CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 8 de dezembro de 2022 ( 1 )

Processo C‑583/22 PPU

MV

sendo interveniente

Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2008/675/JAI — Artigo 3.o — Condenações penais em vários Estados‑Membros — Determinação de uma pena global — Inclusão da condenação noutro Estado — Pena superior à pena global máxima prevista pela legislação nacional»

I. Introdução

1.

O presente processo oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de interpretar, pela primeira vez, o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI ( 2 ), que tem por objeto a delicada questão do possível cúmulo jurídico de penas ( 3 ) em caso de concurso real de infrações ( 4 ) cometidas em vários Estados‑Membros.

II. Quadro jurídico

A.   Decisão‑Quadro 2008/675

2.

Os considerandos 1, 5, 7, 8, 9 e 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 dispõem:

«(1)

A União Europeia estabeleceu como objetivo manter e desenvolver um espaço de liberdade, segurança e justiça. Este objetivo pressupõe que as informações relativas às decisões de condenação proferidas nos Estados‑Membros possam ser tomadas em consideração fora do Estado‑Membro de condenação, tanto para prevenir novas infrações como por ocasião de um novo procedimento penal.

[…]

(5)

Importa estabelecer o princípio de que uma decisão de condenação proferida num Estado‑Membro deverá ter nos outros Estados‑Membros efeitos equivalentes aos das condenações proferidas de acordo com o direito nacional, independentemente de se tratar de elementos de facto ou de direito processual ou substantivo. Porém, a presente decisão‑quadro não se destina a harmonizar os efeitos atribuídos pelas diferentes legislações nacionais à existência de condenações anteriores, e a obrigação de ter em conta condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros só existe na medida em que as condenações nacionais anteriores sejam tomadas em consideração segundo o direito nacional.

[…]

(7)

Os efeitos atribuídos às decisões de condenação proferidas noutros Estados‑Membros deverão ser equivalentes aos das decisões nacionais, quer se trate da fase que antecede o processo penal, quer do processo penal em si, quer ainda da fase de execução da pena.

(8)

Quando, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro, existam informações sobre uma condenação anterior noutro Estado‑Membro, deverá evitar‑se, tanto quanto possível, que a pessoa em causa seja tratada de forma menos favorável do que se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional.

(9)

O n.o 5 do artigo 3.o deverá ser interpretado, nomeadamente de acordo com o considerando 8, por forma a que se, no novo procedimento penal, o tribunal nacional, ao ter em conta uma pena anterior proferida noutro Estado‑Membro, considerar que impor determinado nível de pena dentro dos limites da legislação nacional é proporcionalmente severo para o infrator, tendo em conta as circunstâncias e se o objetivo da sanção puder ser alcançado através de uma pena mais branda, poderá reduzir o nível da pena em conformidade, se tal fosse possível em processos de âmbito puramente nacional.

[…]

(14)

A interferência com uma sentença ou a sua execução abrangem, nomeadamente, as situações em que, nos termos do direito nacional do segundo Estado‑Membro, a pena imposta por uma sentença anterior deva ser absorvida por outra pena ou nela incluída, devendo então ser efetivamente executada, na medida em que a primeira sentença não tenha ainda sido executada ou a sua execução não tenha sido transferida para o segundo Estado‑Membro.»

3.

O artigo 1.o, n.o 1, desta decisão‑quadro dispõe:

«A presente decisão‑quadro tem por objetivo definir as condições em que, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro contra determinada pessoa, são tidas em consideração condenações anteriores contra ela proferidas noutro Estado‑Membro por factos diferentes.»

4.

Nos termos do artigo 2.o da referida decisão‑quadro, «entende‑se por “condenação” qualquer decisão definitiva de um tribunal penal que declare a culpabilidade de uma pessoa por uma infração penal».

5.

O artigo 3.o da mesma decisão‑quadro, com a epígrafe «Tomada em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal, de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro», prevê:

«1.   Cada Estado‑Membro assegura que, por ocasião de um procedimento penal contra determinada pessoa, as condenações anteriores contra ela proferidas por factos diferentes noutros Estados‑Membros, sobre as quais tenha sido obtida informação ao abrigo dos instrumentos aplicáveis em matéria de auxílio judiciário mútuo ou por intercâmbio de informação extraída dos registos criminais, sejam tidas em consideração na medida em que são condenações nacionais anteriores e lhes sejam atribuídos efeitos jurídicos equivalentes aos destas últimas, de acordo com o direito nacional.

2.   O n.o 1 é aplicável na fase que antecede o processo penal, durante o processo penal propriamente dito ou na fase de execução da condenação, nomeadamente no que diz respeito às regras processuais aplicáveis, inclusive as que dizem respeito à prisão preventiva, à qualificação da infração, ao tipo e ao nível da pena aplicada, ou ainda às normas que regem a execução da decisão.

3.   A tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento.

[…]

5.   Se a infração que levou à instauração do novo procedimento tiver sido cometida antes de ser proferida ou integralmente executada a condenação anterior, o disposto nos n.o 1 e 2 não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais ao imporem sentenças, caso a aplicação dessas normas a condenações estrangeiras limite o juiz na imposição da pena no âmbito do novo procedimento.

Os Estados‑Membros asseguram, contudo, a possibilidade de, nestes casos, os seus tribunais tomarem em consideração as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros.»

B.   Direito alemão

6.

As disposições que regem o cúmulo jurídico das penas figuram nos §§ 53 a 55 do Strafgesetzbuch (Código Penal alemão, a seguir «StGB»).

7.

