Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

LAILA MEDINA

apresentadas em 21 de setembro de 2023(1)

Processos apensos C414/22 e C584/22

DocLX Travel Events GmbH

contra

Verein für Konsumenteninformation

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria)]

e

QM

contra

Kiwi Tours GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Viagens organizadas e serviços de viagem conexos — Diretiva (UE) 2015/2302 — Rescisão do contrato de viagem organizada — Circunstâncias inevitáveis e excecionais — Acontecimentos ocorridos após a rescisão, mas antes da realização da viagem organizada — Previsibilidade no momento da rescisão do contrato de viagem»






I.      Introdução

1.        Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (a seguir «OMS») declarou o coronavírus da COVID‑19 uma «pandemia» e alertou para o facto de o mundo «nunca ter assistido a uma pandemia desencadeada por um coronavírus» (2). A «rapidez, escala e gravidade» (3) da pandemia traduziu‑se na adoção de medidas restritivas sem precedentes a nível mundial, que tiveram um pesado impacto em todos os domínios da atividade social e económica. A indústria das viagens foi um dos setores mais gravemente afetados.

2.        Neste contexto, muitos viajantes reclamaram o direito a rescindir os seus contratos de viagens organizadas sem pagar qualquer taxa de rescisão. Fizeram‑no ainda antes de ser oficialmente declarada a pandemia e do encerramento das fronteiras, invocando a existência de circunstâncias «inevitáveis e excecionais» na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva (UE) 2015/2302 (4). Os presentes processos apensos e o processo C‑299/22, Tez Tour, no qual apresento hoje as minhas conclusões, suscitam várias questões relativas à interpretação dessa disposição. Uma destas questões diz respeito à determinação do momento decisivo para a constituição do direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem incorrer na obrigação de pagar qualquer taxa de rescisão. Os processos convidam a uma reflexão sobre a melhor forma de alcançar o equilíbrio adequado pretendido pela Diretiva 2015/2302 entre um nível elevado de proteção dos consumidores e a competitividade das empresas, à medida que o mundo se torna um lugar mais incerto e imprevisível.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        O considerando 31 da Diretiva 2015/2302 estabelece o seguinte:

«(31)      Os viajantes deverão também poder rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer altura antes do início da viagem organizada, mediante o pagamento de uma taxa de rescisão adequada, tendo em conta as economias de custos previsíveis e justificáveis e as receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. Deverão ter também o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem o pagamento de uma taxa de rescisão sempre que circunstâncias inevitáveis e excecionais afetem consideravelmente a realização da viagem organizada. Isso poderá abranger, por exemplo, situações de guerra, outros problemas sérios de segurança como o terrorismo, riscos significativos para a saúde humana como sejam surtos de doenças graves no destino da viagem, ou catástrofes naturais como inundações, terramotos, ou condições meteorológicas que impossibilitem viajar em segurança para o destino acordado no contrato de viagem organizada.»

4.        O artigo 3.°, n.° 12, da Diretiva 2015/2302, sob a epígrafe «Definições», tem o seguinte teor:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[...]

«(12)      Circunstâncias inevitáveis e excecionais», qualquer situação fora do controlo da parte que a invoca e cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis [.]»

5.        O artigo 12.° da Diretiva 2015/2302, sob a epígrafe «Rescisão do contrato de viagem organizada e direito de retratação antes do início da viagem organizada», prevê o seguinte, nos seus n.os 1 a 3:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que o viajante possa rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer altura antes do início da viagem organizada. Caso rescinda o contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante pode ser obrigado a pagar ao organizador uma taxa de rescisão adequada e justificável. O contrato de viagem organizada pode estipular taxas de rescisão normalizadas razoáveis, baseadas na antecedência da rescisão do contrato relativamente ao início da viagem organizada e nas economias de custos e nas receitas esperadas em resultado da reafetação dos serviços de viagem. Na falta de taxas de rescisão normalizadas, o montante da taxa de rescisão corresponde ao preço da viagem organizada deduzido das economias de custos e das receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. A pedido do viajante, o organizador justifica o montante da taxa de rescisão.

2.      Não obstante o disposto no n.° 1, o viajante tem direito a rescindir o contrato de viagem organizada antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino. Em caso de rescisão do contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante tem direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados para a viagem organizada, mas não tem direito a uma indemnização adicional.

3.      O organizador pode rescindir o contrato de viagem organizada e reembolsar integralmente o viajante dos pagamentos que este tenha efetuado pela viagem organizada, não sendo, todavia obrigado a pagar uma indemnização adicional se:

[...]

b)      O organizador for impedido de executar o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais e notificar o viajante da rescisão do contrato, sem demora injustificada, antes do início da viagem organizada.»

6.        O artigo 23.° da Diretiva 2015/2302, sob a epígrafe «Caráter imperativo da diretiva», prevê o seguinte, nos seus n.os 2 e 3:

«2.      Os viajantes não podem renunciar aos direitos que lhes são conferidos pelas disposições nacionais de transposição da presente diretiva.

3.      Os viajantes não ficam vinculados por disposições contratuais ou declarações suas que, direta ou indiretamente, configurem uma renúncia ou restrição dos direitos que lhes são conferidos pela presente diretiva ou que visem contornar a aplicação da mesma.»

B.      Direito nacional

1.      Direito austríaco

7.        O § 3 da Pauschalreisegesetz (Lei relativa às Viagens Organizadas, BGBl. I 2017/50) estabelece:

«Os acordos que derroguem as disposições da presente lei federal em prejuízo do viajante são ineficazes.»

