CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 20 de abril de 2023 ( 1 )

Processo C‑374/22

XXX

contra:

Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Filhos menores refugiados — Diretiva 2011/95/EU — Pedido de proteção internacional a título derivado pelo pai — Indeferimento — Artigo 23.o — Condições de acesso aos benefícios previstos para os membros da família — Definição — Requisito de a família do refugiado ter sido constituída no país de origem — Efeito direto — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 7.o, 18.o e 24.o — Igualdade de tratamento — Eficácia da proteção internacional — Preservação da unidade familiar»

1.

«Para os refugiados, e para aqueles que procuram protegê‑los, o direito à unidade da família implica o direito à reunificação familiar no país de asilo, pois os refugiados não podem regressar ao seu país de origem em segurança para aí beneficiarem do direito à vida familiar ( 2 ). A integridade da família do refugiado é simultaneamente um direito e um princípio humanitário; representa também um quadro essencial de proteção e uma condição importante para o sucesso de soluções duradouras para os refugiados, ajudando assim a devolver‑lhes uma aparência de vida normal.» Uma das questões essenciais suscitadas no âmbito do presente processo é se é possível restringir o benefício de tal direito apenas às famílias de refugiados que tenham sido constituídas no país de origem.

2.

Esta é uma questão sensível em mais do que um aspeto. Em primeiro lugar, porque tal restrição parece ser o resultado da escolha deliberada do legislador da União. Em segundo lugar, porque a regulamentação da União Europeia aplicáveis aos refugiados oscila constantemente entre a definição das garantias fundamentais que devem ser asseguradas aos refugiados, particularmente vulneráveis devido ao seu percurso migratório, e o desejo dos Estados‑Membros de conter os fluxos migratórios ( 3 ). Por último, porque as especificidades do litígio no processo principal poderiam levar a ultrapassar o nexo que se pensava consubstancial entre a ideia de deslocação e o estatuto de refugiado, uma vez que as crianças às quais esse estatuto foi concedido nasceram na Bélgica, de pais que se conheceram neste Estado‑Membro.

I. Quadro jurídico

A.   Diretiva 2011/95/UE

3.

Os considerandos 18 e 19 da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida ( 4 ), têm a seguinte redação:

«(18)

O “interesse superior da criança” deverá ser uma das principais preocupações a ter em consideração pelos Estados‑Membros na aplicação da presente diretiva, em conformidade com a Convenção das Nações Unidas de 1989 sobre os Direitos da Criança. Ao avaliarem o interesse superior da criança, os Estados‑Membros deverão ter devidamente em conta, em particular, o princípio da unidade familiar, o bem‑estar e o desenvolvimento social do menor, questões de segurança e as opiniões do menor em função da sua idade e grau de maturidade.

(19)

É necessário alargar a noção de “membro da família”, tendo em conta as diferentes circunstâncias específicas de dependência e a especial atenção a conferir ao interesse superior da criança.»

4.

O considerando 38 da Diretiva 2011/95 especifica que «[a]o decidirem das condições de elegibilidade para os benefícios incluídos na presente diretiva, os Estados‑Membros deverão ter na devida consideração o interesse superior da criança, bem como as circunstâncias particulares da dependência em relação ao beneficiário de proteção internacional de parentes próximos que já se encontrem presentes nos Estados‑Membros e que não sejam familiares desse beneficiário. Em circunstâncias excecionais, quando o parente próximo do beneficiário de proteção internacional for um menor casado mas não acompanhado pelo seu cônjuge, pode considerar‑se que o interesse superior do menor reside na sua família de origem».

5.

O artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

j)

“Membros da família”, desde que a família já esteja constituída no país de origem, os seguintes familiares do beneficiário de proteção internacional que se encontrem presentes no mesmo Estado‑Membro devido ao seu pedido de proteção internacional:

o cônjuge do beneficiário de proteção internacional ou o parceiro não casado vivendo numa relação estável, sempre que a lei ou a prática desse Estado‑Membro tratar, na sua lei sobre nacionais de países terceiros, as uniões de facto de modo comparável aos casais que tenham contraído matrimónio,

os filhos menores dos casais referidos no primeiro travessão ou do beneficiário de proteção internacional, desde que sejam solteiros, independentemente de terem nascido do casamento ou fora do casamento ou de terem sido adotados nos termos do direito nacional,

o pai, a mãe ou outro adulto responsável, por força da lei ou da prática do Estado‑Membro em causa, pelo beneficiário de proteção internacional, se este for menor e solteiro.»

6.

O artigo 3.o da Diretiva 2011/95, sob a epígrafe «Normas mais favoráveis», dispõe que «[o]s Estados‑Membros podem aprovar ou manter normas mais favoráveis relativas à determinação das pessoas que preenchem as condições para beneficiar do estatuto de refugiado ou que sejam elegíveis para proteção subsidiária, bem como à determinação do conteúdo da proteção internacional, desde que essas normas sejam compatíveis com a presente Diretiva».

7.

O artigo 20.o da Diretiva 2011/95, que figura no capítulo VII, intitulado «Conteúdo da proteção internacional», especifica, no seu n.o 5, que «[o]s interesses superiores da criança constituem uma consideração primordial para os Estados‑Membros na transposição das disposições do presente capítulo respeitantes aos menores».

8.

O artigo 23.o desta Diretiva, igualmente enquadrado nesse capítulo VII, sob a epígrafe «Preservação da unidade familiar», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar que a unidade familiar possa ser preservada.

2.   Os Estados‑Membros devem assegurar que os membros da família do beneficiário de proteção internacional que não possam por si mesmos beneficiar desta proteção, possam reivindicar os benefícios referidos nos artigos 24.o a 35.o, em conformidade com os procedimentos nacionais e na medida em que tal seja compatível com o seu estatuto jurídico pessoal.

3.   Os n.os 1 e 2 não se aplicam nos casos em que o membro da família fique ou ficasse excluído da proteção internacional nos termos dos capítulos III e V.

4.   Sem prejuízo dos n.os 1 e 2, os Estados‑Membros podem recusar, reduzir ou retirar os benefícios neles referidos por motivos de segurança nacional ou ordem pública.

5.   Os Estados‑Membros podem decidir aplicar também o presente artigo a outros familiares próximos que faziam parte do agregado familiar à data da partida do país de origem e estavam nessa altura total ou principalmente a cargo do beneficiário de proteção internacional.»

9.

Os artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95 enumeram os benefícios relativos à autorização de residência, ao acesso ao emprego, ao acesso à educação e a procedimentos de reconhecimento das qualificações, à segurança social, aos cuidados de saúde, aos menores não acompanhados, ao acesso a alojamento, à liberdade de circulação no Estado‑Membro, ao acesso aos mecanismos de integração e, por último, à repatriação.

B.   Direito belga

10.

O artigo 9.o‑A, que figura no capítulo III («Residência por mais de três meses») do título I («Disposições gerais») da loi du 15 décembre 1980 sur l’accès au territoire, le séjour, l’établissement et l’éloignement des étrangers (Lei de 15 de dezembro de 1980, relativa ao Acesso ao Território, à Residência, ao Estabelecimento e ao Afastamento dos Estrangeiros) ( 5 ), conforme alterada, nomeadamente, pela Lei de 8 de julho de 2011 (a seguir «Lei de 1980 alterada»), dispõe:

«1.   Em circunstâncias excecionais e desde que o cidadão estrangeiro disponha de um documento de identificação, a autorização de residência pode ser requerida ao presidente do município da localidade onde reside, que a transmitirá ao ministro ou seu delegado. Quando o ministro ou o seu delegado concederem a autorização de residência, esta será entregue na Bélgica.

A condição de o cidadão estrangeiro dispor de um documento de identificação não é aplicável:

ao requerente de asilo cujo pedido de asilo não tenha sido objeto de uma decisão definitiva ou que tenha interposto um recurso de cassação administrativa declarado admissível […];

ao cidadão estrangeiro que demonstre validamente a sua impossibilidade de obter na Bélgica o documento de identificação exigido.

2.   Sem prejuízo dos outros elementos do pedido, não podem ser considerados circunstâncias excecionais e são declarados inadmissíveis:

1.o

os elementos que já foram invocados para fundamentar um pedido de asilo, na aceção dos artigos 50.o, 50.o‑A, 50.o‑B e 51.o, e que foram rejeitados pelas instâncias de asilo, com exceção dos elementos rejeitados por serem alheios aos critérios da Convenção de Genebra, tal como determinado no artigo 48.o, n.o 3, e aos critérios previstos no artigo 48.o, n.o 4, em matéria de proteção subsidiária, ou por não serem da competência destas instâncias;

2.o

os elementos que deveriam ter sido invocados durante o procedimento de tratamento do pedido de asilo, na aceção do artigo 50.o, 50.o‑A, 50.o‑B e 51.o, na medida em que existiam e eram conhecidos do cidadão estrangeiro antes do termo do procedimento;

3.o

os elementos já invocados num pedido anterior de autorização de residência no Reino [da Bélgica], com exceção dos elementos invocados no âmbito de um pedido indeferido por falta dos documentos de identificação exigidos ou por não pagamento ou pagamento incompleto da taxa referida no artigo 1.o, n.o 1, e com exceção dos elementos invocados nos pedidos anteriores que tenham sido objeto de desistência;

4.o

os elementos que foram invocados no âmbito de um pedido de obtenção de autorização de residência com base no artigo 9.o‑B.

3.   O pedido de autorização de residência no Reino [da Bélgica] é apreciado unicamente com base no último pedido apresentado pelo presidente do município ou pelo seu delegado ao ministro ou ao seu delegado. Considera‑se que o cidadão estrangeiro que apresente um novo pedido desistiu dos pedidos pendentes apresentados anteriormente.»

11.