O § 53, n.o 1, do StGB, referente ao concurso real de infrações, prevê:

«Em caso de pluralidade de infrações julgadas simultaneamente, é ordenada uma pena global para as diversas penas de prisão ou sanções pecuniárias aplicadas.»

8.

O § 54 do StGB, relativo ao cúmulo jurídico das penas, prevê, nos n.os 1 e 2:

«1.   Se uma das penas aplicadas for de prisão perpétua, será aplicada uma pena global de prisão perpétua. Em todos os restantes casos, a pena global é fixada agravando a pena máxima incorrida e, quando as penas forem de natureza diferente, agravando a pena mais grave pela sua natureza. Para esse efeito, o autor e cada uma das infrações cometidas são considerados globalmente.

2.   A pena global não pode exceder a soma das penas individuais. Não pode exceder quinze anos em caso de penas de prisão de duração determinada e setecentos e vinte dias de multa em caso de sanções pecuniárias.»

9.

O § 55, n.o 1, do StGB, que tem por objeto o cúmulo jurídico das penas superveniente, dispõe:

«Os §§ 53 e 54.o são igualmente aplicáveis quando uma pessoa que já tenha sido condenada por sentença transitada em julgado numa pena não executada, prescrita ou objeto de remissão, for condenada por outra infração cometida antes da condenação anterior. Por condenação anterior entende‑se a sentença proferida no processo anterior no qual a matéria de facto foi apreciada em último lugar.»

III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

10.

O recorrente no processo principal tem nacionalidade francesa.

11.

Entre o mês de agosto de 2002 e o mês de setembro de 2003, o recorrente no processo principal cometeu vários crimes em França. Em 10 de outubro de 2003, raptou uma aluna de um campus universitário na Alemanha e violou‑a.

12.

Em 20 de outubro de 2003, foi detido nos Países Baixos com base num mandado de detenção emitido pelas autoridades francesas e colocado em detenção para efeitos de extradição durante cerca de sete meses, após o que foi transferido para França em 17 de maio de 2004, onde ficou detido.

13.

Em 30 de setembro de 2004, foi condenado pelo Tribunal de Grande Instance de Guéret (Tribunal de Primeira Instância de Gueret, França) numa pena de prisão de dois anos.

14.

Em 29 de fevereiro de 2008, a cour d’assises du Loir‑et‑Cher à Blois (Tribunal de Júri de Loir‑et‑Cher em Blois, França) condenou o arguido numa pena de prisão de quinze anos. Esta pena absorveu as condenações posteriores, por um lado, de 16 de maio de 2008, proferida pela cour d’assises de Loire‑Atlantique à Nantes (Tribunal de Júri de Loire‑Atlantique em Nantes, França), numa pena de prisão de seis anos e, por outro, de 23 de abril de 2012, proferida pela cour d’appel de Grenoble (Tribunal de Recurso de Grenoble, França) numa pena de prisão de um ano e seis meses.

15.

Em 24 de janeiro de 2013, a cour d’assises du Maine‑et‑Loire à Angers (Tribunal de Júri de Maine‑et‑Loire em Angers, França) condenou o recorrente no processo principal numa nova pena de prisão de sete anos.

16.

As cinco decisões de condenação respeitam a atos praticados pelo recorrente no processo principal entre setembro de 2002 e setembro de 2003. As penas de prisão foram cumpridas num total de dezassete anos e nove meses, tendo o recorrente no processo principal permanecido na prisão em França, sem interrupção, até 23 de julho de 2021, data em que foi entregue às autoridades alemãs.

17.

Desde essa data, o recorrente no processo principal encontra‑se em prisão preventiva na Alemanha, em virtude de um mandado de detenção emitido pelo Amtsgericht Freiburg im Breisgau (Tribunal de Primeira Instância de Freiburg im Breisgau, Alemanha).

18.

Em 21 de fevereiro de 2022, o Landgericht Freiburg im Breisgau (Tribunal Regional de Freiburg im Breisgau) julgou o recorrente no processo principal pelos atos cometidos em 10 de outubro de 2003 na Alemanha e condenou‑o numa pena de prisão de seis anos por crime de violação agravada. O referido tribunal considerou que a pena verdadeiramente proporcional aos factos era uma pena de prisão de sete anos. No entanto, como não foi possível proceder a um cúmulo jurídico subsequente desta pena com as cinco penas proferidas pelos tribunais franceses, o referido tribunal reduziu‑a em um ano, a título de compensação.

19.

O recorrente no processo principal interpôs recurso de «Revision» desta sentença para o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha).

20.

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a possibilidade de impor uma pena privativa de liberdade ao recorrente no processo principal pela infração de violação agravada objeto do processo principal depende da interpretação do princípio da equiparação das condenações penais proferidas noutros Estados‑Membros, consagrado no artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, conjugado com o artigo 3.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da mesma.

21.

Afirma que, se as condenações proferidas pelos tribunais franceses fossem equiparadas às condenações alemãs, haveria que ordenar o cúmulo jurídico subsequente, nos termos do § 55, n.o 1, do StGB, das penas proferidas pelos referidos tribunais franceses e da pena proferida por violação agravada no processo principal, em virtude de esse crime ter sido cometido antes da prolação das decisões condenatórias em França.

22.

Nesta hipótese, dever‑se‑ia ter igualmente em conta o limite máximo de quinze anos de privação de liberdade estabelecido no § 54, n.o 2, segundo período, do StGB. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que este limite máximo já tinha sido atingido com a sentença de quinze anos de privação de liberdade proferida a 29 de fevereiro de 2008 pela cour d’assises du Loir‑et‑Cher à Blois (Tribunal de Júri de Loir‑et‑Cher em Blois). Refere que, consequentemente, em caso de cúmulo jurídico das penas, se pudesse ser fixada uma pena individual contra o recorrente no processo principal pela violação objeto do referido processo principal, a pena global continuaria, no entanto, por efeito do referido limite máximo, a ser de quinze anos de privação de liberdade e não poderia ser executada qualquer outra pena contra o mesmo.

