CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ATHANASIOS RANTOS

apresentadas em 16 de novembro de 2023 ( 1 )

Processo C‑671/22

T GmbH

contra

Bezirkshautpmannschaft Spittal an der Drau

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Ação da União no domínio da política da água — Diretiva 2000/60/CE — Artigo 4.o, n.o 1, alínea a) — Objetivos ambientais relativos às águas de superfície — Obrigação dos Estados‑Membros de não autorizar um projeto suscetível de provocar uma deterioração do estado de uma massa de água — Anexo V, ponto 1.2.2 — Classificação do estado ecológico do elemento de qualidade biológica “fauna piscícola”»

Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial foi apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria) no âmbito de um recurso interposto pela sociedade T GmbH (a seguir «recorrente») na sequência do indeferimento do seu pedido de autorização para construir um hangar para embarcações num lago situado no Land da Caríntia (Áustria), com o fundamento de que o estado das águas desse lago não parecia preencher os requisitos impostos pelo direito da União, devido a uma má gestão dos recursos haliêuticos.

2.

O presente processo levar‑nos‑á a determinar se, para efeitos da definição do estado ecológico de um lago segundo os critérios indicados no quadro 1.2.2 do anexo V da Diretiva 2000/60/CE ( 2 ), devem ser tidos exclusivamente em conta os «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica», com exclusão de outros impactos antropogénicos.

Quadro jurídico

Direito da União

3.

O artigo 1.o da Diretiva 2000/60, sob a epígrafe «Objetivo», enuncia:

«O objetivo da presente diretiva é estabelecer um enquadramento para a proteção das águas de superfície interiores, das águas de transição, das águas costeiras e das águas subterrâneas que:

a)

Evite a continuação da degradação e proteja e melhore o estado dos ecossistemas aquáticos, e também dos ecossistemas terrestres e zonas húmidas diretamente dependentes dos ecossistemas aquáticos, no que respeita às suas necessidades em água;

[…]»

4.

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)

“Águas de superfície”: as águas interiores, com exceção das águas subterrâneas, das águas de transição e das águas costeiras, exceto no que se refere ao estado químico; este estado aplica‑se também às águas territoriais.

[…]

10)

“Massa de águas de superfície”: uma massa distinta e significativa de águas de superfície, como por exemplo um lago, uma albufeira, um ribeiro, rio ou canal, um troço de ribeiro, rio ou canal, águas de transição ou uma faixa de águas costeiras.

[…]

17)

“Estado das águas de superfície”: a expressão global do estado em que se encontra uma determinada massa de águas de superfície, definido em função do pior dos dois estados, ecológico ou químico, dessas águas.

18)

“Bom estado das águas de superfície”: o estado em que se encontra uma massa de águas de superfície quando os seus estados ecológico e químico são considerados, pelo menos, “bons”.

[…]

21)

“Estado ecológico”: a expressão da qualidade estrutural e funcional dos ecossistemas aquáticos associados às águas de superfície, classificada nos termos do anexo V.

22)

“Bom estado ecológico”: o estado alcançado por uma massa de águas de superfície, classificado como bom nos termos do anexo V.

[…]»

5.

O artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Objetivos ambientais», dispõe:

«1.   Ao garantir a operacionalidade dos programas de medidas especificados nos planos de gestão de bacias hidrográficas:

a)

Para as águas de superfície

i)

Os Estados‑Membros aplicarão as medidas necessárias para evitar a deterioração do estado de todas as massas de águas de superfície, em aplicação dos n.os 6 e 7 e sem prejuízo do disposto no n.o 8;

ii)

Os Estados‑Membros protegerão, melhorarão e recuperarão todas as massas de águas de superfície, sob reserva de aplicação da alínea iii) para as massas de água artificiais e fortemente modificadas, com o objetivo de alcançar um bom estado das águas de superfície 15 anos, o mais tardar, a partir da entrada em vigor da presente diretiva nos termos do anexo V, sob reserva da aplicação das prorrogações determinadas nos termos do n.o 4 e da aplicação dos n.os 5, 6 e 7 e sem prejuízo do disposto no n.o 8;

[…]»

6.

O ponto 1.2 do anexo V da mesma diretiva, sob a epígrafe «Definições normativas das classificações do estado ecológico», enuncia:

«Quadro 1.2. Definição geral para rios, lagos, águas de transição e águas costeiras

O texto que se segue dá uma definição geral da qualidade ecológica. Para efeitos de classificação, os valores dos elementos de qualidade do estado ecológico de cada categoria de águas de superfície serão os indicados nos quadros 1.2.1 a 1.2.4 adiante.

Elemento

Estado excelente

Estado bom

Estado razoável

Geral

Nenhumas (ou muito poucas) alterações antropogénicas dos valores dos elementos de qualidade físico‑químicos e hidromorfológicos do tipo de massa de águas de superfície em relação aos normalmente associados a esse tipo em condições não perturbadas.

Os valores dos elementos de qualidade biológica do tipo de massa de águas de superfície refletem os normalmente associados a esse tipo em condições não perturbadas e não apresentam qualquer distorção, ou mostram apenas uma distorção muito ligeira.

São estas as condições e comunidades específicas do tipo.

Os valores dos elementos de qualidade biológica do tipo de massa de águas de superfície apresentam baixos níveis de distorção resultantes de atividades humanas, mas só se desviam ligeiramente dos normalmente associados a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas.

Os valores dos elementos de qualidade biológica do tipo de massa de águas de superfície desviam‑se moderadamente dos normalmente associados a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas. Os valores mostram sinais moderados de distorção resultante da atividade humana e são significativamente mais perturbados do que em condições próprias do bom estado ecológico.

As águas num estado inferior a razoável serão classificadas de medíocres ou más.

Serão classificadas de medíocres as águas que apresentem alterações consideráveis dos valores dos elementos de qualidade biológica referentes ao tipo de massa de águas de superfície em questão e em que as comunidades biológicas relevantes se desviam substancialmente das normalmente associadas a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas.

