma obrigação imposta pela lei (v. n.o 13, supra). Com efeito, basta que esse pedido tenha surgido no âmbito desse contrato [v. Acórdão de 11 de julho de 2002, Gabriel (C‑96/00, EU:C:2002:436, n.o 58)].

( 12 ) V. n.o 55, infra. Ademais, enquanto o artigo 17.o, n.o 3, do Regulamento Bruxelas I‑A exclui os contratos de transporte do âmbito de aplicação da Secção 4, esta exclusão não diz respeito aos contratos de viagem organizada.

( 13 ) No que respeita ao âmbito de aplicação material deste regime, esta disposição limita‑se a indicar que se aplica à «matéria civil e comercial».

( 14 ) Acórdão de 1 de março de 2005 (C‑281/02, «Acórdão Owusu, EU:C:2005:120). Este acórdão diz respeito à Convenção relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria Civil e Comercial, assinada em Bruxelas em 27 de setembro de 1968 (JO 1978, L 304, p. 36), que foi posteriormente substituída pelo Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), por sua vez substituído pelo Regulamento Bruxelas I‑A. No entanto, deve ser assegurada uma continuidade da interpretação no que respeita ao âmbito de aplicação do regime de competência previsto por esses instrumentos [v., inter alia, Acórdão de 8 de setembro de 2022, IRnova (C‑399/21, EU:C:2022:648, n.o 29)]. Portanto, referir‑me‑ei, nas presentes conclusões, às várias decisões relativas a estes instrumentos sem distinguir entre estes.

( 15 ) V., inter alia, Acórdãos Owusu (n.os 25 e 26); de 19 de julho de 2012, Mahamdia (C‑154/11, EU:C:2012:491, n.o 39); e de 8 de setembro de 2022, IRnova (C‑399/21, EU:C:2022:648, n.o 27). V. também, implicitamente, considerandos 3 e 26 do Regulamento Bruxelas I‑A. V., também, relatório explicativo da Convenção de Bruxelas, preparado por P. Jenard (JO 1979 C 59, p. 1) (a seguir «Relatório Jenard»), p. 8. No Acórdão Owusu, o Tribunal de Justiça também clarificou que o processo não tem que englobar dois Estados‑Membros. O caráter internacional da relação em causa pode resultar da conexão com um país terceiro (v. n.os 24 a 26).

( 16 ) Quero sublinhar que, contrariamente ao que o Governo Checo dá a entender, quando, neste caso, as partes no litígio contestam apenas a questão de saber que órgão jurisdicional, num Estado‑Membro, é competente para conhecer do processo, a regra do forum actoris para os consumidores pode perfeitamente ser utilizada para resolver esse conflito de competência territorial, desde que o processo contenha um «elemento internacional».

( 17 ) Esta questão foi objeto de, pelo menos, cinco reenvios prejudiciais provenientes de órgãos jurisdicionais alemães. Foram arquivados dois processos (C‑317/20 e C‑62/22) antes de o Tribunal de Justiça se ter pronunciado. Estão pendentes dois processos (C‑108/23 e C‑648/23) e foram suspensos até que o Tribunal de Justiça se pronuncie no presente processo.

( 18 ) Os consumidores compram geralmente viagens a operadores turísticos locais (v. Latil, C., op. cit.).

( 19 ) V., inter alia, Acórdão de 14 de setembro de 2023, Club La Costa e o. (C‑821/21, EU:C:2023:672, n.o 46 e jurisprudência referida).

( 20 ) V., inter alia, Acórdãos Owusu (n.o 26); de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745, n.os 30 e 35); e de 8 de setembro de 2022, IRnova (C‑399/21, EU:C:2022:648, n,o 28).

( 21 ) V., neste sentido, Acórdão de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745, n.os 32 e 33). V., também Rogerson, P., «Article 1», em Magnus, U., e Mankowski, P., op. cit., p. 59, § 6. Portanto, nem todas as conexões com um país estrangeiro constituem um elemento internacional relevante. O fator em questão tem de ser suficientemente significativo para levantar este tipo de questões.

( 22 ) Desde que estejam preenchidas as restantes condições de aplicação desse instrumento.

( 23 ) V. considerando 15 do Regulamento Bruxelas I‑A.

( 24 ) V., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 61 e jurisprudência referida).