23.

O órgão jurisdicional de reenvio observa que, de acordo com a sua jurisprudência constante, o cúmulo jurídico com condenações proferidas no estrangeiro não pode ser ordenado como tal por razões de direito internacional público, na medida em que colidiria com a força de caso julgado da condenação estrangeira e com a soberania do Estado estrangeiro.

24.

Perante esta impossibilidade, considera que o artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675 exige aos Estados‑Membros que assegurem que, por ocasião de um novo processo penal instaurado contra uma pessoa, sejam tidas em conta as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro contra essa pessoa por factos diferentes, na mesma medida em que o são as condenações nacionais anteriores ao abrigo do direito nacional. A ideia é evitar que a pessoa em causa seja tratada de maneira menos favorável do que seria se a condenação penal anterior em causa tivesse sido uma condenação nacional.

25.

O órgão jurisdicional de reenvio questiona, contudo, o alcance do artigo 3.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/675, segundo o qual os Estados‑Membros não são obrigados, se a infração que deu origem ao novo procedimento tiver sido cometida antes de proferida ou integralmente executada a condenação anterior, a aplicar as normas nacionais caso a aplicação dessas normas a condenações estrangeiras limite o juiz na imposição da pena no âmbito do novo procedimento.

26.

Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, só poderia ser aplicada uma pena pelos factos que são objeto do processo principal se o artigo 3.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/675 fosse interpretado no sentido de que o princípio da igualdade enunciado no artigo 3.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro não se aplica quando a tomada em consideração da pena aplicada noutro Estado‑Membro implique que seja excedido o limite de quinze anos de privação da liberdade, previsto no § 54, n.o 2, segundo período, do StGB. Porém, tal interpretação é contrária ao princípio da igualdade de tratamento das condenações proferidas nos outros Estados‑Membros, na medida em que permite que esse limite máximo seja excedido em relação a estas últimas penas.

27.

Em segundo lugar, no caso de o artigo 3.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/675, dever efetivamente ser interpretado no sentido de que o princípio da igualdade enunciado no artigo 3.o, n.o 1, da mesma decisão‑quadro não se aplica nas circunstâncias do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação do artigo 3.o, n.o 5, segundo parágrafo, da referida decisão‑quadro.

28.

Mais especificamente, este órgão jurisdicional pergunta se a tomada em consideração da pena aplicada noutro Estado‑Membro, prevista nessa última disposição, deve ser feita de modo que a desvantagem resultante da impossibilidade de ordenar o cúmulo jurídico das penas subsequente seja concretamente demonstrada e estabelecida quando da determinação da pena aplicada pela infração cometida no território nacional.

29.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, segundo a sua própria jurisprudência neste domínio, a desvantagem resultante da impossibilidade de ordenar o cúmulo jurídico das penas subsequente, com condenações proferidas noutro Estado‑Membro, é normalmente tomada em conta no momento da determinação da pena, aplicando‑se uma redução, não quantificada e a título compensatório, deixada ao critério do juiz.

30.

No entanto, o referido órgão jurisdicional considera que, para estar em conformidade com as regras do artigo 3.o, n.os 1 e 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, a compensação da desvantagem tem de ser claramente fundamentada e quantificada.

31.

À luz desta decisão‑quadro, o modo como as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro são consideradas deve ser tão próximo quanto possível do modo como as condenações nacionais anteriores são tidas em conta. Ora, para se aproximar o mais possível de um cúmulo jurídico das penas, como previsto nos §§ 54 e 55 do StGB, o qual requer uma avaliação quantitativa, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário demonstrar em termos concretos uma desvantagem resultante da impossibilidade de ordenar um cúmulo jurídico das penas e deduzi‑lo da nova pena (global) a aplicar.

32.

Este órgão jurisdicional acrescenta que uma compensação fundamentada e quantificada da desvantagem é indispensável não só por razões de transparência, mas também para permitir ao juiz que aprecia o recurso de «Revision» exercer a sua fiscalização sobre a determinação da pena. A simples consideração de uma redução compensatória não quantificada, como mera atitude favorável ao arguido na determinação da pena, não satisfaz este requisito.

33.

O órgão jurisdicional de reenvio especifica também que o modo como o juiz que conhece do recurso determina a compensação na prática depende do seu poder de apreciação. Na determinação da nova pena, o referido juiz pode ter diretamente em conta a impossibilidade de ordenar o cúmulo jurídico com uma pena anterior, quantificando a parte a deduzir da mesma, ou pode considerar, por exemplo, um «cúmulo teórico» com a pena estrangeira e reduzir a nova pena deduzindo a pena estrangeira. Os únicos requisitos neste contexto consistem em a compensação ser adequada e fundamentada de forma inteligível e quantificada, à semelhança de um cúmulo jurídico de penas ao abrigo dos §§ 54 e 55 do StGB.

34.

Quanto ao processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio constata que o Landgericht Freiburg im Breisgau (Tribunal Regional de Freiburg im Breisgau) determinou a pena, no julgamento, sem ter em conta que uma pena privativa da liberdade de seis anos conduziria a que o limite máximo de quinze anos de prisão, previsto no § 54, n.o 2, do StGB fosse excedido. Além disso, o referido órgão jurisdicional não se referiu a um critério preciso que o tivesse orientado no modo como teve em conta as condenações proferidas noutro Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 5, segundo período, da Decisão‑Quadro 2008/675.

35.

Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

À luz do princípio da igualdade de tratamento decorrente do artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2008/675] e tendo em conta o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro [2008/675], perante uma situação de cúmulo jurídico de penas por condenações proferidas na Alemanha e noutro Estado‑Membro da União, pode aplicar‑se uma pena pelo crime praticado no território nacional mesmo no caso de a soma teórica da pena aplicada pelo outro Estado‑Membro da União ter como consequência que fosse ultrapassado o limite máximo admitido no direito alemão para a pena conjunta no caso de penas de prisão de duração determinada?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Deve a consideração da pena aplicada pelo outro Estado‑Membro da União, prevista no artigo 3.o, n.o 5, segundo período, da Decisão‑Quadro [2008/675], ser efetuada de maneira a que a desvantagem decorrente da impossibilidade de fixação subsequente de uma pena conjunta, em conformidade com os princípios do cúmulo jurídico das penas vigentes no direito alemão, deva ser demonstrada e justificada em concreto quando da determinação da pena pelo crime cometido no território nacional?»

36.

A Segunda Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 27 de setembro de 2022, submeter o presente processo a tramitação prejudicial urgente, nos termos do artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

37.

O Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

38.

Estas partes, bem como o recorrente no processo principal, participaram na audiência realizada em 14 de novembro de 2022.

IV. Análise

A.   Quanto à primeira questão prejudicial

39.

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que, por ocasião de um procedimento penal instaurado contra uma pessoa, um Estado‑Membro é obrigado a aplicar a sua legislação nacional em matéria de cúmulo jurídico de penas, tomando em conta as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro contra essa mesma pessoa por atos diferentes cometidos anteriormente, quando a infração que deu origem ao novo procedimento penal tenha sido cometida antes das condenações anteriores, ainda que a aplicação dessa legislação nacional implique que nenhuma pena possa ser proferida ou, no mínimo, executada, no âmbito do novo processo ( 5 ).

40.

Em primeiro lugar, gostaria de salientar que, como refere o Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal e resulta do despacho de reenvio, o cúmulo jurídico de penas com uma pena aplicada no estrangeiro não é admissível em direito alemão por razões de direito internacional público. No entanto, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) assegura que a pessoa em questão não seja prejudicada por isso, introduzindo o mecanismo de «compensação do rigor», que permite ao juiz da causa ter em conta a condenação anterior ao determinar a pena no novo processo, como teria feito se tivesse sido possível o cúmulo jurídico das penas em sentido estrito.

41.

É igualmente importante salientar que, segundo o esclarecimento do Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal, decorre da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) que o limite máximo de quinze anos previsto no direito alemão para as penas globais privativas de liberdade pode, em princípio, ser aplicado quando for aplicado este mecanismo de compensação do rigor.

42.

Esclarecidos estes pontos, irei começar a minha análise com algumas observações introdutórias sobre o objeto da Decisão‑Quadro 2008/675 e o seu efeito no que respeita à questão do cúmulo jurídico das penas aplicadas em vários Estados‑Membros, para depois proceder à análise do artigo 3.o, n.o 5, da referida decisão‑quadro, no centro da primeira questão prejudicial.

1. Quanto ao objeto da Decisão‑Quadro 2008/675 e à problemática do cúmulo jurídico das penas

43.

A Decisão‑Quadro 2008/675 estabelece uma obrigação mínima de os Estados‑Membros tomarem em consideração condenações proferidas noutros Estados‑Membros ( 6 ). Esta obrigação é facilmente concebível no espaço de liberdade, segurança e justiça da União, no qual não se pode aceitar que os antecedentes penais de um indivíduo sejam tratados de forma diferente, consoante o Estado‑Membro onde tenha sido cometida uma infração.

44.

Para o efeito, o artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, interpretado à luz do seu considerando 5, impõe aos Estados‑Membros a obrigação de assegurarem que, por ocasião de um novo procedimento penal instaurado num Estado‑Membro contra a mesma pessoa por factos diferentes, as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro sejam, por um lado, tomadas em consideração na medida em que o são as condenações nacionais anteriores ao abrigo do direito nacional e, por outro, lhes sejam atribuídos efeitos equivalentes aos destas últimas condenações, em conformidade com esse direito, quer se trate de efeitos factuais ou de efeitos de direito processual ou material ( 7 ). A presente decisão‑quadro estabelece assim um princípio de igualdade de tratamento, independentemente de as condenações terem sido proferidas num único Estado‑Membro ou em vários Estados‑Membros.

45.

Trata‑se assim de permitir que os antecedentes penais de um indivíduo sejam tidos em conta num Estado‑Membro, não só, como salienta a Comissão, quando tal possa ser desfavorável ao indivíduo — refiro‑me em particular à reincidência — mas também quando essa tomada em consideração possa beneficiá‑lo, em particular no caso de um concurso real de infrações que possa levar a que as penas correspondentes a uma das infrações sejam objeto de cúmulo jurídico.

46.

O cúmulo jurídico das penas é, com efeito, um mecanismo que permite limitar a severidade da pena, evitando o cúmulo puro e simples das penas correspondentes às infrações cometidas em concurso. Como salienta o advogado‑geral J. Richard de la Tour, o cúmulo puramente matemático não só poderia ter efeitos contrários ao princípio da proporcionalidade, como também é contrário a uma das principais funções da pena ( 8 ). De facto, a pena não pode ter a função única de retribuição, mas deve também prevenir a prática de crimes e promover a reintegração social das pessoas condenadas. Ora, no caso de um concurso real de infrações, a advertência, constituída pela primeira condenação e que favorece a tomada de consciência do infrator, não se verificou, pelo que a pena aplicada pode ser ajustada ( 9 ).

