Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PRIIT PIKAMÄE
apresentadas em 14 de dezembro de 2023 (1)
Processo C‑432/22
PT
sendo interveniente
Spetsializirana prokuratura
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária)]
« Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Criminalidade organizada — Decisão‑Quadro 2008/841/JAI — Decisão‑Quadro 2004/757/JAI — Tráfico de drogas — Acordo sobre a aplicação de uma pena negociada celebrado entre o Ministério Público e o autor de uma infração — Competência do Tribunal de Justiça — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o — Aprovação do acordo pelo juiz — Requisitos — Designação de uma formação de julgamento ad hoc — Consentimento dos outros arguidos »
1. A possibilidade de o arguido obter uma atenuação das acusações ou uma redução de pena, desde que reconheça a sua culpa, ou renuncie, antes do julgamento, a contestar os factos, ou, ainda, coopere plenamente com as autoridades de investigação, tornou‑se corrente nos sistemas jurídico‑penais dos Estados europeus, de acordo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») (2).
2. Por seu turno, o Tribunal de Justiça já se pronunciou em processos relativos a acordos de confissão de culpa, mas apenas na medida em que se discutiam certos direitos processuais reconhecidos em benefício dos arguidos, como o direito à presunção de inocência ao abrigo da Diretiva (UE) 2016/343 (3) ou o direito de ser informado da acusação ao abrigo da Diretiva 2012/13/UE (4).
3. O presente processo suscita a questão da conformidade com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), de uma legislação nacional em virtude da qual a homologação judicial de um acordo no qual um dos arguidos reconhece a sua culpa pelas infrações imputadas mediante redução de pena é, por um lado, atribuída por competência a um órgão jurisdicional diferente do que foi inicialmente chamado a pronunciar‑se sobre a ação penal e está, por outro, sujeita à condição prévia de anuência da celebração desse acordo por todos os outros arguidos que não reconheceram a sua responsabilidade penal.
Quadro jurídico
Direito da União
4. Releva para o presente processo o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.
Direito búlgaro
5. O artigo 381.o do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal; a seguir «NPK») (5), sob a epígrafe «Acordo de negociação de pena no âmbito do processo preliminar», dispõe:
«1. No termo do inquérito, sob proposta do Ministério Público ou do advogado, pode ser estabelecido um acordo entre eles para resolver o processo.
[…]
4. O acordo pode determinar a sanção nos termos previstos no artigo 55.o do NK, mesmo não havendo circunstâncias atenuantes excecionais ou numerosas.
5. O acordo deve revestir a forma escrita e abarcar consenso sobre as seguintes questões:
1. foi praticado um ato, foi praticado pelo arguido e foi‑o culposamente, o ato constitui uma infração e qual é a sua qualificação jurídica?
2. qual deve ser a natureza e o nível da sanção?
[…]
6. O acordo é assinado pelo Ministério Público e pelo advogado. O arguido assina o acordo se o aceitar, depois de ter declarado que renuncia ao processo de julgamento segundo o procedimento ordinário.
7. Quando o processo é dirigido contra várias pessoas ou várias infrações, o acordo pode ser celebrado por algumas dessas pessoas ou para algumas dessas infrações.
[…]»
6. Em virtude do artigo 382.o do NPK, sob a epígrafe «Decisão do tribunal sobre o acordo»:
«1. O acordo é levado pelo Ministério Público ao tribunal de primeira instância competente imediatamente após ter sido estabelecido, e ao mesmo tempo que o processo.
[…]
5. O tribunal pode propor alterações ao acordo, que são examinadas com o Ministério Público e com o advogado. O arguido é o último a ser ouvido.
[…]
7. O tribunal aprova o acordo desde que não seja contrário à lei e aos bons costumes.
[…]»
7. Nos termos do artigo 384.o do NPK, sob a epígrafe «Acordo sobre a sentença no âmbito do processo judicial»:
«1. Nas condições e segundo as modalidades do presente capítulo, o tribunal de primeira instância pode aprovar um acordo sobre a sentença negociado após o início do processo judicial, mas antes da conclusão da fase judicial de instrução.
[…]
3. Nestes casos, o acordo sobre a aplicação de uma pena negociada só é aprovado após obtenção do consentimento de todas as partes [processuais].»
8. O artigo 384.o‑A do NPK, sob a epígrafe «Decisão sobre um acordo celebrado com um dos arguidos ou para uma das infrações», prevê:
«1. Quando, após a abertura do processo judicial, mas antes da conclusão da fase judicial de instrução, tenha sido celebrado um acordo com um dos arguidos ou para uma das infrações, o tribunal suspende a instância.
2. Outra formação do tribunal decide sobre o acordo celebrado, no prazo de sete dias a contar da receção do processo.
3. A formação de julgamento referida no n.o 1 deve prosseguir a apreciação do processo após a decisão sobre o acordo.»
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
9. Em 25 de março de 2020, a Spetsializirana prokuratura (Procuradoria Especializada, Bulgária) instaurou, no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), uma ação penal contra 41 pessoas, entre as quais SD e PT, por terem liderado e/ou participado nas atividades de uma organização criminosa que tem por objetivo a distribuição de drogas com fins de enriquecimento. PT é acusado da participação nesta organização criminosa e da posse de estupefacientes para fins de distribuição.
10. Durante a fase preliminar do processo, em 26 de agosto de 2020, o Ministério Público e o advogado de SD celebraram um acordo nos termos do qual este último reconheceu a sua culpa relativamente a todas as acusações contra ele deduzidas e é determinada uma pena menos gravosa do que a que lhe seria aplicável nos termos da lei. Este acordo mencionava os nomes e o número de identificação nacional dos outros arguidos. Não foi pedido o consentimento desses arguidos e, em 1 de setembro de 2020, foi o referido acordo aprovado por outra formação de julgamento.
11. Em 17 de novembro de 2020, na fase judicial do processo, o Ministério Público e o advogado de PT celebraram um acordo que abarcava o reconhecimento da sua culpa pelo interessado relativamente a todas as acusações que lhe diziam respeito e a fixação de uma pena privativa de liberdade com suspensão da execução de sanções pelas infrações cometidas (a seguir «acordo de 17 de novembro de 2020»). Por forma a ter em conta o Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670), este acordo foi alterado de modo a omitir os nomes e o número de identificação nacional dos outros arguidos.
12. Numa audiência realizada em 14 de janeiro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio recolheu as observações dos outros arguidos, alguns dos quais não deram o seu consentimento à aprovação do acordo de 17 de novembro de 2020. Em conformidade com o artigo 384.o‑A do NPK, este órgão jurisdicional, em 18 de janeiro de 2021, transmitiu esse acordo ao seu presidente, com vista à designação de outra formação de julgamento para se pronunciar sobre o referido acordo. Em 21 de janeiro de 2021, esta última recusou aprovar o acordo de 17 de novembro de 2020, com o fundamento de que alguns arguidos não tinham dado o seu consentimento para esse efeito.
13. Em 10 de maio de 2022, o Ministério Público e o advogado de PT pediram, com fundamento no Acórdão de 29 de julho de 2019, Gambino e Hyka (C‑38/18, EU:C:2019:628), à formação de julgamento chamada a pronunciar‑se sobre processo que decidisse sobre esse acordo, sem solicitar o consentimento dos outros arguidos. Todavia, em 11 de maio de 2022, esta última foi excluída aquando da distribuição aleatória com vista à designação, baseada no artigo 384.o‑A do NPK, de uma formação de julgamento para decidir sobre o referido acordo.
14. Em 18 de maio de 2022, a formação de julgamento designada em aplicação desta disposição apreciou o acordo de 17 de novembro de 2020 e recusou aprová‑lo com o fundamento de que esta aprovação carecia do consentimento dos outros 39 arguidos. Em consequência dessa recusa, o Ministério Público, PT e o seu advogado pediram, novamente e no mesmo dia, para a formação de julgamento, perante a qual tinham sido apresentadas todas as provas, aprovar o referido acordo, sem solicitar o consentimento dos outros arguidos. Contudo, o Ministério Público expôs as suas dúvidas relativas à imparcialidade desta última para conduzir o processo em relação aos outros arguidos, caso devesse aprovar o acordo celebrado com PT. Por seu turno, PT considera que o facto de ele não poder celebrar um acordo implica a violação de direitos que lhe são conferidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).