O artigo 10.o, n.o 1, ponto 7, que figura no capítulo III do título I da Lei de 1980 alterada, dispõe:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 9.o e 12.o, serão automaticamente autorizados a residir no Reino [da Bélgica] por um período superior a três meses:

[…]

7.o

o pai e a mãe de um cidadão estrangeiro reconhecido como refugiado na aceção do artigo 48.o, n.o 3, ou que beneficie de proteção subsidiária, que venham viver com ele, desde que este tenha menos de dezoito anos de idade e tenha entrado no Reino sem estar acompanhado por um cidadão estrangeiro maior responsável por ele por força da lei e não tenha sido, em seguida, efetivamente tomado a cargo por essa pessoa, ou tenha sido deixado sozinho após ter entrado no Reino [da Bélgica].»

II. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

12.

XXX é de nacionalidade guineense. Chegou à Bélgica em 2007. Apresentou um primeiro pedido de proteção internacional, que foi indeferido, seguido de dois outros pedidos, em 2010 e 2011, que as autoridades belgas recusaram tomar em consideração. Em 29 de janeiro de 2019, XXX apresentou um quarto pedido de proteção internacional no qual, desta vez, alegava ser pai de dois filhos nascidos na Bélgica em 2016 e 2018, dos quais pelo menos um foi reconhecido como refugiado ( 6 ), bem como a mãe das crianças ( 7 ). Este quarto pedido foi indeferido em 2 de outubro de 2019. Em 15 de outubro de 2019, XXX interpôs recurso desta decisão para o Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica), que lhe negou provimento em 17 de abril de 2020.

13.

XXX interpôs então um recurso de cassação para o órgão jurisdicional de reenvio. Alega perante ele, em substância, que, na qualidade de pai de um filho refugiado, deve ser considerado «membro da família», na aceção da Diretiva 2011/95, e ser‑lhe concedida proteção internacional. O recorrido no processo principal sustenta, por sua vez, que a Diretiva 2011/95 não prevê a obrigação de conceder proteção internacional aos membros da família que, individualmente, não preencham os respetivos requisitos. O artigo 23.o da Diretiva 2011/95 limita‑se a exigir que os Estados‑Membros organizem o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva, mas este acesso está limitado a certos membros da família, desde que esta tenha sido constituída no país de origem, o que não é o caso da família de XXX.

14.

O órgão jurisdicional de reenvio duvida que a Diretiva 2011/95 preveja a obrigação de os Estados‑Membros reconhecerem o estatuto de beneficiário de proteção internacional aos membros da família de um refugiado pelo simples facto de serem membros dessa família. Interroga‑se igualmente sobre a aplicabilidade do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 ao recorrente no processo principal, uma vez que parece resultar da redação deste artigo que esta disposição só é aplicável aos membros da família do beneficiário de proteção internacional definidos pela referida Diretiva no seu artigo 2.o, alínea j). Ora, XXX não preenche esta definição, entendendo‑se que, se é certo que é o pai de pelo menos uma criança reconhecida refugiada, o recorrente no processo principal não contesta que a família a que essa criança pertence não foi constituída no país de origem, mas sim na Bélgica. Todavia, XXX alega que o interesse superior da criança exige que o conceito de «membros da família» seja interpretado em sentido amplo, a fortiori numa situação de dependência como a que caracteriza a relação entre os seus filhos e ele. Com efeito, o mesmo alegou, no âmbito do seu quarto pedido de proteção internacional, que a mãe das crianças sofria de graves problemas psicológicos e que XXX devia assim cuidar dos filhos.

15.

Se o Tribunal de Justiça considerar que o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 é aplicável à situação no processo principal, XXX sustenta que esta disposição não foi transposta para o direito belga e que, tratando‑se de uma disposição com efeito direto, impõe que lhe seja concedida proteção internacional. O órgão jurisdicional de reenvio considera, por sua vez, que, ainda que tenha efeito direto, o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 não parece implicar a atribuição a XXX da proteção internacional, quando XXX não preenche as condições necessárias para a obter. Particularmente, o artigo 23.o da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 24.o desta Diretiva, apenas permite que XXX possa requerer a concessão de uma autorização de residência. Por conseguinte, é necessário que o órgão jurisdicional de reenvio interrogue o Tribunal de Justiça sobre o eventual efeito direto do artigo 23.o da Diretiva 2011/95 e sobre as consequências que daí resultariam. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio menciona o argumento do recorrente no processo principal segundo o qual o interesse superior da criança, previsto no artigo 20.o da Diretiva 2011/95, e o respeito pela vida familiar impõem que o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 seja interpretado no sentido de que exige que seja concedida a proteção internacional ao pai de crianças com estatuto de refugiadas na Bélgica e aí nascidas, ainda que não preencha por si mesmo as condições para obter essa proteção.

16.

Foi nestas circunstâncias que o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Devem o artigo 2.o, alínea j) e [o artigo] 23.o da [Diretiva 2011/95] ser interpretados como aplicáveis ao pai de dois filhos nascidos na Bélgica, que foram aí reconhecidos como refugiados, enquanto que o artigo 2.o, alínea j) especifica que os membros da família do beneficiário de proteção internacional abrangidos pela Diretiva 2011/95, são‑no “desde que a família já esteja constituída no país de origem”?

2.

O facto, invocado [pelo recorrente no processo principal] na audiência, de os seus filhos se encontrarem numa situação de dependência relativamente a ele e de o interesse superior dos mesmos exigir, no seu entender, que lhe seja concedida proteção internacional, implica, à luz dos considerandos 18, 19 e 38 da Diretiva 2011/95, que o conceito de membros da família do beneficiário de proteção internacional, tal como referido na Diretiva 2011/95, seja alargado de modo a incluir uma família que não foi constituída no país de origem?

3.

Em caso de resposta afirmativa às duas primeiras questões, pode o artigo 23.o da Diretiva 2011/95, que não foi transposto para o direito belga de modo a prever a concessão de uma autorização de residência ou de proteção internacional ao pai de crianças reconhecidas como refugiadas na Bélgica e que aí nasceram, ter efeito direto?

4.

Em caso de resposta afirmativa, o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 confere, na ausência de transposição, ao pai de filhos reconhecidos como refugiados na Bélgica e aí nascidos, o direito de reclamar os benefícios referidos nos artigos 24.o a 35.o [desta Diretiva], incluindo um título de residência que lhe permite viver legalmente na Bélgica com a sua família, ou o direito a obter proteção internacional, mesmo que este pai não preencha individualmente os requisitos necessários para obter proteção internacional?

5.

O efeito útil do artigo 23.o da Diretiva 2011/95, interpretado à luz dos artigos 7.o, 18.o e 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir “Carta”] e dos considerandos 18, 19 e 38 desta Diretiva, exige que o Estado‑Membro, que não adaptou o seu direito nacional de maneira a que os membros da família [na aceção do artigo 2.o, alínea j) da referida Diretiva ou relativamente aos quais exista uma situação individual de dependência do beneficiário de um tal estatuto] possam, embora sem preencher individualmente os requisitos para a concessão do mesmo estatuto, reivindicar determinados benefícios, ver reconhecido um direito ao estatuto de refugiado derivado, a fim de poderem reivindicar os referidos benefícios para preservar a unidade familiar?

6.

O artigo 23.o da Diretiva 2011/95, interpretado à luz dos artigos 7.o, 18.o e 24.o da [Carta] e dos considerandos 18, 19 e 38 [dessa diretiva], exige que o Estado‑Membro, que não adaptou o seu direito nacional de maneira a que os pais de um refugiado reconhecido possam usufruir dos benefícios enumerados nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva, conceda uma proteção internacional derivada, a fim de garantir que o interesse superior da criança constitua uma consideração primordial e de assegurar a eficácia do estatuto de refugiado dessa criança?»

III. Análise

A.   Observações preliminares

17.

As questões prejudiciais são dirigidas ao Tribunal de Justiça num contexto factual que envolve um pai de crianças nascidas na Bélgica, das quais pelo menos uma beneficia do estatuto de refugiada, que estão em território belga com a sua mãe, também refugiada. Além disso, é certo que, por um lado, a família assim constituída não foi constituída no país de origem mas sim no país de acolhimento e, por outro lado, o pai não parece preencher por si mesmo as condições para beneficiar da proteção internacional. O processo principal diz respeito à impugnação por parte deste pai da recusa das autoridades belgas em conceder‑lhe essa proteção, incluindo a título derivado.

18.

Além disso, resulta do processo apresentado ao Tribunal, e sobretudo das observações escritas de XXX, que a mãe terá sido reconhecida como refugiada com base, nomeadamente, na necessidade de proteção da filha contra a excisão feminina e que sofre de graves problemas de saúde mental.

19.

O presente caso levanta, portanto, a questão de saber se a Diretiva 2011/95 oferece alguma proteção ou benefício ao referido pai de família que lhe possa permitir residir legalmente na Bélgica com os seus filhos refugiados. Esta questão coloca‑se num contexto nacional em mutação. Com efeito, o Comissariado Geral para os Refugiados e os Apátridas, até 2018, concedia automaticamente ao progenitor de uma criança refugiada um estatuto derivado semelhante ao da criança, independentemente de qualquer consideração sobre se o progenitor preenche as condições necessárias para a concessão de proteção internacional. Em 2019, o Comissariado Geral para os Refugiados e Apátridas pôs termo a esta prática. O progenitor de um refugiado a quem seja recusada proteção internacional porque não preenche as condições deve doravante apresentar um pedido de regularização por motivos humanitários, com base no artigo 9.o‑A da Lei de 1980 alterada. Segundo o recorrente no processo principal, este procedimento de direito comum está sujeito às suas próprias condições de admissibilidade e oferece poucas garantias, nomeadamente em termos de prazos.

20.

A redação das questões prejudiciais alterna entre a referência ao reconhecimento da proteção internacional aos membros da família na situação de XXX e a referência ao acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95.

21.