47.

A tomada em consideração de condenações anteriores pelo juiz permite, nomeadamente, compreender estas situações e, de acordo com o seu direito nacional, proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas para os crimes cometidos em concurso. A Decisão‑Quadro 2008/675 admite a aplicação de tais mecanismos em situações de concurso real de infrações transfronteiriças. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que esta decisão‑quadro é aplicável a um processo nacional que tenha por objeto a aplicação, para efeitos de execução, de uma pena privativa de liberdade unitária que toma em consideração a pena aplicada a uma pessoa pelo juiz nacional, bem como a pena aplicada no quadro de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro contra a mesma pessoa por factos diferentes ( 10 ).

48.

No entanto, a obrigação de ter em conta condenações anteriores pode dar origem a dificuldades quando essas condenações tenham sido proferidas no estrangeiro, pelo que a Decisão‑Quadro 2008/675 especifica, no seu artigo 3.o, n.o 3, o alcance desta obrigação.

49.

Assim, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, a tomada em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal, de condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro não pode ter por efeito interferir nessas condenações anteriores ou em qualquer decisão relativa à sua execução no Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento penal, nem que as referidas condenações sejam revogadas ou reexaminadas, devendo as mesmas ser tomadas em consideração tal como foram proferidas ( 11 ).

50.

Esta clarificação é naturalmente pertinente nas situações de concurso de infrações que possam levar ao cúmulo jurídico das penas num Estado‑Membro. Isso está, aliás, expressamente previsto no considerando 14 da Decisão‑Quadro 2008/675, na medida em que estabelece que o artigo 3.o, n.o 3, desta decisão‑quadro se refere a situações em que uma pena aplicada por uma decisão condenatória anterior que não tenha ainda sido executada deve ser absorvida por outra pena ou nela incluída, devendo então ser efetivamente executada. Nesta hipótese, o cúmulo jurídico das penas no Estado‑Membro do tribunal que profere a sentença afetaria necessariamente a execução da pena aplicada anteriormente por um tribunal de outro Estado‑Membro.

51.

Contudo, o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 não se limita à questão do cúmulo jurídico das penas. De facto, a tomada em consideração pelo tribunal nacional das condenações estrangeiras anteriores pode ter o efeito de influenciar estas condenações anteriores noutras situações, por exemplo, revogando a suspensão a que a pena aplicada por essa decisão estava sujeita e transformando‑a numa pena de prisão efetiva ( 12 ).

52.

Trata‑se de preservar a autoridade de caso julgado das decisões proferidas noutros Estados‑Membros, de modo que a tomada em consideração de condenações anteriores não possa conduzir a uma ingerência do tribunal nacional na decisão anterior proferida noutro Estado‑Membro. Deste modo, o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 estabelece um limite geral à obrigação de tomar em consideração condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro.

53.

Além deste limite, a Decisão‑Quadro 2008/675 prevê igualmente, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 5, que, se a infração que levou à instauração do novo procedimento tiver sido cometida antes de ser proferida ou integralmente executada a condenação anterior, o disposto nos n.os 1 e 2 do referido artigo 3.o não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais em matéria de determinação de penas, caso a aplicação dessas normas a condenações proferidas no estrangeiro tenha a consequência de limitar o poder do juiz na imposição de uma pena no âmbito do novo procedimento.

2. Quanto ao artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675

54.

O artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 prevê uma exceção ao artigo 3.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro.

55.

Com efeito, resulta claramente da redação desta disposição que, na situação que ela tem por objeto, os Estados‑Membros não são obrigados, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, a aplicar as suas normas nacionais relativas à imposição de sanções. Por outras palavras, o princípio da igualdade de tratamento estabelecido no artigo 3.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro não deve ser considerado se a aplicação das normas nacionais em matéria de determinação das sanções aplicáveis a condenações proferidas noutro Estado‑Membro tiver por efeito uma limitação do poder de que dispõe o juiz de aplicar uma sanção no âmbito do novo procedimento criminal.

56.

Contrariamente ao que a Comissão defendeu na audiência, o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 é assim dirigido aos Estados‑Membros, deixando‑lhes uma margem de manobra quanto à possibilidade de prever, ou não, uma exceção ao princípio da igualdade de tratamento estabelecido no n.o 1 do referido artigo 3.o e prevê que, caso optem por aplicar tal exceção, assegurem a possibilidade de os tribunais tomarem em consideração de outro modo as condenações estrangeiras.

57.

Saliento que esta disposição se destina a ser aplicada unicamente em situações em que a infração que deu origem ao novo processo tenha sido cometida antes de a condenação anterior ter sido proferida ou totalmente executada.

58.

No caso em apreço, esta condição encontra‑se preenchida, uma vez que a violação em causa no processo principal foi cometida antes de serem proferidas as decisões de condenação francesas. Poder‑se‑ia inferir daí, como sustentam o Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal e a Comissão, que o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 é aplicável ao presente processo, permitindo ao órgão jurisdicional de reenvio não aplicar o limite máximo de quinze anos estabelecido pela lei alemã para as penas globais privativas da liberdade de duração determinada na medida em que tal norma teria por resultado impedir o tribunal alemão de aplicar uma pena executável ao recorrente no processo principal.

59.

Todavia, tal interpretação não me convence, pelas razões que se seguem.

a) Transposição do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 para o direito nacional e falta de efeito direto desta disposição

60.