8.        O § 10, n.° 2, da Lei relativa às Viagens Organizadas, prevê:

«Sem prejuízo do direito de rescindir o contrato previsto no número anterior, o viajante tem direito de rescindir o contrato de viagem organizada antes do seu início sem pagar qualquer taxa de rescisão caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino. Em caso de rescisão do contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante tem direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados para a viagem organizada, mas não tem direito a uma indemnização adicional.»

2.      Direito alemão

9.        O § 651h do Bürgerliches Geseztbuch (Código Civil), sob a epígrafe «Rescisão antes do início da viagem organizada», estabelece o seguinte:

«1.      Antes do início da viagem organizada, o viajante pode rescindir o contrato a qualquer momento. Se o viajante rescindir o contrato, o organizador perde o direito ao preço acordado para a viagem organizada. No entanto, o organizador pode exigir uma indemnização razoável.

2.      Podem ser estipulados no contrato montantes fixos razoáveis de indemnização, incluindo mediante condições contratuais gerais, que tenham em conta os seguintes critérios:

1.      o período decorrido entre a declaração de rescisão e o início da viagem organizada,

2.      as despesas em que o organizador previsivelmente irá poupar, e

3.      as receitas previsíveis resultantes de outra utilização dos serviços de viagem.

Se o contrato não estipular um montante fixo de indemnização, este será determinado em função do preço da viagem, menos o valor das despesas economizadas pelo organizador, bem como das receitas que este obtenha através de outra utilização dos serviços de viagem. A pedido do viajante, o organizador é obrigado a fundamentar o montante da indemnização.

3.      Em derrogação do terceiro período do n.° 1, o organizador não pode exigir o pagamento de uma indemnização caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte de pessoas para o local de destino. Entende‑se que se trata de circunstâncias inevitáveis e excecionais, na aceção do presente subtítulo, se não estiverem sujeitas ao controlo da parte que invoca essa situação e se as suas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

III. Apresentação sucinta dos factos e da tramitação do processo principal e das questões prejudiciais

A.      Processo C414/22

10.      Em janeiro de 2020, FM, um consumidor, reservou na recorrida DocLX, uma operadora turística, uma viagem de finalistas à Croácia. A viagem deveria ter lugar de 27 de junho a 3 de julho de 2020. Incluía o transporte de ida e volta e foi planeada como uma viagem festiva com muitos participantes jovens e festas animadas.

11.      O preço total da viagem organizada ascendia a 787 euros e foi pago antecipadamente na totalidade por FM.

12.      Em 13 de março de 2020, o Ministério dos Negócios Estrangeiros austríaco aplicou o nível de alerta 4 para viagens para todos os países do mundo, aconselhando vivamente que fossem adiadas as viagens não essenciais ou exercidos os direitos de cancelamento.

13.      Em 21 de abril de 2020, a DocLX informou FM que naquela altura não era possível rescindir o contrato de viagem sem penalização, só o seria com base em circunstâncias externas, como por exemplo um nível de alerta 6 para viagens e, nesse caso, apenas sete dias antes do início da viagem planeada. No entanto, a DocLX propôs‑lhe o cancelamento da viagem com uma taxa de rescisão reduzida, o que foi aceite por FM. Subsequentemente, a DocLX devolveu a FM o depósito que tinha pago, deduzindo a taxa de rescisão no montante de 227,68 euros.

14.      A viagem organizada acabou por não se realizar.

15.      A Verein für Konsumenteninformation (Associação para a informação dos consumidores, a seguir «Verein»), uma associação austríaca de consumidores, foi encarregada do pedido de reembolso da taxa de rescisão de FM. Esse pedido visava obter do organizador o pagamento do montante retido de 227,68 euros, alegando que, no momento do acordo de rescisão, FM tinha o direito a rescindir o contrato de viagem sem penalização. Alegou que o acordo nos termos do qual o viajante tinha cancelado a viagem com uma taxa de rescisão reduzida devia ser considerado ineficaz por força do artigo 10.°, n.° 2, da Lei (Austríaca) relativa às Viagens Organizadas, uma vez que lhe era menos favorável.

16.      A DocLX contestou este pedido, alegando que, em abril de 2020, ainda não era previsível se circunstâncias inevitáveis e excecionais tornariam efetivamente impossível a realização da viagem organizada em junho de 2020. Por conseguinte, alegou que não existia possibilidade de rescisão sem penalização no momento do acordo relativo ao montante da taxa de rescisão (ou da declaração de rescisão).

17.      Embora o órgão jurisdicional de primeira instância tenha julgado improcedente o pedido da Verein, adotando essencialmente os argumentos da DocLX, o órgão jurisdicional de recurso anulou essa sentença e julgou procedente o pedido, considerando que, no momento da rescisão, uma viagem de finalistas do tipo da acordada não podia ter lugar devido à pandemia de COVID‑19.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a solução do litígio no processo principal depende da interpretação do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302. Mais especificamente, depende da questão de saber se, para estabelecer o direito de resolver o contrato de viagem sem penalização, basta que as circunstâncias inevitáveis e excecionais se tenham verificado após a rescisão do contrato, da perspetiva ex post facto, até ao início da viagem (no momento mais tardio possível para a rescisão do contrato de viagem) ou se é determinante que tais circunstâncias, consideradas ex ante, fossem prováveis ou expectáveis.

