CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 11 de abril de 2024 ( 1 )

Processo C‑600/22 P

Carles Puigdemont i Casamajó,

Antoni Comín i Oliveres

contra

Parlamento Europeu

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Direito institucional — Membros do Parlamento Europeu — Decisões que recusam permitir que os recorrentes, eleitos membros do Parlamento Europeu, ocupem os seus lugares de deputados e que os privam de todos os direitos que lhes estão associados — Recurso de anulação com pedido de indemnização»

Introdução

1.

Os factos na origem do presente litígio remontam ao referendo «de autodeterminação» organizado na Catalunha (Espanha) em 1 de outubro de 2017 e às repercussões jurídicas e políticas desse evento. O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se debruçar sobre as consequências destes factos do ponto de vista do direito da União, na medida em que certas pessoas envolvidas nos eventos em causa participaram com sucesso nas eleições para o Parlamento Europeu.

2.

Nomeadamente, no seu Acórdão Junqueras Vies ( 2 ), o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre o momento em que um candidato eleito obtém a qualidade de membro do Parlamento. O presente recurso diz respeito, em grande parte, à interpretação desse acórdão e aos ensinamentos que dele decorrem.

3.

Nas presentes conclusões, de acordo com a vontade do Tribunal de Justiça, concentrar‑me‑ei no primeiro fundamento do presente recurso, que tem a maior importância no caso presente e que suscita questões de caráter constitucional para o direito da União — as do estatuto dos membros do Parlamento e da repartição de competências entre a União e os Estados‑Membros no que respeita à eleição desses membros. Foi também este o fundamento a que as partes consagraram a parte de leão nos seus articulados.

Quadro jurídico

4.

Nos termos do artigo 9.o do Protocolo (n.o 7) relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia ( 3 ), anexo aos Tratados UE e FUE (a seguir «Protocolo»):

«Enquanto durarem as sessões do Parlamento Europeu, os seus membros beneficiam:

a)

No seu território nacional, das imunidades reconhecidas aos membros do Parlamento do seu país.

b)

No território de qualquer outro Estado‑Membro, da não sujeição a qualquer medida de detenção e a qualquer procedimento judicial.

Beneficiam igualmente de imunidade, quando se dirigem para ou regressam do local de reunião do Parlamento Europeu.

A imunidade não pode ser invocada em caso de flagrante delito e não pode também constituir obstáculo ao direito de o Parlamento Europeu levantar a imunidade de um dos seus membros.»

5.

O Ato relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal direto, anexo à Decisão 76/787/CECA, CEE, Euratom do Conselho, de 20 de setembro de 1976 ( 4 ), conforme alterado pela Decisão 2002/772/CE, Euratom do Conselho, de 25 de junho de 2002 e de 23 de setembro de 2002 ( 5 ) (a seguir «Ato Eleitoral»), rege, a nível do direito da União, as eleições para o Parlamento. O artigo 8.o, primeiro parágrafo, desse ato dispõe:

«Sob reserva do disposto no presente ato, o processo eleitoral será regulado, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais.»

6.

Nos termos do artigo 12.o desse ato:

«O Parlamento Europeu verificará os poderes dos deputados do Parlamento Europeu. Para o efeito, registará os resultados proclamados oficialmente pelos Estados‑Membros e deliberará sobre as reclamações que possam eventualmente ser feitas com base nas disposições do presente Ato, com exceção das disposições nacionais para que ele remete.»

7.

O artigo 13.o, n.o 1, do mesmo ato dispõe:

«Um lugar fica vago quando o mandato de um deputado do Parlamento Europeu chega ao seu termo, por demissão ou morte deste ou pela perda do mandato.»

8.

A organização interna do Parlamento rege‑se pelo seu Regimento. O artigo 3.o do regimento aplicável à nona legislatura (2019‑2024; a seguir «Regimento») dispõe:

«1.   Após as eleições gerais para o Parlamento […], o Presidente [do Parlamento] convida as autoridades competentes dos Estados‑Membros a comunicar sem demora ao Parlamento os nomes dos deputados eleitos, a fim de que todos os deputados possam ocupar o seu lugar no Parlamento desde o início da primeira sessão seguinte às eleições.

Ao mesmo tempo, o Presidente [do Parlamento] chama a atenção das referidas autoridades para as disposições pertinentes do ato [eleitoral], convidando‑as a tomar as medidas necessárias para evitar qualquer incompatibilidade com o mandato de deputado ao Parlamento […].

2.   Os deputados cuja eleição tenha sido comunicada ao Parlamento devem declarar por escrito, antes de ocuparem o seu lugar no Parlamento, que não exercem funções incompatíveis com o mandato de deputado ao Parlamento […], nos termos do artigo 7.o, n.o 1 ou n.o 2, do Ato [Eleitoral]. Após as eleições gerais, a declaração em causa será feita, se possível, o mais tardar seis dias antes da primeira sessão do Parlamento seguinte às eleições. Enquanto os seus poderes não tiverem sido verificados ou não tiver havido decisão sobre uma eventual impugnação, os deputados terão assento no Parlamento e nos respetivos órgãos no pleno gozo dos seus direitos, desde que tenham assinado previamente a declaração escrita acima citada.

Caso factos verificáveis a partir de fontes acessíveis ao público permitam estabelecer que um deputado exerce funções incompatíveis com o mandato de deputado ao Parlamento […], nos termos do artigo 7.o, n.o 1 ou n.o 2, do Ato [Eleitoral], o Parlamento, com base em informações prestadas pelo seu Presidente, verifica a abertura da vaga.

3.   Com base num relatório da comissão competente, o Parlamento verifica sem demora os poderes e delibera sobre a validade do mandato de cada um dos deputados recém‑eleitos, bem como sobre eventuais impugnações apresentadas nos termos do disposto no Ato [Eleitoral], com exceção das que, nos termos desse Ato, sejam regidas exclusivamente pelas disposições nacionais para que o Ato remete.

O relatório da comissão baseia‑se na comunicação oficial de cada Estado‑Membro relativa à totalidade dos resultados eleitorais, que especifica os nomes dos candidatos eleitos e dos suplentes pela ordem de classificação decorrente da votação.

Os mandatos dos deputados só podem ser validados após terem sido feitas as declarações escritas previstas no presente artigo e no anexo I do presente Regimento.

[…]»

Antecedentes do litígio, acórdão recorrido, tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

9.

Com o presente recurso, Carles Puigdemont i Casamajó e Antoni Comín i Oliveres pedem a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 6 de julho de 2022, Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento (T‑388/19, a seguir acórdão recorrido, EU:T:2022:421), que julgou inadmissível o seu recurso de anulação da instrução de 29 de maio de 2019 do Presidente do Parlamento ( 6 ) que lhes recusou o benefício do serviço de acolhimento e de assistência oferecido aos novos deputados europeus (a seguir «instrução de 29 de maio de 2019») e da recusa de esse Presidente lhes reconhecer a qualidade de deputados do Parlamento e de tomar uma iniciativa urgente para confirmar as suas imunidades com base no artigo 8.o do Regimento, contidas numa carta dirigida aos recorrentes em 27 de junho de 2019 (a seguir «ato de 27 de junho de 2019»).

Antecedentes do litígio

10.

Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 13 a 36 do acórdão recorrido. Podem ser resumidos da seguinte forma.

11.

C. Puigdemont i Casamajó Comín i Oliveres e A. eram, respetivamente, presidente da Generalitat de Cataluña (órgãos de governo da Região Autónoma da Catalunha, Espanha) e membro do Gobierno autonómico de Cataluña (Governo Autonómico da Catalunha, Espanha) no momento da adoção da Ley 19/2017 del Parlamento de Cataluña, reguladora del referéndum de autodeterminación (Lei 19/2017 do Parlamento da Catalunha, sobre o referendo de autodeterminação), de 6 de setembro de 2017 ( 7 ), e da Ley 20/2017 del Parlamento de Cataluña, de transitoríedad jurídica y fundacional de la República (Lei 20/2017 do Parlamento da Catalunha, relativa à transitoriedade jurídica e fundadora da República), de 8 de setembro de 2017, p. 1 ( 8 )), bem como no momento da realização, em 1 de outubro de 2017, do referendo de autodeterminação previsto na primeira dessas duas leis, cujas disposições tinham, entretanto, sido suspensas por decisão do Tribunal Constitucional (Tribunal Constitucional, Espanha).