À luz da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal), referida nos n.os 40 e 41 das presentes conclusões, o legislador alemão considerou não haver necessidade de adotar medidas adicionais de transposição da Decisão‑Quadro 2008/675, uma vez que o mecanismo de compensação do rigor em caso de condenações estrangeiras, interpretado em conformidade com o mecanismo do artigo 3.o da referida decisão‑quadro, permite assegurar que um arguido num processo penal na Alemanha não seja prejudicado pelo facto de ter sido condenado no estrangeiro, em relação a um arguido que tenha sido objeto de várias condenações unicamente neste Estado‑Membro ( 13 ).

61.

Contudo, segundo jurisprudência constante, quando uma decisão‑quadro se destina a criar direitos para os indivíduos, as suas disposições devem ser executadas com força obrigatória incontestável, com a especificidade, a precisão e a clareza exigidas, a fim de satisfazer a exigência de segurança jurídica, que requer que os beneficiários possam conhecer plenamente os seus direitos ( 14 ).

62.

Estas exigências de força obrigatória incontestável, de especificidade e de clareza são ainda mais importantes em matéria penal, nas situações em que as disposições de uma decisão‑quadro possam ter por efeito agravar a responsabilidade criminal de um arguido.

63.

A este respeito, saliento que o mecanismo de compensação do rigor previsto em direito alemão é um mecanismo que favorece o arguido, na medida em que permite ter em consideração condenações anteriores proferidas relativamente ao mesmo, no intuito de adaptar a pena que lhe é aplicada. Por seu lado, na medida em que permite ao tribunal nacional dispensar a aplicação de tal mecanismo, o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 tem um efeito desfavorável na situação do arguido.

64.

No entanto, no presente processo, e visto que o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 tem nomeadamente por efeito agravar a situação dos arguidos, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) mostra‑se incerta. O Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal mencionou várias sentenças, algumas das quais respeitam o limite máximo de quinze anos e outras não ( 15 ).

65.

A jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) não constitui, por conseguinte, uma medida de transposição suficiente do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 ( 16 ).

66.

A este respeito, recorde‑se que, uma vez que a Decisão‑Quadro 2008/675 foi adotada com base no antigo terceiro pilar da União, designadamente em aplicação do artigo 34.o, n.o 2, alínea b), UE, as suas disposições não têm efeito direto. Contudo, esta disposição previa, por um lado, que as decisões‑quadro vinculam os Estados‑Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios e, por outro, que as decisões‑quadro não podem ter efeito direto ( 17 ).

67.

Na falta de efeito direto do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, esta disposição não pode, portanto, ser interpretada no sentido de que permite ao tribunal nacional não aplicar o limite máximo de quinze anos previsto em direito alemão para as penas globais privativas de liberdade.

b) Obrigação de interpretação conforme à Decisão‑Quadro 2008/675 e respetivos limites

68.

É certamente verdade que, embora as decisões‑quadro não possam produzir efeito direto, o seu caráter vinculativo cria, não obstante, para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação conforme do seu direito interno a partir do termo do prazo de transposição destas decisões‑quadro ( 18 ).

69.

Ao aplicar o direito interno, essas autoridades são obrigadas a interpretá‑lo, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da decisão‑quadro, a fim de alcançar o resultado por ela prosseguido ( 19 ).

70.

Daqui decorre que, na medida em que a aplicação do limite máximo de quinze anos previsto em direito alemão para as penas globais privativas de liberdade teria o efeito de limitar o poder do juiz de aplicar uma pena no âmbito do processo pendente, a interpretação conforme do direito alemão poderia levar o tribunal a não aplicar esse limite, mas a ter em conta, de outro modo, as condenações estrangeiras anteriores.

71.

No entanto, o princípio da interpretação conforme tem certos limites. Assim, os princípios gerais do direito, em especial os princípios da segurança jurídica e da não retroatividade, opõem‑se, nomeadamente, a que a obrigação de interpretação conforme possa ter como resultado determinar ou agravar, com fundamento numa decisão‑quadro e independentemente de uma lei adotada para a sua execução, a responsabilidade penal daqueles que cometeram uma infração ( 20 ).

72.

Este parece‑me ser precisamente o caso no que respeita ao artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, se esta disposição devesse ser interpretada no sentido de que permite ao tribunal nacional dispensar o limite de quinze anos previsto em direito alemão para as penas globais privativas de liberdade. Na verdade, em tal hipótese, a obrigação de interpretação conforme levaria a um agravamento da situação penal do infrator em comparação com o que teria sido a sua situação segundo o direito nacional, ao retirar‑lhe o benefício do referido limite máximo de quinze anos.

73.

A este respeito, importa especificar que, embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça se refira ao agravamento da responsabilidade penal do infrator, não me parece que isso exclua que abranja igualmente situações, como a que está em causa no processo principal, em que a disposição de uma decisão‑quadro agrava não a responsabilidade criminal per se do arguido, mas a pena em que este incorre.

74.

Com efeito, a jurisprudência do Tribunal baseia‑se, nomeadamente, no princípio da segurança jurídica ( 21 ), que se reveste de particular importância em matéria penal e cujo âmbito não se limita à determinação da responsabilidade criminal de um indivíduo, mas abarca também os efeitos de tal responsabilidade, entre os quais se destaca a pena que pode ser‑lhe aplicada. Aliás, o próprio Tribunal de Justiça admite isso quando, ao aplicar esta jurisprudência, examina não só se a disposição da decisão‑quadro em questão no presente processo tem por consequência determinar ou agravar a responsabilidade penal do arguido, mas também «alterar, em detrimento deste último, a duração da [sua] condenação» ( 22 ).

75.

Nestas circunstâncias, o princípio da interpretação conforme do direito nacional com as disposições da Decisão‑Quadro 2008/675 não pode levar a que o tribunal nacional dispense o do limite máximo de quinze anos previsto no direito nacional para as penas globais privativas de liberdade aplicadas com base no mecanismo de compensação do rigor.

c) Imprecisão do direito nacional quanto à existência de um limite máximo para as penas globais privativas de liberdade resultantes da aplicação do mecanismo de compensação do rigor

76.