19.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a Diretiva 2015/2302 não prevê nenhum grau de probabilidade específico da verificação das «circunstâncias inevitáveis e excecionais» nem prazos para a rescisão sem penalização pelo viajante. Considera que se pode prever tanto uma apreciação ex post como ex ante dessas circunstâncias. De acordo com a avaliação ex post, um viajante deve ter sempre o direito de rescindir um contrato de viagem organizada sem penalização caso essas circunstâncias se venham efetivamente a verificar mais tarde e tenham afetado consideravelmente ou tornado impossível a execução do contrato objeto de rescisão pelo viajante devido a tais circunstâncias. Nesse caso, não é pertinente que o viajante proceda a uma avaliação errada da situação ex ante e rescinda o contrato «demasiado cedo». Em contrapartida, segundo uma avaliação ex ante, só a situação objetiva na data da declaração de rescisão é determinante. Neste caso, qualquer melhoria subsequente da situação de risco não prejudicaria o direito de rescisão. No entanto, a avaliação incorreta (demasiado «cautelosa») da situação de risco por parte do viajante na data da declaração de rescisão também poderá ter como consequência a manutenção da sua obrigação de pagamento das taxas de rescisão, se mais tarde se vier efetivamente a verificar a improbabilidade ou a impossibilidade de realização da viagem organizada.

20.      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Deve o artigo 12.°, n.° 2, da [Diretiva (UE) 2015/2302], ser interpretado no sentido de que o viajante tem o direito de rescindir o contrato sem penalização, independentemente da data em que declara a rescisão, pelo menos se as circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetam significativamente a viagem organizada se tiverem efetivamente verificado na data (prevista) de início da viagem?

2.      Deve o artigo 12.°, n.° 2, da [Diretiva (UE) 2015/2302], ser interpretado no sentido de que o viajante tem o direito de rescindir o contrato sem penalização se, na data em que declara rescindir o contrato, já se podia prever que se viessem a verificar circunstâncias inevitáveis e excecionais?»

21.      Foram apresentadas observações escritas pela recorrente no processo principal, pelos Governos Austríaco e Grego e pela Comissão Europeia. A decisão de apensar o processo nos termos do artigo 54.° do Regulamento de Processo no presente processo e no processo C‑584/22 foi proferida em 28 de março de 2023. As partes no processo principal, o Governo Grego e a Comissão Europeia e foram ouvidos na audiência comum realizada nos processos C‑414/22 e C‑584/22, bem como no processo C‑299/22, Tez Tour, em 7 de junho de 2023.

B.      Processo C584/22

22.      Em janeiro de 2020, QM reservou para si e para a sua mulher, na operadora Kiwi Tours, uma viagem para o Japão entre 3 e 12 de abril de 2020. O preço total da viagem organizada ascendia a 6 148 euros, dos quais QM pagou um adiantamento de 1 230 euros.

23.      Na sequência de uma série de medidas adotadas pelas autoridades japonesas em relação ao coronavírus, QM, por carta de 1 de março de 2020, desistiu da viagem devido ao risco para a saúde decorrente do coronavírus.

24.      A Kiwi Tours emitiu então uma fatura por rescisão no montante adicional de 307 euros, que QM pagou.

25.      Em 26 de março de 2020, o Japão proibiu a entrada no país. QM exigiu então a restituição dos valores pagos, o que a Kiwi Tours recusou.

26.      Enquanto o Amtsgericht (Tribunal de Primeira Instância, Alemanha) condenou a Kiwi Tours, a pedido de QM, no reembolso dos montantes pagos, o Landgericht (órgão jurisdicional regional), chamado a pronunciar‑se em sede de recurso pela Kiwi Tours, negou provimento ao recurso. O Landgericht (Tribunal Regional, Alemanha) observou que, à data da rescisão não se podia considerar que existiam circunstâncias inevitáveis e excecionais. Com base numa avaliação ex ante, QM não podia, portanto, rescindir o contrato sem ter de pagar uma taxa de rescisão.

27.      QM interpôs recurso de «Revision» do acórdão proferido pelo no Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha). O órgão jurisdicional de reenvio observa que o órgão jurisdicional de recurso considerou corretamente que estão preenchidas as condições que regem o direito de rescindir o contrato sem penalização quando for possível avaliar, mesmo antes do início da viagem, que se verificam circunstâncias inevitáveis e excecionais. Essa avaliação implica que se avalie se as circunstâncias excecionais dão origem a uma probabilidade substancial de a viagem organizada ou o transporte de passageiros para o destino serem consideravelmente afetados. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, verifica‑se um impacto considerável quando a execução da viagem organizada comporta riscos consideráveis e não razoáveis relacionados com os interesses legalmente protegidos do viajante.

28.      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a apreciação efetuada pelo órgão jurisdicional de recurso quanto à existência desse risco no caso em apreço está viciada por erros de direito. O órgão jurisdicional de recurso deveria ter apreciado a questão de saber se a natureza e a quantidade anormais das medidas restritivas constituíam, já no momento da rescisão do contrato, indícios suficientes da existência de um risco significativo de infeção pelo vírus. Assim, não se pode excluir que, ao proceder a uma apreciação correta desse risco, o órgão jurisdicional de recurso tenha chegado à conclusão de que, no momento da rescisão do contrato, uma viagem ao Japão implicava riscos sérios e graves para a saúde que um viajante prudente não deveria razoavelmente correr.

29.      Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, segundo o direito processual alemão, não pode adotar a sua própria decisão quanto ao mérito a este respeito e deve, em princípio, remeter o processo ao órgão jurisdicional de recurso. Em contrapartida, poderia decidir ele próprio em sede de recurso sem proceder a nenhum novo apuramento dos factos e negar provimento ao recurso se para a apreciação do direito de rescisão sem penalização também fossem relevantes as circunstâncias ocorridas após a rescisão. Com efeito, é consensual que a viagem para o destino da viagem não poderia ter sido realizada devido à proibição de entrada imposta pelo Japão em 26 de março de 2020 no âmbito da propagação do coronavírus.