12.

Na sequência da adoção dessas leis e da realização desse referendo, o Ministerio fiscal (Ministério Público, Espanha), o Abogado del Estado (advogado do Estado, Espanha) e o Partido político VOX [partido político VOX (Espanha)] instauraram um processo penal, nomeadamente contra os recorrentes, acusados de terem cometido, entre outras, as infrações de «sedição» e de «desvio de fundos públicos». Por Despacho de 9 de julho de 2018, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) declarou os recorrentes contumazes, na sequência da sua fuga de Espanha, e suspendeu o processo penal instaurado contra eles até que fossem encontrados.

13.

Seguidamente, os recorrentes candidataram‑se e foram eleitos nas eleições para o Parlamento que se realizaram em Espanha em 26 de maio de 2019.

14.

Através da instrução de 29 de maio de 2019, o Presidente do Parlamento instruiu o secretário‑geral dessa instituição, por um lado, no sentido de recusar a todos os candidatos eleitos em Espanha o acesso à «welcome village», bem como o benefício da assistência prestada aos candidatos recém‑eleitos ao Parlamento (a seguir «serviço especial de acolhimento») e, por outro, de suspender a sua acreditação até que o Parlamento tivesse oficialmente recebido confirmação da sua eleição, em conformidade com o artigo 12.o do Ato Eleitoral.

15.

Em 13 de junho de 2019, a Junta Electoral Central (comissão eleitoral central, Espanha) adotou uma decisão de «Proclamação dos deputados eleitos para o Parlamento Europeu nas eleições organizadas em 26 de maio de 2019» ( 9 ) (a seguir «proclamação de 13 de junho de 2019»). Essa proclamação indicava que a Comissão Eleitoral Central tinha procedido a uma nova contagem dos votos a nível nacional, à atribuição dos correspondentes lugares a cada um dos candidatos e à proclamação dos nomes dos candidatos eleitos, entre os quais figuravam os recorrentes. Indicava ainda que os candidatos eleitos prestariam o juramento de respeitar a Constituição espanhola, exigida no artigo 224.o, n.o 2, da Ley orgánica 5/1985 del Régimen Electoral General (Lei Orgânica 5/1985 relativa ao regime eleitoral geral), de 19 de junho de 1985 ( 10 ), conforme alterada (a seguir «Lei Eleitoral»), em 17 de junho de 2019.

16.

Por carta de 14 de junho de 2019, os recorrentes pediram ao Presidente do Parlamento que registasse os resultados das eleições de 26 de maio de 2019, conforme constavam da proclamação de 13 de junho de 2019, que revogasse a instrução de 29 de maio de 2019 a fim de poderem ter acesso às instalações do Parlamento e beneficiar do serviço especial de acolhimento e, por último, que lhes permitisse ocupar os seus lugares e gozar dos direitos relativos à sua qualidade de deputados do Parlamento a partir de 2 de julho de 2019, data da primeira sessão plenária após as eleições.

17.

Em 15 de junho de 2019, o juiz de instrução do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) indeferiu um pedido dos recorrentes de revogação dos mandados de detenção nacionais emitidos contra eles pelos tribunais penais espanhóis, com a finalidade de poderem ser julgados no processo penal mencionado no n.o 12 das presentes conclusões. Em 20 de junho de 2019, a Comissão Eleitoral Central recusou que os recorrentes prestassem o juramento exigido no artigo 224.o, n.o 2, da Lei Eleitoral por declaração escrita prestada perante notário na Bélgica ou por intermédio de mandatários designados por ato notarial feito na Bélgica, uma vez que esse juramento, em seu entender, tem que ser prestado pessoalmente.

18.

Em 17 de junho de 2019, a Junta Electoral Central (Comissão Eleitoral Central) notificou o Parlamento da lista dos candidatos eleitos em Espanha (a seguir «comunicação de 17 de junho de 2019»), na qual não figuravam os nomes dos recorrentes. Em 20 de junho de 2019, a Comissão Eleitoral Central informou o Parlamento de que os recorrentes não tinham prestado o juramento de respeitar a Constituição espanhola e que, em conformidade com o artigo 224.o, n.o 2, da Lei Eleitoral, tinha, portanto, declarado a vaga dos lugares a eles atribuídos no Parlamento e a suspensão temporária de todas as prerrogativas inerentes às suas funções até terem prestado esse juramento (a seguir «comunicação de 20 de junho de 2019»).

19.

Por carta de 27 de junho de 2019 (a seguir «carta de 27 de junho de 2019»), o Presidente do Parlamento respondeu, nomeadamente, à carta de 14 de junho de 2019, indicando, em substância, aos recorrentes que não podia tratá‑los como futuros deputados do Parlamento dado os seus nomes não figurarem na lista dos candidatos eleitos comunicada oficialmente pelas autoridades espanholas.

20.

Em 28 de junho de 2019, os recorrentes pediram ao Tribunal Geral, em recurso registado sob o número T‑388/19, por um lado, que anulasse a instrução de 29 de maio de 2019 e, por outro, que anulasse os diferentes atos contidos, em seu entender, na carta de 27 de junho de 2019, a saber, primeiro, a recusa de o Presidente do Parlamento registar os resultados das eleições de 26 de maio de 2019; segundo, a declaração de vacatura do lugar atribuído, respetivamente, a cada um dos recorrentes, efetuada pelo Presidente do Parlamento; terceiro, a recusa de o Presidente do Parlamento lhes permitir assumir as suas funções, exercer o seu mandato de deputados europeus e ocuparem o seu lugar no Parlamento logo no início da primeira sessão posterior às eleições de 26 de maio de 2019 e, quarto, a recusa de o Presidente do Parlamento tomar urgentemente uma iniciativa com fundamento no artigo 8.o do Regimento destinada a confirmar os seus privilégios e imunidades.

21.

No mesmo dia, os recorrentes fizeram acompanhar o seu recurso de um pedido cautelar de suspensão da execução das diferentes decisões do Parlamento que se resumem a não lhes reconhecer a qualidade de deputados do Parlamento. Pediam igualmente que fosse ordenado ao Parlamento que tomasse todas as medidas necessárias, incluindo a confirmação dos seus privilégios e imunidades resultantes do artigo 9.o do Protocolo, para lhes permitir ocupar o seu lugar no Parlamento logo na abertura da primeira sessão seguinte às eleições. Por Despacho de1 de julho de 2019, Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento ( 11 ), o presidente do Tribunal Geral indeferiu o pedido cautelar.

22.

Pelo Acórdão [de 19 de dezembro de 2019,] Junqueras Vies [(C‑502/19, EU:C:2019:1115)], o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que se devia considerar que uma pessoa que tivesse sido oficialmente proclamada eleita para o Parlamento, mas que não tivesse sido autorizada a cumprir determinadas exigências previstas no direito interno na sequência dessa proclamação, bem como a apresentar‑se no Parlamento para participar na primeira sessão deste, beneficiava de imunidade ao abrigo do artigo 9.o, segundo parágrafo, do Protocolo n.o 7.

23.

Por Despacho de 20 de dezembro de 2019, Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento ( 12 ), a vice‑presidente do Tribunal de Justiça anulou o Despacho do presidente do Tribunal Geral de 1 de julho de 2019 que indeferiu o pedido cautelar, remeteu‑lhe o processo e reservou para final a decisão quanto às despesas.

24.

Na sessão plenária de 13 de janeiro de 2020, o Parlamento decidiu registar, na sequência do Acórdão Junqueras Vies, a eleição dos recorrentes para o Parlamento com efeitos a partir de 2 de julho de 2019 (a seguir «Decisão de 13 de janeiro de 2020»).

25.

Por Despacho de 19 de março de 2020, Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento ( 13 ), o presidente do Tribunal Geral, decidindo após remessa do processo, declarou que, tendo em conta a Decisão de 13 de janeiro de 2020, não havia que conhecer do pedido cautelar e reservou para final a decisão quanto às despesas.