Serão classificadas de más as águas que apresentem alterações graves dos valores dos elementos de qualidade biológica referentes ao tipo de massa de águas de superfície em questão e em que estejam ausentes grandes porções das comunidades biológicas relevantes normalmente associadas a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas.»

7.

Desta definição geral prevista no ponto 1.2 da Diretiva 2000/60 decorrem as definições específicas dos «estados ecológicos dos rios» (ponto 1.2.1), dos «lagos» (ponto 1.2.2), das «águas de transição» (ponto 1.2.3) e das «águas costeiras» (ponto 1.2.4) ( 3 ). Em cada uma destas quatro categorias, a apreciação do estado ecológico baseia‑se em três elementos, a saber, os elementos de qualidade biológica, os elementos de qualidade hidromorfológica e os elementos de qualidade físico‑química, compreendendo cada um destes elementos de qualidade uma longa lista de parâmetros.

8.

No que diz respeito mais especificamente aos lagos, o quadro 1.2.2 do anexo V desta diretiva, sob a epígrafe «Definição dos estados ecológicos “excelente”, “bom” e “razoável” dos lagos», prevê:

«Elementos de qualidade biológica

Elemento

Estado excelente

Estado bom

Estado razoável

[…]

[…]

[…]

[…]

Fauna piscícola

A composição e abundância de espécies correspondem totalmente ou quase às que se verificam em condições não perturbadas.

Estão presentes todas as espécies específicas do tipo sensíveis às perturbações.

A estrutura etária das comunidades piscícolas dá poucos sinais de perturbações antropogénicas e não indica falhas na reprodução ou desenvolvimento de quaisquer espécies.

Ligeiras modificações da composição e abundância das espécies em comparação com as comunidades específicas do tipo, atribuíveis a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica.

A estrutura etária das comunidades piscícolas dá sinais de perturbação atribuíveis a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica e, nalguns casos, indica falhas na reprodução ou desenvolvimento de certas espécies, ao ponto de faltarem algumas classes etárias.

A composição e abundância das espécies piscícolas diferem moderadamente das comunidades específicas do tipo, sendo tal facto atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica.

A estrutura etária das comunidades piscícolas dá sinais importantes de perturbação atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica, ao ponto de faltar uma percentagem moderada das espécies específicas do tipo, ou de existirem apenas em pequena quantidade.

[…]

[…]

[…]

[…]

Elementos de qualidade hidromorfológica

Elemento

Estado excelente

Estado bom

Estado razoável

[…]

[…]

[…]

[…]

Elementos de qualidade físico‑química

Elemento

Estado excelente

Estado bom

Estado razoável

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]»

Direito austríaco

9.

O § 30a, n.o 1, da Wasserrechtsgesetz 1959 (Lei de proteção da água de 1959), de 16 de outubro de 1959 ( 4 ), na sua versão de 22 de novembro de 2018 ( 5 ), enuncia, em substância, que as águas de superfície serão protegidas, melhoradas e recuperadas a fim de evitar a deterioração do seu estado. O estado‑alvo das águas de superfície é alcançado quando a massa de águas de superfície apresentar um estado ecológico e químico, pelo menos, bons.

10.

O § 104a, n.o 1, ponto 1, alínea b), da WRG prevê, em substância, que os projetos relativamente aos quais, devido a modificações das características hidromorfológicas de uma massa de águas de superfície ou de alterações do nível de massas de águas subterrâneas, é provável que o estado de uma massa de águas de superfície ou de uma massa de águas subterrâneas venham a deteriorar‑se, são, em qualquer circunstância, suscetíveis de ter impactos negativos sobre as considerações de ordem pública.

11.

O § 105, n.o 1, da WRG dispõe, no essencial, que um pedido de aprovação de um projeto pode ser indeferido por razões de interesse público, designadamente, quando possa ter como consequência que o estado ecológico das águas será consideravelmente prejudicado, ou quando se constante que o mesmo prejudica consideravelmente objetivos resultantes de outras disposições da legislação de direito comunitário.

Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

12.

Em 7 de novembro de 2013, a recorrente apresentou na Bezirkshauptmannshaft Spittal an der Drau (Autoridade Administrativa do Distrito de Spittal an der Drau, Áustria) um pedido de autorização para construir um hangar para embarcações (a seguir «projeto») no lago Weißensee, que é uma massa de água lêntica de origem natural com uma superfície de 6,53 km2, situada no Land de Caríntia (Áustria) (a seguir «lago»).

13.

Tendo este pedido sido indeferido por decisão de 25 de maio de 2016, a recorrente interpôs recurso para o Landesverwaltungsgericht Kärnten (Tribunal Administrativo Regional da Caríntia, Áustria), o qual, por Acórdão de 21 de fevereiro de 2020, confirmou a decisão de indeferimento. Segundo esse tribunal, a qualidade da fauna piscícola e, por conseguinte, o estado da globalidade das águas de superfície do lago era «medíocre», devido a uma má gestão dos recursos haliêuticos ( 6 ). Por conseguinte, o projeto deve ser proibido, tendo em conta as obrigações do Estado‑Membro em causa, por força da Diretiva 2000/60, de adotar medidas a fim de obter um «estado bom» das águas de superfície e de proibir qualquer medida suscetível de obstar ou que não tenha por objetivo contribuir para uma melhoria da qualidade dessas águas ( 7 ).

14.

Chamado a pronunciar‑se pela recorrente, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo), o órgão jurisdicional de reenvio, considera que a Diretiva 2000/60 não impõe que se recuse a autorização de projetos «neutros» — a saber, projetos que não contribuem para a obtenção de um bom estado das águas de superfície, se não culminarem numa deterioração do estado das massas de água — mas apenas que recuse a autorização de um projeto com efeitos não negligenciáveis no estado das massas de águas em causa.

15.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, importa, portanto, apreciar se o projeto afeta de forma significativa as medidas previstas ou exigidas para obter um bom estado das águas de superfície ( 8 ), o que suscita a questão de saber se o estado ecológico do lago deve ser classificado num nível inferior a «bom», o que desencadeia a obrigação de melhoria na aceção da Diretiva 2000/60. A este respeito, esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à questão de saber, em substância, se uma perturbação da fauna piscícola unicamente devida a medidas de gestão da pesca e não a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica tem impactos na classificação do estado de qualidade biológica «fauna piscícola», no ponto 1.2.2 do anexo V da Diretiva 2000/60, como «excelente», por um lado, e como «bom» ou «razoável», por outro.