15. No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que é necessária uma resposta às questões prejudiciais submetidas para que possa decidir quanto ao mérito do processo que lhe foi submetido, uma vez que esse processo diz respeito a infrações penais abrangidas pelo âmbito de aplicação das Decisões‑Quadro 2004/757/JAI (6) e 2008/841/JAI (7) e, portanto, dos «domínios abrangidos pelo direito da União», na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE. Considera que as modalidades previstas no direito nacional para a celebração de um acordo entre o Ministério Público e um arguido constituem uma «aplicação», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, do artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841.
16. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a compatibilidade do artigo 384.o‑A do NPK com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com o artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta. Segundo esse órgão jurisdicional, é contrário ao princípio da imediação do processo penal e ao direito de tutela jurisdicional efetiva colocar a defesa numa situação em que as provas são recolhidas perante uma formação de julgamento, quando incumbe a outra formação de julgamento decidir sobre as mesmas.
17. Por outro lado, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a compatibilidade do artigo 384.o, n.o 3, NPK — visto que, para a aprovação de tal acordo, exige o consentimento dos outros arguidos no âmbito do mesmo processo penal —, não apenas com o artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757/JAI e com o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841/JAI mas também com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com o artigo 52.o da Carta, lidos em conjugação com o artigo 47.o desta. Com efeito, esta exigência de consentimento resulta numa restrição de acesso a uma via de recurso na aceção desta última disposição, sem que seja respeitado o principio da proporcionalidade, conforme exige o artigo 52.o da Carta.
18. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, no caso de o próprio aprovar o acordo celebrado entre o Ministério Público e PT, sobre se seria, em seguida, obrigado a declarar‑se incompetente nesse processo, à luz do Despacho de 28 de maio de 2020, UL e VM (C‑709/18, EU:C:2020:411, n.o 35), para garantir aos outros arguidos, perante si, o respetivo direito a um juiz imparcial, previsto no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.
19. Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) No contexto de um processo penal relativo a uma acusação por infrações abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União, é compatível com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com o artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta uma lei nacional que exige que não seja o órgão jurisdicional que conhece do processo e perante o qual todas as provas foram apresentadas, mas outro órgão jurisdicional a examinar o conteúdo de um acordo celebrado entre o [Ministério Público] e um arguido, quando a razão para esta exigência é [existirem] outros coarguidos que não celebraram um acordo?
2) É compatível com o artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757, com o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com as disposições conjugadas do artigo 52.o e do artigo 47.o da [Carta uma] lei nacional que só autoriza um acordo que põe termo ao processo penal se todos os outros coarguidos e os seus defensores tiverem dado o seu consentimento?
3) O artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta exige que um órgão jurisdicional, depois de ter examinado e aprovado um acordo, se abstenha de examinar a acusação contra os outros coarguidos quando tenha proferido uma decisão sobre esse acordo sem se pronunciar sobre o envolvimento destes nem sobre a sua culpabilidade?»
Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
20. A Comissão Europeia apresentou observações escritas.
Análise
21. Como resulta do pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio considera que deve obter do Tribunal de Justiça uma interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, dos artigos 47.o e 52.o da Carta, bem como do artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, em face das dúvidas que tem quanto à conformidade com estas disposições do direito da União da legislação nacional que define os requisitos de aprovação judicial de um acordo celebrado entre o Ministério Público e um arguido, através do qual este último reconhece a respetiva culpa pelas infrações imputadas e é, consequentemente, punido com uma pena previamente negociada.
22. Nas suas observações escritas, a Comissão invocou, em substância, a inaplicabilidade do artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, bem como do artigo 47.o da Carta. Alegou, igualmente, que a fundamentação da decisão de reenvio quanto à segunda questão prejudicial não obedecia às exigências do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Além disso, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, compete ao próprio Tribunal de Justiça examinar as condições nas quais é chamado a pronunciar‑se pelo juiz nacional, a fim de verificar a sua própria competência ou a admissibilidade do pedido que lhe é submetido (8).
Quanto à competência do Tribunal de Justiça
23. Segundo jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça não é competente para responder a uma questão submetida a título prejudicial quando é manifesto que a disposição do direito da União submetida à interpretação do Tribunal não pode ser aplicada (9). Quando uma situação jurídica não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para dela conhecer, e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, por si só, servir de base a essa competência (10).
24. Em primeiro lugar, no que respeita à aplicação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, importa recordar que, em virtude desta disposição, os Estados‑Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar aos particulares o respeito pelo seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União. Assim, compete aos Estados‑Membros prever um sistema de vias de recurso e de procedimentos que permita assegurar uma fiscalização jurisdicional efetiva nos referidos domínios. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no que respeita ao âmbito de aplicação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, a referida disposição visa os «domínios abrangidos pelo direito da União», independentemente da situação em que os Estados‑Membros apliquem esse direito, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (11).
25. O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE é, nomeadamente, aplicável a todas as instâncias nacionais que sejam suscetíveis de decidir, como órgãos jurisdicionais, sobre questões relativas à aplicação ou à interpretação do direito da União e abrangidas por domínios cobertos por esse direito. Ora, é esse o caso do órgão jurisdicional de reenvio, o qual pode, efetivamente, na sua qualidade de tribunal comum búlgaro, ser chamado a decidir questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação do direito da União e integra, enquanto «órgão jurisdicional», na aceção definida por este direito, o sistema búlgaro de vias de recurso nos «domínios abrangidos pelo direito da União», na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, pelo que esse órgão jurisdicional deve respeitar as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva. Além disso, importa recordar que, embora a organização judiciária nos Estados‑Membros seja da competência destes últimos, a verdade é que, no exercício desta competência, os Estados‑Membros estão obrigados a cumprir as obrigações que para eles decorrem do direito da União e, em especial, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (12).
26. Resulta do que precede que, no presente processo, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.
27. Em segundo lugar, o âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros, quando apliquem o direito da União, confirmando esta disposição a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União se destinam a ser aplicados em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora delas.
28. No caso em apreço, no que respeita, mais precisamente, ao artigo 47.o da Carta, referido no presente pedido de decisão prejudicial, há que constatar que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se sobre a ação penal instaurada contra 40 pessoas, entre as quais PT, pela participação nas atividades de uma organização criminosa que tem por objetivo a distribuição de drogas com fins de enriquecimento, sendo o interessado, além disso, acusado da posse de estupefacientes para fins de distribuição.
29. Resulta que as infrações acima referidas, previstas e punidas no artigo 321.o, n.o 3, ponto 2, e no artigo 354.o‑A, n.o 1, do Código Penal búlgaro, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação das Decisões‑Quadro 2004/757 e 2008/841, cujos artigo 5.o e artigo 4.o, respetivamente, preveem que os Estados‑Membros podem tomar as medidas necessárias para garantir que as penas previstas nestas decisões‑quadro possam ser reduzidas quando o autor da infração renuncia às suas atividades criminosas, nos domínios abrangidos pelas referidas decisões‑quadro, e fornece às autoridades administrativas ou judiciais informações que estas não poderiam obter de outra forma, ajudando‑as a, nomeadamente, a identificar ou a incriminar os outros autores da infração ou a encontrar provas.
30. É possível deduzir da constatação acima referida, como faz o órgão jurisdicional de reenvio, que as normas processuais nacionais que regulam a aprovação judicial de um acordo de confissão de culpa constituem uma aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, determinando, assim, a aplicabilidade das suas disposições?