Acórdão recorrido

26.

O Tribunal Geral proferiu o acórdão recorrido em 6 de julho de 2022.

27.

O Tribunal Geral considerou, no n.o 70 do acórdão recorrido, que o recurso dos recorrentes tinha por objeto, por um lado, a anulação da instrução de 29 de maio de 2019 e, por outro, a anulação do ato de 27 de junho de 2019, ou seja, a recusa de o Presidente do Parlamento reconhecer aos recorrentes a qualidade de deputados dessa instituição, contida, em substância, na carta de 27 de junho de 2019.

28.

No que respeita ao ato de 27 de junho de 2019, o Tribunal Geral declarou, nomeadamente, que a impossibilidade de os recorrentes assumirem as suas funções, exercerem o seu mandato e ocuparem o seu lugar no Parlamento não decorria desse ato, mas sim da aplicação do direito espanhol, conforme refletida nas comunicações de 17 e 20 de junho de 2019, à luz das quais nem o Presidente do Parlamento nem o Parlamento dispunham de qualquer margem de apreciação (n.o 146 do acórdão recorrido). Por outro lado, no que respeita à não adoção das medidas destinadas a confirmar e a defender os privilégios e as imunidades dos recorrentes, o Tribunal Geral declarou, em substância, que não se podia considerar que essa inexistência decorria do Ato de 27 de junho de 2019. (v., nomeadamente, n.os 157 e 166 do acórdão recorrido). Consequentemente, o Tribunal Geral julgou o recurso inadmissível relativamente a esse ato, com o fundamento de que esse ato não produzia efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes e era, portanto, irrecorrível (n.o 167 do acórdão recorrido).

29.

No que respeita à instrução de 29 de maio de 2019, o Tribunal Geral declarou que esta não tinha tido por efeito impedir os recorrentes de efetuarem as diligências administrativas necessárias à sua entrada em funções e não estava, portanto, na origem da impossibilidade de os recorrentes exercerem o seu mandato logo na abertura da primeira sessão do Parlamento após as eleições. Quando muito, tinha‑os privado da assistência do Parlamento na sua entrada em funções (n.os 184 e 185 do acórdão recorrido). O Tribunal Geral julgou inadmissível, portanto, o recurso relativo à instrução de 29 de maio de 2019, pelos mesmos motivos invocados relativamente ao ato de 27 de junho de 2019 (n.os 186 e 187 do acórdão recorrido).

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

30.

Em 16 de setembro de 2022, os recorrentes interpuseram recurso do acórdão recorrido. O Parlamento e o Reino de Espanha apresentaram as suas contestações em 8 e 7 de dezembro de 2022, respetivamente. Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça, foi admitida a apresentação de réplica e tréplica pelas partes.

31.

Com o presente recurso, os recorrentes concluem pedindo que o Tribunal de Justiça:

anule o acórdão recorrido;

remeta o processo ao Tribunal Geral ou, a título subsidiário, anule as decisões controvertidas; e

condene o Parlamento e o Reino de Espanha no pagamento das despesas ou, a título subsidiário, reserve para final a decisão quanto às despesas.

32.

O Parlamento e o Reino de Espanha pedem que o Tribunal de Justiça:

julgue o recurso inadmissível ou, a título subsidiário, improcedente;

condene os recorrentes nas despesas do presente recurso.

33.

O Tribunal de Justiça decidiu conhecer do processo sem audiência de alegações.

Análise

34.

Os recorrentes apresentam quatro fundamentos de recurso. Como já referi e de acordo com a vontade do Tribunal de Justiça, concentrarei as minhas conclusões no primeiro fundamento de recurso. No entanto, antes de analisar a procedência desse fundamento, há que analisar as dúvidas relativas à admissibilidade do presente recurso suscitadas pelo Parlamento e pelo Reino de Espanha.

Quanto à admissibilidade do presente recurso

35.

O Parlamento e o Reino de Espanha contestam a admissibilidade do presente recurso no seu conjunto pelo facto de, em substância, os recorrentes não terem indicado com precisão os números impugnados do acórdão recorrido nem sustentado suficientemente os seus fundamentos, de o recurso não ser claro e compreensível e de os recorrentes pedirem, na realidade, a reapreciação do processo julgado pelo Tribunal Geral, retomando unicamente os argumentos aí apresentados. Por outro lado, o Parlamento e o Reino de Espanha contestam a admissibilidade de grande número de fundamentos e argumentos específicos.

36.

Os recorrentes refutam estas alegações na réplica, sustentando, em substância, que o Parlamento faz uma leitura errada, ou mesmo desvirtuada, do seu recurso de segunda instância.

37.

Pela minha parte, não me parece que o presente recurso esteja, no seu todo, condenado a ser julgado inadmissível. É verdade que tem pontos confusos e repetitivos. Não é menos verdade que, contrariamente ao que alegam o Parlamento e o Reino de Espanha, os recorrentes identificam com precisão os números do acórdão recorrido que impugnam, em conformidade com o artigo 169.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, os erros de direito cometidos, em seu entender, pelo Tribunal Geral, bem como os argumentos jurídicos em apoio das suas teses. Em contrapartida, o Regulamento de Processo não exige que os fundamentos e argumentos do recurso sejam apresentados segundo uma ordem ou uma lógica preestabelecidas. Assim, embora certos fundamentos ou argumentos do presente recurso possam efetivamente revelar‑se inoperantes, ou mesmo inadmissíveis, tal não é o caso, na minha opinião, no que respeita ao presente recurso no seu conjunto.

38.

Por conseguinte, passo à análise do mérito do primeiro fundamento do presente recurso.

Quanto ao primeiro fundamento do presente recurso

39.

O primeiro fundamento do presente recurso tem por objeto a recusa de o Tribunal Geral reconhecer o caráter de ato recorrível, por um lado, à instrução de 29 de maio de 2019 e, por outro, ao ato de 27 de junho de 2019. É esta segunda parte que reveste, na minha opinião, uma importância crucial para o desfecho do presente processo. Começarei, portanto, a minha análise por esta segunda parte.

Quanto ao ato de 27 de junho de 2019

– Observações preliminares

40.

Recorde‑se que, nos termos do n.o 70 do acórdão recorrido, o ato de 27 de junho de 2019 consiste na recusa de o Presidente do Parlamento reconhecer aos recorrentes a qualidade de deputados do Parlamento, materializada na carta de 27 de junho de 2019.

41.

Esta recusa decorria do facto de os recorrentes, embora tendo sido proclamados eleitos para o Parlamento pela proclamação de 13 de junho de 2019, não terem sido incluídos na comunicação de 17 de junho de 2019, por não terem prestado o juramento previsto no artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral. Como já referi no n.o 28 das presentes conclusões, o Tribunal Geral considerou que a impossibilidade de os recorrentes exercerem o seu mandato não resultava do ato de 27 de junho de 2019, mas sim da aplicação da lei espanhola que o Parlamento não podia contestar ( 14 ), pelo que esse ato não produzia efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes nem constituía, portanto, um ato recorrível ( 15 ).

42.

À semelhança do Parlamento na sua contestação, analisarei os argumentos dos recorrentes não pela ordem pela qual foram apresentados no recurso, mas sim pela ordem do raciocínio do Tribunal Geral no acórdão recorrido. Na medida em que a recusa de o Presidente do Parlamento tomar a iniciativa de confirmar a imunidade dos recorrentes, igualmente abrangida pelo ato de 27 de junho de 2019, é objeto dos terceiro e quarto fundamentos, os desenvolvimentos que se seguem e as minhas propostas não dizem respeito a essa recusa e não prejudicam a procedência desses fundamentos.

– Quanto ao conteúdo da carta de 27 de junho de 2019

43.

Os recorrentes acusam o Tribunal Geral ( 16 ) de ter cometido uma desvirtuação dos factos ou um erro de qualificação jurídica desses factos nos n.os 81 a 84 do acórdão recorrido, nos quais o Tribunal Geral procedeu à análise do conteúdo da carta do Presidente do Parlamento dirigida aos recorrentes, carta que materializa o ato de 27 de junho de 2019.