Precise‑se que a análise que acabo de desenvolver assenta no pressuposto de que a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) transpõe a exigência do respeito de um limite máximo de quinze anos para as penas globais privativas de liberdade que existe em matéria de cúmulo jurídico das penas no mecanismo de compensação do rigor. Com efeito, unicamente na medida em que o próprio direito alemão prevê que, numa situação de concurso real de infrações cometidas em vários Estados‑Membros, o limite máximo deve ser aplicado, é que o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado como não permitindo ultrapassar tal limite.

77.

Contudo, devo salientar que os debates na audiência podem ter gerado confusão sobre se tal limite máximo de quinze anos era também aplicável ao mecanismo de compensação do rigor, tendo o Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal indicado quer que este limite máximo se aplicava ao mecanismo de compensação do rigor de acordo com a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal), quer que tal limite máximo não podia ser aplicado e, aliás, nunca o tinha sido. Além disso, resulta dos antecedentes do processo principal que o tribunal de primeira instância se recusou a aplicar tal limite. Por conseguinte, não é claro que o direito alemão preveja a aplicação do limite máximo de quinze anos na determinação de uma pena global no contexto da aplicação do mecanismo de compensação do rigor.

78.

Contudo, se tal limite máximo não se encontra previsto em direito alemão no que respeita ao mecanismo de compensação do rigor, a interpretação conforme das disposições do direito nacional à luz do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 poderia conduzir a uma solução oposta à solução que proponho.

79.

Nestas circunstâncias, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o limite de quinze anos previsto em direito alemão para as penas globais privativas de liberdade é de facto aplicável quando seja aplicado o mecanismo de compensação do rigor.

80.

Em face do exposto, e na minha opinião, o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que, na falta de medidas de transposição desta disposição e na medida em que o direito nacional preveja um limite máximo apara a aplicação de uma pena privativa de liberdade em caso de tomada em consideração de condenações proferidas noutro Estado‑Membro, um Estado‑Membro é obrigado, no âmbito de um procedimento penal instaurado contra uma pessoa, a aplicar as suas normas nacionais tendo em conta as condenações estrangeiras anteriores proferidas contra essa pessoa por atos diferentes praticados anteriormente sempre que a infração que deu origem ao novo processo tenha sido cometida antes de as condenações anteriores terem sido proferidas, mesmo que a aplicação destas normas nacionais tenha a consequência de nenhuma condenação poder ser proferida ou, no mínimo, executada, no âmbito do novo processo.

B.   Quanto à segunda questão prejudicial

81.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, no caso de o Estado‑Membro não ser obrigado, com base no artigo 3.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/675, a aplicar as suas normas nacionais em matéria de cúmulo jurídico das penas tendo em conta as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro, do artigo 3.o, n.o 5, segundo parágrafo, da referida decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que a tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros de outra maneira, como previsto nesta disposição, exige que o tribunal nacional, na determinação da pena pela infração cometida no território nacional, estabeleça de modo claro e quantificado a desvantagem resultante da impossibilidade de ordenar o cúmulo jurídico das penas em conformidade com as normas nacionais.

82.

Tendo em conta a minha análise da primeira questão prejudicial, esta segunda questão não carece de resposta. No entanto, examiná‑la‑ei por razões de exaustividade, para o caso de o Tribunal de Justiça não partilhar desta análise.

83.

O artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 prevê que, quando o primeiro parágrafo desta disposição é aplicado e permite que o juiz nacional, abstraindo do princípio da igualdade de tratamento previsto no n.o 1 do referido artigo 3.o, não tenha em conta uma condenação anterior numa situação de concurso real de infrações, os Estados‑Membros devem, no entanto, assegurar que os seus tribunais possam ter em conta as condenações anteriores de outra maneira.

84.

Por outras palavras, o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 assegura que, mesmo nos casos em que as condenações estrangeiras anteriores não são tidas em conta, os antecedentes penais do arguido no novo processo não sejam ignorados, a fim de garantir, na falta de uma igualdade de tratamento rigorosa, alguma equidade.

85.

Como a Comissão e o Procurador‑Geral junto do Supremo Tribunal de Justiça Federal salientam, esta disposição, em contrapartida, não estabelece qualquer exigência quanto às modalidades concretas desta tomada em consideração alternativa, em particular no que diz respeito ao cálculo da pena infligida. Esta questão deve, portanto, ser deixada à apreciação dos tribunais dos Estados‑Membros visados nesta disposição, sem que seja possível deduzir do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675 qualquer exigência além da de tomar em consideração a compensação pela não aplicação do princípio da igualdade de tratamento.

86.

Nestas circunstâncias, considero que o artigo 3.o, n.o 5, segundo parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que a tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros de outra maneira, como prevista nesta disposição, não exige que o tribunal nacional, na determinação da pena pela infração cometida no território nacional, estabeleça de modo claro e quantificado a desvantagem resultante da impossibilidade de ordenar o cúmulo jurídico das penas em conformidade com as normas nacionais.

V. Conclusão

87.