Impõe‑se, desde logo, um esclarecimento a este respeito. Como o Tribunal de Justiça declarou, a Diretiva 2011/95 não prevê a extensão, a título derivado, do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária aos membros da família de uma pessoa a quem esse estatuto é concedido que, individualmente, não satisfazem as condições de concessão do referido estatuto, uma vez que o artigo 23.o da mencionada diretiva se limita a impor aos Estados‑Membros a obrigação de adaptarem a sua legislação nacional de modo que esses membros da família possam reivindicar, em conformidade com os procedimentos nacionais e na medida em que tal seja compatível com o seu estatuto jurídico pessoal desses membros da família, obter alguns benefícios que incluem designadamente a emissão de um título de residência, o acesso ao emprego ou o acesso à educação ( 8 ).

22.

Tendo em conta que o artigo 3.o da Diretiva 2011/95 confere aos Estados‑Membros a possibilidade de adotarem disposições mais favoráveis para decidir quais são as pessoas que preenchem as condições de concessão do estatuto de refugiado ou de pessoa elegível para proteção subsidiária e para determinar o conteúdo da proteção internacional, sem prejuízo da compatibilidade destas disposições com a Diretiva 2011/95, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, após uma análise rigorosa, que a Diretiva não se opõe a que um Estado‑Membro, por força de disposições nacionais mais favoráveis, conceda, a título derivado e para efeitos de preservação da unidade familiar, o estatuto de refugiado ao filho menor de um nacional de um país terceiro a quem esse estatuto foi reconhecido em aplicação do regime instituído pela referida diretiva, incluindo no caso de esse menor ter nascido no território desse Estado‑Membro e possuir, através do seu outro progenitor, a nacionalidade de outro país terceiro em cujo território não corre o risco de ser perseguido, desde que o referido menor não esteja abrangido por uma das causas de exclusão previstas no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 e que este não tenha, pela sua nacionalidade ou outro elemento que caracterize o seu estatuto jurídico pessoal, direito a um melhor tratamento no referido Estado‑Membro do que o que resulta da concessão do estatuto de refugiado ( 9 ). Assim, a concessão de uma proteção internacional derivada, ao abrigo da Diretiva 2011/95, enquanto medida mais favorável, é possível, na dupla condição de resultar de uma escolha do Estado‑Membro em causa e de ser compatível com as disposições da Diretiva 2011/95, apresentando sempre, nomeadamente, uma ligação com a lógica de proteção internacional.

23.

Ora, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que nenhuma disposição nacional ou prática mais favorável do que a que prevê a Diretiva 2011/95 é atualmente aplicável na Bélgica, no que respeita a uma situação como a de XXX. Pelo contrário, parece que o Comissariado Geral para os Refugiados e os Apátridas pretendeu pôr termo a esta prática anterior mais favorável.

24.

Nestas condições, na falta de vontade do Estado‑Membro em causa de instituir um regime mais favorável, seja qual for a interpretação acolhida das disposições da Diretiva 2011/95 no cerne do presente processo, não será possível a XXX ver reconhecido a título derivado o estatuto de refugiado.

25.

Todavia, como o Tribunal de Justiça referiu, a concessão desse estatuto não é a única forma de proteção oferecida pela Diretiva 2011/95, uma vez que esta garante igualmente o acesso a benefícios aos membros da família do beneficiário da proteção internacional. Por conseguinte, há que entender as questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça no sentido de que visam determinar se XXX pode beneficiar de algum ou dos vários benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95.

26.

Por outro lado, no seguimento deste raciocínio, devo recordar que as disposições da Diretiva 2011/95 devem ser interpretadas, segundo jurisprudência constante, não só à luz da sua sistemática e da sua finalidade, no respeito da Convenção de Genebra e dos outros Tratados pertinentes, referidos no artigo 78.o, n.o 1, TFUE, mas também, como resulta do considerando 16 dessa diretiva, no respeito dos direitos reconhecidos pela Carta ( 10 ), nomeadamente dos seus artigos 7.o, 18.o e 24.o

27.

Com este imperativo constantemente em mente, começo agora a análise das questões prejudiciais.

B.   Quanto às duas primeiras questões prejudiciais

28.

À semelhança da Comissão, abordarei conjuntamente as duas primeiras questões prejudiciais através das quais o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar se o artigo 2.o, alínea j), e o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 podem ser interpretados no sentido de que o pai, nacional de um país terceiro, de filhos que beneficiam do estatuto de refugiado, nascidos na Bélgica numa família constituída nesse Estado, deve ser considerado «membro da família» na aceção desta diretiva. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre qual poderia ser o impacto do estado de dependência da criança em relação ao seu pai, bem como da leitura dos considerandos 18, 19 e 38 da Diretiva 2011/95, na interpretação a dar ao conceito de «membros da família» na aceção desta última.

29.

Segundo jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça, em conformidade com as exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade, uma disposição deste direito que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance deve, normalmente, ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta, nomeadamente, o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa ( 11 ).

30.

Do ponto de vista literal, o artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95 dispõe que os Estados‑Membros devem assegurar que a unidade familiar possa ser preservada. O n.o 2 deste artigo 23.o especifica que os Estados‑Membros «devem assegurar que os membros da família do beneficiário de proteção internacional que não possam por si mesmos beneficiar desta proteção, possam reivindicar os benefícios referidos nos artigos 24.o a 35.o, em conformidade com os procedimentos nacionais e na medida em que tal seja compatível com o seu estatuto jurídico pessoal». Para determinar o âmbito de aplicação do referido artigo 23.o, n.o 2, há, portanto, que recorrer ao artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva, nos termos do qual «para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “membros da família”, desde que a família já esteja constituída no país de origem, os seguintes familiares do beneficiário de proteção internacional que se encontrem presentes no mesmo Estado‑Membro devido ao seu pedido de proteção internacional: […] o pai, a mãe ou outro adulto responsável, por força da lei ou da prática do Estado‑Membro em causa, pelo beneficiário de proteção internacional, se este for menor e solteiro».

31.

Assim, resulta inequivocamente da redação do artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95 que, na aceção desta Diretiva, os membros da família são considerados como tal desde que a família já esteja constituída no país de origem.

32.

Isto parece ser confirmado pela análise contextual, uma vez que o artigo 23.o, n.o 5, da Diretiva 2011/95 deixa aos Estados‑Membros a possibilidade de decidirem se este artigo 23.o se aplica também aos familiares próximos «que faziam parte do agregado familiar à data da partida do país de origem» ( 12 ). O considerando 16 desta Diretiva menciona igualmente os membros da família dos requerentes de asilo «acompanhantes» ( 13 ).

33.

Esta análise literal é corroborada pela análise teleológica, ainda que a preservação da unidade familiar não seja o objetivo principal da Diretiva 2011/95 ( 14 ). Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que a razão de ser do artigo 23.o da Diretiva 2011/95 é «permitir ao beneficiário de proteção internacional usufruir dos direitos que esta proteção lhe confere, preservando a unidade da sua vida familiar no território do Estado‑Membro de acolhimento» ( 15 ). Uma vez que se trata precisamente de preservar a unidade familiar, em princípio, a família é, portanto, preexistente à deslocação para o Estado‑Membro de acolhimento ( 16 ) e são, portanto, os membros da família já constituída que serão beneficiários, se for caso disso, dos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95 ( 17 ). A dificuldade do presente processo reside no facto de as crianças com o estatuto de refugiado não se terem deslocado.

34.

Tendo em conta estes elementos interpretativos muito claros, nem a invocação da relação de dependência entre as crianças reconhecidas como refugiados e o seu pai, nem a leitura dos considerandos 18, 19 e 38 da Diretiva 2011/95, desprovidos de força vinculativa, se revelam suscetíveis de infletir esta interpretação.

35.

Por um lado, no que respeita ao estado de dependência das crianças em relação ao pai, nesta fase da análise, não pode ter por efeito alterar o que o legislador da União enunciou claramente, ou seja, para que estes membros sejam considerados membros da família na aceção do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, esta família deve, entre outros requisitos, ter sido constituída no país de origem. O estado de dependência é, intrinsecamente, o que caracteriza profundamente a relação de qualquer criança com os seus pais e, no entanto, isso não impediu o legislador da União de proteger esta relação com base no artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 apenas quando esta relação tenha sido criada antes da chegada ao território do país de acolhimento. Embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça imponha uma interpretação abrangente das disposições de direito derivado que têm por objetivo favorecer o exercício de direitos fundamentais, esta exigência de interpretação ampla não pode justificar uma interpretação contrária ao texto destas disposições ( 18 ).

36.

Por outro lado, no que respeita ao considerando 18 da Diretiva 2011/95, este recorda que o interesse superior da criança constitui uma das principais preocupações a ter em consideração pelos Estados‑Membros no seu processo de tomada de decisões individuais. Não deixa de ser verdade que esse interesse deve ser tido em conta dentro dos limites definidos pelo legislador da União no artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95.

37.

Quanto ao considerando 19 dessa diretiva, a necessidade de alargar o conceito de «membros da família» a que se refere deve ser entendida no contexto histórico em torno da adoção da Diretiva 2011/95. Com efeito, esta última reformulou a Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida ( 19 ). Esta Diretiva também definiu os membros da família, referindo‑se à família já constituída no país de origem ( 20 ). O considerando 19 da Diretiva 2011/95 deve ser entendido como uma simples clarificação do aditamento de um terceiro travessão à disposição que define os membros da família ( 21 ), um aditamento que amplia o conceito de «membros da família» ao qual este considerando se refere.

38.

Quanto ao considerando 38 da Diretiva 2011/95, parece‑me que este abrange, antes de mais, as situações de dependência dos familiares em relação ao beneficiário de proteção internacional. Por conseguinte, tenho dificuldade em compreender como é que a invocação deste considerando poderia apoiar a tese de XXX, quando alega que a situação em causa no processo principal se caracteriza precisamente pela dependência dos seus filhos refugiados em relação a si, e não o inverso. É certo que este considerando contém igualmente uma recapitulação da obrigação dos Estados‑Membros de terem em conta o interesse superior da criança, mas essa recapitulação não pode servir de base a uma interpretação que se afaste da redação muito clara do artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva.