16.

Nestas condições, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o anexo V, ponto 1.2.2 (Definição dos estados ecológicos “excelente”, “bom” e “razoável” dos lagos), da [Diretiva 2000/60], ser interpretado no sentido de que se deve entender por “perturbações” (“condições não perturbadas”), na tabela “Elementos de qualidade biológica”, linha “Fauna piscícola”, coluna “Estado excelente”, apenas os impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica?

Em caso de resposta negativa à primeira questão:

2)

Deve a referida disposição ser interpretada no sentido de que uma modificação do estado excelente do elemento de qualidade biológica “Fauna piscícola”, que resulte de outras perturbações que não os impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica implica que o elemento de qualidade biológica “Fauna piscícola” também não possa ser classificado como “bom” ou “razoável”?»

17.

A recorrente, os Governos Austríaco e Irlandês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça.

Análise

18.

Com as suas duas questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se, para efeitos da definição do estado ecológico de um lago (como «excelente», «bom» e «razoável») relativamente ao elemento de qualidade biológica «fauna piscícola» constante do quadro 1.2.2 do anexo V da Diretiva 2000/60 (a seguir «definição dos estados ecológicos da fauna piscícola»), devem ser tidos em conta exclusivamente os «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica», excluindo outros impactos antropogénicos, como os que resultam de medidas de gestão dos recursos haliêuticos ( 9 ).

19.

As dúvidas desse órgão jurisdicional dizem respeito ao facto de, na definição do estado ecológico da fauna piscícola como «excelente», esse quadro fazer referência, nomeadamente, à inexistência de perturbações antropogénicas sem mais esclarecimentos, ao passo que, na definição do estado ecológico da fauna piscícola como «bom» e «razoável», o referido quadro faz nomeadamente referência à presença, mais ou menos importante, de sinais de perturbação atribuíveis a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica.

20.

Nos números seguintes, após algumas reflexões preliminares sobre a pertinência das questões prejudiciais, examinarei o alcance das disposições em causa tendo em conta, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quer os seus termos quer o seu contexto, quer ainda os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte e, no caso em apreço, a génese desta regulamentação ( 10 ).

Observações preliminares

21.

Não há dúvida de que os impactos das medidas de gestão dos recursos haliêuticos, como o repovoamento de um lago com espécies não indígenas de peixes, constituem «impactos antropogénicos», ou seja, impactos causados por atividades humanas ( 11 ).

22.

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio considera que as medidas de gestão dos recursos haliêuticos em questão, embora sejam medidas com impactos antropogénicos, não constituem medidas que tenham tais impactos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ( 12 ). Esta abordagem é partilhada pela recorrente e pelos Governos Austríaco e Irlandês ( 13 ), ao passo que, segundo a Comissão, as medidas de gestão dos recursos haliêuticos podem ter impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ( 14 ).

23.

Concordo com a posição da Comissão. Com efeito, na minha opinião, resulta da própria etimologia do termo «hidromorfológica» que este inclui qualquer medida destinada a afetar o estado das águas, incluindo as medidas de gestão dos recursos haliêuticos ( 15 ). Mais especificamente, considero que a perturbação da fauna piscícola provoca, por definição, perturbações nos elementos de natureza físico‑química e hidromorfológica de uma massa de água ( 16 ).

24.

Ora, no caso de o Tribunal de Justiça acolher esta interpretação, as questões prejudiciais seriam desprovidas de pertinência, uma vez que as medidas de gestão dos recursos haliêuticos em causa no processo principal constituiriam, em todo o caso, medidas com impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica e deveriam ser tomadas em consideração para efeitos da definição do estado ecológico da fauna piscícola do lago.

25.

Assim sendo, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, baseado numa clara separação das funções dos órgãos jurisdicionais nacionais e do Tribunal de Justiça, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob a sua responsabilidade ( 17 ), e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência ( 18 ).

26.

Por conseguinte, nos números que se seguem irei propor uma resposta às questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que visam, no essencial, saber se os impactos antropogénicos sobre elementos diferentes dos de qualidade físico‑química e hidromorfológica são igualmente pertinentes para efeitos da classificação do estado ecológico de um lago no que respeita ao elemento de qualidade biológica «fauna piscícola», em conformidade com a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola.

Quanto à interpretação literal das disposições pertinentes

27.

A definição dos estados ecológicos da fauna piscícola inclui três categorias («excelente», «bom» e «razoável») cujos critérios são formulados de forma complexa, ou mesmo incoerente.

28.

Por um lado, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «excelente» exige o preenchimento das três condições seguintes:

a primeira exige que a composição e abundância de espécies correspondam totalmente ou quase às que se verificam em «condições não perturbadas»:

a segunda prevê a presença de todas as espécies específicas sensíveis às perturbações ( 19 );

A terceira exige que a estrutura etária das comunidades piscícolas dê poucos sinais de «perturbações antropogénicas» (sem mais) e não indique falhas na reprodução ou desenvolvimento de quaisquer espécies ( 20 ).

29.

Por outro lado, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «bom» e «razoável» remete para duas condições, que coincidem com a primeira e a terceira do «Estado excelente», mas são definidas de forma completamente diferente, a saber:

a primeira prevê que a composição e a abundância das espécies apresentam ligeiras modificações relativamente às comunidades específicas («Estado bom») ou diferem moderadamente das dessas comunidades («Estado razoável»), atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica;

a segunda estabelece que a estrutura etária das comunidades dá quer sinais de perturbação atribuíveis a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica e, nalguns casos, indica falhas na reprodução ou desenvolvimento de certas espécies, ao ponto de faltarem algumas classes etárias («Estado bom») quer sinais importantes de perturbação atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica, ao ponto de faltar uma percentagem moderada das espécies específicas do tipo, ou de existirem apenas em pequena quantidade («Estado razoável») ( 21 ).