30.      O órgão jurisdicional de reenvio tende a considerar que há que ter em conta circunstâncias que só ocorreram após a rescisão. A este respeito, recorda, em primeiro lugar, que o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, prevê formalmente um caso de rescisão distinto do previsto no n.° 1 do mesmo artigo, que se aplica quando, contrariamente à apreciação do viajante, não se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais que ocorram no momento da rescisão e afetem consideravelmente a execução da viagem organizada. O artigo 12.°, n.° 2, só é relevante, no essencial, para as consequências jurídicas da rescisão, que não dependem dos motivos em que o viajante se baseou para rescindir o contrato de viagem, mas apenas da existência efetiva de circunstâncias que afetem consideravelmente a realização da viagem.

31.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a finalidade da taxa de rescisão conduziria à mesma conclusão, independentemente do facto de esta dever ser considerada uma prestação análoga a uma indemnização ou uma substituição do preço da viagem. Na hipótese de a taxa de rescisão dever ser considerada uma prestação análoga a uma indemnização, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, em princípio, no cálculo de um dano a indemnizar, deve ser tida em conta toda a evolução do dano desde a data do facto que dá origem ao direito até à decisão definitiva relativa ao direito reclamado. Tal aponta para que deva ser recusada a existência de um dano ao organizador se após a rescisão se verificar que a realização da viagem organizada ficou consideravelmente prejudicada, estando por isso o organizador da viagem obrigado a restituir integralmente o preço da viagem organizada mesmo sem a rescisão do contrato pelo viajante. Se se entender que a taxa de rescisão deve ser considerada uma substituição do preço da viagem, no sentido de um pagamento que assume o lugar do preço da viagem organizada inicialmente devido, os desenvolvimentos futuros que impliquem a perda do direito do organizador também não podem ser ignorados. Com efeito, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o direito à substituição só existe porque teria existido mesmo que o viajante não tivesse rescindido o contrato de viagem.

32.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio observa que considerações relativas à proteção dos consumidores deveriam militar a favor da tomada em consideração de desenvolvimentos posteriores. Em seu entender, um elevado nível de proteção exige que, mesmo em caso de rescisão prematura do contrato de viagem, o viajante não tenha de realizar pagamentos por uma viagem cuja realização se venha posteriormente a revelar consideravelmente prejudicada. Caso contrário, em situações de incerteza, os viajantes poderiam ser dissuadidos de fazer uso em tempo útil do seu direito de rescisão do contrato de viagem, embora a rescisão prematura permita prever que a taxa de rescisão a pagar seja efetivamente baixa. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, isso reduz o risco não só para o viajante, mas também para o organizador, que beneficia de clareza numa fase inicial e dispõe de mais tempo para economizar os custos ou para reafetar os serviços de viagem. Em contrapartida, fazer depender o direito de rescisão sem penalização do momento da rescisão, encorajaria um comportamento especulativo particularmente por parte do organizador. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, tal poderia levar o organizador a abster‑se de rescindir o contrato de viagem até pouco tempo antes do início da viagem, a fim de forçar o maior número possível de viajantes a uma rescisão do contrato que acabaria por ser para ele financeiramente mais benéfica.

33.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que os argumentos acima referidos não são postos em causa pelo facto de o prazo máximo de reembolso, ser de 14 dias após a rescisão do contrato de viagem, como previsto no artigo 12.°, n.° 4, da Diretiva 2015/2302. Mais precisamente, esse órgão jurisdicional considera que não se pode deduzir desta disposição que o montante da taxa de rescisão deve ser definitivamente fixado nesse momento e que os pedidos posteriores de pagamento suplementar ou de reembolso devem ser excluídos.

34.      Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 12.°, n.° 2, da [Diretiva 2015/2302] ser interpretado no sentido de que, para apreciar a justificação da rescisão, apenas são determinantes as circunstâncias inevitáveis e excecionais que já se verificavam à data da rescisão, ou no sentido de que também devem ser tidas em consideração as circunstâncias inevitáveis e excecionais que só se verificam efetivamente após a rescisão, mas antes do início da viagem planeada?»

35.      Foram apresentadas observações escritas por QM, pelo Governo Grego e pela Comissão Europeia. As partes no processo principal, o Governo Grego e a Comissão Europeia foram ouvidos na audiência comum realizada nos processos C‑414/22 e C‑584/22, bem como no processo C‑299/22, Tez Tour, em 7 de junho de 2023.

IV.    Apreciação

36.      Com as duas questões no processo C‑414/22 e com a questão única no processo C‑584/22, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, no essencial, se o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, deve ser interpretado no sentido de que a apreciação da verificação de circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetam consideravelmente a execução da viagem organizada, que conferem ao viajante o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão, só deve ser feita no momento da rescisão do contrato, ou se essa disposição deve ser interpretada no sentido de que também é necessário ter em conta as circunstâncias inevitáveis e excecionais que ocorrem efetivamente após a rescisão do contrato de viagem organizada, mas antes do início da viagem organizada.