31. Uma resposta negativa a esta pergunta pode ser considerada mediante um raciocínio por analogia com o que conduziu ao Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776), relativo à interpretação do artigo 7.o, n.o 4, da Diretiva 2016/343, nos termos do qual «os Estados‑Membros podem autorizar que as suas autoridades judiciárias, ao proferirem a sua decisão, tenham em conta a atitude de cooperação do suspeito ou do arguido». Nessa decisão, o Tribunal de Justiça declarou que este artigo deve ser interpretado no sentido de que não rege a questão de saber se a aprovação, por um juiz, de um acordo sobre a aplicação de uma pena negociada — previsto na mesma regulamentação que a que está em causa no processo principal, celebrado entre um arguido, por alegadamente pertencer a um grupo criminoso, e o Ministério Público — pode ou não estar sujeita ao requisito de os outros arguidos, por pertencerem a esse grupo criminoso, darem o seu consentimento à celebração desse acordo, não obstante a constatação prévia da aplicação ratione personae e materiae desta diretiva ao processo principal.
32. No caso em apreço, importa salientar, primeiro, que as Decisões‑Quadro 2004/757 e 2008/841 foram adotadas, nomeadamente, com base no artigo 31.o, n.o 1, alínea e), TUE, que previa, em especial, que a ação em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal se destina a adotar progressivamente medidas que estabeleçam regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de droga (13). Estas decisões‑quadro estabelecem, com base no atual artigo 83.o, n.o 1, TFUE, que substituiu o artigo 31.o, n.o 1, TUE, as regras mínimas abrangidas pelo direito penal substantivo.
33. Ora, não se pode deixar de observar que a legislação nacional em causa integra o domínio do processo penal e que nenhum dos instrumentos jurídicos do direito da União destinados a reforçar os direitos dos suspeitos ou arguidos ao longo de todo o processo penal, adotados com base no artigo 82.o, n.o 2, TFUE, regula especificamente as modalidades de celebração de acordos de confissão de culpa entre o Ministério Público e o autor de uma infração. Segundo jurisprudência assente, o conceito de «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.o da Carta, pressupõe a existência de um elemento de conexão entre um ato de direito da União e a medida nacional em causa, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou as incidências indiretas de uma matéria na outra (14).
34. Segundo, importa recordar que as Decisões‑Quadro vinculam os Estados‑Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios (15). Como já foi acima observado, as Decisões‑Quadro 2004/757 e 2008/841 constituem apenas instrumentos mínimos de harmonização. Consequentemente, os Estados‑Membros dispõem de uma ampla margem de apreciação quanto à aplicação destes diplomas no seu direito nacional (16).
35. Terceiro, resulta da redação do artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841 que estas disposições se limitam a reservar aos Estados‑Membros a faculdade de autorizarem as suas autoridades judiciárias a terem em conta a cooperação dos arguidos na determinação da sanção subsequente ao reconhecimento da responsabilidade penal. Uma vez que não impõem aos Estados‑Membros qualquer obrigação de garantirem a tomada em consideração, por essas autoridades, de tal cooperação, as referidas disposições não conferem qualquer direito ao arguido de obter uma sanção reduzida em caso de cooperação com as autoridades judiciárias, por exemplo, através da celebração de um acordo com o Ministério Público no qual esse arguido reconhece a sua culpa (17).
36. Importa salientar que o Tribunal de Justiça concluiu pela inaplicabilidade dos direitos fundamentais da União a uma regulamentação nacional pelo facto de as disposições da União no domínio em causa não imporem aos Estados‑Membros qualquer obrigação específica relativamente à situação em causa no processo principal (18).
37. Quarto, é certo que há que observar que o artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841 fornecem indicações quanto aos requisitos que regem, se for caso disso, a possibilidade de as autoridades judiciárias terem em conta a atitude cooperante dos arguidos, no que respeita, no caso em apreço, ao teor deste comportamento. Esta observação não é, evidentemente, suscetível de infirmar a conclusão quanto à inexistência de uma obrigação que impende sobre os Estados‑Membros relativa a essa tomada em consideração. Além disso, e sobretudo, as disposições acima referidas das Decisões‑Quadro 2004/757 e 2008/841 não contêm nenhuma indicação relativa às modalidades processuais da cooperação do autor da infração a serem consideradas pela autoridade judiciária, quer se trate do reconhecimento de circunstâncias atenuantes pela formação de julgamento ou da existência de um acordo de confissão de culpa celebrado entre o Ministério Público e o interessado, possivelmente em diferentes fases do processo, bem como do teor desse acordo, do processo decisório que visa a sua aprovação jurisdicional no caso de ações penais múltiplas e dos respetivos efeitos. A determinação destas modalidades é da competência exclusiva do direito nacional (19).
38. Daqui resulta que o artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841 não regem a questão de saber se a aprovação de um acordo sobre a aplicação de uma pena negociada pode ou não estar sujeita a uma exigência de consentimento dos outros arguidos e a uma formação de julgamento distinta da que inicialmente foi chamada a pronunciar‑se sobre a ação penal (20). Perante a falta de aplicação do direito da União no processo principal, as disposições da Carta, às quais o órgão jurisdicional de reenvio se refere, não podem ser aplicáveis, o que determina a incompetência do Tribunal de Justiça para delas conhecer.
39. Não obstante, tenho que constatar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça tem exemplos de interpretação menos restritiva do conceito de «aplicação do direito da União» (21), que implica que se verifique, entre outros elementos, se a regulamentação nacional em causa tem por objetivo aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa regulamentação e se a mesma prossegue objetivos não abrangidos pelo direito da União, ainda que seja suscetível de afetar indiretamente este último, e, também, se existe uma regulamentação específica do direito da União na matéria ou suscetível de o afetar (22). Assim, no âmbito da leitura do artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, em conjugação com as disposições precedentes, relativas à necessidade de os Estados‑Membros preverem sanções efetivas, proporcionais e dissuasivas (23), poder‑se‑ia afirmar que a regulamentação nacional em causa visa a aplicação do direito da União e, na realidade, os mesmos objetivos que essas decisões, a saber, a luta contra o tráfico ilícito de drogas e a criminalidade organizada.
40. Na verdade, a importância da conclusão quanto à aplicabilidade ou não das disposições dos atos de direito derivado acima referidos ao presente caso, e as suas consequências quanto à da Carta e, mais especificamente, do seu artigo 47.o, deve ser relativizada. Com efeito, foi declarado que, uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE impõe a todos os Estados‑Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar, nos domínios abrangidos pelo direito da União, uma tutela jurisdicional efetiva, na aceção, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta, esta última disposição deve ser devidamente tomada em conta para efeitos da interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (24).
Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais
41. Importa recordar, a título preliminar, que as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio quanto à compatibilidade da legislação nacional respeitam, mais especificamente, a uma dupla exigência legal, a saber, por um lado, a designação de uma formação de julgamento ad hoc diferente da inicialmente chamada a pronunciar‑se sobre a ação penal, para efeitos de aprovação do acordo celebrado no decurso do processo judicial, entre o Ministério Público e um dos arguidos ou para uma das infrações de que é acusado (primeira e terceira questões prejudiciais (25)), e, por outro, a obtenção do consentimento para o acordo de todas as partes no processo e, portanto, os coarguidos, como requisito prévio à sua aprovação judicial (segunda questão prejudicial).
42. À luz da jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça e, mais especificamente, da sua expressão consolidada no Acórdão Miasto Łowicz, importa sublinhar que o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União necessários para a resolução dos litígios que lhes cabe decidir e que o reenvio prejudicial não encontra justificação na emissão de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas sim nas necessidades inerentes à efetiva resolução de um litígio. Decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE que a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária ao julgamento da causa» pelo órgão jurisdicional de reenvio. Assim, o Tribunal de Justiça tem repetidamente recordado que resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo prejudicial pressupõe, nomeadamente, que esteja efetivamente pendente perante os órgãos jurisdicionais nacionais um litígio (26) no âmbito do qual estes sejam chamados a proferir uma decisão em que o acórdão prejudicial possa ser tomado em consideração. A missão do Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo prejudicial, consiste em dar apoio ao órgão jurisdicional de reenvio na resolução do litígio concreto perante este pendente. No âmbito de um processo desta natureza, deve existir um elemento de conexão entre o referido litígio e as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada, de modo que a referida interpretação responda a uma necessidade objetiva para a decisão a tomar pelo órgão jurisdicional de reenvio (27).