30.

Por conseguinte, segundo a letra das disposições pertinentes, há que responder às duas questões prejudiciais no sentido de que, por um lado, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «excelente» não se refere apenas a perturbações atribuíveis a «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» e, por outro, as classificações do estado ecológico da fauna piscícola como «bom» e «razoável» apenas remetem para perturbações atribuíveis a «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» ( 22 ).

31.

No entanto, a formulação complexa, imprecisa e contraditória das definições examinadas torna extremamente difícil a aplicação destas disposições e comporta a necessidade de sanar essas dificuldades através de uma interpretação contextual e teleológica, tendo igualmente em conta a génese das referidas disposições.

Quanto à interpretação contextual das disposições pertinentes

32.

A definição dos estados ecológicos da fauna piscícola consta do ponto 1.2 do anexo V da Diretiva 2000/60, sob a epígrafe «Definições normativas das classificações do estado ecológico».

33.

O quadro 1.2 deste anexo, sob a epígrafe «Definição geral para rios, lagos, águas de transição e águas costeiras» (a seguir «definição geral da qualidade ecológica»), dá, nomeadamente, uma definição geral da qualidade ecológica dos rios, dos lagos, das águas de transição e das águas costeiras, a que se seguem as definições específicas dos estados ecológicos dos rios (ponto 1.2.1), dos lagos (ponto 1.2.2), das águas de transição (ponto 1.2.3) e das águas costeiras (ponto 1.2.4) ( 23 ). Em cada uma destas categorias de águas de superfície, para efeitos da apreciação do estado ecológico, os Estados‑Membros devem basear‑se em três categorias de elementos de qualidade, a saber, os elementos de qualidade biológica, os elementos de qualidade físico‑química e os elementos de qualidade hidromorfológica, incluindo, cada um dos referidos elementos de qualidade, parâmetros específicos ( 24 ).

34.

Por conseguinte, em princípio, o estado ecológico destes três elementos de qualidade é definido de forma independente, sendo a fauna piscícola analisada no contexto do elemento de qualidade biológica e não no dos elementos de qualidade hidromorfológica e físico‑química. Todavia, a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola, embora inserindo‑se no âmbito dos elementos de qualidade biológica, remete ela própria para as categorias «Estado bom» e «Estado razoável» (mas não para a categoria «Estado excelente»), para elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ( 25 ).

35.

Neste contexto, considero oportuno interpretar a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola à luz da definição geral da qualidade ecológica das águas de superfície.

36.

A este respeito, por um lado, no que respeita à categoria «Estado excelente», a definição geral da qualidade ecológica refere que «[o]s valores dos elementos de qualidade biológica do tipo de massa de águas de superfície refletem os normalmente associados a esse tipo em condições não perturbadas e não apresentam qualquer distorção, ou mostram apenas uma distorção muito ligeira» e precisa que «[s]ão estas as condições e comunidades específicas do tipo» ( 26 ). Por conseguinte, no que respeita aos elementos de qualidade biológica, esta definição não faz nenhuma referência às alterações antropogénicas dos valores dos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica.

37.

Por outro lado, no que respeita às categorias «Estado bom» e «Estado médio», esta definição exige, respetivamente, que «[o]s valores dos elementos de qualidade biológica do tipo de massa de águas de superfície apresentam baixos níveis de distorção resultantes de atividades humanas, mas só se desviam ligeiramente dos normalmente associados a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas» (categoria «Estado bom») e que esses valores «desviam‑se moderadamente dos normalmente associados a esse tipo de massa de águas de superfície em condições não perturbadas» e «mostram sinais moderados de distorção resultante da atividade humana e são significativamente mais perturbados do que em condições próprias do bom estado ecológico» (categoria «Estado razoável»).

38.

Por conseguinte, a definição geral da qualidade ecológica das águas de superfície não remete para perturbações ligadas a causas específicas, como as alterações antropogénicas dos valores dos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ( 27 ).

39.

Nestas circunstâncias, no que respeita, em primeiro lugar, à categoria «Estado excelente», parece‑me que as expressões utilizadas simultaneamente na definição geral da qualidade ecológica e na definição dos estados ecológico da fauna piscícola não permitem limitar a apreciação às perturbações ou distorções de natureza físico‑química e hidromorfológica ( 28 ).

40.

No que respeita, em segundo lugar, às categorias «Estado bom» e «Estado razoável», observo, a título preliminar, que a definição geral da qualidade ecológica e a dos estados ecológicos da fauna piscícola mencionam, de forma, na minha opinião, indistinta e acidental, quer a existência de «impactos antropogénicos» ou de «distorções resultantes da atividade humana» quer a existência de «perturbações» ou de «distorções» sem mais (não relacionadas, em princípio, com a atividade humana). Ora, tendo em conta a dificuldade em interpretar estas formulações imprecisas e incoerentes, parece‑me, antes de mais, que, se todas estas referências remetem (explícita ou implicitamente) para uma intervenção humana ( 29 ), isso deve‑se ao facto de as perturbações em questão serem normalmente causadas por uma atividade humana e não à intenção do legislador da União de limitar essa apreciação às intervenções humanas. Em seguida, considero que as referências aos impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica são utilizadas, de forma não exaustiva, para incluir qualquer intervenção humana, uma vez que são normalmente estes impactos (de natureza físico‑química e hidromorfológica) que estão na origem das modificações dos elementos de qualidade biológica e, portanto, da fauna piscícola ( 30 ). Por último, uma vez que os estados «bom» e «razoável» são definidos com base nos mesmos indicadores que o estado «excelente» (em função do desvio verificado), seria contraditório, na minha opinião, ter em conta qualquer perturbação na apreciação deste último estado e não ter em conta algumas dessas perturbações na medida do desvio entre o referido estado e os estados «bom» e «razoável».

41.

Estas considerações levam‑me a responder às questões prejudiciais no sentido de que, para efeitos da definição dos estados ecológicos da fauna piscícola, há que ter em conta qualquer perturbação ou alteração antropogénica.