( 25 ) Pode tratar‑se de um exercício difícil e contraditório quando o país em questão não é um Estado‑Membro e, como tal, o Regulamento Bruxelas I‑A não é aplicável.

( 26 ) V., inter alia, Acórdãos Owusu (n.o 26), e de 8 de setembro de 2022, IRnova (C‑399/21, EU:C:2022:648, n.o 28). V. também, Relatório Jenard, p. 8, e Mankowski, P., Nielsen, P. A., «Introduction to Articles 17‑19», em Magnus, U., e Mankowski, P., op. cit., p. 448, §§ 23 e 24.

( 27 ) V. Acórdãos Owusu (n.o 26), e de 26 de março de 1992, Reichert e Kockler (C‑261/90, EU:C:1992:149, n.o 3), e Hartley, T., op. cit., § 2.05.

( 28 ) Considerando a proximidade desses órgãos jurisdicionais com os factos relevantes, o interesse legítimo dos Estados em julgar os ilícitos cometidos no seu território, a soberania tradicional dos Estados em controlar a terra dentro das suas fronteiras, e assim por diante.

( 29 ) O artigo 24.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A refere‑se mesmo ao cenário em que, tendo as partes domicílio no mesmo Estado, o imóvel se situa noutro Estado.

( 30 ) V. Acórdão de 8 de setembro de 2022 (C‑399/21, EU:C:2022:648, n.o 28).

( 31 ) «Dado que a concessão de uma […] patente é um exercício de soberania nacional (v., a este respeito, as minhas Conclusões no processo BSH Hausgeräte (C‑339/22, EU:C:2024:159, n.os 60 e 61 e jurisprudência referida). Assim, só quando as partes têm domicílio nos mesmos Estados, o processo é submetido aos órgãos jurisdicionais desse Estado, e todos os elementos razoavelmente relevantes para efeitos da competência estão situados nesse Estado, é que não se aplica o regime de Bruxelas, uma vez que não é possível que se levante, nesse caso, nenhum conflito internacional de competência. V. Acórdão de 14 de julho de 2022, EPIC Financial Consulting (C‑274/21 e C‑275/21, EU:C:2022:565, n.os 56 a 59). V. também Briggs, A., Civil Jurisdiction and Judgments, Informa Law, Oxon, 2015, 6.a ed., p. 56, e Hartley, T., op. cit., § 2.02. e 2.03.

( 32 ) Acórdão de 7 de maio de 2020 (C‑267/19 e C‑323/19, EU:C:2020:351).

( 33 ) Acórdão de 3 de junho de 2021 (C‑280/20, EU:C:2021:443).

( 34 ) Acórdão de 8 de fevereiro de 2024 (C‑566/22, EU:C:2024:123).

( 35 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 (JO 2006, L 399, p. 1), artigo 3.o, n.o 1.

( 36 ) V. Acórdão de 7 de maio de 2020, Parking and Interplastics (C‑267/19 e C‑323/19, EU:C:2020:351, n.os 27 a 36).

( 37 ) Acórdão de 8 de fevereiro de 2024, Inkreal (C‑566/22, EU:C:2024:123, n.os 19 a 24).

( 38 ) V., inter alia, Nuyts. A, «Chronique de DIP», Journal de droit européen, 2023, n.o 74, e Pailler, L., «Commentaire de CJUE, 7 mai 2020, aff. C‑267/19 e C‑323/19», Journal du droit international (Clunet), 2021.

( 39 ) V., considerandos 4 a 10 e artigos 1.o, n.o 1 e 18.o a 22.o do Regulamento 1896/2006.

( 40 ) Se o Regulamento Bruxelas I‑A não se aplicasse neste cenário, isso privaria algumas das suas regras do seu efeito útil. Em especial, o artigo 24.o confere, em certas matérias, competência exclusiva aos tribunais de um determinado Estado‑Membro, mesmo quando as partes tenham domicílio noutro Estado‑Membro. Quando a ação é submetida à apreciação dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que as partes têm o seu domicílio, não obstante o artigo 24.o, esta regra deve evidentemente aplicar‑se e esses órgãos jurisdicionais devem declarar‑se incompetentes.

( 41 ) O credor no contexto de tal litígio «interno» pode procurar que a decisão proferida pelo seu órgão jurisdicional local seja reconhecida e/ou executada noutro Estado‑Membro, se, por exemplo, o devedor tiver transferido os seus ativos para esse outro Estado.

