CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

Apresentadas em 20 de abril de 2023 ( 1 )

Processo C‑219/22

Processo penal

contra

QS,

sendo interveniente:

Rayonna prokuratura Burgas, TO Nesebar

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Rayonen sad — Nesebar (Tribunal de Primeira Instância de Nesebar, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Decisão‑Quadro 2008/675/JAI — Tomada em consideração de decisões de condenação nos Estados‑Membros — Alteração das regras de execução de uma condenação anterior — Condenação sujeita a suspensão da execução — Nova infração cometida durante o período de suspensão — Revogação da suspensão e cumprimento efetivo da pena privativa da liberdade»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial do Rayonen sad — Nesebar (Tribunal de Primeira Instância de Nesebar, Bulgária), ao abrigo do artigo 267.o do TFUE, diz respeito à interpretação do artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal ( 2 ). Este pedido foi apresentado no âmbito de requerimento submetido pelo Procurador da Rayonna prokuratura Nesebar (Procuradoria de Nesebar, Bulgária) no órgão jurisdicional de reenvio, para efeitos de execução efetiva, por este mesmo órgão jurisdicional, da condenação proferida anteriormente contra um nacional romeno, QS, por um órgão jurisdicional romeno.

2.

O presente processo suscita questões jurídicas importantes relacionadas com os limites que o legislador da União impõe ao princípio do reconhecimento mútuo, no qual se baseia a Decisão‑Quadro 2008/675 e que permite ao juiz de um Estado‑Membro, entre outros, tomar em consideração as decisões penais definitivas proferidas noutros Estados‑Membros, a fim de determinar a natureza das penas e as regras de execução que possam ser aplicadas. Mais concretamente, o Tribunal de Justiça será chamado a pronunciar‑se sobre o papel a atribuir ao princípio tradicional da «territorialidade» do direito penal, enquanto expressão da soberania do Estado, no espaço de liberdade, segurança e justiça da União. Embora a Decisão‑Quadro 2008/675 preveja disposições que visam resolver os conflitos entre estes dois princípios, a sua aplicação não deixa de se confrontar com obstáculos referentes a dúvidas interpretativas. Uma tomada de posição do Tribunal de Justiça sobre estas questões particularmente sensíveis afigura‑se indispensável, uma vez que delas depende a boa cooperação entre as autoridades penais.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Decisão‑Quadro 2008/675

3.

O artigo 1.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Objeto», dispõe o seguinte:

«A presente decisão‑quadro tem por objetivo definir as condições em que, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro contra determinada pessoa, são tidas em consideração condenações anteriores contra ela proferidas noutro Estado‑Membro por factos diferentes.»

4.

O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por “condenação” qualquer decisão definitiva de um tribunal penal que declare a culpabilidade de uma pessoa por uma infração penal.»

5.

O artigo 3.o da mesma decisão‑quadro, sob a epígrafe «Tomada em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal, de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro», tem a seguinte redação:

«1.   Cada Estado‑Membro assegura que, por ocasião de um procedimento penal contra determinada pessoa, as condenações anteriores contra ela proferidas por factos diferentes noutros Estados‑Membros, sobre as quais tenha sido obtida informação ao abrigo dos instrumentos aplicáveis em matéria de auxílio judiciário mútuo ou por intercâmbio de informação extraída dos registos criminais, sejam tidas em consideração na medida em que são condenações nacionais anteriores e lhes sejam atribuídos efeitos jurídicos equivalentes aos destas últimas, de acordo com o direito nacional.

2.   O n.o 1 é aplicável na fase que antecede o processo penal, durante o processo penal propriamente dito ou na fase de execução da condenação, nomeadamente no que diz respeito às regras processuais aplicáveis, inclusive as que dizem respeito à prisão preventiva, à qualificação da infração, ao tipo e ao nível da pena aplicada, ou ainda às normas que regem a execução da decisão.

3.   A tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento.

4.   Em conformidade com o n.o 3, o n.o 1 não se aplica na medida em que, se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional proferida no Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento, a tomada em consideração dessa condenação teria tido por efeito, de acordo com o direito nacional desse Estado‑Membro, interferir com a condenação anterior ou com qualquer outra decisão relativa à sua execução, ou levar à sua revogação ou ao seu reexame.

5.   Se a infração que levou à instauração do novo procedimento tiver sido cometida antes de ser proferida ou integralmente executada a condenação anterior, o disposto nos n.os 1 e 2 não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais ao imporem sentenças, caso a aplicação dessas normas a condenações estrangeiras limite o juiz na imposição da pena no âmbito do novo procedimento.

Os Estados‑Membros asseguram, contudo, a possibilidade de, nesses casos, os seus tribunais tomarem em consideração as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros.»