44.

Não me parece que possa ser aqui declarada uma desvirtuação dos factos pelo Tribunal Geral, uma vez que esses factos estão resumidos na redação da carta de 27 de junho de 2019. No entanto, contrariamente às alegações do Parlamento, também não me parece que esses números do acórdão recorrido possam ser analisados unicamente como uma constatação factual relativa à redação dessa carta. Com efeito, no n.o 76 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral afirmou que, à luz da jurisprudência, a aptidão de um ato para ser objeto de recurso de anulação implica o seu exame à luz de critérios objetivos, «como o conteúdo desse ato». Lidas neste contexto, as considerações do Tribunal Geral que figuram nos n.os 81 a 84 do acórdão recorrido não devem, portanto, ser entendidas como meramente factuais, mas sim no sentido de que efetuam uma qualificação jurídica do ato de 27 de junho de 2019 à luz do conteúdo da carta em que esse ato se materializou.

45.

Ora, na minha opinião, os recorrentes têm razão ao sustentar que essa qualificação é errada. Com efeito, ao afirmar que, na carta de 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento mais não fez do que registar a situação jurídica dos recorrentes «de que tinha sido oficialmente informado pelas autoridades espanholas através das comunicações de 17 e 20 de junho de 2019», o Tribunal Geral não teve em conta o verdadeiro significado dessa carta, crucial do ponto de vista da sua apreciação enquanto ato recorrível, a saber, que, através desta, o Presidente do Parlamento exprimiu a sua decisão de registar não os resultados das eleições contidos na proclamação de 13 de junho de 2019, mas unicamente as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019. Esta decisão encontra a sua confirmação nos termos da carta de 27 de junho de 2019, segundo os quais o Presidente do Parlamento não estava em condições de tratar os recorrentes como futuros deputados dessa instituição «até nova comunicação das autoridades espanholas».

46.

Assim, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao qualificar a carta de 27 de junho de 2019, à luz do seu conteúdo, como desprovida de qualquer caráter decisório e definitivo, quando decorria claramente da mesma a decisão definitiva do Presidente do Parlamento de só ter em conta as comunicações das autoridades espanholas relativas às pessoas eleitas para o Parlamento e de ignorar a proclamação de 13 de junho de 2019. Este erro constitui, na minha opinião, o «pecado original» do acórdão recorrido e afeta o resto do raciocínio do Tribunal Geral consagrado à análise do caráter recorrível do ato de 27 de junho de 2019. Com efeito, os erros de direito adiante revelados limitam‑se a confirmar este erro original.

– Quanto à interpretação do artigo 12.o do Ato Eleitoral

47.

Em seguida, os recorrentes acusam o Tribunal Geral, de forma circunstanciada ( 17 ), de ter cometido um erro de direito na interpretação do artigo 12.o do Ato Eleitoral. Na minha opinião, esta alegação é procedente.

48.

Antes de mais, nos n.os 97 a 114 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral apresentou a sua interpretação do artigo 12.o do Ato Eleitoral, conjugado com o artigo 3.o do regimento e à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente do Acórdão Itália e Donnici/Parlamento ( 18 ). No final desses desenvolvimentos, o Tribunal Geral chegou à conclusão de que, «para proceder à verificação dos poderes dos seus membros, o Parlamento deve basear‑se na lista dos candidatos eleitos oficialmente comunicada pelas autoridades nacionais, a qual, por hipótese, é elaborada tendo em conta os resultados proclamados oficialmente e após essas autoridades terem decidido as eventuais reclamações baseadas na aplicação do direito nacional ( 19 )».

49.

Seguidamente, nos n.os 116 a 119 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral aplicou essa interpretação das disposições acima referidas ao caso presente, chegando à conclusão de que as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 refletiam os resultados oficiais das eleições «conforme estabelecidos […] após resolução das eventuais reclamações suscitadas com base no direito nacional» ( 20 ), pelo que o Presidente do Parlamento não tinha competência para fiscalizar o mérito da exclusão de certos candidatos, entre os quais os recorrentes, dessa lista e — deve entender‑se — só podia registá‑la. Assim, o Tribunal Geral equiparou o incumprimento, pelos recorrentes, da obrigação de prestar o juramento previsto no artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral a uma reclamação, na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral. Essa equiparação decorre claramente dos n.os 107 e 108 do acórdão recorrido e foi expressamente confirmada no seu n.o 129 ( 21 ). Em meu entender, constitui um erro na interpretação do artigo 12.o do ato eleitoral, suscetível de pôr em causa todo o raciocínio do Tribunal Geral sobre o ato de 27 de junho de 2019.

50.

Parece‑me que o vício de raciocínio do Tribunal Geral tem origem na interpretação errada que fez do Acórdão Junqueras Vies nos n.os 85 e 86 do acórdão recorrido. Com efeito, segundo o Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça, nesse acórdão, fez uma distinção entre a qualidade de deputado do Parlamento e o exercício do respetivo mandato. Foi assim que o Tribunal Geral pôde, embora reconhecendo, no n.o 90 do acórdão recorrido, que os recorrentes tinham adquirido a qualidade de deputados do Parlamento logo com a proclamação de 13 de junho de 2019, sustentar, nos n.os 107 e 108 desse acórdão, que o incumprimento de uma obrigação como a prevista no artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral podia impedir uma pessoa que tivesse adquirido essa qualidade de assumir efetivamente as suas funções ( 22 ) e, assim, chegar, no n.o 118 do referido acórdão, à conclusão de que a exclusão dessa pessoa da lista dos deputados eleitos podia ser justificada como «solução das eventuais reclamações suscitadas com base no direito nacional».

51.

No entanto, embora, no Acórdão Junqueras Vies, o Tribunal de Justiça tenha procedido a uma distinção entre a qualidade de deputado europeu e o respetivo mandato, foi só no plano temporal e unicamente para distinguir os respetivos períodos de aplicação das imunidades parlamentares por força do artigo 9.o, primeiro e segundo parágrafos, do Protocolo, como resulta claramente dos n.os 77 a 81 desse acórdão. Em contrapartida, nada no referido acórdão justifica a conclusão de que o Tribunal de Justiça admitiu que uma pessoa que adquiriu a qualidade de deputado do Parlamento pode ser privada da possibilidade de exercer o seu mandato sem perder anteriormente essa qualidade. Pelo contrário, no n.o 65 do Acórdão Junqueras Vies, o Tribunal de Justiça teve o cuidado de afirmar que «o mandato dos membros [do Parlamento constitui], por seu lado, o principal atributo desta condição».

52.

É certo que o Acórdão Junqueras Vies se concentra nas imunidades parlamentares, uma vez que constituíam o objeto das questões prejudiciais no processo que deu origem a esse acórdão. Contudo, todo o raciocínio que levou o Tribunal de Justiça à solução adotada nesse acórdão se concentra no conceito de «membro do Parlamento» ( 23 ). É precisamente essa condição que as autoridades espanholas tentavam negar ao recorrente no processo principal que deu origem a esse acórdão e que o Tribunal de Justiça afirmou ele ter adquirido no momento e unicamente devido à proclamação oficial dos resultados das eleições ( 24 ). Mais ainda, no n.o 70 do Acórdão Junqueras Vies, o Tribunal de Justiça afirmou expressamente que ao «“registar” os resultados eleitorais proclamados oficialmente pelos Estados‑Membros, o [Parlamento] toma necessariamente por adquirido que as pessoas que foram oficialmente proclamadas eleitas se tornaram, por conseguinte, membros desta instituição, razão pela qual incumbe ao Parlamento Europeu exercer a sua competência sobre os mesmos, verificando os seus poderes».

53.

Assim, considerar, como fez o Tribunal Geral no acórdão recorrido, não só nos números acima referidos mas também no n.o 144 desse acórdão que a qualidade de deputado do Parlamento se pode distinguir do exercício do respetivo mandato, pelo que uma pessoa pode ser impedida de exercer esse mandato, não deixando de conservar essa qualidade, está em contradição manifesta tanto com a lógica como com a letra do Acórdão Junqueras Vies. Aceitar tal solução teria como consequência privar esse acórdão de qualquer efeito útil, uma vez que deixaria aos Estados‑Membros a liberdade de decidirem quem, entre as pessoas eleitas, pode efetivamente exercer o mandado, o que esse acórdão tinha precisamente por objetivo impedir.