37.      O órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑414/22 considera que o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, pode sugerir que o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem penalização deve existir sempre que as circunstâncias inevitáveis e excecionais ocorram de facto posteriormente e tenham afetado consideravelmente ou tornado impossível a execução da viagem organizada. Todavia, esse órgão jurisdicional considera que também se pode argumentar que apenas a situação objetiva no momento da declaração de resolução é determinante. O órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑584/22 considera que a apreciação da existência de riscos consideráveis e não razoáveis para a saúde ou outros interesses legalmente protegidos do viajante exige uma previsão, sendo o período relevante anterior ao início do contrato de viagem organizada. Considera, todavia, que as circunstâncias ocorridas após a rescisão do contrato de viagem organizada, mas antes da viagem prevista, podem igualmente ser relevantes para essa avaliação.

38.      Resulta dos pedidos de decisão prejudicial que a questão principal suscitada é a de saber se existe um direito autónomo de rescisão do contrato de viagem organizada baseado unicamente na ocorrência efetiva de circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a viagem organizada à data da viagem.

39.      A este respeito, a título preliminar, importa recordar que, como indica a sua epígrafe, o artigo 12.° da Diretiva 2015/2302 regula a «[r]escisão do contrato de viagem organizada e direito de retratação antes do início da viagem organizada». O artigo 12.°, n.° 1, da referida diretiva, prevê o direito de o viajante cancelar a viagem organizada «em qualquer momento antes do início da viagem organizada». Nesse caso, por força desta disposição, «pode ser obrigado a pagar ao organizador uma taxa de rescisão adequada e justificável». O artigo 12.°, n.° 2, reconhece o direito do viajante a rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão caso se verifiquem «circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino».

40.      Segundo jurisprudência constante, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os termos desta disposição, mas também o seu contexto, os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que a referida disposição faz parte e, sendo caso disso, a sua génese. Concretamente, há que ter em conta, nomeadamente, os considerandos do ato da União em causa, dado que são suscetíveis de esclarecer a vontade do autor do ato e de constituir elementos interpretativos consideráveis desse ato (5).

41.      Uma interpretação possível da redação do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, vai no sentido de que, para que o viajante tenha direito a rescindir o contrato de viagem organizada sem penalização, o efeito significativo na execução da viagem organizada se concretize ou mantenha à data da viagem organizada. Essa disposição refere‑se às circunstâncias inevitáveis e excecionais que se verifiquem «no local de destino» e «afetem consideravelmente a realização da viagem organizada» utilizando o tempo verbal presente. O Governo Austríaco e a Comissão Europeia observaram, contudo, que a versão em língua inglesa do considerando 31 da diretiva utiliza o tempo verbal futuro quando enuncia que o direito de rescisão da viagem organizada sem pagamento de qualquer taxa de rescisão surge «where unavoidable and extraordinary circumstances will significantly affect the performance of the package» (o sublinhado é meu) [«sempre que circunstâncias inevitáveis e excecionais afetem significativamente a execução da viagem organizada»]. Tal indicaria que o direito à rescisão do contrato de viagem organizada sem penalização depende de uma avaliação prospetiva da situação por parte do viajante no momento da rescisão do contrato.

42.      Independentemente do tempo verbal usado no artigo 12.°, n.° 2, e no considerando 31 dessa diretiva, cumpre assinalar, como observo nas minhas conclusões hoje apresentadas no processo C‑299/22, o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão surge «antes do início da viagem organizada». A utilização da preposição «antes» indica que existe um lapso de tempo entre a decisão de rescindir o contrato de viagem organizada e o início da viagem organizada. A decisão de rescindir a viagem organizada, de acordo com o artigo 12.°, n.° 2, é, por conseguinte, prospetiva. Baseia‑se numa previsão ou avaliação ex ante da verificação de «circunstâncias inevitáveis e excecionais» e do seu impacto considerável na execução da viagem organizada ou, caso essas circunstâncias já se tenham verificado, numa previsão da persistência do impacto considerável na viagem organizada. Como o Governo Austríaco alegou, mesmo que, numa situação concreta, já esteja provado, à data da rescisão do contrato, que essas circunstâncias se verificarão à data da viagem, ainda há que apreciar em que medida essas circunstâncias afetarão precisamente a execução da viagem organizada.

43.      A avaliação ex ante efetuada pelo viajante à data da rescisão do contrato de viagem organizada implica, por conseguinte, uma avaliação da probabilidade de as «circunstâncias inevitáveis e excecionais» terem um impacto considerável na realização da viagem organizada. Essa avaliação deve ser orientada pelo caráter excecional do direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem ter de pagar uma taxa de rescisão. No momento da rescisão do contrato de viagem organizada, o viajante deve esperar razoavelmente que exista uma probabilidade suficientemente elevada de que a execução da viagem organizada seja consideravelmente afetada por «circunstâncias inevitáveis e excecionais».

44.      Daqui decorre que o direito de o viajante rescindir o contrato sem pagar qualquer taxa de rescisão, em conformidade com o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, pode ser adquirido antes do início da viagem organizada, no momento da rescisão do contrato de viagem organizada, com base na previsibilidade razoável do impacto considerável na viagem organizada. Esse direito adquirido não se pode extinguir devido a acontecimentos posteriores. Como a Comissão alega, seria absurdo que o viajante pudesse rescindir o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais, mas tivesse de esperar que essas circunstâncias se verificassem efetivamente à data da viagem para ficar isento do pagamento da taxa de rescisão. Em contrapartida, se o viajante não tiver o direito de rescisão sem penalização, esse direito não pode ser adquirido retroativamente após a rescisão do contrato de viagem organizada devido a acontecimentos posteriores.