39.

Por último, a interpretação proposta no n.o 31 das presentes conclusões também encontra eco na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que a concessão dos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95 aos membros da família do beneficiário de proteção internacional «exige o preenchimento de três condições, relativas, em primeiro lugar, à qualidade de membros da família na aceção do artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva; em segundo lugar, ao facto de não preencher individualmente as condições necessárias à obtenção de proteção internacional e; em terceiro lugar, à compatibilidade com o estatuto jurídico pessoal do membro da família interessado» ( 22 ), confirmando assim claramente a ligação entre o conceito de «membros da família», conforme previsto no artigo 23.o da Diretiva 2011/95 e no artigo 2.o, alínea j), desta diretiva, cujo objeto é, precisamente, definir esse conceito. De forma ainda mais clara, o Tribunal de Justiça declarou, alguns meses antes, que resulta da leitura conjugada destas duas disposições que «a obrigação de os Estados‑Membros preverem o acesso [aos benefícios previstos no artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95] não é alargada aos filhos de um beneficiário de proteção internacional que tenham nascido no Estado‑Membro de acolhimento de uma família que nele tenha sido constituída» ( 23 ).

40.

Assim, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, conjugado com o artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva, deve ser interpretado no sentido de que, em princípio, o conceito de «membros da família» pressupõe que essa família já estivesse constituída no país de origem.

C.   Quanto à terceira questão prejudicial

41.

A terceira questão prejudicial é submetida apenas em caso de resposta afirmativa às duas primeiras questões. Na hipótese de o Tribunal de Justiça decidir nesse sentido, há que determinar agora se o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 pode ter efeito direto, tendo o órgão jurisdicional de reenvio indicado, sob a sua exclusiva responsabilidade, que esta disposição não tinha sido transposta para o direito belga.

42.

Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, sempre que as disposições de uma diretiva se afigurem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar nos tribunais nacionais contra o Estado, quer quando este não tenha transposto essa diretiva para o direito nacional nos prazos previstos, quer quando dela tenha feito uma transposição incorreta ( 24 ). A este respeito, há que analisar a natureza, a economia e os termos da disposição em causa. Uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem está subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos ( 25 ). Ainda que uma diretiva deixe aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades de aplicação da mesma, pode ser considerado que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela contida ( 26 ).

43.

Importa, portanto, examinar agora se o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 se afigura, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicional e suficientemente preciso para poder ser invocado por um particular contra um Estado‑Membro, perante os órgãos jurisdicionais deste.

44.

A redação desta terceira questão visa todo o artigo 23.o da Diretiva 2011/95, sem distinguir entre as suas diferentes componentes. Uma vez que a situação de XXX não é abrangida pelo artigo 23.o, n.o 5, da Diretiva 2011/95, excluo, desde já, este número do âmbito da presente análise.

45.

No que respeita ao n.o 1 desse artigo 23.o, nos termos do qual «[o]s Estados‑Membros devem assegurar que a unidade familiar possa ser preservada», não me parece que apresente as características indispensáveis para lhe ser reconhecido efeito direto. À semelhança da Comissão ( 27 ), considero que está formulado em termos demasiado gerais para poder ser considerado «suficientemente preciso» na aceção da jurisprudência recordada no n.o 42 das presentes conclusões ( 28 ).

46.

Resulta da lógica interna do artigo 23.o da Diretiva 2011/95 que o n.o 2 deste artigo faz uma precisão do que se espera dos Estados‑Membros no que respeita à proteção da unidade familiar dos beneficiários de proteção internacional com os membros da sua família, conforme definidos por esta diretiva. Esta disposição prevê que os membros da família «que não possam por si mesmos beneficiar desta proteção, possam reivindicar os benefícios referidos nos artigos 24.o a 35.o, em conformidade com os procedimentos nacionais e na medida em que tal seja compatível com o seu estatuto jurídico pessoal».

47.

O mencionado n.o 2 enuncia, no meu entender claramente, uma obrigação a cargo dos Estados‑Membros de organizarem o acesso dos membros da família aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95. Os membros da família abrangidos pelo artigo 23.o, n.o 2, desta Diretiva devem assim ter direito, segundo as vias nacionais organizadas para o efeito, a uma autorização de residência (artigo 24.o), a documentos de viagem (artigo 25.o), ao acesso ao emprego (artigo 26.o), à educação (artigo 27.o), a procedimentos de reconhecimento das qualificações (artigo 28.o), à segurança social (artigo 29.o), aos cuidados de saúde (artigo 30.o), às medidas de proteção dos menores não acompanhados (artigo 31.o), ao acesso ao alojamento (artigo 32.o), à liberdade de circulação no Estado‑Membro de acolhimento (artigo 33.o), ao acesso aos mecanismos de integração (artigo 34.o) e à assistência à repatriação (artigo 35.o).

48.

Poderia contrapor‑se, por um lado, que as obrigações impostas pelo artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 não decorrem apenas da sua leitura, uma vez que seria necessário ler o texto desta disposição juntamente com um dos direitos previstos nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva e, por outro, que o próprio texto deste artigo, dado que estabelece um certo número de restrições quanto ao seu âmbito de aplicação ratione personae, privaria a referida disposição do caráter incondicional necessário ao reconhecimento de um efeito direto.

49.

No que respeita à primeira objeção, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 não impõe o acesso automático aos benefícios enumerados nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva, mas exige que seja aberto um caminho para os membros da família elegíveis poderem beneficiar de um determinado número de vantagens. O artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 é uma disposição autónoma que constitui o pressuposto do reconhecimento dos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva.

50.

No que respeita à segunda objeção, recordei acima que mesmo uma disposição que deixa uma margem de apreciação aos Estados‑Membros para definir as suas modalidades de execução pode ser reconhecida como tendo efeito direto, desde que imponha aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, não sujeita a nenhuma condição relativa à aplicação da regra enunciada. O n.o 2 do artigo 23.o da Diretiva 2011/95 deixa efetivamente uma margem de apreciação aos Estados‑Membros para ajustarem os seus procedimentos ou para os porem em prática (liberdade de meios), para permitir que as pessoas em causa possam obter (resultado exigido) os benefícios referidos nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva ( 29 ). Deste ponto de vista apenas, o n.o 2 do artigo 23.o da referida Diretiva não me parece ser condicional.

51.

Além disso, as precisões relativas ao seu âmbito de aplicação ratione materiae não podem ser interpretadas como condições quanto à aplicação da regra enunciada, na aceção da jurisprudência acima referida. É certo que, para poder usufruir desses benefícios, o indivíduo deve ser, em primeiro lugar, um membro da família do beneficiário de proteção internacional, na aceção do artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95 que, em segundo lugar, não preenche individualmente as condições necessárias para obter essa proteção e, em terceiro lugar, o acesso aos benefícios mencionados só lhe deve ser facultado na medida em que isso seja compatível com o seu estatuto jurídico pessoal. A propósito desta última precisão, o Tribunal refere‑se a uma «reserva» e não a uma condição ( 30 ). Ora, por um lado, a existência de uma reserva não é, per se, exclusiva do efeito direto ( 31 ). Por outro lado, esta «reserva» é relativa ao âmbito de aplicação ratione personae do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, o qual é ainda clarificado no artigo 23.o, n.o 3, desta diretiva ( 32 ). Ora, na minha opinião, a questão da determinação do âmbito de aplicação pessoal de uma disposição não pode confundir‑se com a do seu efeito direto ( 33 ).

52.

Por último, no que respeita ao artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2011/95, este oferece aos Estados‑Membros a possibilidade de recusarem, reduzirem ou retirarem os benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o desta Diretiva, por motivos de segurança nacional ou de ordem pública. Trata‑se aqui de uma reserva suscetível de fiscalização jurisdicional e a possibilidade que um Estado‑Membro teria de a invocar não impede que se considere que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 confere aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo e que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar ( 34 ).

53.

Por último, os requisitos do efeito direto estão agora bem definidos pela jurisprudência e a questão que nos é colocada é a de saber se o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 está suficientemente operacional ( 35 ) para ser aplicado pelo juiz nacional. E é isso que importa: «clareza, precisão, caráter incondicional, completo ou perfeito da regra e o facto de não se destinar a ser aplicada por disposições de execução com caráter discricionário constituem apenas, deste ponto de vista, as facetas de uma única e mesma característica que a referida regra deve apresentar, ou seja, a faculdade de ser aplicada pelo juiz aos dados do problema que foi chamado a conhecer» ( 36 ). Resulta da minha análise que, na minha opinião, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 está suficientemente operacional para poder ser diretamente mobilizado perante o juiz nacional, que está em condições de compreender o que o legislador da União pretendeu colocar a cargo dos Estados‑Membros.

54.

Assim, resulta da minha análise que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, uma vez que prevê a obrigação de os Estados‑Membros organizarem o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o dessa Diretiva, tem efeito direto e pode ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que o tenha transposto de forma incorreta ou que não o tenha transposto.

D.   Quanto à quarta questão prejudicial

55.

Resulta dos fundamentos do pedido de decisão prejudicial ( 37 ) que esta questão não visa que o Tribunal de Justiça recorde a sua jurisprudência clássica relativa às consequências do reconhecimento do efeito direto de uma disposição na ordem jurídica nacional ( 38 ), mas nasce da controvérsia entre o recorrente no processo principal e o Estado belga sobre o alcance material do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95. XXX sustenta que a Lei de 1980 alterada deve ser interpretada em conformidade com o artigo 23.o dessa diretiva e que, por conseguinte, as autoridades belgas lhe deveriam ter concedido proteção internacional. O órgão jurisdicional de reenvio considera, por seu turno, que não é esse o objeto desta disposição e que, além disso, a interpretação conforme da disposição nacional conduziria a uma interpretação contra legem.