54.

A interpretação errada do Acórdão Junqueras Vies levou o Tribunal Geral a cometer, no n.o 118 do acórdão recorrido, um erro de direito na interpretação do Ato Eleitoral, nomeadamente do seu artigo 12.o

55.

Decorre deste artigo, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente no Acórdão Donnici, que o Parlamento deve registar a proclamação do resultado das eleições pelo Estado‑Membro em causa, sendo decididas a nível nacional todas as questões jurídicas ligadas a essa proclamação, incluindo as eventuais reclamações diferentes das suscitadas com base no próprio Ato Eleitoral ( 25 ).

56.

Ora, como resulta claramente do Acórdão Junqueras Vies, a proclamação oficial dos resultados pelos Estados‑Membros, na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral e do Acórdão Donnici, e a qualidade de deputados do Parlamento estão estreitamente ligadas, no sentido de que as pessoas proclamadas eleitas adquirem essa qualidade no momento e unicamente devido a essa proclamação ( 26 ). Daí resulta que as «questões jurídicas ligadas à referida proclamação», mencionadas no n.o 55 do Acórdão Donnici, bem como as «reclamações que possam eventualmente ser feitas» na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral, mais não são do que as ligadas à qualidade de deputado do Parlamento da pessoa em causa.

57.

Estas questões jurídicas e essas impugnações podem dizer respeito, em primeiro lugar, ao processo eleitoral, regulado por força do artigo 8.o do Ato Eleitoral pelas disposições nacionais dos Estados‑Membros ( 27 ), em segundo lugar, aos casos de fim do mandato enumerados no artigo 13.o, n.o 1, desse ato e, por último, em terceiro lugar, às incompatibilidades previstas no direito nacional com base no artigo 7.o, n.o 3, do referido ato. São estes precisamente os três locais em que o Ato Eleitoral remete para as disposições nacionais, mencionadas no artigo 12.o in fine desse ato. A resolução de questões jurídicas ou de reclamações pode conduzir à não aquisição ou à perda da qualidade de deputado do Parlamento pela pessoa em causa, bem como, se for caso disso, à vacatura de lugar.

58.

Em contrapartida, a situação em que um Estado‑Membro não comunica ao Parlamento o nome de uma pessoa que, no entanto, foi proclamada eleita, sem acionar a perda do mandato dessa pessoa ou pôr em causa de outra forma a proclamação da sua eleição, não pode ser equiparada a tal questão jurídica ligada à proclamação dos resultados eleitorais nem a uma reclamação na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral. Esta disposição, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, não exige, portanto, que o Parlamento registe essa comunicação, sem nenhuma apreciação do seu mérito, nomeadamente quando essa comunicação não reflete fielmente a proclamação oficial dos resultados eleitorais.

59.

Ora, como declarou o Tribunal Geral no n.o 90 do acórdão recorrido, as partes estão de acordo quanto ao facto de os recorrentes terem adquirido a qualidade de deputados do Parlamento logo na proclamação de 13 de junho de 2019 e, de acordo com o que o Tribunal Geral considerou nos n.os 108 e 152 desse acórdão, as autoridades espanholas não declararam a perda dos seus mandatos, mas unicamente a suspensão temporária das suas prerrogativas.

60.

Por conseguinte, o Tribunal Geral não tinha por missão resolver um problema de partilha de competências entre a União e os Estados‑Membros, uma vez que essa partilha decorre claramente do Ato Eleitoral, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, mas sim retirar as consequências dessa partilha. Ora, é com razão que os recorrentes acusam o Tribunal Geral de ter cometido um erro de direito na interpretação do artigo 12.o do Ato Eleitoral ao considerar, no n.o 118 do acórdão recorrido, que as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 refletiam os resultados oficiais das eleições conforme estabelecidos após a resolução das reclamações apresentadas com base no direito nacional, pelo que o Presidente do Parlamento não era competente para fiscalizar o seu mérito. A resposta do Parlamento a essa alegação, que se limita a sustentar a interpretação errada feita pelo Tribunal Geral, não me convence ( 28 ).

61.

A consideração do Tribunal Geral, no n.o 118 do acórdão recorrido, de que as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 refletiam os resultados das eleições na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral, pelo que o Parlamento só podia registá‑las, constitui o elemento chave do raciocínio do Tribunal Geral. O erro na interpretação desse artigo é, portanto, decisivo para a solução adotada no acórdão recorrido no que respeita ao ato de 27 de junho de 2019. Nomeadamente, conduz em linha reta às conclusões contidas nos n.os 146 e 153 desse acórdão, segundo as quais as diferentes consequências para os recorrentes da recusa de lhes reconhecer a qualidade dos deputados do Parlamento não decorriam do Ato de 27 de junho de 2019, mas sim da aplicação do direito espanhol, refletida nas comunicações de 17 e 20 de junho de 2019. Por conseguinte, este erro de direito é, por si só, suficiente para anular esta parte do referido acórdão.

– Quanto à incidência da Decisão de 13 de janeiro de 2020

62.

Os recorrentes contestam também os n.os 120 a 123 do acórdão recorrido, através dos quais o Tribunal Geral rejeitou a sua argumentação de que, pela Decisão de 13 de janeiro de 2020, o Parlamento autorizou os recorrentes a ocuparem o seu lugar no Parlamento, apesar da falta de comunicação oficial da sua eleição pelas autoridades espanholas, provando o caráter decisório do ato de 27 de junho de 2019 ( 29 ).

63.

É verdade, como sustenta o Parlamento na contestação, que o ato de 27 de junho de 2019 deve ser apreciado enquanto tal e segundo critérios objetivos.

64.

Não é menos verdade que parece contraditório afirmar, por um lado, que o Parlamento estava vinculado, sem qualquer margem de apreciação, pelas comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 e, por outro, que «decidiu autorizar» ( 30 ) os recorrentes a assumirem as suas funções pela Decisão de 13 de janeiro de 2020. Logicamente, se a Decisão de 13 de janeiro de 2020 tinha caráter decisório, o ato de 27 de junho de 2019 também o tinha, a menos que se concluísse pela ilegalidade do primeiro desses atos, o que o Tribunal Geral nem sequer sugeriu. Assim, contrariamente ao que afirmou o Tribunal Geral no n.o 121 do acórdão recorrido, a adoção pelo Parlamento da Decisão de 13 de janeiro de 2020 põe em causa certas considerações expostas pelo Tribunal Geral, a saber, as que figuram nos n.os 82 a 84, 108 e, nomeadamente, 118 desse acórdão. Ao não tomar em conta as consequências que decorrem logicamente da Decisão de 13 de janeiro de 2020 para apreciar o caráter jurídico do ato de 27 de junho de 2019, o Tribunal Geral, pelo menos, feriu de vício de raciocínio a fundamentação do acórdão recorrido.

65.

Por outro lado, é facto assente — como indicou o Tribunal Geral implicitamente no n.o 121 do acórdão recorrido — que a Decisão de 13 de janeiro de 2020 foi tomada em consequência do Acórdão Junqueras Vies. Ora, na medida em que esse acórdão dá uma interpretação ex tunc do direito da União, os seus efeitos também deviam ter sido tidos em conta para efeitos da apreciação do caráter jurídico do ato de 27 de junho de 2019, como acertadamente sustentam os recorrentes. Com efeito, a sua situação jurídica não se alterou entre a adoção desse ato e a adoção da Decisão de 13 de janeiro de 2020.

– Quanto às implicações do artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral

66.

O Tribunal Geral também é acusado de erro de fundamentação ( 31 ) no que respeita aos n.os 128 a 131 do acórdão recorrido, através dos quais este respondeu aos argumentos dos recorrentes relativos à incompetência do Reino de Espanha para adotar normas como o artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral, ou seja, à ilegalidade desta disposição nacional à luz do direito da União. O Tribunal Geral considerou que nem o Parlamento nem ele próprio no presente processo eram competentes para pôr em causa ou fiscalizar a referida disposição nacional.