Quanto à génese das disposições pertinentes

42.

No que respeita à génese das disposições pertinentes, observo que a redação da Diretiva 2000/60, e mais especificamente do seu anexo V, suscitou muitas discussões.

43.

Com efeito, as primeiras propostas de diretiva da Comissão ( 31 ) baseavam as definições dos estados ecológicos em elementos descritivos, sem exigir impactos específicos ( 32 ). As referências aos «impactos antropogénicos» e, mais especificamente, aos «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» foram introduzidas durante o processo legislativo ( 33 ). Todavia, uma vez que a razão destas alterações não é explicitada, parece‑me que não se podem retirar consequências específicas desta circunstância ( 34 ).

44.

Por conseguinte, na minha opinião, um estudo da génese das disposições pertinentes não fornece nenhuma indicação útil para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Quanto à interpretação teleológica das disposições pertinentes

45.

A Diretiva 2000/60 é uma diretiva‑quadro adotada com fundamento no artigo 175.o, n.o 1, CE (atual artigo 192.o, n.o 1, TFUE). A mesma diretiva estabelece princípios comuns e um quadro global de ação para a proteção das águas e assegura a coordenação, a integração assim como, a mais longo prazo, o desenvolvimento dos princípios gerais e das estruturas que permitam a proteção e uma utilização ecologicamente viável da água na União. Os princípios comuns e o quadro global de ação por ela estabelecidos devem ser posteriormente desenvolvidos pelos Estados‑Membros através da adoção de uma série de medidas particulares em conformidade com os prazos previstos por esta diretiva. Esta última não tem, porém, por objetivo a harmonização completa da legislação dos Estados‑Membros no domínio da água ( 35 ).

46.

Segundo o artigo 1.o, alínea a), desta diretiva, esta tem por objetivo estabelecer um enquadramento para a proteção das águas de superfície interiores, das águas de transição, das águas costeiras e das águas subterrâneas que evite a continuação da degradação e proteja e melhore o estado dos ecossistemas aquáticos, e também dos ecossistemas terrestres e zonas húmidas diretamente dependentes dos ecossistemas aquáticos, no que respeita às suas necessidades em água ( 36 ).

47.

Os objetivos ambientais que os Estados‑Membros são obrigados a atingir no que respeita às águas de superfície são precisados no artigo 4.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva, disposição que, como a jurisprudência do Tribunal de Justiça precisou, impõe dois objetivos distintos, embora intrinsecamente ligados. Por um lado, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, alínea a), i), da mesma diretiva, os Estados‑Membros aplicarão as medidas necessárias para evitar a deterioração do estado de todas as massas de águas de superfície (obrigação de evitar a deterioração). Por outro lado, em aplicação do artigo 4.o, n.o 1, alínea a), ii) e iii), da Diretiva 2000/60, os Estados‑Membros protegerão, melhorarão e recuperarão todas as massas de águas de superfície com o objetivo de alcançar um bom estado das mesmas, o mais tardar no fim de 2015 (obrigação de melhoria) ( 37 ). Quer a obrigação de melhoria quer a obrigação de evitar a deterioração do estado das massas de águas visam realizar os objetivos qualitativos que o legislador da União procura alcançar, concretamente a preservação ou a recuperação de um bom estado, de um bom potencial ecológico e de um bom estado químico das águas de superfície ( 38 ).

48.

Neste contexto, o artigo 4.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2000/60 não se limita a enunciar, através de uma formulação programática, simples objetivos de planeamento de gestão, mas tem efeitos vinculativos, uma vez determinado o estado ecológico da massa de águas em causa em cada etapa do procedimento descrito por esta diretiva. Esta disposição não contém apenas obrigações programáticas, mas diz também respeito a projetos concretos ( 39 ).

49.

No decurso do processo de aprovação de um projeto, e, portanto, antes da tomada de decisão, as autoridades nacionais competentes são obrigadas, por força do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2000/60, a verificar se esse projeto pode acarretar efeitos negativos para a água que sejam contrários às obrigações de prevenir a deterioração e de melhorar o estado das massas de água de superfície e subterrâneas ( 40 ).

50.

Nestas circunstâncias, parece‑me que, como alega a Comissão, seria pelo menos difícil assegurar a proteção completa (preservação e melhoria) do estado dos ecossistemas aquáticos se, na avaliação do estado da fauna piscícola dos lagos, se devesse ignorar as perturbações antropogénicas (na composição e abundância das espécies de peixes ou outras) que não fossem causadas por uma alteração dos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ( 41 ).

51.

Além disso, como alega o Governo Austríaco, uma interpretação estrita, segundo a qual a definição do estado «excelente» aplicada ao estado ecológico da fauna piscícola não deve ter em conta certas alterações antropogénicas, parece privar de pertinência o próprio elemento «fauna piscícola» ( 42 ). Com efeito, à luz dos objetivos da Diretiva 2000/60, seria difícil aceitar que certas deteriorações da fauna piscícola (como, eventualmente, deteriorações das unidades populacionais de peixes) não afetem a classificação da qualidade da fauna piscícola segundo as disposições pertinentes do anexo V desta diretiva.

52.

Por conseguinte, parece‑me que uma interpretação teleológica das disposições pertinentes confirma que, para efeitos da definição dos estados ecológicos da fauna piscícola, há que ter em conta todas as perturbações na composição e na abundância das espécies haliêuticas, bem como nas estruturas etárias destas comunidades piscícolas.

Considerações conclusivas

53.

Reitero a minha posição segundo a qual as medidas de gestão dos recursos haliêuticos devem ser qualificadas como tendo impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica. Esta interpretação privaria de pertinência as questões prejudiciais, no sentido de que estas medidas de gestão dos recursos haliêuticos seriam, em todo o caso, abrangidas pela definição de «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» e deveriam ser tidas em conta na definição de todos os estados ecológicos da fauna piscícola.

54.