56.

Pelas razões expostas nos n.os 21 e seguintes das presentes conclusões, há que recordar, por um lado, que a Diretiva 2011/95 não prevê a extensão a título derivado do estatuto de refugiado aos membros da família de uma pessoa que beneficia desse estatuto, quando esses membros não preenchem individualmente as condições de concessão do referido estatuto e, por outro lado, que o artigo 23.o, n.o 2, dessa diretiva 2011/95 permite às pessoas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação reivindicarem o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da referida diretiva ( 39 ).

E.   Quanto à quinta e sexta questões prejudiciais

57.

No âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Incumbe, por vezes, ao Tribunal de Justiça reformular as questões que lhe são submetidas ( 40 ). Tendo em conta a forma como estão redigidas e a sua correlação, parece‑me que a quinta e sexta questões prejudiciais ganhariam em ser reformuladas. Na minha opinião, há que entender as referidas questões no sentido de que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 23.o da Diretiva 2011/95, lido à luz dos artigos 7.o, 18.o e 24.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que reconheçam, a fim de preservar a unidade familiar e garantir a efetividade do estatuto de refugiado reconhecido à criança, o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da referida Diretiva ao pai dessa criança, quando esse pai não preenche as condições para lhe ser concedida proteção internacional nem pode ser considerado «membro da família» na aceção do artigo 2.o, alínea j), e do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95.

1. Análise do ponto de vista do pai

58.

Nesta fase da análise, recordo que propus ao Tribunal de Justiça que declare que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «membros da família», na aceção das referidas disposições, pressupõe que a família já estivesse constituída no país de origem. Por conseguinte, XXX não preenche ‑ segundo as apreciações das autoridades belgas ‑ nem os requisitos para obter proteção internacional por si mesmo, nem as condições para aceder aos benefícios que o artigo 23.o, n.o 2 da Diretiva 2011/95 reserva aos membros da família de um beneficiário de proteção internacional. Por outro lado, como já recordei ( 41 ), a Diretiva 2011/95 também não prevê a concessão a título derivado da proteção internacional ( 42 ).

59.

Para todos os efeitos, esclareço ainda que parece excluído que XXX possa beneficiar dos direitos decorrentes da Diretiva 2003/86. É certo que esta prevê regras mais favoráveis para os refugiados quanto ao reagrupamento com os membros da sua família ( 43 ), mas os Estados‑Membros podem limitar a aplicação das disposições do capítulo V dessa diretiva — as disposições consagradas precisamente ao reagrupamento familiar dos refugiados — aos refugiados cujos laços familiares sejam anteriores à sua entrada no território ( 44 ). A entrada e a residência, ao abrigo da Diretiva 2003/86, dos ascendentes diretos é uma faculdade deixada à discrição dos Estados‑Membros e condicionada ao facto de o ascendente em questão estar a cargo do requerente do reagrupamento ( 45 ), a menos que se trate de um menor não acompanhado ( 46 ), caso em que o reagrupamento já não está sujeito a nenhuma margem de apreciação por parte dos Estados‑Membros nem a nenhuma condição relativa ao facto de se encontrarem a cargo do menor ( 47 ). Mas os filhos de XXX não são menores não acompanhados. Em princípio, o pedido de reagrupamento familiar é apresentado quando os familiares residem fora do território do Estado‑Membro em que reside o requerente do reagrupamento, mesmo que seja possível uma derrogação ( 48 ). Ora, XXX já se encontra no território belga. Devido à sua situação atípica e à da sua família, XXX não entra em nenhuma das «variáveis» suscetíveis de legitimar a sua presença no território da União junto dos seus filhos.

2. Análise do ponto de vista dos beneficiários do estatuto de refugiado

60.

Existem duas razões fundamentais pelas quais a situação de XXX, enquanto membro da família da sua filha menor refugiada, não é abrangida pela Diretiva 2011/95 e/ou pelas disposições de direito derivado da União que concretizam o direito ao reagrupamento familiar dos refugiados: em primeiro lugar, a família em que o filho menor refugiado nasceu não foi constituída no país de origem; em segundo lugar, esse menor e a sua família não se mudaram após o seu nascimento.

61.

Gostaria, contudo, de voltar a analisar elementos factuais que merecem, na minha opinião, uma análise mais aprofundada. Assim, sob reserva de uma eventual confirmação ou verificação efetuada pelo órgão jurisdicional de reenvio, resulta da minha compreensão dos autos que foi reconhecido à filha de XXX o estatuto de refugiada devido aos riscos de mutilação genital ( 49 ) com que se confrontaria se tivesse de se deslocar para o país de nacionalidade dos seus progenitores — de que também tem a nacionalidade, mas onde nunca viveu, uma vez que nasceu na Bélgica — e porque a mãe, que também tem o estatuto de refugiado, sofre de graves distúrbios psicológicos. Resulta claro que este último elemento merece uma análise aprofundada das autoridades nacionais competentes, mas não se pode excluir que paira uma sombra sobre o futuro desta criança, se a mãe não estiver em condições de assumir sozinha o encargo dos seus filhos ( 50 ). É neste sentido que entendo a referência constante da sexta questão prejudicial à «efetividade do estatuto de refugiado». Com efeito, e por outro lado, o pai encontra‑se em situação irregular no território da União há dezasseis anos e, portanto, pode ser expulso ( 51 ).

62.

Por conseguinte, há que mudar de perspetiva e observar do ponto de vista dos filhos refugiados e, mais especificamente, da filha, a propósito da qual dispomos de mais informações, e das garantias que lhe são conferidas pelo direito da União à luz dos seus direitos fundamentais, devendo as regras do direito derivado da União ser interpretadas e aplicadas no respeito dos direitos fundamentais garantidos pela Carta ( 52 ).

63.

Esta criança, que terá atualmente 7 anos, não está, em princípio, em condições de levar uma existência independente dos membros da sua família ( 53 ).

64.

Embora, como recordei no início da análise do presente processo ( 54 ), a Diretiva 2011/95 tenha por objetivo, antes de mais, assegurar a aplicação de critérios comuns de identificação das pessoas que necessitam de proteção internacional, bem como um nível mínimo de benefícios para essas pessoas em todos os Estados‑Membros, o regime europeu comum de asilo, de que faz parte esta diretiva e como recorda o seu considerando 3, baseia‑se na aplicação integral e global da Convenção de Genebra e do Protocolo, e na garantia de que ninguém é reenviado para onde possa ser de novo perseguido ( 55 ). O reconhecimento formal do estatuto de refugiado tem como consequência que o refugiado em causa seja beneficiário de proteção internacional, na aceção da Diretiva 2011/95, pelo que goza de todos os direitos e benefícios previstos no Capítulo VII dessa diretiva, que inclui direitos equivalentes aos contidos na Convenção de Genebra e direitos mais protetores que não têm equivalente na referida Convenção ( 56 ). O facto de os Estados‑Membros terem a obrigação de ter em conta, na transposição da Diretiva 2011/95, a consideração primordial que constitui o interesse superior da criança, consiste numa regra geral relativa ao capítulo VII, enunciada no artigo 20.o, n.o 5, da referida Diretiva. A este respeito, recordo que o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 pertence a esse capítulo VII e que o seu n.o 1 obriga os Estados‑Membros a assegurarem que a unidade familiar possa ser preservada ( 57 ). À semelhança da Comissão, saliento que a redação desta disposição não se limita aos membros da família definidos no artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95.

65.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de sublinhar, à semelhança de todos os atores internacionais da proteção dos refugiados, a importância fundamental da unidade da família, que constitui um direito essencial do refugiado. Reconheceu igualmente a ligação que existe entre as medidas de proteção da família do refugiado e a lógica de proteção internacional ( 58 ). Este direito afigura‑se ainda mais essencial quando o refugiado é menor, tendo em conta o seu estado de particular vulnerabilidade. Além disso, o Tribunal de Justiça já recordou a importância, nomeadamente, da Convenção sobre os Direitos da Criança ( 59 ), cujo artigo 9.o, n.o 1, prevê que «[o]s Estados Partes garantem que a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes» ( 60 ).

66.

Assim, a Diretiva 2011/95 prossegue igualmente o objetivo de assegurar, em conformidade com o artigo 24.o, n.o 2, da Carta, que o interesse superior da criança seja uma consideração primordial que deve orientar os Estados‑Membros na aplicação desta diretiva ( 61 ). Como exigido pelo artigo 20.o, n.o 5, da Diretiva 2011/95, esse interesse constitui uma consideração primordial para os Estados‑Membros na transposição das disposições do capítulo VII desta diretiva ( 62 ). Segundo jurisprudência constante, este artigo 7.o da Carta deve ser lido em conjugação com a obrigação de tomar em consideração o interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, da referida Carta, e tendo em conta a necessidade da criança de manter regularmente relações pessoais com ambos os progenitores, expressa no artigo 24.o, n.o 3, da mesma ( 63 ). Concretamente, o artigo 7.o e o artigo 24.o, n.o 2, da Carta exigem que «todos os atos relativos às crianças, nomeadamente os praticados pelos Estados‑Membros na aplicação da referida diretiva, tenham primacialmente em conta o interesse superior da criança» ( 64 ). Estes atos podem não ter necessariamente como destinatário o menor, mas ter consequências importantes para este último ( 65 ). Daqui resulta que as disposições da Diretiva 2011/95 devem ser interpretadas e aplicadas, nomeadamente, à luz do artigo 7.o e do artigo 24.o, n.os 2 e 3, da Carta. Daqui resulta que os Estados‑Membros, quando aplicam a Diretiva 2011/95, têm a obrigação de ter devidamente em conta o princípio da unidade familiar, do bem‑estar e do desenvolvimento social do menor ( 66 ).

67.