43. Resulta do Acórdão Miasto Łowicz que este elemento de conexão pode ser direto ou indireto, segundo as três hipóteses de admissibilidade aí enunciadas. O nexo será direto quando o órgão jurisdicional nacional é chamado a aplicar o direito da União cuja interpretação é solicitada para resolver, quanto ao mérito, o litígio no processo principal (primeira hipótese). O referido nexo será indireto quando a decisão prejudicial puder fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação de disposições processuais do direito da União que este está obrigado a aplicar para proferir a sua decisão (segunda hipótese), ou quando a referida decisão puder fornecer uma interpretação do direito da União que permita ao órgão jurisdicional de reenvio resolver questões processuais de direito nacional antes de decidir do mérito do litígio de que foi chamado a conhecer (a seguir «terceira hipótese») (28). No Acórdão Miasto Łowicz, o Tribunal de Justiça examinou sucessivamente a admissibilidade das questões prejudiciais submetidas à luz de três situações distintas e autónomas que satisfaziam o critério da necessidade, para concluir pela sua inadmissibilidade, sublinhando, no que se refere à terceira hipótese, a diferença em relação aos processos que deram lugar ao Acórdão A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (29), nos quais a interpretação prejudicial solicitada ao Tribunal de Justiça era suscetível de influenciar a determinação do órgão jurisdicional competente para resolver, quanto ao mérito, os litígios relacionados com o direito da União (30).
44. Poder‑se‑ia considerar, prima facie, que, através das questões prejudiciais que submeteu ao Tribunal de Justiça e da interpretação do direito da União que solicita, o órgão jurisdicional de reenvio pretende ser esclarecido sobre uma questão de natureza processual de direito nacional que, in limine litis, deve ser resolvida por ele, o que corresponde à terceira hipótese. Esta questão é a da competência de uma formação de julgamento ad hoc, em substituição do órgão jurisdicional de reenvio, para se pronunciar sobre a aprovação de um acordo de confissão de culpa celebrado entre o Ministério Público e um arguido perante esse órgão jurisdicional.
45. Num acórdão recente, o Tribunal de Justiça afirmou, em termos gerais, que as questões prejudiciais que visam permitir a um órgão jurisdicional de reenvio resolver, in limine litis, dificuldades de ordem processual como as relativas à sua própria competência para conhecer de um processo nele pendente ou, ainda, os efeitos jurídicos que devem ou não ser reconhecidos a uma decisão jurisdicional que potencialmente obsta ao prosseguimento da apreciação desse processo pelo referido órgão jurisdicional são admissíveis por força do artigo 267.o TFUE (31). Esta abordagem parece autonomizar a problemática processual, enquanto tal, no sentido de que a mesma é suscetível de preencher, por si só, o critério da necessidade ao abrigo do artigo 267.o TFUE. Embora seja verdade que o Tribunal de Justiça se referiu, clara e exclusivamente, a dois casos específicos, o primeiro parece abranger a questão da competência ou, mais precisamente, da falta de competência do órgão jurisdicional de reenvio, inicialmente chamado a pronunciar‑se sobre a ação penal contra todos os coarguidos, para se pronunciar sobre a aprovação de um acordo de confissão de culpa assinado por um deles.
46. Em contrapartida, a exigência do consentimento unânime dos outros arguidos resulta de uma modalidade específica do processo de aprovação independente da questão da identidade do órgão jurisdicional chamado a dele conhecer, constatação que seria suscetível de fundamentar a conclusão pela inadmissibilidade da segunda questão prejudicial. Esta conclusão pode, todavia, parecer demasiado abstrata, porquanto leva a dissociar dois elementos que fazem parte de um mesmo mecanismo e afetam equitativamente o desenrolar do processo penal instaurado no órgão jurisdicional de reenvio.
47. Esta constatação leva‑me a considerar a pertinência da primeira hipótese de admissibilidade mencionada no Acórdão Miasto Łowicz. A este respeito, e como sublinha com razão o órgão jurisdicional de reenvio (32), saliento que as questões prejudiciais remetem para problemas processuais indissociavelmente ligados à decisão de mérito que deve proferir, no que respeita à responsabilidade penal dos arguidos e, se for caso disso, à aplicação de uma pena. Importa salientar que, segundo as indicações da decisão de reenvio, o acordo celebrado entre o Ministério Público e um arguido, pelo qual este último reconhece a sua culpa pelas infrações imputadas e é, consequentemente, punido com uma pena previamente negociada, regula todas as questões que devem ser tidas em conta na decisão de mérito, porquanto aí são indicadas o ato ilícito praticado pelo interessado e a sua qualificação jurídica, bem como a natureza e o nível da sanção.
48. Nestas circunstâncias, as respostas do Tribunal de Justiça quanto à compatibilidade de uma regulamentação nacional que fixa os requisitos de aprovação judicial desse acordo que substitui a decisão de mérito, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, afiguram‑se necessárias para permitir a este último pronunciar‑se sobre a ação penal que lhe foi submetida. Afigura‑se, assim, que entre o processo principal e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, cuja interpretação é solicitada, existe um elemento de conexão de tal ordem que essa interpretação responde a uma necessidade objetiva para a decisão de mérito que o órgão jurisdicional de reenvio deve tomar.
49. Além disso, contrariamente às alegações da Comissão, parece‑me que as exigências do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, nomeadamente a prevista na alínea c) deste artigo, são cumpridas no caso em apreço. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio expôs, suficientemente, as razões que o levaram a interrogar‑se sobre a interpretação da exigência de uma tutela jurisdicional efetiva à qual se refere o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, no que respeita ao requisito de aprovação do acordo de confissão de culpa associado ao consentimento unânime dos outros coarguidos (33). Assim, alegou que este acordo constitui uma via de recurso para o arguido PT, que lhe permite obter uma sanção menos gravosa, e que a necessidade desse consentimento tem por efeito limitar indevidamente o acesso a tal via, em violação da exigência acima referida e, mais precisamente, do direito a um processo equitativo.
50. Por conseguinte, é possível concluir pela admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial.
Quanto ao mérito
Quanto à designação de uma formação ad hoc
51. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta, se opõe à regra processual segundo a qual a homologação de um acordo de confissão de culpa, celebrado entre o Ministério Público e um dos arguidos na fase judicial do processo, é automaticamente atribuída por competência a uma formação de julgamento distinta da que conhece da ação penal contra todos os arguidos, perante a qual foram apresentados todos os elementos de prova, mesmo que a decisão de homologação não se pronuncie sobre a culpa dos coarguidos. As dúvidas assim expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito tanto à exigência de imparcialidade da instância jurisdicional em causa como ao princípio da imediação do processo penal.
– Quanto à exigência de imparcialidade objetiva
52. Como prevê o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, cabe aos Estados‑Membros prever um sistema de vias de recurso e de procedimentos que permita assegurar aos particulares o respeito pelo seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União. O princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, a que se refere o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, constitui um princípio geral do direito da União que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, que foi consagrado pelos artigos 6.o e 13.o da CEDH, e que é atualmente afirmado no artigo 47.o da Carta (34).
53. Assim como foi exposto, uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE impõe a todos os Estados‑Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar, nos domínios abrangidos pelo direito da União, uma tutela jurisdicional efetiva, na aceção, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta, esta última disposição deve ser devidamente tomada em conta para efeitos da interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, tal como a jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH (35). Ora, para garantir que as instâncias que podem ser chamadas a pronunciar‑se sobre questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação do direito da União possam assegurar essa tutela jurisdicional efetiva, é fundamental que seja preservada a sua independência, como confirma o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que menciona o acesso a um tribunal «independente e imparcial» entre as exigências relacionadas com o direito fundamental a um recurso efetivo. A exigência de independência dos órgãos jurisdicionais, que é inerente à missão de julgar, faz parte do conteúdo essencial do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e do direito fundamental a um processo equitativo, que reveste essencial importância enquanto garante da proteção do conjunto de direitos que o direito da União confere aos particulares e da preservação dos valores comuns aos Estados‑Membros, enunciados no artigo 2.o TUE, nomeadamente o valor do Estado de direito (36).