2. Decisão‑Quadro 2008/947/JAI

6.

O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas ( 3 ), sob a epígrafe «Objetivos e âmbito de aplicação», prevê o seguinte:

«1.   A presente decisão‑quadro visa facilitar a reinserção social da pessoa condenada, melhorar a proteção da vítima e do público em geral, bem como promover a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado de condenação. […]

[…]

3.   A presente decisão‑quadro não se aplica:

a)

À execução de sentenças em matéria penal que apliquem penas de prisão ou medidas privativas de liberdade, abrangidas pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI [ ( 4 )];

[…]»

7.

O artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2008/947, sob a epígrafe «Critérios relativos à transmissão da sentença e, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional», dispõe:

«1.   A autoridade competente do Estado de emissão pode transmitir a sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, à autoridade competente do Estado‑Membro em cujo território a pessoa condenada tenha a sua residência legal e habitual, caso a pessoa condenada tenha regressado ou pretenda regressar a esse Estado.

2.   A autoridade competente do Estado de emissão pode, a pedido da pessoa condenada, transmitir a sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, à autoridade competente de um Estado‑Membro que não seja aquele em cujo território a pessoa condenada tenha a sua residência legal e habitual, se esta última autoridade consentir nessa transmissão.»

8.

O artigo 14.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Competência para tomar todas as decisões subsequentes e lei aplicável», tem a seguinte redação no seu n.o 1:

«A autoridade competente do Estado de execução é competente para tomar todas as decisões subsequentes relacionadas com uma pena suspensa, liberdade condicional, condenação condicional ou sanção alternativa, designadamente em caso de incumprimento de uma medida de vigilância ou de uma sanção alternativa, ou se a pessoa condenada cometer uma nova infração penal.

Essas decisões subsequentes incluem, nomeadamente:

[…]

b)

A revogação da suspensão da execução da sentença ou a revogação da liberdade condicional; […]»

B.   Direito búlgaro

9.

O artigo 8.o do Nakazatelen kodeks (Código Penal) dispõe, no seu n.o 2:

«Uma condenação proferida noutro Estado‑Membro da União Europeia, e transitada em julgado, por uma conduta que constitua uma infração previsto no Código Penal búlgaro será tomada em consideração em qualquer procedimento criminal instaurado na República da Bulgária contra a mesma pessoa.»

10.

O artigo 68.o, n.o 1, deste código tem a seguinte redação:

«Se, antes do termo do período de suspensão fixado pelo tribunal, a pessoa condenada cometer outra infração dolosa que seja objeto de procedimento penal promovido pelo Ministério Público e pela qual lhe seja aplicada uma pena privativa de liberdade, mesmo que após o período de suspensão, deve igualmente cumprir a pena suspensa»

11.

Nos termos do artigo 343.o b, n.o 1, do referido código:

«A condução de um veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 por mil, devidamente estabelecida, é punida com pena privativa de liberdade de um a três anos e multa de duzentos a mil [levs búlgaros (BGN)]»

III. Matéria de facto, tramitação no processo principal e questão prejudicial

12.

QS é um nacional romeno residente na Roménia.

13.

Por Sentença de 3 de abril de 2019, confirmada por um Acórdão da Curtea de Appel Cluji (Tribunal de Recurso de Cluj, Roménia) de 24 de junho de 2019 e transitada em julgado, QS foi condenado a uma pena privativa de liberdade de um ano e seis meses, suspensa por dois anos, a saber, até 24 de junho de 2021 (a seguir «primeira condenação»), por uma infração consistindo na condução em estado de embriaguez (a seguir «primeira infração»).

14.

Em 1 de setembro de 2020, no decurso do período de suspensão, QS cometeu, em território búlgaro, uma infração consistindo na condução de um veículo a motor sob a influência de álcool, prevista no artigo 343.o b, parágrafo 1.o, do Código Penal búlgaro (adiante «segunda infração»).

15.

Por despacho de condenação do Rayonen sad — Nesebar (Tribunal de Primeira Instância de Nesebar) transitado em julgado em 9 de março de 2022, QS foi condenado a uma pena privativa da liberdade de três meses, a uma multa no montante de 150 BGN (cerca de 77 euros), bem como de uma suspensão da carta de condução durante um período de 12 meses (a seguir «segunda condenação»).

16.

Em 23 de março de 2022, foi submetida a este órgão jurisdicional, que é o órgão jurisdicional de reenvio, uma proposta apresentada pelo procurador da Rayonna prokuratura Burgas (Procuradoria de Burgas, Bulgária), ao abrigo do artigo 68.o, n.o 1, do Código Penal búlgaro, destinada à execução da primeira condenação, com o fundamento de que a segunda infração tinha sido cometida durante o período de suspensão previsto na dita condenação.