( 42 ) Acórdão de 7 de maio de 2020 (C‑267/19 e C‑323/19, EU:C:2020:351).

( 43 ) Acórdão de 3 de junho de 2021C‑280/20, EU:C:2021:443).

( 44 ) Acórdão de 8 de fevereiro de 2024 (C‑566/22, EU:C:2024:123).

( 45 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008 (JO 2008, L 77, p. 6) (a seguir «Regulamento Roma I).

( 46 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007 (JO 2007, L 199, p. 40) (a seguir «Regulamento Roma II).

( 47 ) V. considerando 7 dos Regulamentos Roma I e Roma II.

( 48 ) V., inter alia, Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), 5 de novembro de 2008, n.o 07‑18.064, FR:CCASS:2008:C101090; Mankowski, P., Nielsen, P. A., «Introduction to Articles 17‑19», em Magnus, U., e Mankowski, P., op. cit., p. 448, § 23‑24; Latil, C., op. cit.; Ancel, M.‑E., «Commerce électronique‑Un an de droit international privé du commerce électronique», Communication Commerce électronique, 2014, n.o 1; Bogdanov, S., «Arrêt Maletic: un pas supplémentaire dans la protection des consommateurs face au commerce électronique des voyages à forfait», European Journal of Consumer Law, 2015, pp. 433 a 442, em especial p. 439; Chalas, C., «Compétence en matière de contrat conclu avec une agence de voyages», Revue critique de droit international privé, 2014, p. 639.

( 49 ) V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo Inkreal (C‑566/22, EU:C:2023:768, n.o 38 e jurisprudência referida).

( 50 ) A FTI remete para o raciocínio adotado por alguns órgãos jurisdicionais alemães segundo o qual qualquer incumprimento na execução das obrigações decorrentes do contrato, incluindo num país estrangeiro, só produz efeitos no quadro da relação contratual preexistente e puramente interna. O facto de o lugar de cumprimento se situar no estrangeiro é simplesmente uma consequência desta relação e não afeta o seu caráter. Com todo o devido respeito, na minha opinião, o caráter internacional de uma relação, para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A, deve ser apreciado à luz do critério amplo e pragmático enunciado no n.o 30, supra, e não de um raciocínio tão complicado.

( 51 ) V., inter alia, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Wikingerhof (C‑59/19, EU:C:2020:950, n.o 28 e jurisprudência referida). Contrariamente ao que sustenta o Governo Checo, o facto de o lugar de cumprimento não constituir, por força do Regulamento Bruxelas I‑A, um critério de competência para as subcategorias específicas de contratos abrangidos pela Secção 4 é irrelevante. A questão de saber se um processo é suscetível de suscitar questões de competência internacional e a resposta que o regulamento dá a estas questões no caso em apreço não devem ser confundidas [v. Acórdão de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745, n.o 31)]. Como foi indicado no n.o 33, supra, as regras do regulamento só contribuem para determinar o caráter internacional de um processo desde que confirmem que certos fatores de conexão são critérios de competência plausíveis e, enquanto tais, levantam a possibilidade de órgãos jurisdicionais estrangeiros conhecerem do litígio. O lugar de cumprimento está incluído nesta categoria. O facto de o legislador da União não ter adotado este critério para certos contratos celebrados pelos consumidores não altera isto. O argumento do Governo Checo pode também conduzir ao resultado bizarro em que um mesmo contrato de viagem organizada é considerado «interno» quando é celebrado por um consumidor e é, portanto, abrangido pela Secção 4, mas «internacional», quando é celebrado por um viajante que atua para as necessidades da sua atividade profissional e é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 7.o, n.o 1.

( 52 ) V. Hartley, T., op. cit., § 7.06. Uma vez que a oposição da FTI visa significar que tal situação apresenta conexões mais estreitas com o Estado‑Membro do domicílio dos dois contratantes, saliento que, embora isso possa ser verdade, é irrelevante para determinar a questão da internacionalidade. A este respeito, o que importa é a existência de uma conexão com o país de destino estrangeiro potencialmente relevante em termos de competência, e não a força relativa das ligações que o caso mantém com diferentes países.

( 53 ) V. Acórdão Owusu (n.o 26).

( 54 ) V. artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento Roma I. V., do mesmo modo, artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento Roma II.