67.

No entanto, à luz dos argumentos apresentados pelos recorrentes, tratava‑se de fiscalizar não tanto a legalidade da disposição nacional em causa em si mesma como as consequências que o Reino de Espanha e o Parlamento atribuem ao incumprimento da obrigação que esta institui. Ora, no que respeita a essas consequências, o Tribunal Geral tomou por boa, no n.o 152 do acórdão recorrido, a explicação do Reino de Espanha de que os mandatos dos recorrentes estavam apenas «suspensos» até ao momento em que prestassem o juramento previsto no artigo 224.o, n.o 2, da Lei Eleitoral, em conformidade com a comunicação de 20 de junho de 2019.

68.

No entanto, embora o artigo 13.o do Ato Eleitoral enumere vários eventos que levam ao termo do mandato de um deputado do Parlamento, podendo alguns ter a sua origem na aplicação do direito nacional dos Estados‑Membros, nenhuma disposição desse ato permite a um Estado‑Membro suspender temporariamente o exercício desse mandato, uma vez que qualquer tentativa nesse sentido é manifestamente contrária ao direito da União. Assim, uma vez que o Reino de Espanha não era competente para suspender, através da comunicação de 20 de junho de 2019, o exercício dos mandatos pelos recorrentes, estes têm fundamento para sustentar que foi efetivamente o Presidente do Parlamento quem deu efeitos jurídicos a essa comunicação através do ato de 27 de junho de 2019.

– Conclusão relativa ao ato de 27 de junho de 2019

69.

Nos n.os 167 e 168 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral chegou à conclusão de que o ato de 27 de junho de 2019 não produz efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes e que, por conseguinte, o recurso interposto desse ato deve ser julgado inadmissível.

70.

Na minha opinião, os recorrentes têm razão ao sustentar que o Tribunal Geral chegou a esta conclusão no termo de um raciocínio viciado, como salientei, por vários erros, a saber, a qualificação errada do conteúdo da carta de 27 de junho de 2019 nos n.os 81 a 84 do acórdão recorrido, a aplicação errada do Acórdão Junqueras Vies nos n.os 85, 86 e 144 desse acórdão, o erro de direito na interpretação do artigo 12.o do Ato Eleitoral no n.o 118 do referido acórdão, a incoerência do raciocínio relativo à incidência da Decisão de 13 de janeiro de 2020 nos n.os 116 a 123 do mesmo acórdão e, por último, a desconsideração da ilegalidade da suspensão do exercício dos mandatos dos recorrentes nos n.os 128 a 131 do acórdão recorrido.

71.

Na realidade, pelo ato de 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento, confrontado, por um lado, com a proclamação de 13 de junho de 2019, que não podia ignorar, sendo esta pública, e, por outro, com as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019, decidiu dar seguimento a estas duas comunicações abstraindo dessa proclamação e recusando reconhecer aos recorrentes a qualidade de deputados dessa instituição, decisão que foi posteriormente alterada pela Decisão de 13 de janeiro de 2020.

72.

Por conseguinte, ao recusar reconhecer o caráter recorrível do ato de 27 de junho de 2019, o Tribunal Geral violou o artigo 263.o TFUE. Assim, há que julgar procedente o primeiro fundamento do recurso e anular o acórdão recorrido na medida em que diz respeito a esse ato.

Quanto à instrução de 29 de maio de 2019

73.

Recorde‑se que, através da instrução de 29 de maio de 2019, o Presidente do Parlamento instruiu os serviços administrativos do Parlamento no sentido de recusarem aos membros do Parlamento eleitos em Espanha o serviço especial de acolhimento destinado a facilitar‑lhes as diligências administrativas necessárias à sua entrada em funções, até à comunicação oficial da sua eleição pelas autoridades espanholas.

74.

Nos n.os 169 a 187 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral analisou os fundamentos invocados pelos recorrentes em apoio do seu recurso de anulação da instrução de 29 de maio de 2019. No termo dessa análise, chegou à conclusão de que essa instrução não tinha produzido efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes, pelo que o recurso da mesma era inadmissível.

75.

Os recorrentes contestam esta conclusão ( 32 ), arguindo principalmente o caráter indissociável da instrução de 29 de maio de 2019 e do ato de 27 de junho de 2019, nomeadamente à luz da sua tese de que a carta de 27 de junho de 2019 mais não fazia do que refletir uma decisão tomada muito antes.

76.

Estes argumentos não me parecem convincentes. É certo que o Tribunal Geral, fiel à sua análise relativa ao ato de 27 de junho de 2019, não atribuiu as consequências negativas para os recorrentes decorrentes da recusa contida na instrução de 29 de maio de 2019 a esta, mas sim à aplicação do direito espanhol. Foi assim que chegou, no n.o 185 do acórdão recorrido, à conclusão de que, mesmo que essa instrução tivesse produzido efeitos jurídicos para os recorrentes, já não era esse o caso a partir da comunicação de 17 de junho de 2019. Ora, esta conclusão é tão errada como a parte do acórdão recorrido dedicada à análise do ato de 27 de junho de 2019.

77.

Não deixa de ser verdade, primeiro, que os argumentos dos recorrentes não são suscetíveis de pôr em causa a consideração do Tribunal Geral de que o serviço especial de acolhimento a que respeita a instrução de 29 de maio de 2019 não era indispensável para cumprir as formalidades ligadas à entrada em funções dos membros do Parlamento, antes constituindo unicamente um meio de lhes prestar assistência técnica. Ora, a privação dessa assistência não pode afetar de forma duradoura a situação jurídica dos interessados.

78.

Segundo, a impossibilidade de os recorrentes efetuarem as diligências necessárias a assumirem as suas funções decorria, parece‑me, não da instrução de 29 de maio de 2019, mas sim do ato de 27 de junho de 2019. Aliás, os próprios recorrentes o confirmam implicitamente, quando alegam ( 33 ) que essa impossibilidade perdurou até à Decisão de 13 de janeiro de 2020, decisão que tinha anulado, pelo menos em parte, os efeitos jurídicos desse ato.

79.

Por conseguinte, considero que o primeiro fundamento do presente recurso, na parte em que tem por objeto as conclusões do Tribunal Geral relativas à instrução de 29 de maio de 2019, deve ser julgado improcedente.

Conclusão quanto ao primeiro fundamento de recurso

80.

Tendo em conta as considerações que acabo de expor, proponho que o primeiro fundamento de recurso seja julgado procedente e que o acórdão recorrido seja anulado na parte relativa ao ato de 27 de junho de 2019 e que este fundamento seja julgado improcedente no restante.

Quanto à decisão após anulação

81.

Nos termos do artigo 61.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, se o recurso for julgado procedente, o Tribunal de Justiça pode decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado. Os recorrentes concluem neste sentido a título subsidiário.

82.

Assim, se o Tribunal de Justiça seguir a minha proposta de julgar procedente o primeiro fundamento do recurso e de anular o acórdão recorrido no que respeita ao ato de 27 de junho de 2019, considero que o litígio está em condições de ser julgado no que respeita a esse ato. Com efeito, os argumentos relativos ao caráter recorrível do referido ato e os relativos à sua legalidade sobrepõem‑se, como demonstra a resposta do Reino de Espanha, dedicada, na realidade e em grande parte, à defesa do mérito do mesmo ato. Por outro lado, nenhuma consideração de facto, além das já efetuadas no acórdão recorrido, se afigura indispensável para a decisão da causa. Por conseguinte, proponho que o próprio Tribunal de Justiça se pronuncie sobre o pedido de anulação do ato de 27 de junho de 2019 apresentado pelos recorrentes em primeira instância.

Quanto ao interesse dos recorrentes em agir

83.