Feita esta precisão, e deixando ao órgão jurisdicional de reenvio a tarefa de definir o quadro factual pertinente, abordei a questão, mais geral, de saber se a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola exige a tomada em consideração de qualquer medida com impactos antropogénicos, não devendo a referência aos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica ser interpretada no sentido de que limita a pertinência de qualquer outra medida com impactos antropogénicos.

55.

A este respeito, tendo em conta o que precede, proponho que se responda às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola como «Estado excelente», «Estado bom» e «Estado razoável» deve ser interpretada no sentido de que se deve entender por «perturbação antropogénica» qualquer perturbação que tenha por origem uma atividade humana, incluindo qualquer modificação suscetível de afetar a composição e a abundância das espécies de peixes.

Conclusão

56.

À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria) do seguinte modo:

A definição dos estados ecológicos do elemento de qualidade biológica «fauna piscícola» como «Estado excelente», «Estado bom» e «Estado razoável» constante do quadro 1.2.2 do anexo V da Diretiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2000, que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água,

deve ser interpretada no sentido de que:

se deve entender por «perturbação antropogénica» qualquer perturbação que tenha por origem uma atividade humana, incluindo qualquer modificação suscetível de afetar a composição e a abundância das espécies de peixes.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2000, que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água (JO 2000, L 327, p. 1).

( 3 ) Por último, uma categoria específica (ponto 1.2.5) diz respeito às «massas de água artificiais ou fortemente modificadas».

( 4 ) BGBl., 215/1959.

( 5 ) BGBl. I, 73/2018, a seguir «WRG».

( 6 ) Mais especificamente, o estado do elemento de qualidade biológica «fauna piscícola» do lago devia ser classificado como «medíocre», pelo facto de a composição e a abundância das espécies de peixes do lago se afastarem das comunidades específicas. Das oito espécies iniciais de peixes, apenas seis subsistem, enquanto nove espécies não indígenas se lhes juntaram, devido a uma má gestão das populações piscícolas.

( 7 ) Embora não provocando uma alteração do estado geral do lago, a construção do hangar para embarcações também não implica uma melhoria do estado das águas de superfície, uma vez que esta construção, situada perto da costa, deslocaria as zonas de desova dos peixes.

( 8 ) Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a apreciação destas medidas incumbe ao Landesverwaltungsgericht Kärnten (Tribunal Administrativo Regional da Caríntia).

( 9 ) Sendo estas medidas responsáveis, no caso em apreço, pela deterioração da fauna piscícola do lago.

( 10 ) V. Acórdão de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 30 e jurisprudência referida).

( 11 ) Com efeito, a maioria das versões linguísticas utiliza termos que indicam, de forma genérica, uma causa que tem origem numa qualquer intervenção humana, sem distinção, como os adjetivos «antropogen», na versão alemã, e «anthropogénique», na versão francesa, compostos pelos vocábulos gregos «άνθρωπος» (homem) e «γένος» (origem).

( 12 ) Por outras palavras, na categoria geral das medidas com impactos antropogénicos existem, por um lado, medidas que têm impactos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica e, por outro, medidas que têm outros impactos, como as medidas de gestão dos recursos haliêuticos.

( 13 ) No entanto, estas partes exprimem posições diferentes quanto à questão de saber se os impactos antropogénicos que não dizem respeito aos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica (entre os quais as medidas de gestão dos recursos haliêuticos) devem ser tidos em conta na classificação do estado de qualidade biológica «fauna piscícola», propondo o Governo Austríaco uma resposta afirmativa, enquanto a recorrente e o Governo Irlandês propõem uma resposta negativa.

( 14 ) A este respeito, a Comissão menciona vários estudos científicos.

( 15 ) Observo que o termo «hidromorfológico» diz respeito à morfologia das massas de água, sendo este vocábulo composto pelos termos gregos «ύδωρ» (água), «μορφή» (forma), e «λόγος» (estudo). Conforme indicado no sítio Internet «WISE Freshwater», alojado pela Agência Europeia do Ambiente (AEA), «hydromorphology refers to the Hydrological, morphological and river continuity conditions of rivers, lakes, Estuaries and coastal waters in undisturbed state». Este documento pode ser consultado (apenas em língua inglesa) no seguinte endereço: https://water.europa.eu/freshwater/europe‑freshwater/freshwater‑themes/hydromorphology.

( 16 ) Com efeito, na minha opinião, se a população de peixes muda, essencialmente, quanto ao seu número, à sua idade e às espécies presentes numa massa de água, isso implica inevitavelmente modificações dos seus elementos de natureza físico‑química e hidromorfológica. Esta alteração afeta, pelo menos, as fontes de alimentação dos peixes, o fitoplâncton, o fitobentos e a fauna bentónica, com incidência na qualidade das águas, mesmo quando essas alterações não se devam à atividade humana, mas a causas naturais como, por exemplo, as doenças dos peixes.

( 17 ) Com efeito, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para apreciar os factos do processo principal, examinar se as medidas de gestão dos recursos haliêuticos em causa podem ser consideradas medidas (antropogénicas) que têm impactos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica [v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2023, Glavna direktsia Pozharna bezopasnost i zashtita na naselenieto (Trabalho noturno) (C‑529/21 a C‑536/21 e C‑732/21 a C‑738/21, EU:C:2023:374, n.o 57)].

( 18 ) V., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2023, Ferrovienord (C‑363/21 e C‑364/21, EU:C:2023:563, n.os 52 a 55 e jurisprudência referida). Com efeito, o Tribunal de Justiça apenas está habilitado a pronunciar‑se sobre a interpretação ou a validade do direito da União à luz da situação factual e jurídica tal como descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio, sem poder pô‑la em causa nem verificar a sua exatidão, uma vez que o só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas.

( 19 ) Por outro lado, sem querer usurpar as competências do órgão jurisdicional de reenvio no que respeita à aplicação das disposições pertinentes ao caso em apreço, pergunto‑me se as medidas de gestão dos recursos haliêuticos em causa no processo principal não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação destas duas condições. Nesse caso, estas medidas seriam pertinentes para a classificação da fauna piscícola como estando em «excelente estado», independentemente da questão de saber se estão abrangidas pelo âmbito de aplicação das perturbações antropogénicas e, mais especificamente, dos impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica.