Por muito essencial que seja, o direito fundamental ao respeito pela vida familiar do refugiado não é, contrariamente à proibição das penas ou dos tratos desumanos ou degradantes, prevista no artigo 4.o da Carta ( 67 ), um direito absoluto e, portanto, pode ser limitado nas condições previstas no artigo 52.o, n.o 1, da Carta ( 68 ).

68.

Todavia, na minha opinião, o artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, ao referir‑se à unidade da vida familiar, deve poder ser invocado pelo recorrente e pela sua filha ( 69 ), sob pena, caso contrário, de suscitar uma certa tensão entre este artigo 23.o e o artigo 7.o da Carta, em conjugação com o artigo 24.o desta última. Passo a explicar.

69.

Embora XXX não tenha direito a aceder aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95, devido à definição restritiva adotada do conceito de «membros da família», na aceção do artigo 23.o, n.o 2, em conjugação com o artigo 2.o, alínea j), ambos desta Diretiva, acabará por ser obrigado, por não poder regularizar a sua residência na Bélgica, a abandonar o território da União. Na melhor das hipóteses, deixará, então, para trás a sua família, composta pela mãe dos seus filhos e os seus filhos, entre os quais a sua filha refugiada, o que constituirá uma violação do direito fundamental desta última ao respeito pela sua vida familiar ( 70 ), conforme protegido pelo artigo 7.o da Carta ( 71 ). É certo que tal limitação, definida pela Diretiva 2011/95, que restringe o acesso aos benefícios apenas aos membros da família que foi constituída no país de origem, está efetivamente prevista na lei. É mais difícil considerar que esta limitação respeita o conteúdo essencial desse direito, uma vez que exclui as famílias de refugiados constituídas após a fuga ou a deslocação, apenas por esse motivo. Ora, embora o estatuto de refugiado possa ser reconhecido a uma criança nascida no território da União, concebo com dificuldade as razões pelas quais a sua família seria menos digna de proteção pela simples razão de ter sido constituída após a partida de alguns dos seus membros do país de origem, ou mesmo uma vez chegados ao país de acolhimento, quando o estado de vulnerabilidade do menor e as necessidades da criança refugiada, em termos de proteção da sua vida familiar, são tão intensas quanto as de uma criança posta na mesma situação, mas cuja família se deslocou.

70.

Isto leva‑nos à questão da proporcionalidade da restrição. Evidentemente, posso entender que a restrição do acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95 é imposta por considerações ligadas à política da União em matéria de imigração e de asilo e que corresponde, apenas a esse título, a um objetivo de interesse geral da União. Mas, no caso em apreço, tal restrição é suscetível de produzir efeitos totalmente desproporcionados, uma vez que implica um desrespeito pelo princípio da igualdade de tratamento e um risco sério de violação do conteúdo essencial de outro direito, a saber, o direito de asilo, igualmente garantido pelo artigo 18.o da Carta.

71.

Quanto ao desrespeito pelo princípio da igualdade de tratamento, recordo que a limitação da definição de «membros da família» à família formada antes da partida do país de origem foi lamentada ( 72 ). Segundo o Comissário para os Direitos Humanos, tal limitação não se afigura apta a «ter em conta o que efetivamente vivem os refugiados. Muitos deles passam períodos prolongados em exílio e em fuga e formam uma família durante o trânsito ou quando vivem precariamente nas suas regiões de origem, antes da sua chegada à Europa. […] Em determinadas situações, a distinção entre as famílias constituídas antes ou depois da partida do país de origem é contrária ao artigo 14.o da [Convenção Europeia A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)] e, provavelmente, a outras garantias de igualdade, nomeadamente por força do direito da [União]» ( 73 ).

72.

Admito partilhar as dúvidas expressas pelo Comissário para os Direitos Humanos.

73.

A este respeito, poderia ser dada especial atenção ao Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») proferido no processo Hode e Abdi c. Reino Unido ( 74 ). Neste processo, o recorrente tinha chegado ao Reino Unido em 2004 e beneficiava do estatuto de refugiado desde março de 2006. Em junho desse mesmo ano, conheceu aquela que viria a tornar‑se sua esposa, em 2007. O casal acolheu duas crianças, nascidas, respetivamente, em 2008 e 2011. Nacional de um Estado terceiro, a esposa, que não beneficiava, por si mesma, de proteção internacional, requereu, em 2007, um visto para se juntar ao seu marido no Reino Unido. Embora refugiado, este não podia beneficiar das regras nacionais relativas ao reagrupamento familiar dos refugiados, uma vez que estas só eram aplicáveis aos cônjuges que faziam parte da família antes da partida do refugiado do país de origem. A esposa requereu então a concessão de uma autorização de residência na qualidade de cônjuge de um residente presente e estabelecido no Reino Unido, o que lhe foi igualmente recusado pelo facto de o seu marido, presente no Reino Unido com base numa autorização de residência limitada de 5 anos, não ser considerado «presente e estabelecido» nesse Estado, na aceção da legislação nacional.

74.

Após ter recordado que nenhum Estado é obrigado, por força do artigo 8.o da CEDH, a respeitar a escolha dos casais casados sobre o país da sua residência matrimonial, o TEDH declarou que, uma vez que a legislação nacional confere um direito ao reagrupamento familiar a certas categorias de migrantes, deve fazê‑lo de forma compatível com o artigo 14.o da CEDH. A título de preâmbulo necessário a uma análise à luz do artigo 14.o da CEDH, o TEDH declarou que as regras relativas ao reagrupamento familiar dos refugiados afetaram manifestamente a vida familiar dos requerentes e dos seus filhos, pelo que os factos do caso em apreço estavam efetivamente abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 8.o da CEDH ( 75 ). O TEDH recordou igualmente que só as diferenças de tratamento baseadas numa característica identificável, ou na «qualidade», são suscetíveis de constituir uma discriminação na aceção do artigo 14.o da CEDH ( 76 ). Além disso, para que se coloque uma questão nos termos desta disposição, é necessário que haja uma diferença de tratamento de pessoas que se encontrem em situações análogas ou pertinentes. Essa diferença de tratamento é discriminatória quando não tenha uma justificação objetiva e razoável, ou seja, se não prosseguir um objetivo legítimo ou se não existir uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregados e o objetivo visado ( 77 ). Se o TEDH reconhecer que o Estado Contratante dispõe de uma margem de apreciação, o seu alcance variará em função das circunstâncias, da matéria e do contexto ( 78 ).

75.

O TEDH declarou, assim, que a situação dos recorrentes, sendo relativa a um refugiado que se casou após ter deixado o seu país de origem e à mulher desse refugiado, podia ser equiparada a «qualquer outra situação» na aceção do artigo 14.o da CEDH e estava, assim, abrangida pelo seu âmbito de aplicação ( 79 ). Além disso, o Estado Contratante em causa não contestou que, nos termos da sua legislação nacional, os estudantes e os trabalhadores, por um lado, e os refugiados que tinham contraído casamento antes da sua partida do país de origem, por outro, eram tratados diferentemente dos refugiados e dos seus cônjuges cujo casamento tinha sido celebrado após a partida do país de origem ( 80 ). O TEDH declarou que os refugiados que casaram antes de deixarem o seu país de origem se encontravam numa situação análoga, uma vez que beneficiavam igualmente do estatuto de refugiado e a sua residência era igualmente autorizada no Reino Unido por um período limitado, e que a única diferença pertinente era a data em que o casamento ocorreu ( 81 ). Embora o Reino Unido tentasse justificar essa diferença de tratamento com o facto de que era obrigado a cumprir as suas obrigações internacionais sem, no entanto, fornecer mais vantagens que levassem os refugiados a escolher esse Estado como país de acolhimento e quando alegava que se tratava de uma decisão política que se inscrevia no âmbito da sua ampla margem de apreciação reconhecida na matéria ( 82 ), o TEDH declarou que não via nenhuma razão para tratar de forma diferente os refugiados que casaram após a deslocação e os que casaram antes e que, embora, ao autorizar o reagrupamento familiar dos cônjuges de refugiados que estavam casados antes de se deslocar, o Reino Unido tivesse respeitado as suas obrigações internacionais, a partir do momento em que uma medida conduzisse a tratar de forma diferente pessoas que se encontram em situações análogas, o facto de ter cumprido uma obrigação internacional de um Estado Contratante não podia justificar esta diferença de tratamento ( 83 ). Por conseguinte, o TEDH conclui pela existência de uma violação do artigo 14.o da CEDH, em conjugação com o artigo 8.o desta Convenção ( 84 ).

76.

Assim, o facto de os filhos refugiados de XXX não poderem beneficiar do direito à preservação da unidade familiar, conforme garantido pelo artigo 23.o da Diretiva 2011/95, pelo simples facto de não pertencerem a uma família constituída no país de origem é igualmente suscetível de suscitar algumas dificuldades à luz do artigo 20.o da Carta ( 85 ).

77.

Por último, quanto ao risco sério de violação do conteúdo essencial do direito de asilo, a impossibilidade de XXX invocar a seu favor os benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95 prolonga a irregularidade da sua permanência na Bélgica. Ora, e sem prejuízo das verificações a que o órgão jurisdicional de reenvio deverá proceder, na hipótese de a mãe da menor refugiada falhar, é possível que a relação de dependência entre essa criança e o pai seja tal que, no caso de o pai ser obrigado a abandonar o território, a criança deva acompanhá‑lo ( 86 ). Nesse caso — é certo que hipotético, mas plausível à luz do teor dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça — tratar‑se‑ia desta vez de uma violação frontal do direito de asilo da criança, protegido pelo artigo 18.o da Carta ( 87 ), impedindo‑a de gozar efetivamente desse direito ( 88 ).

3. Observações finais

78.