Antes de analisar este pedido, há que determinar se os recorrentes mantêm interesse em agir a este respeito, tendo em conta que, com a Decisão de 13 de janeiro de 2020, o Parlamento revogou, de facto, a recusa de lhes reconhecer a qualidade de deputados dessa instituição, eliminando assim um grande número dos efeitos jurídicos do ato de 27 de junho de 2019. Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou coletiva só é admissível se essa pessoa tiver interesse na anulação do ato recorrido. Ora, qualquer circunstância relativa à admissibilidade do recurso de anulação interposto no Tribunal Geral pode constituir um fundamento de ordem pública de que o Tribunal de Justiça tem de conhecer oficiosamente em segunda instância ( 34 ). O Tribunal de Justiça deve, portanto, avocar oficiosamente a questão de saber se os recorrentes continuam a ter interesse na anulação do ato de 27 de junho de 2019, não obstante a adoção da Decisão de 13 de janeiro de 2020.

84.

Entendo ser este o caso. Com efeito, como afirmou o Tribunal Geral no n.o 122 do acórdão recorrido, o Parlamento explicou no Tribunal Geral que a Decisão de 13 de janeiro de 2020 tinha sido tomada «tendo em conta a incerteza jurídica do estatuto dos recorrentes após o Acórdão [Junqueras Vies] e o Despacho [Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento] ( 35 )». Essa decisão consiste em autorizar provisoriamente os recorrentes a exercerem os seus mandatos, com base no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, in fine, do Regimento, sem por isso se proceder à verificação dos seus poderes, enquanto se aguarda a comunicação oficial da sua eleição pelas autoridades nacionais, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 2, primeiro período, do Regimento.

85.

É certo que a decisão do Parlamento de não proceder à verificação dos poderes dos recorrentes, bem como a validade do artigo 3.o, n.o 2, do Regimento, tal como interpretado pelo Parlamento, à luz do Ato Eleitoral, não são objeto do presente litígio. Não é menos verdade que a anulação do ato de 27 de junho de 2019 permitiria clarificar a situação jurídica dos recorrentes e abriria ao Parlamento a via para adotar a seu respeito uma decisão não provisória, mas definitiva, baseada numa interpretação correta das normas jurídicas relevantes. Assim, na minha opinião, os recorrentes mantêm interesse em que esse ato seja anulado.

Quanto à validade do ato de 27 de junho de 2019

86.

Pelo ato de 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento recusou aos recorrentes reconhecer‑lhes a qualidade de membros dessa instituição, dando assim seguimento às comunicações de 17 e 20 de junho de 2019. No n.o 96 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral definiu a questão jurídica que lhe foi apresentada como a de saber se o Presidente do Parlamento tinha competência para pôr em causa a comunicação de 17 de junho de 2019, que não mencionava os nomes dos recorrentes, quando os seus nomes figuravam na proclamação de 13 de junho de 2019. Em contrapartida, os recorrentes assinalam ( 36 ), em meu entender corretamente, que a questão deveria ter sido formulada de forma inversa e ter incidido sobre a questão de saber se o Presidente do Parlamento tinha competência para pôr em causa esta proclamação, baseando‑se nas comunicações em questão.

87.

Em primeiro lugar, segundo o artigo 12.o do Ato Eleitoral, para efeitos da verificação dos poderes dos seus membros, o Parlamento «registará os resultados [eleitorais] proclamados oficialmente pelos Estados‑Membros». Esta disposição acrescenta, em seguida, que o Parlamento delibera sobre as reclamações feitas com base no Ato Eleitoral, com exceção das disposições nacionais. Tendo em conta a interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Donnici, esta formulação indica a total inexistência de margem de apreciação do Parlamento, pelo que a proclamação dos resultados por um Estado‑Membro constitui para ele uma situação jurídica preexistente ( 37 ).

88.

Ora, de acordo com a minha análise nos n.os 55 a 61 das presentes conclusões, a inobservância do dever previsto no artigo 224.o, n.o 2, da Lei Eleitoral não pode ser equiparada a uma reclamação apresentada com base nas disposições nacionais, na aceção do artigo 12.o do Ato Eleitoral, nem a uma questão jurídica relacionada com a proclamação da sua eleição, na aceção do n.o 55 do Acórdão Donnici, uma vez que não conduz à perda da sua qualidade de membro do Parlamento.

89.

Assim, não se pode considerar que as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 foram elaboradas «tendo em conta os resultados proclamados oficialmente», como indicou o Tribunal Geral no n.o 114 do acórdão recorrido, uma vez que não refletiam de forma fiel e completa esses resultados. A proclamação oficial dos resultados era a proclamação de 13 de junho de 2019, como expressamente confirmou o Tribunal de Justiça no Acórdão Junqueras Vies ( 38 ), e era por esta que o Parlamento estava vinculado, sem a poder pôr em causa, tal como estava vinculado pela proclamação das autoridades italianas de 29 de março de 2007 no processo que deu origem ao Acórdão Donnici ( 39 ).

90.

Esta conclusão não é posta em causa, contrariamente ao que afirma o Reino de Espanha, pelo artigo 8.o do Ato Eleitoral, que prevê que o processo eleitoral é regulado, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais.

91.

Os membros do Parlamento não são representantes dos Estados‑Membros, nem sequer dos povos desses Estados‑Membros, mas sim, por força do artigo 14.o, n.o 2, TUE, representantes dos cidadãos da União, eleitos por sufrágio universal. Na falta de um processo eleitoral uniforme, apesar de previsto no artigo 223.o TFUE, o processo eleitoral é regulado, subsidiariamente e sem prejuízo da harmonização feita pelo Ato Eleitoral, pelo direito nacional dos Estados‑Membros que organizam as eleições para o Parlamento Europeu nos seus próprios territórios. Esta delegação confere aos Estados‑Membros amplos poderes, que vão além do processo eleitoral propriamente dito, nomeadamente no que diz respeito ao direito de voto e de elegibilidade ou ainda às incompatibilidades.

92.

O processo eleitoral, regido pelas disposições nacionais, conduz, logicamente, à proclamação oficial dos resultados. Foi o que o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Junqueras Vies ( 40 ), ao declarar que, «no estado atual do direito da União, os Estados‑Membros continuam em princípio a ser competentes para regulamentar o processo eleitoral e para proceder, no final do mesmo, à proclamação oficial dos resultados eleitorais». Esses resultados proclamados só podem ser alterados a posteriori na sequência da invalidação da eleição de uma ou mais pessoas ou de um dos acontecimentos que provoquem a perda da qualidade de deputado do Parlamento, enumerados no artigo 13.o, n.o 1, do Ato Eleitoral.

93.

Em contrapartida, um Estado‑Membro não pode prejudicar o efeito útil da aquisição da qualidade de deputado do Parlamento pela simples proclamação dos resultados eleitorais, como decorre do Acórdão Junqueras Vies ( 41 ), através do alargamento do conceito de «processo eleitoral» a qualquer norma do seu direito nacional por meio da qual pretenda impedir uma pessoa proclamada eleita de exercer o seu mandato, mandato esse que constitui, segundo esse acórdão ( 42 ), o principal atributo dessa qualidade. Tal possibilidade iria contra não só os artigos 12.o, 8.o e 13.o do Ato Eleitoral, conforme interpretados nos Acórdãos Donnici e Junqueras Vies, mas também o princípio do sufrágio universal consagrado no artigo 14.o TUE, nos termos do qual a composição do Parlamento deve refletir de forma fiel e completa a livre expressão das escolhas efetuadas pelos cidadãos da União quanto às pessoas através das quais estes pretendem estar representados ( 43 ).

94.

Por outro lado, como já tive a ocasião de referir, o dever previsto no artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral não constitui um elemento do processo eleitoral segundo o próprio direito espanhol ( 44 ). Não se pode, pois, alegar o contrário no respeitante à interpretação do artigo 8.o do Ato Eleitoral.

95.

A conclusão apresentada no n.o 89 das presentes conclusões também não é posta em causa pela redação do artigo 3.o, n.os 1 e 3, do Regimento, que dispõe que, após as eleições, o Presidente do Parlamento convida as autoridades competentes dos Estados‑Membros a comunicarem os nomes dos deputados eleitos e que o Parlamento procede à verificação dos poderes e delibera sobre a validade dos mandatos dos seus membros com base na comunicação dos resultados eleitorais pelos Estados‑Membros.