17.

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à interpretação do artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2008/675.

18.

A este respeito, este órgão jurisdicional indica que o artigo 8.o, n.o 2, do Código Penal búlgaro transpôs os princípios estabelecidos por esta decisão‑quadro, nomeadamente pelo seu artigo 3.o, n.o 1, ao prever que uma condenação transitada em julgado proferida noutro Estado‑Membro, por uma conduta que constitua uma infração de acordo com este mesmo código, é tomada em consideração em qualquer procedimento criminal instaurado contra a mesma pessoa na Bulgária.

19.

Ora, é esse o caso da primeira condenação, uma vez que QS foi definitivamente condenado numa pena privativa de liberdade de um ano e seis meses na Roménia e que, com base nas informações recolhidas através dos instrumentos de auxílio judiciário mútuo, está demonstrado que a conduta constitutiva da primeira infração equivale à que foi constitutiva da segunda infração.

20.

O órgão jurisdicional de reenvio constata, além disso, que todos os requisitos previstos no artigo 68.o, n.o 1, do Código Penal búlgaro para a execução coerciva desta condenação estão preenchidos no caso em apreço. Com efeito, antes do termo do período de suspensão a que se refere a dita condenação, QS cometeu outra infração dolosa que é objeto de procedimento penal promovido pelo Ministério Público e pela qual lhe foi aplicada uma pena privativa de liberdade.

21.

Assim, este órgão jurisdicional considera que se encontra obrigado a tomar em consideração a primeira condenação e a executá‑la, por força das disposições conjugadas do artigo 8.o, n.o 2, e do artigo 68.o, n.o 1, ambos do Código Penal búlgaro. Coloca‑se, todavia, a questão de saber se o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 se opõe a essa tomada em consideração.

22.

A este respeito, o referido órgão jurisdicional salienta que esta disposição, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, exige que não seja reexaminada uma decisão relativa à execução de uma condenação anterior. O órgão jurisdicional de reenvio considera, no entanto, que o presente processo se distingue do que deu origem ao Acórdão Beshkov ( 5 ), no qual o Tribunal de Justiça interpretou a referida disposição no sentido de a mesma proibir, aquando da aplicação de uma pena unitária, a alteração das regras de execução desta pena determinadas noutro Estado‑Membro.

23.

Com efeito, no presente processo, as modalidades de execução da primeira condenação não são reexaminadas ou alteradas discricionariamente pelo tribunal de reenvio; antes decorrem de uma norma imperativa, como seja o artigo 68.o, n.o 1, do Código Penal búlgaro, que obriga o órgão jurisdicional de reenvio a proceder à execução da pena suspensa quando — como no caso em apreço — estejam reunidos todos os requisitos previstos para esse efeito.

24.

Nestas circunstâncias, o Rayonen sad — Nesebar (Tribunal de Primeira Instância de Nesebar) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro [2008/675] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição legislativa nacional como [a que resulta d]o artigo 68.o, n.o 1, […] em conjugação com o artigo 8.o, n.o 2, do [Código Penal búlgaro], que prevê que o órgão jurisdicional nacional ao qual foi apresentado um pedido de execução da sanção penal aplicada no âmbito de uma condenação anterior por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro pode, para esse efeito, alterar as regras de execução da última sanção penal ao ordenar a sua execução efetiva?»

IV. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

25.

A Decisão de reenvio, datada de 25 de março de 2022, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 28 de março de 2022.

26.

QS e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas no prazo fixado pelo artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

27.

Na reunião geral de 24 de janeiro de 2023, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência de alegações.

V. Análise jurídica

A.   Considerações preliminares

1. Quanto à necessidade da tomada em consideração dos antecedentes criminais do autor de uma infração no espaço de liberdade, segurança e justiça da União Europeia

28.

Num espaço de liberdade, segurança e justiça assente na confiança mútua, a União tomou medidas para garantir a proteção dos cidadãos contra a criminalidade, assegurando simultaneamente que os seus direitos fundamentais fossem respeitados quando estivessem envolvidos num processo penal, quer na qualidade de vítima quer na qualidade de arguidos. A criação de semelhante espaço integrado de justiça exige que as condenações proferidas contra pessoas num Estado‑Membro sejam tomadas em conta noutro Estado‑Membro a fim de prevenir futuras infrações. De igual modo, se forem cometidas novas infrações pelo mesmo autor, sob reserva da garantia de um processo justo, este fator comportamental deverá ser tomado em consideração no âmbito de um novo procedimento criminal ( 6 ).

29.