( 20 ) Em substância, as duas primeiras condições («composição, abundância e presença das espécies») parecem‑me ligadas à quantidade de espécies presentes e a terceira condição («estrutura etária das comunidades piscícolas») à sua qualidade.

( 21 ) O órgão jurisdicional de reenvio e as partes interessadas fazem uma interpretação mais simples, mas imprecisa, das definições do estado ecológico da fauna piscícola, visto que fazem uma distinção entre, por um lado, a classificação do estado da fauna piscícola como «excelente», baseada na inexistência de «perturbação atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» (sem mais) e, por outro, as classificações do estado da fauna piscícola como «bom» e «razoável» baseadas na existência de «perturbações antropogénicas sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica».

( 22 ) Todavia, se nos cingirmos rigorosamente à letra das definições, a solução é ainda mais rebuscada. Com efeito, antes de mais, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «excelente» não se refere apenas a perturbações atribuíveis a «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» mas também a outras «perturbações» (sem mais), no que respeita à composição e à abundância das espécies, e a outras «perturbações antropogénicas», no que respeita à estrutura etária das comunidades piscícolas. Em seguida, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «bom» remete para perturbações atribuíveis a «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica», no que respeita quer à composição e à abundância das espécies quer à estrutura etária das comunidades piscícolas (e, neste último caso, remete igualmente para a presença de falhas na reprodução ou desenvolvimento de uma espécie específica). Por último, a classificação do estado ecológico da fauna piscícola como «razoável» refere‑se a perturbações atribuíveis a «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica», no que respeita à composição e à abundância das espécies, e a «perturbação atribuível a impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» (sem mais), no que respeita à estrutura etária das comunidades piscícolas.

( 23 ) Por último, uma categoria específica (ponto 1.2.5) diz respeito às massas de água artificiais ou fortemente modificadas, que estão sujeitas a uma abordagem semelhante mas não idêntica.

( 24 ) Por exemplo, no que respeita aos elementos de qualidade biológica, trata‑se, nomeadamente, da estimativa do fitoplâncton, dos macrófitos e dos fitobentos, dos invertebrados bentónicos e da fauna piscícola. Como observa o advogado‑geral N. Jääskinen nas suas Conclusões no processo Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2014:2324, n.o 47), o estado ecológico de uma massa de água de superfície resulta da apreciação da estrutura e do funcionamento dos ecossistemas aquáticos associados a tal massa de água. É determinado através de um mecanismo de natureza científica baseado nos elementos de qualidade: biológico (espécies vegetais e animais), hidromorfológico e físico‑químico, sendo tais elementos apreciados em função de indicadores (por exemplo a presença de invertebrados ou de peixes num curso de água).

( 25 ) Dito isto, e sem querer invadir as competências do órgão jurisdicional de reenvio no que respeita à qualificação dos factos no processo principal, parece‑me que dificilmente se poderiam prever perturbações antropogénicas da qualidade ecológica de um lago (e nomeadamente da fauna piscícola) que não sejam de natureza físico‑química ou hidromorfológica. Por outro lado, as definições dos elementos de qualidade hidromorfológica e físico‑química remetem elas próprias várias vezes para os «valores […] especificados para os elementos de qualidade biológica», o que demonstra que estes elementos apresentam um certo grau de sobreposição.

( 26 ) A definição geral da qualidade ecológica menciona também a ausência ou a presença muito limitada de «alterações antropogénicas dos valores dos elementos de qualidade físico‑químicos e hidromorfológicos do tipo de massa de águas de superfície em relação aos normalmente associados a esse tipo em condições não perturbadas». Todavia, esta referência não é pertinente no caso em apreço, uma vez que se refere claramente, na minha opinião, aos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica, que são detalhados nas secções específicas do quadro 1.2.2 do anexo V da Diretiva 2000/60 e que não dizem respeito à definição de «fauna piscícola», que é regulada na secção desse quadro relativa ao elemento de qualidade biológica.

( 27 ) Observo que a referência às alterações antropogénicas dos valores dos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica também não existe em relação às categorias «medíocre» e «má». Estas categorias são definidas unicamente na definição geral da qualidade ecológica e não estão presentes na definição dos estados ecológicos da fauna piscícola. Por outro lado, ao contrário da definição de fauna piscícola, as definições dos outros elementos de qualidade biológica para lagos (tais como o fitoplâncton, os macrófitos e fitobentos e os invertebrados bentónicos) não contêm limitação aos tipos de causas em questão (por exemplo, às alterações antropogénicas). Todavia, esta constatação não é pertinente no que respeita à definição da fauna piscícola, uma vez que não se pode excluir, como alega a Comissão, que o legislador da União tenha pretendido estabelecer uma diferença entre a fauna piscícola e os outros elementos de qualidade biológicos.

( 28 ) Pelo contrário, parece‑me que as formulações utilizadas nas duas definições podem ser interpretadas no sentido de que vão além das perturbações «antropogénicas», para incluir qualquer perturbação, o que, todavia, não é pertinente no caso em apreço, uma vez que as medidas de gestão dos recursos haliêuticos têm sem dúvida uma natureza antropogénica.

( 29 ) Com efeito, mesmo quando os termos «perturbações» ou «distorções» são utilizados sem nenhuma outra referência, parece‑me que o legislador da União quis referir‑se às intervenções humanas, pela simples razão de que, na maior parte das situações, são essas intervenções que estão na origem da degradação da qualidade ecológica dos lagos.

( 30 ) Mais genericamente, parece‑me evidente que os diferentes elementos de qualidade interagem no ecossistema aquático. Isto é ainda mais evidente se se considerar que os quadros (específicos) do ponto 1.2.2 do anexo V relativos aos elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica (ou seja, aos elementos diferentes do elemento biológico) remetem eles próprios, por diversas vezes, para os valores indicados para os elementos de qualidade biológica (v., igualmente, nota de rodapé 25 das presentes conclusões).