À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal):

O artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho de 24 de julho de 2008 relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia, por ocasião de um novo procedimento penal,

deve ser interpretado no sentido de que:

na falta de medidas de transposição desta disposição, e na medida em que o direito nacional preveja um limite máximo para a aplicação de uma pena privativa de liberdade em caso de tomada em consideração de condenações proferidas noutro Estado‑Membro, um Estado‑Membro é obrigado, no âmbito de um procedimento penal instaurado contra uma pessoa, a aplicar as suas normas nacionais tendo em conta as condenações estrangeiras anteriores proferidas contra essa pessoa por atos diferentes cometidos anteriormente sempre que a infração que deu origem ao novo processo tenha sido cometida antes de as referidas condenações anteriores terem sido proferidas, mesmo que a aplicação destas normas nacionais tenha a consequência de nenhuma condenação poder ser proferida ou, no mínimo, executada, no âmbito do novo processo.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Decisão‑Quadro do Conselho de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia, por ocasião de novo procedimento penal (JO 2008, L 220, p. 32).

( 3 ) Para efeitos das presentes conclusões, entende‑se por «cúmulo jurídico das penas» tanto a determinação de uma pena unitária cujo quantum corresponde à pena inicial mais grave que absorve a pena mais leve, considerada incluída na primeira, como a aplicação de uma pena global correspondente à combinação das penas no limite de um quantum máximo.

( 4 ) Por «concurso real de infrações» entende‑se uma situação em que uma pessoa que cometeu uma infração comete uma segunda infração, quando ainda não tenha sido condenada a título definitivo pela infração anterior.

( 5 ) Importa salientar que não resulta claramente da decisão de reenvio se as normas nacionais referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio obstam a que seja aplicada uma pena pelos factos objeto do processo penal pendente, ou se pode ser aplicada uma pena, mas esta não pode ser executada. De facto, o órgão jurisdicional de reenvio afirma quer que só poderia ser aplicada uma pena se o Tribunal de Justiça adotasse uma determinada interpretação do artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, quer que uma pena poderia efetivamente ser aplicada, mas que nenhuma outra pena poderia ser executada. Contudo, como irei demonstrar, sou de opinião que o artigo 3.o, n.os 1 e 5, da decisão‑quadro deve ser interpretado do mesmo modo em ambos os casos, de modo que a resposta do Tribunal de Justiça à questão prejudicial não pode variar caso se verifique que as normas nacionais impedem não só a execução de uma pena proferida no âmbito de um novo processo penal, mas também a própria aplicação de tal pena.

( 6 ) Considerando 3 da Decisão‑Quadro 2008/675.

( 7 ) Acórdão de 21 de setembro de 2017, Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:710, n.os 25 e 26).

( 8 ) Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo AV (Sentença global) (C‑221/19, EU:C:2020:815, n.o 35).

( 9 ) Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386, n.o 43).

( 10 ) Acórdãos de 21 de setembro de 2017, Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:710, n.o 29), e de 15 de abril de 2021, AV (Sentença global) (C‑221/19, EU:C:2021:278, n.o 52).

( 11 ) Acórdãos de 21 de setembro de 2017, Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:710, n.o 37 e 44), e de 15 de abril 2021, AV (Acórdão global) (C‑221/19, EU:C:2021:278, n.o 53).

( 12 ) Acórdão de 21 de setembro 2017, Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:710, n.o 46).

( 13 ) Deutscher Bundestag, Drucksache 16/13673 (bundestag.de), p. 5.

( 14 ) Acórdãos de 24 de março de 2022, Comissão/Irlanda (Transposição da Decisão‑Quadro 2008/909) (C‑125/21, não publicado, EU:C:2022:213, n.o 21); de 17 de dezembro de 2020, Comissão/Hungria (Receção de requerentes de proteção internacional) (C‑808/18, EU:C:2020:1029, n.o 288); e de 13 de março de 1997, Comissão/França (C‑197/96, EU:C:1997:155, n.o 15).

( 15 ) Saliento aliás que, no âmbito do processo principal, o tribunal de primeira instância recusou aplicar o limite máximo de quinze anos previsto no direito alemão para as penas globais privativas de liberdade na execução do mecanismo de compensação do rigor.

( 16 ) Mesmo que a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) pudesse ser interpretada no sentido de que transpõe suficientemente o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, ao impor de modo definitivo o cumprimento do limite de quinze anos na implementação da compensação do rigor, considero que isso não poderia levar o órgão jurisdicional de reenvio a afastar‑se deste limite. Esta disposição estabelece que, nas situações a que se refere, «o disposto nos n.os 1 e 2 não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais ao imporem sentenças», e especifica que os Estados‑Membros asseguram a possibilidade de, nesses casos, os seus tribunais tomarem em consideração as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros. Tendo o legislador alemão optado por uma transposição por via da jurisprudência, excluindo, no caso de concurso real de infrações, um cúmulo jurídico das penas em sentido estrito, prevendo simultaneamente, através do mecanismo de compensação do rigor, uma tomada em consideração alternativa pelo juiz, em que se aplique o limite máximo de quinze anos para uma pena global privativa de liberdade que tenha em conta as condenações anteriores. Nestas circunstâncias, e na medida em que a jurisprudência nacional aplica estritamente o artigo 3.o, n.o 5, da Decisão‑Quadro 2008/675, dentro da margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros, esta disposição não pode de modo algum ser interpretada no sentido de que permite ao tribunal nacional não aplicar o referido limite máximo de quinze anos previsto em direito alemão para as penas globais privativas de liberdade.

( 17 ) Acórdãos de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 56), e de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 69).

( 18 ) Acórdãos de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.os 58 e 61), e de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 72).

( 19 ) Acórdãos de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, EU:C:2005:386, n.o 43); de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 59); e de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 73).

( 20 ) Acórdãos de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.os 63 e 64); de 29 de junho de 2017, Popławski (C‑579/15, EU:C:2017:503, n.o 32); e de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 75).

( 21 ) Acórdãos de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, EU:C:2005:386, n.o 44); de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 64); e de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 75).

( 22 ) V. Acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 65).