54. Nos termos de jurisprudência constante, a referida exigência de independência comporta dois aspetos. O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões. O segundo aspeto, de ordem interna, está ligado ao conceito de imparcialidade e visa o igual distanciamento em relação às partes no litígio e aos respetivos interesses, tendo em conta o objeto deste. Este aspeto exige o respeito da objetividade e a inexistência de qualquer interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da norma jurídica. Estas garantias de independência e de imparcialidade pressupõem a existência de regras, designadamente no que respeita à composição da instância, à nomeação, à duração das funções e às causas de escusa, de suspeição e de destituição dos seus membros, que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (37).
55. Referindo‑se aos termos de uma jurisprudência constante do TEDH, o Tribunal de Justiça precisou, também, que a exigência de imparcialidade pode ser apreciada de diversas maneiras. Segundo uma diligência subjetiva, tendo em conta a convicção pessoal e o comportamento do juiz, averiguando se este fez prova de parcialidade ou de preconceito pessoal no caso em apreço, observando‑se que a imparcialidade pessoal se presume até prova em contrário. A diligência objetiva consiste em determinar se o tribunal oferecia através, nomeadamente, da sua composição, garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima quanto à sua imparcialidade. No que respeita à apreciação objetiva, esta consiste em perguntar se, independentemente da conduta pessoal do juiz, determinados factos verificáveis permitem suspeitar da sua imparcialidade. Nesta matéria, até as aparências podem ser importantes. Está em causa a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar aos particulares, a começar pelas partes no processo (38).
56. Ressalta do pedido de decisão prejudicial que a interrogação do órgão jurisdicional de reenvio apenas diz respeito à questão da imparcialidade objetiva, na hipótese do exercício de várias funções pelo mesmo juiz ou tribunal coletivo durante um processo judicial.
57. A este respeito, há que recordar que, segundo o Tribunal de Justiça, a circunstância de juízes que primeiramente foram chamados a conhecer de um processo terem assento numa outra formação de julgamento que, novamente, tenha de conhecer do mesmo processo não pode ser considerada, em si mesma, incompatível com as exigências do direito a um processo equitativo. Em particular, o facto de um ou vários juízes estarem presentes nas duas formações sucessivas e nelas exercerem as mesmas funções, como a de presidente ou de juiz‑relator, não tem, em si mesmo, incidência para efeitos da apreciação do respeito pela exigência de imparcialidade, uma vez que as referidas funções são exercidas numa formação coletiva. Estas considerações são válidas, por maioria de razão, quando as duas formações sucessivas têm de conhecer não do mesmo processo, mas de dois processos distintos que apresentam um certo grau de conexão (39).
58. No que respeita, mais precisamente, a procedimentos de confissão de culpa, o Tribunal de Justiça respondeu a diferentes questões relativas à interpretação de disposições da Diretiva 2016/343 baseando‑se na jurisprudência do TEDH segundo a qual, nos processos penais complexos em que são postos em causa vários suspeitos que não podem ser julgados em conjunto, pode acontecer que o órgão jurisdicional nacional deva imperativamente, para apreciar a culpabilidade dos arguidos, mencionar a participação de terceiros que serão depois eventualmente julgados separadamente. Todavia, esclareceu o TEDH que, embora os factos relativos à participação de terceiros devam ser introduzidos, o órgão jurisdicional em causa deve evitar comunicar mais informações do que as necessárias para a análise da responsabilidade penal das pessoas julgadas perante ele. Além disso, o mesmo Tribunal sublinhou que a fundamentação das decisões judiciais deve ser formulada em termos que evitem um potencial juízo prematuro, relativo à culpa dos terceiros em causa, suscetível de comprometer a análise equitativa das acusações contra eles deduzidas no âmbito de um processo distinto (40).
59. O Tribunal de Justiça declarou que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 (41) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um acordo em que o arguido reconhece a sua culpa mediante redução de pena, que deve ser aprovado por um órgão jurisdicional nacional, mencione expressamente como coarguidos da infração penal em causa não apenas esse arguido mas também outros arguidos, os quais não reconheceram a sua culpa e foram constituídos arguidos no âmbito de um processo penal distinto, na condição, por um lado, de essa menção ser necessária para qualificar a responsabilidade penal da pessoa que celebrou o referido acordo e, por outro, de esse acordo referir claramente que os outros arguidos foram constituídos como tal no âmbito de um processo penal distinto e que a culpa destes não foi legalmente provada (42).
60. Noutro processo, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 3.o (43), o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, lidos em conjugação com o considerando 16 desta diretiva, bem como com o artigo 47.o, segundo parágrafo, e com o artigo 48.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que, num processo penal instaurado contra duas pessoas, um órgão jurisdicional nacional aceite, em primeiro lugar, por despacho, a declaração de culpa da primeira pessoa pela prática das infrações mencionadas na acusação, alegadamente cometidas juntamente com a segunda pessoa que não se declarou culpada, e se pronuncia, em seguida, após administração da prova relativa aos factos censurados a esta segunda pessoa, sobre a culpa desta, na condição, por um lado, de a referência à segunda pessoa como coautora das infrações presumidas ser necessária para a qualificação da responsabilidade jurídica da pessoa que se declarou culpada, e, por outro lado, que este mesmo despacho e/ou a acusação a que este se refere indiquem claramente que a culpa desta segunda pessoa não foi legalmente demonstrada e que será objeto de administração de prova e de um julgamento distintos (44).
61. Para completar este panorama jurisprudencial, importa fazer referência a um acórdão recente do TEDH que aplica os seus princípios gerais em matéria de imparcialidade. Este Tribunal considera, a este respeito, que, embora não se possa considerar que o mero facto de um órgão jurisdicional de decisão judicial ter proferido decisões anteriores relativas à mesma infração justifique, por si só, receios quanto à sua imparcialidade, coloca‑se, todavia, a questão da imparcialidade do juiz quando a decisão judicial anterior já contém uma apreciação detalhada do papel da pessoa julgada posteriormente numa infração cometida por várias pessoas e, em particular, quando a decisão judicial anterior contém uma qualificação concreta do envolvimento do requerente ou deve considerar‑se que demonstrou que a pessoa julgada preencheu, a posteriori, todos os critérios necessários para ter cometido uma infração penal. Tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço, esses elementos podem ser considerados um prejulgamento da questão da culpabilidade da pessoa julgada no âmbito do processo posterior e podem, assim, suscitar dúvidas, objetivamente justificadas, quanto ao facto de o juiz nacional ter uma conceção preconcebida quanto ao mérito da causa da pessoa julgada posteriormente no início do seu julgamento (45).
62. Chamado a pronunciar‑se pelo requerente que foi julgado e condenado pelo mesmo tribunal que tinha, anteriormente, condenado os seus coautores por atos criminosos, com este, conjuntamente praticados, com base em acordos de confissão de culpa, o TEDH concluiu pela violação do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH tomando em consideração os seguintes elementos. Considerou, deste modo, este Tribunal que, embora os acórdãos que aprovaram os acordos não contivessem nenhuma constatação de culpabilidade distinta a respeito do requerente, enquanto tal, e que a natureza da infração imputada implicava a coordenação de atos delituosos, aqueles incluíam uma definição factual concreta do papel específico do requerente na prática desta. O órgão jurisdicional que conhecia do mérito tinha, portanto, perfeito conhecimento da identidade do requerente, independentemente da designação pelas suas iniciais e por um pseudónimo, e do seu papel, sem qualquer dúvida possível quanto à sua participação na infração, situação que só pode encorajar esse órgão jurisdicional a continuar a ser coerente com os seus acórdãos anteriores de homologação dos acordos, bem como os coautores com as suas declarações anteriores sobre o envolvimento do requerente na prática da infração. Por conseguinte, o TEDH considera que, tendo em conta a sua redação, as decisões de condenações proferidas contra os coautores do requerente violaram o direito deste de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tivesse sido provada e que, no que respeita o papel que estes desempenharam no próprio julgamento do requerente, que correu termos no mesmo órgão jurisdicional, as dúvidas manifestadas quanto à sua imparcialidade eram objetivamente justificadas (46).