Assim, o artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, pela sua redação em termos gerais, presta‑se a uma interpretação que garante o acesso do pai de um menor refugiado que não pode beneficiar da proteção internacional nem invocar o artigo 23.o, n.o 2, desta Diretiva, pelo simples facto de a família desse menor não ter sido constituída no país de origem, aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da referida diretiva. Esta interpretação corrobora a conclusão a que o Tribunal de Justiça chegou ao declarar que «a razão de ser do artigo 23.o da [Diretiva 2011/95] é permitir ao beneficiário de proteção internacional usufruir dos direitos que esta proteção lhe confere, mantendo simultaneamente a unidade da sua família no território do Estado‑Membro de acolhimento» ( 89 ).

79.

No entanto, este acesso exigirá algumas verificações prévias. Assim, por um lado, será necessário confirmar a realidade e a efetividade do laço familiar que une o pai ao filho que beneficia do estatuto de refugiado e a intensidade da relação de dependência ( 90 ). Trata‑se, havendo menores, de assegurar que a preservação desse laço com o membro da família em causa coincide, tendo em conta a situação específica da família, com o interesse superior da criança. Por outro lado, as limitações previstas no artigo 23.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2011/95 continuam, evidentemente, a aplicar‑se, pelo que o acesso aos benefícios baseado no artigo 23.o, n.o 1, desta diretiva deixará de ser garantido quando o pai estiver ou ficar excluído do benefício da proteção internacional, nos termos dos capítulos III e V da Diretiva 2011/95, ou se o Estado‑Membro considerar que esse acesso ameaça a segurança nacional ou a ordem pública.

80.

Por conseguinte, e por todas as razões expostas, o artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 20.o, n.o 5, desta diretiva e lido à luz dos artigos 7.o e 18.o e do artigo 24.o, n.os 2 e 3, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que o pai, nacional de um Estado terceiro, de filhos refugiados nascidos no território do Estado de acolhimento, numa família que foi constituída nesse território, que não preenche ele próprio as condições para beneficiar da proteção internacional, deve poder aceder aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95, se tal se revelar necessário tendo em conta todas as circunstâncias específicas próprias da situação da família em causa, por um lado, para que seja garantido o respeito do direito à vida familiar dos seus filhos refugiados e, por outro, para que os seus filhos possam continuar a gozar de todos os direitos associados ao seu estatuto de refugiado, a menos que este pai esteja abrangido pelas cláusulas de exclusão dos capítulos III e V da Diretiva 2011/95 ou constitua uma ameaça para a segurança pública ou a ordem pública do Estado‑Membro de acolhimento.

IV. Conclusão

81.

À luz de todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Conselho de Estado, em formação jurisdicional (Bélgica) da seguinte forma:

1)

O artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida, em conjugação com o artigo 2.o, alínea j), desta Diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

em princípio, o conceito de «membros da família» pressupõe que essa família já estivesse constituída no país de origem.

O artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, uma vez que prevê a obrigação de os Estados‑Membros organizarem o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o dessa diretiva, tem efeito direto e pode ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que a tenha transposto de forma incorreta ou que não a tenha transposto.

A Diretiva 2011/95 não prevê a extensão a título derivado do estatuto de refugiado aos membros da família de uma pessoa que beneficia desse estatuto quando esses membros não preenchem individualmente as condições de concessão do referido estatuto. O artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 permite às pessoas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação reivindicar o acesso aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95.

2)

O artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, em conjugação com o artigo 20.o, n.o 5, desta Diretiva e lido à luz dos artigos 7.o e 18.o e do artigo 24.o, n.os 2 e 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

o pai, nacional de um Estado terceiro, de filhos refugiados nascidos no território do Estado de acolhimento, numa família que foi constituída nesse território, que não preenche ele próprio as condições para beneficiar da proteção internacional, deve poder aceder aos benefícios previstos nos artigos 24.o a 35.o da Diretiva 2011/95, se tal se revelar necessário, tendo em conta todas as circunstâncias específicas próprias da situação da família em causa, por um lado, para que seja garantido o respeito do direito à vida familiar dos seus filhos refugiados e, por outro, para que os seus filhos possam continuar a gozar de todos os direitos associados ao seu estatuto de refugiado, a menos que esse pai esteja abrangido pelas cláusulas de exclusão dos capítulos III e V dessa diretiva ou constitua uma ameaça para a segurança pública ou a ordem pública do Estado‑Membro de acolhimento.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Jastram, K. e Newland, K., «L’unité de la famille et la protection des réfugiés » em Feller, E., Türk, V.e Nicholson, F. (dir.), La protection des réfugiés en droit international, Larcier, 2008, p. 623.

( 3 ) Quanto à necessidade de conciliar a proteção dos direitos fundamentais e os imperativos da política migratória, v., por exemplo, TEDH, 12 de outubro de 2006, Mubilanzila Mayeka e Kaniki Mitunga c. Bélgica (CE:ECHR:2006:1012JUD001317803, § 81).

( 4 ) JO 2011, L 337, p. 9.

( 5 ) Moniteur belge de 31 de dezembro de 1980, p. 14584.

( 6 ) Embora resulte do pedido de decisão prejudicial que os dois filhos de XXX têm o estatuto de refugiado, XXX refere, nas observações escritas que apresentou no Tribunal de Justiça, que só a sua filha beneficia deste estatuto. Esta imprecisão factual não tem consequências para a análise do presente processo, uma vez que, em todo o caso, é pacífico que pelo menos uma das crianças de XXX tem o estatuto de refugiado. Resulta dos autos que a filha de XXX foi reconhecida refugiada na Bélgica devido aos riscos de excisão a que estaria exposta se fosse obrigada a viver na Guiné. Sempre que necessário para efeitos de análise, será dada especial atenção à situação desta criança.

( 7 ) A mãe é de nacionalidade guineense. Foi reconhecida como refugiada na Bélgica em 2017.

( 8 ) V. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 36). V., igualmente, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Ahmedbekova (C‑652/16, EU:C:2018:801, n.os 48 e 68).

( 9 ) V. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 62).

( 10 ) V. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 27 e jurisprudência referida).

( 11 ) V. Acórdão de 1 de agosto de 2022, Bundesrepublik Deutschland (Reagrupamento familiar com um menor refugiado) (C‑273/20 e C‑355/20, EU:C:2022:617, n.o 34).

( 12 ) O sublinhado é meu.

( 13 ) O sublinhado é meu.

( 14 ) Assim, o considerando 12 da Diretiva 2011/95 menciona, como objetivo principal prosseguido por esta Diretiva, a garantia de que todos os Estados‑Membros apliquem critérios comuns de identificação das pessoas que tenham efetivamente necessidade de proteção internacional, bem como de assegurar um nível mínimo de benefícios à disposição dessas pessoas em todos os Estados‑Membros. V., também, o artigo 1.o da Diretiva 2011/95. V., por último, Acórdãos de 19 de março de 2019, Ibrahim e o. (C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, EU:C:2019:219, n.o 97), e de 9 de setembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Membro da família) (C‑768/19, EU:C:2021:709, n.o 30 e jurisprudência referida).

( 15 ) Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 60). O sublinhado é meu.

( 16 ) No mesmo sentido, v. Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:384, n.o 39) e Conclusões do advogado‑geral P. Pikamäe no processo Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Unidade familiar).

( 17 ) A Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar (JO 2003, L 251, p. 12), aplica‑se a priori a uma família em sentido lato [v. artigo 2.o, alínea d), desta Diretiva], embora o artigo 9.o, n.o 2, da referida Diretiva confira aos Estados‑Membros a possibilidade de reduzirem o benefício das disposições do capítulo desta mesma Diretiva, especificamente dedicado ao reagrupamento familiar dos refugiados, aos laços familiares anteriores à entrada dos refugiados no território do Estado‑Membro de acolhimento.

( 18 ) A título de exemplo, v. Acórdão de 26 de março de 2019, SM (Menor em regime de kafala argelina) (C‑129/18, EU:C:2019:248, n.os 53 a 55).

( 19 ) JO 2004, L 304, p. 12.

( 20 ) V. artigo 2.o, alínea h), da Diretiva 2004/83.

( 21 ) V., para comparação, o artigo 2.o, alínea h), da Diretiva 2004/83 e o artigo 2.o, alínea j), da Diretiva 2011/95.

( 22 ) Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Unidade familiar ‑ Proteção já concedida). (C 483/20, EU:C:2022:103, n.o 39). V., igualmente, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Membro da família) (C‑768/19, EU:C:2021:709, n.o 43).

( 23 ) Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 37). O sublinhado é meu. O Tribunal de Justiça parece nunca ter questionado a condição de que a família tenha sido constituída no país de origem: v., por exemplo, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Membro da família) (C‑768/19, EU:C:2021:709, n.os 32, 43 e 54).

( 24 ) V. Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 17 e jurisprudência referida).

( 25 ) V. Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 18).

( 26 ) Ver Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 19 e jurisprudência referida).

( 27 ) Tendo em conta a resposta que propõe dar às duas primeiras questões prejudiciais, o Governo belga considera que esta terceira questão não necessita de resposta.

( 28 ) Embora o Tribunal de Justiça não tenha sido interrogado sobre a questão de saber se deve ser reconhecido efeito direto ao artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, observo que já sublinhou o caráter geral desta disposição: v. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 43).

( 29 ) Resulta, assim, do Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428, n.o 17) que «a faculdade de o Estado escolher entre uma multiplicidade de meios possíveis com vista a atingir o resultado descrito por uma diretiva não exclui a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos cujo conteúdo pode ser determinado com precisão suficiente com base apenas nas disposições da diretiva» [v., igualmente, Acórdãos de 2 de agosto de 1993, Marshall (C‑271/91, EU:C:1993:335, n.o 37) e de 12 de fevereiro de 2009, Cobelfret (C‑138/07, EU:C:2009:82, n.o 61)]

( 30 ) V. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.os 48 e segs.).

( 31 ) V., por exemplo, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Gavieiro Gavieiro e Iglesias Torres (C‑444/09 e C‑456/09, EU:C:2010:819, n.os 80 e segs.). Mesmo a possibilidade de derrogar a obrigação prevista na disposição dotada de efeito direto não é necessariamente suscetível de pôr em causa o referido efeito: v., por exemplo, a propósito do artigo 31.o, n.o 2, da Carta, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Bauer e Willmeroth (C‑569/16 e C‑570/16, EU:C:2018:871, n.os 84 e 85).