( 55 ) V. Acórdão de 14 de setembro de 2023, Diamond Resorts Europe e o. (C‑632/21, EU:C:2023:671, n.os 51 a 53).

( 56 ) V. Calster (van), G., European Private International Law, Hart Publishing, Oxford, 2016, p. 240.

( 57 ) O lugar de cumprimento é um elemento de conexão pertinente uma vez que um Estado pode razoavelmente pretender regulamentar os contratos executados no seu território. Está expressamente previsto em diversas disposições do Regulamento Roma I [v., inter alia, artigo 5.o, n.o 1, artigo 5.o, n.o 2, alíneas d) e e), artigo 6.o, n.o 4, alínea a), artigo 8.o, n.o 2, artigo 9.o, n.o 3 do referido regulamento]. Mais uma vez, a circunstância de se poder considerar que esse contrato apresenta uma conexão mais estreita com o lugar de residência comum das partes, para efeitos da determinação da lei aplicável, é irrelevante para determinar, a montante, o caráter internacional da situação. A este respeito, o que importa é a existência de uma conexão com um país estrangeiro que possa ser relevante para efeitos de escolha da lei aplicável, e não a força relativa das ligações com diferentes países.

( 58 ) Acórdão de 14 de novembro de 2013 (C‑478/12, EU:C:2013:735).

( 59 ) Acórdão de 14 de novembro de 2013, Maletic (C‑478/12, EU:C:2013:735, n.o 29).

( 60 ) V. a literatura referida na nota 48, supra.

( 61 ) Com efeito, os consumidores não podem invocar a regra do forum actoris para intentar uma ação contra um terceiro ao contrato celebrado pelos consumidores (v. n.o 21, supra).

( 62 ) Também não vejo por que razão se trataria de uma diferença de tratamento injustificada se o mesmo operador de viagens alemão pudesse ser demandado pelo mesmo consumidor alemão num tribunal diferente na Alemanha, consoante o litígio dissesse respeito a um contrato de viagem para Berlim (Alemanha) ou a um contrato de viagem ao estrangeiro, como sugere o Governo Checo. Claramente, esta diferença de tratamento resulta da diferença de regime de competência aplicável a estes dois contratos, ela própria justificada pelo facto de o caráter internacional do segundo contrato ser tal que suscita questões de competência que o primeiro contrato não pode suscitar.

( 63 ) Por outro lado, o regime de Bruxelas é «hostil» em relação ao forum actoris [v., inter alia, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber (C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 33)].

( 64 ) V., no mesmo sentido, Mankowski, P., Nielsen, P. A., «Introduction to Articles 17‑19», em Magnus, U., e Mankowski, P., op. cit., p. 448, § 23.

( 65 ) V. Acórdão de 30 de setembro de 2021, Commerzbank (C‑296/20, EU:C:2021:784, n.os 42 a 44).

( 66 ) V. Dickinson, A., e Lein, E., op. cit., § 6.68; Hartley, T., op. cit., § 11.12.

( 67 ) V. considerando 18 do Regulamento Bruxelas I‑A.

( 68 ) V., inter alia, Dickinson, A., e Lein, E., op. cit., § 6.56, 6.64.

( 69 ) V., para esse efeito, inter alia, Acórdão de 14 de setembro de 2023, Club La Costa e o. (C‑821/21, EU:C:2023:672, n.o 43 e jurisprudência referida).

( 70 ) V. Acórdão de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial and Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, EU:C:2000:346, n.os 22 e 23).

( 71 ) A Comissão dá o exemplo de um consumidor domiciliado em Passau (Alemanha) e que deve instaurar um processo em Flensbourg (Alemanha) (cerca de 10 horas de distância de automóvel), ao passo que, se tivesse de intentar uma ação em Linz (Áustria), isso seria a 2 horas.

( 72 ) Sem dúvida, essa proteção visava igualmente incentivar os consumidores a consumirem além das fronteiras do seu próprio Estado, no mercado interno [v. Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona no processo Commerzbank (C‑296/20, EU:C:2021:733, n.o 26)]. No entanto, como alega a Comissão, a aplicação desta disposição não pode ser limitada a este cenário (como demonstra o facto de se aplicar a fornecedores de Estados terceiros). Visa, em geral, proteger os consumidores nos contratos internacionais.

( 73 ) Com efeito, é esse o caso no processo principal, uma vez que Nuremberga fica a 2 horas de carro de Munique.