63. Resulta desta recapitulação jurisprudencial que os conceitos de «imparcialidade objetiva» e de «presunção de inocência», juridicamente distintos, estão, na realidade, estreitamente ligados, uma vez que o incumprimento da exigência de imparcialidade pode, em determinadas condições, decorrer da violação desta presunção.
64. No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio referiu que o acordo de confissão de culpa celebrado por PT reproduz integralmente o dispositivo da acusação, inclui a menção de ato praticado pelo acusado e a respetiva qualificação jurídica, bem como a natureza e o nível da sanção, mas não menciona, na senda do Acórdão AH e o. (Presunção de inocência) (47), o nome e o número de identificação nacional dos acusados em relação aos quais a ação prossegue, sendo que a aprovação deste acordo se efetua sem qualquer comentário sobre a participação destes últimos nos factos da acusação e sem se tomar posição sobre a sua culpabilidade (48). Parece, portanto, resultar da decisão de reenvio que a formulação do acordo de confissão de culpa em causa e da decisão judicial que o homologa está isenta de um juízo prévio de culpabilidade dos acusados que não aceitaram declara‑se culpados dos factos censurados. Nestas circunstâncias, o facto de o órgão jurisdicional de reenvio poder, sucessivamente, aprovar o acordo de confissão de culpa e apreciar a responsabilidade penal destes acusados não parece de molde a contradizer as exigências da imparcialidade objetiva.
65. Todavia, há que salientar que a situação do arguido PT se afigura, no mínimo, singular, porquanto esse mesmo órgão jurisdicional de reenvio especificou (49) que, de forma geral e por força de jurisprudência constante, os acordos de confissão de culpa continuam a mencionar os nomes completos e números de identidade dos arguidos que não celebraram tal acordo. A isto acresce o facto que esses acordos e as decisões judiciais que os aprovaram não incluem, necessariamente, menção expressa ao facto de que os arguidos estão a ser julgados no âmbito de um processo penal distinto e que a sua culpabilidade não foi legalmente estabelecida, menção claramente requerida pelo Tribunal de Justiça na sua apreciação do respeito pela presunção de inocência (50). No âmbito de uma apreciação da conformidade da legislação búlgara em causa, tal como aplicada pelos tribunais nacionais, esses elementos são de molde a justificar, a título de imparcialidade objetiva, a competência de uma formação ad hoc para a homologação dos acordos, o que o próprio órgão jurisdicional de reenvio admite (51).
66. Em todo o caso, não se pode, na minha opinião, deduzir das indicações constantes do n.o 64 das presentes conclusões que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional em causa. Com efeito, longe de contradizer as exigências acima referidas, a declaração sistemática de incompetência do órgão jurisdicional inicialmente chamado a pronunciar‑se sobre a ação penal em benefício de uma formação ad hoc, para efeitos de aprovação do acordo de confissão de culpa, vem necessariamente reforçar a imparcialidade objetiva do órgão jurisdicional chamado a julgar os coarguidos que não admitiram a sua culpa, excluindo, assim, a falta de aparência de imparcialidade suscetível de pôr em causa a confiança que a justiça deve inspirar aos particulares numa sociedade democrática e num Estado de direito (52).
– Quanto ao princípio da imediação do processo penal
67. Interrogado sobre o alcance de certas disposições da Diretiva 2012/29/UE (53), no que respeita a uma legislação nacional que impõe a repetição da inquirição da vítima por uma nova formação de julgamento, quando uma das partes no processo se recuse a que a referida formação se baseie na ata da primeira inquirição, o Tribunal de Justiça fez referência ao princípio acima referido baseando‑se na jurisprudência do TEDH.
68. O Tribunal de Justiça referiu, assim, que um dos elementos importantes de um processo penal equitativo é a possibilidade de o acusado ser confrontado com as testemunhas na presença do juiz que, finalmente, decide e que este princípio da imediação constitui uma garantia importante do processo penal, visto que as observações feitas pelo juiz a propósito do comportamento e da credibilidade de uma testemunha podem ter graves consequências para o acusado. Por conseguinte, uma alteração na composição do órgão jurisdicional de decisão judicial após a inquirição de uma testemunha importante deve, em princípio, implicar uma nova inquirição desta última. Todavia, o princípio da imediação não pode ser considerado um obstáculo a qualquer alteração na composição de um tribunal durante a tramitação de um processo. Podem surgir problemas administrativos ou processuais, particularmente evidentes, que impossibilitem a participação contínua de um juiz no processo. Podem ser tomadas medidas para que os juízes que retomem o processo compreendam bem os seus elementos e argumentos, por exemplo, entregando‑lhes as atas quando a credibilidade da testemunha em questão não seja contestada, ou organizando novas alegações ou uma nova inquirição de testemunhas importantes perante a nova composição do tribunal(54).
69. O conceito de «imediação» pressupõe, portanto, uma relação direta entre aquele que julga e o particular, pelo que o juiz que não assistiu à audiência de alegações não pode participar na resolução do processo (55).
70. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, este princípio da imediação é traduzido no artigo 18.o e no artigo 55.o do NPK, que garantem a participação da defesa no processo, na presença do juiz que é chamado a decidir quanto ao mérito, enquanto o artigo 384.o‑A do NPK se afasta do mesmo. Refere que o direito a uma tutela jurisdicional efetiva seria violado se a defesa fosse colocada numa situação em que incumbiria a um órgão jurisdicional proferir uma decisão de mérito a partir de elementos de prova examinados e debatidos perante outro juiz. Esse órgão jurisdicional só tomaria conhecimento das peças processuais, mas não teria participado no processo de obtenção e de apreciação das provas, na presença e sob fiscalização da defesa.
71. Esta posição do órgão jurisdicional de reenvio equivale, na minha opinião, a negar a especificidade e a autonomia do procedimento de confissão de culpa relativamente ao qual o TEDH já teve oportunidade de se pronunciar. Considera, assim, que um procedimento de acordo negociado de sentença que conduza a que seja proferida uma decisão sobre uma acusação penal no termo de um exame judicial simplificado implica, em substância, uma renúncia a certos direitos processuais, o que, em si mesmo, não apresenta qualquer problema, porquanto nem a letra nem o espírito do artigo 6.o da CEDH impedem o interessado de renunciar a essas garantias de livre vontade. Assim, em aplicação dos princípios relativos à validade das renúncias, a anuência do acordo pelo requerente deve satisfazer as seguintes condições: primeiro, deve ser dada de forma realmente voluntária e com perfeito conhecimento dos factos da causa, bem como dos efeitos jurídicos que se prendem com esse tipo de acordo, e, segundo, o conteúdo do acordo e a equidade do procedimento que levou à sua conclusão pelas partes devem ser objeto de uma fiscalização judicial satisfatória (56).
72. Ao celebrar um acordo com o Ministério Público através do qual se reconheceu culpado dos factos censurados e aceitou a pena de prisão suspensa na sua execução, PT renunciou a que o processo fosse julgado segundo o procedimento ordinário, em conformidade com o disposto no artigo 381.o, n.o 6, do NPK, e, portanto, a obter uma apreciação do mérito do seu processo, que, em sede de audiência de julgamento, implica um debate contraditório sobre os elementos de prova perante o juiz chamado a pronunciar‑se quanto ao mérito. O procedimento de confissão de culpa constitui um modo especial de administração da justiça penal, visto que é uma alternativa ao processo de direito comum, decorrente de uma escolha do arguido, assistido pelo seu advogado. Ao invocar a violação do princípio da imediação, tal como se aplica no processo acima referido, o raciocínio do órgão jurisdicional de reenvio parece‑me ocultar a realidade jurídico‑factual do procedimento de confissão de culpa, que responde ao objetivo de simplificação e de celeridade da resolução dos processos penais considerado legítimo pelo TEDH (57).