( 31 ) V. proposta de diretiva do Conselho que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água [COM (97)49 final (JO 1997, C 184, p. 20)]; proposta alterada de diretiva do Conselho que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água [COM (97)614 final (JO 1998, C 16, p. 14)] e proposta alterada de diretiva do Conselho que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água [COM (98)76 final (JO 1998, C 108, p. 94)].

( 32 ) V., nomeadamente, no que respeita aos lagos, a definição dos estados ecológicos da fauna piscícola («excelente», «bom» e «razoável») do quadro 1.1.2.2 do anexo V da proposta alterada de diretiva do Conselho que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água [COM (98)76 final].

( 33 ) Salvo erro da minha parte, as referências aos «impactos antropogénicos» e aos «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica» apareceram pela primeira vez no parecer da Comissão, nos termos do n.o 2, alínea c) do artigo 251.o do Tratado CE, sobre as alterações do Parlamento Europeu à posição comum do Conselho respeitante à proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a um quadro de ação comunitária no domínio da política da água [COM (2000) 219 final].

( 34 ) Por outro lado, como salienta a Comissão, não creio que se possa concluir que o legislador da União tenha tido a intenção de evitar conflitos com a política das pescas, como considera o órgão jurisdicional de reenvio e alega a recorrente. Com efeito, a política das pescas, que, aliás, não foi mencionada como estando na origem destas formulações, deve ela própria estar sujeita às restrições necessárias à proteção do ambiente e dos recursos haliêuticos. A este respeito, não basta a referência genérica, no considerando 16 da Diretiva 2000/60, à necessidade de continuar a integrar a proteção e a gestão sustentável da água noutras políticas comunitárias, como, nomeadamente, a das pescas. Se tivesse sido essa a intenção do legislador, este não o teria conseguido, tendo em conta o caráter negligenciável da diferença introduzida entre os «impactos antropogénicos» sem mais e os «impactos antropogénicos sobre os elementos de qualidade físico‑química e hidromorfológica».

( 35 ) V. Acórdão de 24 de junho de 2021, Comissão/Espanha (Deterioração do espaço natural de Doñana) (C‑559/19, EU:C:2021:512, n.o 35 e jurisprudência referida).

( 36 ) A este respeito, o advogado‑geral N. Jääskinen, nas suas Conclusões no processo Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2014:2324, n.o 39), salientou que a Diretiva 2000/60 tem por objetivo último a conformidade com o critério do «Estado bom» de todas as águas de superfície e subterrâneas da União até 2015 (v. também o considerando 25 desta diretiva).

( 37 ) V. Acórdão de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 39). Nesse acórdão (n.o 40), o Tribunal de Justiça precisou também que a origem destes dois objetivos decorre dos trabalhos preparatórios da Diretiva 2000/60. No que respeita, particularmente, à obrigação de prevenir a deterioração do estado das águas de superfície, as disposições em causa, na sua primeira versão, podiam significar que, uma vez adotada a Diretiva 2000/60, as massas de águas classificadas numa categoria superior à de «Estado bom» podiam degradar‑se até se inserirem nesta última categoria. Foi por esta razão que o Parlamento Europeu propôs uma alteração que permitia distinguir entre a obrigação de alcançar um «Estado bom» e a de evitar qualquer deterioração introduzindo, no artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, um novo travessão que impunha distintamente esta última obrigação.

( 38 ) V. Acórdão de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 41), bem como as minhas Conclusões no processo Sweetman (C‑301/22, EU:C:2023:697, n.o 52).

( 39 ) V. Acórdão de 5 de maio de 2022, Association France Nature Environnement (Impactos temporários nas águas de superfície) (C‑525/20, EU:C:2022:350, n.o 24 e jurisprudência referida).

( 40 ) V. Acórdão de 5 de maio de 2022, Association France Nature Environnement (Impactos temporários nas águas de superfície) (C‑525/20, EU:C:2022:350, n.o 26). Por outro lado, os Estados‑Membros são obrigados, quando apreciam a compatibilidade de um programa ou de um projeto concreto com o objetivo de prevenir a deterioração da qualidade das águas, a ter em conta os impactos temporários de curta duração e sem consequências a longo prazo sobre estas, a menos que seja manifesto que esses impactos só têm, por natureza, pouca incidência no estado das massas de água em causa e que não são suscetíveis de provocar uma «deterioração» desse estado, na aceção do artigo 4.o da Diretiva 2000/60. Quando, no âmbito do processo de aprovação de um programa ou de um projeto, as autoridades nacionais competentes determinam que este é suscetível de provocar tal deterioração, esse programa ou esse projeto só pode, mesmo que essa deterioração seja de caráter temporário, ser autorizado se estiverem preenchidas as condições previstas no artigo 4.o, n.o 7, desta diretiva [v. Acórdão de 5 de maio de 2022, Association France Nature Environnement (Impactos temporários nas águas de superfície) (C‑525/20, EU:C:2022:350, n.o 45)]. A este respeito, há deterioração de uma massa de águas de superfície a partir do momento em que o estado de, pelo menos, um dos elementos de qualidade, na aceção do anexo V da diretiva, se degradar uma classe, mesmo que essa degradação não se traduza numa degradação da classificação da massa de águas de superfície no seu conjunto. No entanto, caso o elemento de qualidade em causa, na aceção deste anexo, já se encontre na classe mais baixa, qualquer deterioração deste elemento constitui uma «deterioração do estado» de uma massa de águas de superfície, na aceção deste artigo 4.o, n.o 1, alínea a), i), da referida diretiva (v. Acórdão de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 69).

( 41 ) Aliás, o Tribunal de Justiça precisou que a obrigação de prevenir a deterioração do estado de uma massa de água mantém todo o seu efeito útil, desde que abranja qualquer alteração suscetível de comprometer a realização do objetivo principal da Diretiva 2000/60 (v. Acórdão de 28 de maio de 2020, Land Nordrhein‑Westfalen (C‑535/18, EU:C:2020:391, n.o 100).

( 42 ) A maioria das versões linguísticas utiliza termos que designam o conjunto dos peixes que habitam uma superfície de água, como «Fishfauna» na versão alemã e «ichtyofaune» na versão francesa.