45.      Esta interpretação é corroborada pelo contexto do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302. A este respeito, decorre das observações preliminares, supra, (6) que esse artigo reconhece ao viajante dois direitos de rescisão distintos. Por um lado, nos termos do artigo 12.°, n.° 1, da diretiva, o viajante pode «rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer momento antes do início da viagem organizada». Uma vez que o exercício desse direito não está sujeito à obrigação de indicar os motivos da rescisão, o viajante pode ser obrigado, também de acordo com o artigo 12.°, n.° 1, da diretiva, a pagar uma «taxa de rescisão adequada e justificável». Por outro lado, o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, reconhece o direito de rescisão do contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão «antes do início da viagem organizada [...] caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino [...] que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino».

46.      Se se admitisse que a ocorrência efetiva das circunstâncias inevitáveis e excecionais é uma condição autónoma do reconhecimento do direito de rescisão sem penalização, independentemente da avaliação efetuada na data da rescisão do contrato de viagem organizada, isso teria como consequência o reconhecimento de um novo direito ao reembolso integral de todos os viajantes, independentemente dos motivos invocados para rescindir o contrato. Com efeito, se o que importa não é a situação na data x (a data de rescisão do contrato), mas o que realmente aconteceu numa data posterior z (a data da viagem), então o viajante que tenha rescindido o contrato por motivos pessoais, em conformidade com o artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2015/2302, também deve ter o direito a exigir o reembolso das taxas de rescisão já pagas, em caso de não realização da viagem devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais.

47.      Como alegou essencialmente o Governo Grego, reconhecer a possibilidade de o viajante rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão em caso de ocorrência efetiva das circunstâncias inevitáveis e excecionais, independentemente da situação no momento da rescisão, seria contrário à harmonização completa dos direitos e das obrigações das partes constantes do contrato de viagem, conforme prevista no artigo 4.° da Diretiva 2015/2302.

48.      Com efeito, a solução «ex post facto» cria uma incerteza quanto ao momento em que os direitos e obrigações das duas partes no contrato devem ser avaliados. Como alegou o Governo Grego na audiência, a relação contratual cessa para ambas as partes quando o viajante rescinde o contrato.  Uma vez que o legislador da União não previu especificamente que acontecimentos futuros posteriores à rescisão do contrato podem influenciar a relação contratual, a rescisão do contrato tem de ser determinante para determinar se a previsão efetuada pelo viajante é razoável. É nesse momento que devem ser avaliadas as consequências jurídicas do exercício do direito de rescisão do contrato de viagem organizada. Se as condições previstas no artigo 12.°, n.° 2, estiverem preenchidas, as consequências jurídicas do exercício do direito de rescisão do contrato consistem na obrigação de o organizador efetuar o reembolso integral, o mais tardar 14 dias após a rescisão do contrato de viagem organizada, em conformidade com o artigo 12.°, n.° 4, da diretiva.

49.      A prontidão com que o reembolso integral deve ser efetuado, por força do artigo 12.°, n.° 4, confirma, como alegou o Governo Grego, a interpretação segundo a qual o momento da rescisão do contrato de viagem organizada é decisivo para a determinação dos direitos e obrigações das partes. Quanto a este último aspeto, gostaria de notar que a determinação do montante exato da taxa de rescisão é diferente da determinação do direito do viajante de rescindir o contrato sem pagar qualquer taxa de rescisão. O viajante só pode rescindir o contrato uma única vez e é nesse momento que deve haver certeza quanto à existência ou não de um direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados.

50.      Além disso, o direito do viajante de rescindir o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais está indissociavelmente ligado à ausência de obrigação de pagar qualquer taxa de rescisão. Por conseguinte, não é possível dividir no tempo os elementos essenciais do direito previsto no artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, e admitir que o viajante pode rescindir o contrato invocando circunstâncias inevitáveis e excecionais, mas que o seu direito ao reembolso integral depende de acontecimentos posteriores.

51.      A avaliação ex post das circunstâncias inevitáveis e excecionais teria igualmente um impacto na interpretação dos direitos correspondentes do organizador. A obrigação de o viajante pagar uma taxa de rescisão no caso de não estarem preenchidos os requisitos do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302 corresponde a um direito do organizador. Como alegou a Kiwi Tours na audiência, se o direito de rescisão sem penalização do viajante dependesse de acontecimentos posteriores, tal teria como consequência que o direito do organizador à taxa de rescisão seria constituído ou extinto em função da evolução da situação ocorrida entre o momento da rescisão e o momento da viagem prevista.

52.      Além disso, importa recordar que, em conformidade com o artigo 12.°, n.° 3, alínea b), da Diretiva 2015/2302, o organizador pode rescindir o contrato de viagem organizada e reembolsar integralmente o viajante não sendo obrigado a pagar uma indemnização adicional se «for impedido de executar o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais e notificar o viajante [...] antes do início da viagem organizada» (o sublinhado é meu). Se os acontecimentos posteriores à rescisão devessem ter um significado autónomo no que respeita à determinação dos direitos e das obrigações das partes, haveria então que admitir que o operador pudesse rescindir o contrato antes do início da viagem organizada, mas que a sua obrigação de indemnização adicional dependeria da questão de saber se, à data da viagem prevista, a sua previsão estava efetivamente confirmada. Tal resultado tornaria incerta a exoneração de responsabilidade do organizador. Além disso, seria contrário à harmonização completa acima referida pelo legislador da União dos direitos e obrigações das partes, incluindo a questão da responsabilidade do organizador pelo pagamento de uma indemnização adicional.