73. Nestas circunstâncias, não se pode alegar que a declaração de incompetência do órgão jurisdicional inicialmente chamado a conhecer da ação penal contra todos os arguidos a favor de uma formação de julgamento ad hoc para efeitos da homologação do acordo de confissão de culpa celebrado por um dos arguidos é suscetível, por si só, de violar o princípio da imediação do processo penal. Todavia, é necessário que essa formação possa assegurar uma fiscalização jurisdicional suficiente, como exigido pelo TEDH (58), observando‑se que o órgão jurisdicional de reenvio não refere outros elementos suscetíveis de demonstrar o contrário (59).
Quanto à exigência de consentimento unânime dos outros arguidos
74. O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta, da norma nacional que estabelece como requisito prévio para a homologação judicial do acordo de confissão de culpa o consentimento unânime dos coarguidos (60). Esta exigência terá o efeito de limitar indevidamente o acesso do arguido a uma «via de recurso reconhecida por lei», que lhe permite ver‑se‑lhe aplicada uma sanção mais leve do que aquela que lhe seria aplicada em sede de um procedimento ordinário.
75. Atendendo à formulação heterodoxa da decisão de reenvio, importa salientar, a título preliminar, que o procedimento de confissão de culpa em causa não pode ser qualificado de ou equiparado a uma via de recurso, ou seja, uma via de recurso que permite a crítica e a impugnação perante uma instância jurisdicional de uma situação alegadamente irregular.
76. Parece‑me que a decisão de reenvio, integralmente considerada, deve ser interpretada como a indicação de uma possível violação do direito a um processo equitativo do arguido e, em particular, dos direitos de defesa. Recordo, a este respeito, que a determinação do conteúdo e do alcance do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE é efetuada por referência ao artigo 47.o da Carta. O Tribunal de Justiça esclareceu que o princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva dos direitos, reafirmado no artigo 47.o da Carta, e o conceito de «processo equitativo», referido no artigo 6.o da CEDH, são constituídos por vários elementos, que incluem, nomeadamente, o respeito pelos direitos de defesa (61).
77. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, algumas disposições das Decisões‑Quadro 2004/757 e 2008/841 preveem a possibilidade de uma pena reduzida em caso de cooperação do arguido, em condições iguais às que permitem a celebração de um acordo de confissão de culpa. O facto de a aprovação judicial deste último estar sujeita ao consentimento dos coarguidos viola o direito do arguido, que admitiu a sua responsabilidade penal, de beneficiar desse acordo, que é sinónimo de diminuição da pena, sem que a limitação desse direito cumpra o princípio da proporcionalidade (62), em contradição com o respeito pelos direitos de defesa.
78. Ora, não tenho conhecimento de nenhuma disposição do direito da União, quer se trate do direito primário ou de um instrumento de direito derivado, que garanta a um arguido, numa determinada situação, o direito de beneficiar de uma diminuição da pena e, nomeadamente, no âmbito de um acordo de confissão de culpa celebrado com o Ministério Público. A este respeito, o Tribunal de Justiça referiu que, não impondo o artigo 7.o, n.o 4, da Diretiva 2016/343 aos Estados‑Membros qualquer obrigação de garantir a tomada em consideração da cooperação do arguido pelas autoridades judiciais, este artigo não confere qualquer direito ao arguido de obter uma sanção reduzida em caso de cooperação com essas autoridades, por exemplo, através da celebração de um acordo com o Ministério Público no qual esse arguido reconhece a sua culpa (63). Também declarou que o artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13, que prevê a obrigatoriedade de informar os arguidos de qualquer alteração no que diz respeito à acusação contra estes deduzida, quando tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo, e os direitos de defesa previstos no artigo 48.o, n.o 2, da Carta, no âmbito do direito à informação dos arguidos, não impõem que estes últimos possam requerer a aplicação, após ser declarada aberta a audiência, de uma pena negociada em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia ou de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação (64).
79. Não se pode deduzir do direito dos suspeitos e dos arguidos de guardarem silêncio no que respeita à infração penal imputada e de não se autoincriminarem, conforme reconhecido no artigo 7.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/343 (65), que têm o direito de beneficiar de uma redução da pena em caso de reconhecimento da culpa, uma vez que os termos unívocos do n.o 4 deste artigo excluem essa interpretação.
80. Impõe‑se observar, de resto, que a legislação nacional em causa também não garante esse direito. O procedimento conducente a um acordo sobre a aplicação de uma pena negociada é um procedimento especial de julgamento de infrações penais que pode ser livremente aplicado pelo Ministério Público, por iniciativa própria ou a pedido do advogado do arguido, desde que este último reconheça os factos censurados. Deste modo, o arguido não dispõe do direito a ser julgado nos termos do referido procedimento, mesmo tendo admitido a sua culpa, dado que o acordo tem necessariamente de ser assinado pelo Ministério Público para permitir ser sujeito a homologação (66). Quando o Ministério Público decide recorrer a este procedimento e o arguido aceita a pena proposta, este também não dispõe do direito à homologação pelo tribunal competente, o qual não está vinculado nem pela proposta do Ministério Público, nem pela respetiva anuência pelo arguido. Resulta do artigo 382.o, n.o 8, do NPK que, quando o tribunal recusa homologar o acordo de confissão de culpa, remete o processo ao Ministério Público.
81. Por conseguinte, não se pode considerar que uma exigência de consentimento, como a que está em causa no processo principal, à qual está sujeita a aprovação de um acordo sobre a aplicação de uma pena negociada, viola o direito a um processo equitativo e, mais especificamente, os direitos de defesa.
Conclusão
82. À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo ao Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária):
O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,
deve ser interpretado no sentido de que
não se opõe a uma legislação nacional em virtude da qual a homologação judicial de um acordo no qual um dos arguidos reconhece a sua culpa pelas infrações imputadas mediante redução de pena é, por um lado, atribuída por competência a um órgão jurisdicional diferente do que foi inicialmente chamado a pronunciar‑se sobre a ação penal e está, por outro, sujeita à condição prévia de anuência da celebração desse acordo por todos os outros arguidos que não reconheceram a sua responsabilidade penal.
1 Língua original: francês.
2 TEDH, 29 de abril de 2014, Natsvlishvili e Togonidze c. Geórgia, CE:ECHR:2014:0429JUD000904305, § 90.
3 Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).
4 Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).
5 DV n.o 86, de 28 de outubro de 2005.
6 Decisão‑Quadro do Conselho, de 25 de outubro de 2004, que adota regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga (JO 2004, L 335, p. 8).
7 Decisão‑Quadro do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada (JO 2008, L 300, p. 42).
8 Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny e o. (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação) (C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 59).
9 Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, Viva Telecom Bulgaria (C‑257/20, EU:C:2022:125, n.o 123).
10 Despacho de 18 de abril de 2023, Vantage Logistics (C‑200/22, EU:C:2023:337, n.o 27).
11 Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, a seguir «Acórdão Miasto Łowicz», EU:C:2020:234, n.os 32 e 33).
12 V., neste sentido, Acórdão Miasto Łowicz (n.os 34 a 36).
13 Para a Decisão‑Quadro 2004/757, v. Acórdão de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku (C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 32).
14 Acórdão de 10 de julho de 2014, Julián Hernández e o. (C‑198/13, EU:C:2014:2055, n.o 34).
15 Acórdão de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku (C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 39).
16 Para a Decisão‑Quadro 2004/757, v. Acórdão de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku (C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 41).
17 V., por analogia, Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776, n.o 34).
18 Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776, n.o 41 e jurisprudência referida).
19 V., por analogia, Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776, n.os 34 e 35).
20 V., por analogia, Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776, n.o 36).
21 V., por exemplo, Acórdãos de 9 de março de 2017, Milkova (C‑406/15, EU:C:2017:198, nomeadamente, n.o 52), e de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 64 a 69).