( 32 ) Nos termos do qual, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 não é aplicável quando o membro da família fique ou ficasse excluído da proteção internacional nos termos dos capítulos III e V dessa diretiva.

( 33 ) Por outras palavras, para que a disposição não transposta de uma diretiva possa ser invocada por um particular perante o juiz nacional, a situação desse particular deve necessariamente ser abrangida pelo âmbito de aplicação da disposição em causa. É uma condição prévia para que a questão do efeito direto desta última se possa colocar, que é bem distinta dos requisitos que a disposição em causa deve preencher para poder ter efeito direto.

( 34 ) V., por analogia, Acórdão de 15 de abril de 2008, Impact (C‑268/06, EU:C:2008:223, n.o 64).

( 35 ) Segundo a expressão usada pelo advogado‑geral W. Van Gerven nas suas Conclusões no processo Banks (C‑128/92, não publicadas, EU:C:1993:860, n.o 27), que visa, por outras palavras, a justiciabilidade da norma [v., também, neste sentido, Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Link Logistik N (C‑384/17, EU:C:2018:494, n.os 69 e 76)].

( 36 ) Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Banks (C‑128/92, não publicadas, EU:C:1993:860, n.o 27).

( 37 ) V. p. 12 e p. 13 desse pedido.

( 38 ) Todavia, na medida do necessário, e tratando‑se de um litígio que opõe um particular a um Estado‑Membro, remeto, a título de exemplo, de entre jurisprudência abundante, para o Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.os 35 a 37 e 39).

( 39 ) V. Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Unidade familiar ‑ proteção já concedida) (C‑483/20, EU:C:2022:103, n.o 41).

( 40 ) Entre jurisprudência abundante, v. Acórdão de 30 de junho de 2016, Toma e Biroul Executorului Judecătoresc Horațiu‑Vasile Cruduleci (C‑205/15, EU:C:2016:499, n.o 30 e jurisprudência referida).

( 41 ) V. n.o 21 e seguintes das presentes conclusões.

( 42 ) A invocação do artigo 18.o da Carta não é suscetível de alterar esta conclusão, uma vez que não decorre deste artigo uma exigência segundo a qual o estatuto de refugiado deve ser concedido aos membros da família de um refugiado que não preencham as condições de concessão desse estatuto. O mesmo se aplica aos artigos 7.o e 24.o da Carta, entendendo‑se que o artigo 23.o da Diretiva 2011/95 estabeleceu os direitos que esses artigos 7.o e 24.o consagram no âmbito de aplicação da Diretiva 2011/95. Por si só, os artigos 7.o e 24.o da Carta também não exigem a concessão do estatuto de refugiado aos membros da família de um refugiado que não preencham as condições para lhes ser concedido esse estatuto, uma vez que o direito ao respeito da vida familiar do refugiado e os direitos da criança podem ser garantidos por outros meios.

( 43 ) V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Belgische Staat (Refugiada menor casada) (C‑230/21, EU:C:2022:887, n.o 41) e de 18 de abril de 2023, Afrin (C‑1/23 PPU, EU:C:2023:296, n.o 43).

( 44 ) V., para comparação, por um lado, considerando 6 e artigo 2.o, alínea d), e, por outro, artigo 9.o, n.o 2, da Diretiva 2003/86.

( 45 ) V. artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2003/86

( 46 ) V. artigo 10.o, n.o 3, da Diretiva 2003/86.

( 47 ) V. Acórdão de 1 de agosto de 2022, Bundesrepublik Deutschland (Reagrupamento familiar com menor refugiado) (C‑273/20 e C‑355/20, EU:C:2022:617, n.o 32 e jurisprudência referida).

( 48 ) V. artigos 5.o, n.o 3, e artigo 11.o da Diretiva 2011/95.

( 49 ) A mutilação genital feminina pode ser considerada «uma forma específica de perseguição de crianças, uma vez que estas práticas afetam de forma desproporcionada as raparigas jovens»: v. ponto 9 da nota de orientação sobre os pedidos de asilo relativos à mutilação genital feminina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados de 2009 (disponível no seguinte endereço: https://www.unhcr.org/fr/publications/legal/4fd737379/note‑dorientation‑demandes‑dasile‑relatives‑mutilations‑genitales‑feminines.html).

( 50 ) O Acórdão do Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, proferido em 17 de abril de 2020, foi anexado às observações do recorrente no processo principal. Esse Conselho reproduziu parcialmente os elementos da decisão do Comissário‑Geral para os Refugiados e Apátridas, tomada em 2 de outubro de 2019, e indeferiu o novo pedido de proteção internacional de XXX. Resulta desta decisão que a mãe das crianças estava hospitalizada e que a filha do casal tinha sido colocada numa creche.

( 51 ) Recorde‑se que uma decisão de expulsão constitui uma ingerência no exercício do direito ao respeito pela vida familiar: v., noutro contexto, Acórdão de 11 de julho de 2002, Carpenter (C‑60/00, EU:C:2002:434, n.o 42).

( 52 ) Acórdão de 16 de fevereiro 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 59). V., igualmente, n.o 26 das presentes conclusões.

( 53 ) V. Acórdão de 5 de maio de 2022, Subdelegación del Gobierno en Toledo (Residência de um membro da família ‑ Recursos insuficientes) (C‑451/19 e C‑532/19, EU:C:2022:354, n.o 56).

( 54 ) V. nota 14 das presentes conclusões

( 55 ) V. Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (revogação do estatuto de refugiado) (C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.os 79 e 80).

( 56 ) V. Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (revogação do estatuto de refugiado) (C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 91).

( 57 ) Na minha opinião, este conceito é mais amplo do que o de reagrupamento familiar.

( 58 ) V. Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.os 42 e 43). V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:384, n.o 88).

( 59 ) Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 44/25, de 20 de novembro de 1989, que entrou em vigor em 2 de setembro de 1990.

( 60 ) Acórdão de 27 de junho de 2006, Parlamento/Conselho (C‑540/03, EU:C:2006:429, n.o 57).

( 61 ) V., neste sentido, Acórdão de 12 de abril de 2018, A e S (C‑550/16, EU:C:2018:248, n.o 58).

( 62 ) O considerando 16 da Diretiva 2011/95 recorda que esta última respeita os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta e visa promover a aplicação, nomeadamente, dos artigos 7.o, 18.o e 24.o da Carta, que fazem parte das disposições expressamente mencionadas nesse considerando, testemunhando assim o empenho especial do legislador da União a seu respeito.

( 63 ) V., para um exemplo recente, Acórdão de 18 de abril de 2023, Afrin (C‑1/23 PPU, EU:C:2023:296, n.o 45).

( 64 ) Acórdão de 9 de setembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Membro da família) (C‑768/19, EU:C:2021:709, n.o 39 e jurisprudência referida).

( 65 ) V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Belgische Staat (Refugiada menor casada) (C‑230/21, EU:C:2022:887, n.o 48).

( 66 ) V. Acórdão de 9 de setembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Membro da família) (C‑768/19, EU:C:2021:709, n.os 38 e 44).

( 67 ) V. Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 59 e jurisprudência referida), e de 19 de março de 2019, Ibrahim e o. (C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, EU:C:2019:219, n.o 87).

( 68 ) V. também as minhas Conclusões no processo Ligue des droits humains (C‑817/19, EU:C:2022:65, n.os 64 e segs.).

( 69 ) E, se for caso disso, o seu filho.

( 70 ) E, se for caso disso, ao direito fundamental ao respeito pela vida familiar do seu filho.

( 71 ) Na pior das hipóteses, será obrigado a abandonar o território belga acompanhado dos seus filhos, o que é a hipótese referida no n.o 77 das presentes conclusões.

( 72 ) V. documento temático do Comissário para os Direitos Humanos, «Realizar o direito ao reagrupamento familiar dos refugiados na Europa», Conselho da Europa, junho de 2017, ponto 1.2.2.

( 73 ) Ibidem.

( 74 ) TEDH, Acórdão de 6 de novembro de 2012 (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109).

( 75 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 43).

( 76 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 44).

( 77 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 45).

( 78 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c./Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 45).

( 79 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 48).

( 80 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 49).

( 81 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 50).

( 82 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 51).

( 83 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 55).

( 84 ) TEDH, 6 de novembro de 2012, Hode e Abdi c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:1106JUD002234109, § 56).

( 85 ) Quanto ao princípio da igualdade enunciado no artigo 20.o da Carta, v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Estado Belga (Direito de residência em caso de violência doméstica) (C‑930/19, EU:C:2021:657, n.o 57 e jurisprudência referida).

( 86 ) Este raciocínio é igualmente válido para o filho de XXX, na sua qualidade de refugiado.

( 87 ) Na hipótese de a partida do pai obrigar a criança a acompanhá‑lo no seu país de origem, essa criança ficaria exposta muito concretamente a um risco sério de tratamentos desumanos e degradantes, proibidos de forma absoluta pelo artigo 4.o da Carta e contra os quais era suposto o estatuto de refugiado protegê‑la.

( 88 ) V., por analogia, Acórdão de 30 de junho de 2022, Valstybės sienos apsaugos tarnyba e o. (C‑72/22 PPU, EU:C:2022:505, n.o 63).

( 89 ) Acórdão de 9 de novembro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Preservação da unidade familiar) (C‑91/20, EU:C:2021:898, n.o 60).

( 90 ) Segundo o Tribunal de Justiça, «a existência de uma vida familiar efetiva pressupõe a demonstração da realidade do laço familiar ou a vontade de estabelecer ou manter esse laço» [Acórdão de 1 de agosto de 2022, Bundesrepublik Deutschland (Reagrupamento familiar com um menor refugiado) (C‑273/20 e C‑355/20, EU:C:2022:617, n.o 65)].