53.      Daqui decorre que a avaliação ex post tornaria incerta a posição das partes no contrato de viagem no momento da rescisão do contrato e seria suscetível de frustrar o sistema de determinação dos direitos e das obrigações das partes previsto no artigo 12.° da Diretiva 2015/2302. Pelo contrário, considerar a avaliação ex ante da situação de risco no momento da rescisão do contrato como o único critério decisivo garante a segurança jurídica quanto às consequências da rescisão. Por outras palavras, os acontecimentos futuros ocorridos antes da viagem prevista, mas após a rescisão do contrato, não devem ser suscetíveis de inverter uma situação jurídica estabelecida no momento da rescisão do contrato.

54.      No que diz respeito ao objetivo do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, esta disposição reconhece ao viajante o direito de rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão antes do início da viagem organizada, nas condições aí previstas. Como acima explicado, a fim de poder rescindir a viagem organizada antes do início da mesma, o viajante deve fazer uma previsão da situação no momento da rescisão do contrato no que respeita ao impacto das circunstâncias inevitáveis e excecionais na execução da viagem organizada. Se fosse possível avaliar a existência de um direito de rescisão a posteriori, tendo em conta o que se verificou efetivamente à data da viagem, não seria possível determinar o direito de rescisão do contrato sem penalização antes do início da viagem organizada. Esse direito teria de ser suspenso até à data da viagem. No entanto, tal seria contrário ao previsto no artigo 12.°, n.° 2, da diretiva.

55.      A abordagem ex post, segundo a qual os acontecimentos ocorridos após a rescisão do contrato, mas antes do início da viagem organizada são determinantes para o direito de rescisão do contrato, não é apoiada, na minha opinião, por considerações relacionadas com um elevado nível de proteção dos consumidores. A este respeito, há que recordar que, segundo o considerando 5 da Diretiva 2015/2302, esta visa estabelecer «o bom equilíbrio entre um elevado nível de defesa do consumidor e a competitividade das empresas». A abordagem ex post não é mais favorável ao viajante do que a abordagem que implica uma avaliação ex ante. A este respeito, pode prever‑se a situação em que um viajante avalia de forma razoável e justificada os riscos da viagem no momento da rescisão do contrato, mas depois, contra o seu prognóstico inicial da situação de risco, a situação melhora. A abordagem ex post só seria favorável ao viajante se se admitisse que os acontecimentos posteriores só podem ser tidos em conta se confirmarem a avaliação feita pelo viajante e não se refutarem essa avaliação. No entanto, é evidente para mim que seria contrário ao que o legislador da União pretendeu no artigo 12.°, n.° 2, se fosse possível alargar a regra para conduzir apenas numa direção favorável ao viajante, ignorando ao mesmo tempo o possível resultado desfavorável dessa interpretação.

56.      O órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑584/22 considerou que o objetivo da taxa de rescisão milita, nomeadamente, a favor da tomada em consideração de circunstâncias posteriores à rescisão do contrato. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é esse o caso independentemente da questão de saber se a taxa de rescisão deve ser considerada uma prestação análoga a uma indemnização ou uma substituição do preço da viagem. O argumento essencial do órgão jurisdicional de reenvio é que, se a evolução posterior devesse ser tida em conta, o organizador seria obrigado a reembolsar integralmente o viajante, mesmo que este não tivesse rescindido o contrato. Nesta perspetiva, o organizador não deveria ter direito a qualquer taxa de rescisão se posteriormente se verificar que não existe nenhum «dano» ou direito a essa taxa, desde que as circunstâncias inevitáveis e excecionais se tenham efetivamente verificado.

57.      No que diz respeito a este argumento, importa recordar que as taxas de rescisão são devidas pelo viajante quando este exerce o direito de rescisão do contrato antes do início da viagem organizada «em qualquer altura», na aceção do artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2015/2302, e por qualquer motivo. O termo «taxa de rescisão» é neutro em relação ao termo «indemnização» (o termo alemão equivalente é «Entschädigung»), que é utilizado nas transposições nacionais desta disposição da diretiva. De acordo com o artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2015/2302, o contrato de viagem organizada pode estipular taxas de rescisão razoáveis baseadas «na antecedência da rescisão do contrato relativamente ao início da viagem organizada e nas economias de custos e nas receitas esperadas em resultado da reafetação dos serviços de viagem». A descrição do que representa a taxa de resolução assemelha‑se a um contrapeso ao direito do viajante de rescindir o contrato em qualquer altura. Como a Comissão essencialmente alega, este é mais um exemplo do equilíbrio que a diretiva pretende estabelecer entre os direitos e obrigações das partes especificados no contrato de viagem.

58.      Como já defendi acima, independentemente da natureza jurídica da taxa de rescisão, admitir que essa taxa não é devida se se verificar posteriormente que a viagem não poderia ter tudo lugar cria uma grande insegurança jurídica e compromete a harmonização dos direitos e obrigações das partes especificados no contrato de viagem.

59.      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑584/22 alertou para o risco de poder haver consequências negativas se a obrigação de pagar uma taxa de rescisão não assentar na possibilidade efetiva de realizar a viagem organizada. Esse órgão jurisdicional considerou que, em situações de incerteza, os viajantes poderiam ser dissuadidos de exercer o seu direito de rescisão do contrato de viagem numa fase prematura e seriam obrigados a esperar até que estivessem disponíveis informações complementares ou que o organizador cancelasse a viagem organizada por sua própria iniciativa.