22 Acórdão de 10 de julho de 2014, Julián Hernández e o. (C‑198/13, EU:C:2014:2055, n.o 37 e jurisprudência referida).
23 Saliento que a decisão de reenvio menciona o artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2004/757 e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2008/841.
24 Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional) (C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 37).
25 Formuladas de forma distinta, é certo, a primeira e terceira questões prejudiciais traduzem, no entanto, a mesma problemática da identidade do órgão jurisdicional competente para decidir sobre a responsabilidade penal dos arguidos, designadamente através da homologação do acordo de confissão de culpa celebrado por um deles.
26 Por carta de 5 de agosto de 2022, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) informou o Tribunal de Justiça de que, na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) foi dissolvido e que determinados processos penais instaurados neste último órgão jurisdicional, entre os quais o processo principal, lhe foram transferidos a partir dessa data. Afigura‑se, assim, que o requisito de admissibilidade relativo à pendência do litígio no processo principal continua a estar preenchido.
27 Acórdão Miasto Łowicz (n.os 44 a 46).
28 V. Acórdão Miasto Łowicz (n.os 49 a 51).
29 Acórdão de 19 de novembro de 2019 (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982).
30 Acórdão Miasto Łowicz (n.o 51).
31 Acórdão de 13 de julho de 2023, YP e o. (Levantamento da imunidade e suspensão de um juiz) (C‑615/20 e C‑671/20, EU:C:2023:562, n.os 46 e 47).
32 N.o 34 do pedido de decisão prejudicial.
33 Embora o órgão jurisdicional de reenvio faça referência ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, numa formulação, diga‑se, relativamente absconsa, também visa várias vezes o artigo 47.o da Carta, que o Tribunal de Justiça declarou que deve ser tomado em consideração para interpretar a primeira disposição.
34 Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 52).
35 V., neste sentido, Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional) (C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 37).
36 V., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.os 57 e 58 e jurisprudência referida).
37 V., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.os121 a 123).
38 Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 128).
39 Acórdão de 19 de fevereiro de 2009, Gorostiaga Atxalandabaso/Parlamento (C‑308/07 P, EU:C:2009:103, n.os 43 a 45).
40 Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.o 44).
41 O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 prevê que os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que, enquanto a culpa do suspeito ou o arguido não for provada nos termos da lei, declarações públicas emitidas pelas autoridades públicas ou decisões judiciais que não estabelecem a culpa não apresentem o suspeito ou o arguido como culpado.
42 Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.o 50). Há que observar que, no processo que deu origem a esse acórdão, o acordo celebrado entre o Ministério Público e um dos arguidos estava submetido, para aprovação, ao órgão jurisdicional de reenvio, correspondente à formação de julgamento ad hoc, como resulta do n.o 22 do referido acórdão.
43 O artigo 3.o da Diretiva 2016/343 dispõe que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido se presume inocente enquanto a sua culpa não for provada nos termos da lei.
44 Despacho de 28 de maio de 2020, UL e VM (C‑709/18, EU:C:2020:411, n.o 35).
45 TEDH, 25 de novembro de 2022, Mucha c. Eslováquia (CE:ECHR:2021:1125JUD006370319, § 49).
46 TEDH, 25 de novembro de 2022, Mucha c. Eslováquia (CE:ECHR:2021:1125JUD006370319).
47 Acórdão de 5 de setembro de 2019 (C‑377/18, EU:C:2019:670).
48 A falta de anonimização é uma consideração importante, antes de mais, no âmbito da discussão sobre o respeito pela presunção de inocência.
49 V. n.os 31 e 32 da decisão de reenvio.
50 Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.os 45 e 49). Na sua resposta às perguntas do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio referiu que essa menção se enquadrava no poder da formação de julgamento, competente para a homologação do acordo, de propor alterações a este último.
51 V. n.os 31 e 32 da decisão de reenvio.
52 V., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 60).
53 Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho (JO 2012, L 315, p. 57).
54 Acórdão de 29 de julho de 2019, Gambino e Hyka (C‑38/18, EU:C:2019:628, n.os 43 e 44).
55 V. Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Baustahlgewebe/Comissão (C‑185/95 P, EU:C:1998:37, n.os 82 e 83) e do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe no processo Komisia za zashtita ot diskriminatsia (C‑824/19, EU:C:2021:324, n.o 62). Recordo, também, que nos termos do artigo 32.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, «quando tenha havido audiência de alegações, só participam nas deliberações os juízes que tiverem participado nela».
56 TEDH, 29 de abril de 2014, Natsvlishvili e Togonidze c. Geórgia, CE:ECHR:2014:0429JUD000904305, §§ 91 e § 92.
57 Para o TEDH, o acordo negociado de sentença apresenta não só a grande vantagem de permitir uma resolução rápida dos processos penais e de aliviar a carga de trabalho dos tribunais, do Ministério Público e dos advogados, mas constitui, também, desde que seja corretamente utilizada, um instrumento eficaz de luta contra a corrupção e o crime organizado, bem como um fator de redução do número de penas decretadas e, consequentemente, do número de presos (TEDH, 29 de abril de 2014, Natsvlishvili e Togonidze c. Geórgia, CE:ECHR:2014:0429JUD000904305, § 90).
58 Na sua resposta às perguntas do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio especificou que, no âmbito da homologação judicial do acordo, a formação competente interroga o arguido signatário sobre os aspetos materiais (a sua confissão de culpa) e processuais (renúncia a um julgamento segundo o procedimento ordinário), e só aprova esse acordo caso haja confirmação pelo interessado.
59 Saliento que o órgão jurisdicional de reenvio alega ainda que, tendo em conta o poder do juiz de propor alterações ao acordo, no sentido de uma pena mais gravosa, a defesa tem «sempre» o interesse jurídico em que a decisão seja proferida pelo tribunal que recolheu as provas na sua presença e sob a sua fiscalização. Importa sublinhar o caráter puramente especulativo, ou mesmo contraditório, destas considerações, uma vez que esse órgão jurisdicional refere, nos n.os 51 e 52 da decisão de reenvio, que o acordo de confissão de culpa celebrado pelo arguido se traduz numa sanção mais leve do que a que lhe teria sido aplicada no âmbito do procedimento ordinário.
60 Note‑se que é a terceira vez que o órgão jurisdicional de reenvio (ou o que o precedeu) interroga o Tribunal de Justiça sobre esta específica regra processual. No Acórdão de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.o 28), o Tribunal de Justiça tinha tido o cuidado de indicar que não era questionado sobre a eventual compatibilidade com o direito da União de uma regulamentação nacional que sujeita, eventualmente, a aprovação judicial de um acordo que implique o reconhecimento da culpa mediante redução de pena ao consentimento dos outros arguidos que não admitiram a sua culpa. Sem aguardar a resposta do Tribunal de Justiça no presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio voltou a pronunciar‑se sobre a conformidade de tal norma com o direito da União e, nomeadamente, com o artigo 20.o da Carta (processo pendente C‑398/23).
61 Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 203).
62 O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se expressamente ao artigo 52.o da Carta.
63 Despacho de 24 de setembro de 2019, Spetsializirana prokuratura (Presunção de inocência) (C‑467/19 PPU, EU:C:2019:776, n.o 34). Em relação a este último aspeto, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 42 desse despacho, que «o direito da União» não impõe aos Estados‑Membros nenhuma obrigação de autorizarem as suas autoridades judiciárias a terem em conta, ao proferirem a sua decisão, a atitude cooperante dos suspeitos e dos arguidos, nomeadamente através da celebração de um acordo com o Ministério Público no qual uma pessoa reconhece a sua culpa mediante redução de pena.
64 Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.os 63 e 72).
65 O Tribunal de Justiça salientou que, segundo o TEDH, embora o artigo 6.o da CEDH não mencione expressamente o direito ao silêncio, este constitui uma norma internacional geralmente reconhecida, que está no cerne do conceito de processo equitativo [Acórdão de 2 de fevereiro de 2021, Consob (C‑481/19, EU:C:2021:84, n.o 38 e jurisprudência referida)].
66 V. artigo 381.o, n.os 1 e 6, do NPK.