96.

Com efeito, o Regimento, enquanto ato de organização interna, está hierarquicamente sujeito aos atos normativos como o Ato Eleitoral e não os pode derrogar ( 45 ). Assim, o artigo 3.o, n.os 1 e 3, do Regimento não pode ser interpretado no sentido de que obsta a que o Parlamento registe a proclamação oficial dos resultados eleitorais, de acordo com o artigo 12.o do Ato Eleitoral, sob pretexto de falta de comunicação desses resultados pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro. Com efeito, tal interpretação poria em causa a validade das disposições acima referidas do Regimento à luz desse ato.

97.

Em segundo lugar, ao dar seguimento à comunicação de 20 de junho de 2019 através do Ato de 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento deu efeito à suspensão das prerrogativas dos recorrentes decorrentes da sua qualidade de deputados do Parlamento, decretada pela Comissão Eleitoral Central no seguimento da inobservância por estes da obrigação prevista no artigo 224.o, n.o 2, da Lei Eleitoral.

98.

No entanto, nem o artigo 13.o do Ato Eleitoral nem qualquer outra disposição do direito da União autorizam um Estado‑Membro a suspender as prerrogativas dos membros do Parlamento. Esta suspensão era, portanto, ilegal e feriu de uma ilegalidade adicional o ato de 27 de junho de 2019.

99.

Consequentemente, ao assumir o ato de 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento pôs em causa os resultados eleitorais proclamados oficialmente e deu efeito à suspensão das prerrogativas dos recorrentes, em violação dos artigos 12.o e 13.o do Ato Eleitoral. Assim, em meu entender, há que declarar ilegal esse ato e anulá‑lo.

Quanto às despesas

100.

Uma vez que as presentes conclusões de limitam à análise do primeiro fundamento de recurso, não farei qualquer proposta relativa às despesas, na medida em que a solução a este respeito depende do destino dos outros fundamentos, em conformidade com o artigo 138.o do Regulamento de Processo.

Conclusão

101.

Em face de todas estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que:

anule o Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 6 de julho de 2022, Puigdemont i Casamajó e Comín i Oliveres/Parlamento (T‑388/19, EU:T:2022:421) na parte em que tem por objeto a recusa de o Presidente do Parlamento Europeu reconhecer a Carles Puigdemont i Casamajó e a Antoni Comín i Oliveres a qualidade de deputados do Parlamento, contida na carta que lhes foi enviada em 27 de junho de 2019;

anule a recusa em causa e

julgue improcedente o primeiro fundamento do presente recurso no restante.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Acórdão de 19 de dezembro de 2019 (C‑502/19; a seguir «Acórdão Junqueras Vies, EU:C:2019:1115).

( 3 ) JO 2012, C 326, p. 266.

( 4 ) JO 1976, L 278, p. 1.

( 5 ) JO 2002, L 283, p. 1.

( 6 ) Por «Presidente do Parlamento», entendo claramente o presidente dessa instituição então em funções, designado como «antigo presidente do Parlamento» no acórdão recorrido.

( 7 ) DOGC n.o 7449A, de 6 de setembro de 2017, p. 1).

( 8 ) DOGC n.o 7451A, de 8 de setembro de 2017, p. 1).

( 9 ) BOE n.o 142, de 14 de junho de 2019, p. 62477.

( 10 ) BOE n.o 147, de 20 de junho de 1985, p. 19110.

( 11 ) T‑388/19 R, EU:T:2019:467.

( 12 ) C‑646/19 P (R), EU:C:2019:1149.

( 13 ) T‑388/19 R‑RENV.

( 14 ) N.os 146 e 153 do acórdão recorrido.

( 15 ) N.o 167 do acórdão recorrido.

( 16 ) N.os 84 a 89 da petição do presente recurso.

( 17 ) N.os 21 a 29 da petição do presente recurso.

( 18 ) Acórdão de 30 de abril de 2009 (C‑393/07 e C‑9/08, a seguir «Acórdão Donnici, EU:C:2009:275).

( 19 ) N.o 114 do acórdão recorrido (o sublinhado é meu).

( 20 ) N.o 118 do acórdão recorrido.

( 21 ) Nos termos desse número «[r]esulta dos n.os 97 a 109, supra, que o Parlamento não tem competência para decidir sobre as reclamações com origem em disposições do direito nacional para as quais o ato eleitoral não efetuou nenhuma remissão, como o requisito previsto no artigo 224.o, n.o 2, da lei eleitoral».

( 22 ) À margem, observo, como fizeram os recorrentes, que tanto no n.o 107 como, em seguida, nos n.os 125 e 126 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral fez uma leitura errada das minhas conclusões no processo que deu origem ao Acórdão Junqueras Vies (C‑502/19, EU:C:2019:958). No entanto, como acertadamente alega o Parlamento, dado as conclusões não terem valor obrigatório e o Tribunal de Justiça não ter reproduzido esses elementos no seu acórdão, a sua boa ou má compreensão não é decisiva para o desfecho do presente processo.

( 23 ) V. n.o 62 do Acórdão Junqueras Vies.

( 24 ) Ou seja, a proclamação de 13 de junho de 2019, que é também a relativa aos recorrentes no presente processo (v. Acórdão Junqueras Vies, n.os 71 e 89).

( 25 ) V. Acórdão Donnici (n.os 51 a 57) e acórdão recorrido (n.os 100 a 106).

( 26 ) Acórdão Junqueras Vies (n.os 68 a 71).

( 27 ) Incluindo a elegibilidade, v. Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Junqueras i Vies/Parlamento (C‑115/21 P, EU:C:2022:1021, n.o 70).

( 28 ) Nomeadamente, o Parlamento não pode sustentar que a interpretação defendida pelos recorrentes o teria privado da possibilidade de ter em conta a renúncia ao mandato de J. Borrell, também abrangido, à semelhança dos recorrentes, pela proclamação de 13 de junho de 2019 e pelas comunicações de 17 e 20 de junho de 2019. Com efeito, J. Borrell, tendo renunciado ao seu mandato, perdeu a qualidade de deputado do Parlamento e foi imediatamente substituído. No seu caso, as comunicações de 17 e 20 de junho de 2019 refletiam, portanto, a sua verdadeira situação jurídica, contrariamente ao que acontecia com os recorrentes. Este exemplo demonstra claramente a diferença entre a situação dos recorrentes e a das pessoas que perderam a sua qualidade de deputados do Parlamento, como J. Borrell, ou ainda O. Junqueras i Vies (v. Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Junqueras i Vies/Parlamento, C‑115/21 P, EU:C:2022:1021) e A. Occhetto no processo que deu origem ao Acórdão Donnici.

( 29 ) Artigos 69.o a 71.o da petição do presente recurso.

( 30 ) N.o 122 do acórdão recorrido.

( 31 ) Artigos 40.o a 53.o da petição do presente recurso.

( 32 ) Artigos 77.o a 83.o da petição do presente recurso.

( 33 ) Artigo 81.o da petição do presente recurso.

( 34 ) V., recentemente, Acórdão de 6 de julho de 2023, Julien/Conselho (C‑285/22 P, EU:C:2023:551, n.os 45 e 47 e jurisprudência referida).

( 35 ) Despacho de 20 de dezembro de 2019, C‑646/19 P (R), EU:C:2019:1149.

( 36 ) Artigo 28.o da petição do presente recurso.

( 37 ) Acórdão Donnici (n.os 55 a 57).

( 38 ) N.o 89. Recordo que o processo que deu origem a esse acórdão dizia respeito às mesmas eleições e à mesma proclamação de resultados do presente processo.

( 39 ) V. n.o 55 desse acórdão.

( 40 ) N.o 69 (o sublinhado é meu).

( 41 ) N.o 70.

( 42 ) N.o 65.

( 43 ) V., neste sentido, Acórdão Junqueras Vies, n.o 83.

( 44 ) V. as minhas Conclusões no processo Junqueras Vies (C‑502/19, EU:C:2019:958, n.os 55 a 59).

( 45 ) V., neste sentido, Acórdão Donnici (n.os 47 e 48).