60.      A este respeito, admito que uma decisão prospetiva que o viajante é levado a tomar devido à ocorrência de circunstâncias inevitáveis e excecionais está, por definição, ligada a uma situação de incerteza. No entanto, o grau de incerteza deve ser tido em conta ao interpretar as condições de exercício do direito de rescisão do contrato de viagem ao abrigo do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302. Esse direito não exige, como alegou essencialmente o Governo Austríaco, que o viajante possa afirmar com certeza absoluta que circunstâncias inevitáveis e excecionais ocorrerão definitivamente e terão um impacto considerável. Como já foi referido, no momento da rescisão do contrato de viagem organizada, é adequado que o viajante espere razoavelmente que exista uma probabilidade suficientemente elevada  de que a execução da viagem organizada seja consideravelmente afetada por circunstâncias inevitáveis e excecionais. Além disso, como proponho essencialmente nas minhas Conclusões apresentadas hoje, no processo C‑299/22, Tez Tour, o elevado grau de incerteza e a evolução extremamente rápida da situação no início da pandemia têm de ser tidas em conta para determinar o que sabia o viajante médio e a sua avaliação da probabilidade da verificação de um impacto considerável na execução do contrato.

61.      Resulta das considerações anteriores que a redação, o contexto e o objetivo da Diretiva 2015/2302 militam a favor de uma interpretação do artigo 12.°, n.° 2, desta diretiva, segundo a qual o momento decisivo para determinar o direito de rescisão do contrato sem pagar qualquer taxa de rescisão se baseia numa avaliação ex ante no momento da rescisão do contrato.

62.      Dito isto, o artigo 12.°, n.° 2, não se opõe a que os órgãos jurisdicionais nacionais considerem os acontecimentos posteriores como elementos de prova, que devem ser livremente apreciados em conformidade com o direito processual nacional. Como alegou essencialmente o Governo Grego na audiência, se, no momento da rescisão, o viajante invocou circunstâncias inevitáveis e excecionais e se a situação que invoca se agravou, afetando consideravelmente a execução da viagem organizada, isso serve para reforçar a sua previsão no momento da rescisão. No entanto, se o viajante não tinha fundamento para rescindir o contrato no momento da rescisão, os acontecimentos posteriores não podem, por si só, estabelecer um direito a rescisão sem penalização de que aquele não dispunha. Do mesmo modo, uma melhoria da situação não pode afetar retroativamente o direito do viajante a um reembolso integral se, no momento da rescisão, este tiver feito uma previsão razoável quanto ao impacto das circunstâncias inevitáveis e excecionais na viagem organizada.

63.      No que respeita aos processos principais, no processo C‑414/22, o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar se, à data da rescisão do contrato em abril de 2020, um consumidor médio podia razoavelmente prever que a pandemia afetaria consideravelmente a execução da viagem organizada planeada como viagem festiva para o verão de 2020. Segundo as indicações constantes do pedido de decisão prejudicial, tendo em conta a insistência das autoridades nacionais em adiar todas as viagens não essenciais e em utilizar as possibilidades de rescisão dos contratos de viagem, parece razoável que o viajante médio preveja, em abril de 2020, que essa viagem (cujo próprio conceito é a reunião de um elevado número de jovens para celebrar) não teria lugar. Cabe ao órgão jurisdicional proceder a esta apreciação, guiando‑se igualmente pelos parâmetros que analiso nas minhas conclusões hoje apresentadas no processo C‑299/22, Tez Tour.

64.      Importa igualmente salientar que, se o órgão jurisdicional nacional considerar que o viajante podia rescindir o contrato em conformidade com o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, o viajante goza desse direito sem estar vinculado por qualquer acordo de pagamento de taxas de rescisão reduzidas que tenha aceitado por ignorar os seus direitos. Com efeito, esse acordo implica uma restrição dos seus direitos que, de acordo com o artigo 23.°, n.° 3, da referida diretiva, não é vinculativa para o viajante.

65.      No que respeita ao processo C‑584/22, o órgão jurisdicional de reenvio indica que o órgão jurisdicional de recurso devia ter‑se pronunciado sobre a questão de saber se, no momento da rescisão do contrato, em 1 de março de 2020, uma viagem ao Japão já enfrentava riscos graves para a saúde que não seria razoável que um viajante prudente assumisse. Pelas razões que analisei, supra, o momento da rescisão do contrato é o único decisivo para proceder a essa determinação.

66.      Tendo em conta o exposto, considero que o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2015/2302, deve ser interpretado no sentido de que a apreciação da verificação de circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a execução do contrato, que confere ao viajante o direito a rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão, só deve ser feita no momento da rescisão do contrato. A constituição desse direito não depende da questão de saber se essas circunstâncias se verificaram efetivamente após a rescisão do contrato.

V.      Conclusão

67.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) e pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) do seguinte modo:

O artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho

deve ser interpretado no sentido de que a apreciação da verificação de circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a execução do contrato, que confere ao viajante o direito a rescindir o contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão, só deve ser feita no momento da rescisão do contrato. A constituição desse direito não depende da questão de saber se essas circunstâncias ocorreram efetivamente após a rescisão do contrato.


1      Língua original: inglês.


2      Comentários iniciais do Diretor‑Geral da OMS na conferência de imprensa sobre a COVID‑19, 11 de março de 2020.


3      V. Orientações sobre o direito dos viajantes a rescindir os contratos de viagem organizada devido a circunstâncias excecionais resultantes da COVID‑19, emitidas pelo Governo Irlandês, Department of Enterprise, Trade and Employment (Departamento das Empresas, Comércio e Emprego), em 26 de março de 2020, p. 5.


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho (JO 2015, L 326, p. 1).


5      Acórdão de 8 de junho de 2023, VB (Informação relativa a condenado in absentia)  (C‑430/22 e C‑468/22, EU:C:2023:458, n.° 24 e jurisprudência referida).


6      V. n.° 39.