Com efeito, no interesse de uma justiça penal eficaz na União, é necessário que todos os Estados‑Membros disponham de regras para ter em conta, em todas as fases do processo penal, o facto de o indivíduo ser um delinquente primário ou de já ter sido condenado noutro Estado‑Membro. O poder de apreciar os antecedentes criminais do autor de uma infração é essencial para o bom desenrolar de um novo procedimento penal; designadamente, para tomar decisões informadas em matéria de prisão preventiva ou de libertação sob caução e para dispor de todas as informações disponíveis no momento da condenação. A adoção da Decisão‑Quadro 2008/675 insere‑se neste contexto. Este instrumento exige que as autoridades judiciárias de um Estado‑Membro tomem em consideração as decisões penais definitivas proferidas por órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros, desde que estejam preenchidos determinados requisitos ( 7 ).

2. Quanto às exceções ao princípio do reconhecimento mútuo previstas na Decisão‑Quadro 2008/675

30.

A Decisão‑Quadro 2008/675 prevê algumas exceções a esta obrigação, que visam, no essencial, salvaguardar a soberania dos Estados‑Membros em matéria de justiça penal, proibindo que outros Estados‑Membros tomem determinadas decisões em seu lugar ( 8 ). Assim, estas exceções têm por efeito coordenar a competência dos diversos órgãos jurisdicionais, assegurando uma certa coerência na administração da justiça penal na União.

31.

Com o seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre o alcance de uma das referidas exceções, a saber, a exceção prevista no artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, segundo a qual «[a] tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros […] não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento». Segundo este órgão jurisdicional, a obrigação que lhe é imposta pelas disposições legislativas búlgaras, no âmbito de um novo processo penal contra pessoa que tenha sido objeto de uma condenação anterior noutro Estado‑Membro, de revogar a suspensão da execução de uma pena decretada em decisão condenatória anterior noutro Estado‑Membro e de ordenar a execução efetiva dessa pena no seu território, pode revelar‑se contrária ao previsto na disposição acima referida. A resposta do Tribunal de Justiça deve ter em conta os desafios com que o tribunal de reenvio se vê confrontado e deverá ser suficientemente precisa para poder decidir o litígio.

32.

Todavia, antes de examinar esta questão, é necessário abordar a de saber se a situação visada pela regulamentação búlgara, conforme descrita no número anterior, está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, ou seja, pela disposição que impõe aos Estados‑Membros a obrigação de aplicarem o princípio do reconhecimento mútuo. Por força desta disposição, o órgão jurisdicional de reenvio está, a priori, obrigado a tomar em consideração a primeira condenação de QS na Roménia. Tal consequência jurídica apenas seria de excluir se a exceção prevista no artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 fosse aplicável.

33.

A análise da questão prejudicial seguirá, em substância, o esquema descrito nos números anteriores. Por conseguinte, examinarei, num primeiro momento, se a Decisão‑Quadro 2008/675 é aplicável ao caso em apreço ( 9 ). Num segundo momento, explicarei qual o alcance da obrigação de tomada em consideração das condenações anteriores estabelecida por esta decisão‑quadro ( 10 ). Por último, num terceiro momento, aplicarei ao presente processo os princípios que fundamentam esta obrigação ( 11 ). Conforme explicarei em pormenor, a análise demonstra que a regulamentação búlgara em causa, na interpretação que lhe é dada pelo órgão jurisdicional de reenvio, não está em conformidade com o princípio da não interferência previsto no artigo 3.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro.

34.

Importa especificar que, quando é feita referência à «regulamentação búlgara» em causa, isso implica a interpretação resultante de uma leitura conjugada de duas disposições nacionais — a saber, do artigo 8.o, n.o 2, e do artigo 68.o, n.o 1, do Código Penal búlgaro — que, segundo as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, impõem ao mesmo a obrigação mencionada no n.o 31 das presentes conclusões. Embora, como indica a Comissão nas suas observações, tal interpretação não se afigure óbvia pela leitura das disposições em causa ( 12 ), não deixa de ser verdade que, no que respeita à interpretação das disposições da ordem jurídica nacional, o Tribunal de Justiça está, em princípio, obrigado a basear‑se nas qualificações resultantes da decisão de reenvio ( 13 ). Por conseguinte, a questão prejudicial deve ser examinada com base na interpretação do direito búlgaro, conforme sustentada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

B.   Quanto à aplicabilidade da Decisão‑Quadro 2008/675

35.

Antes de mais, importa salientar que, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, esta tem por objeto «definir as condições em que, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro contra determinada pessoa, são tidas em consideração condenações anteriores contra ela proferidas noutro Estado‑Membro por factos diferentes» ( 14 ). Conforme resulta do considerando 2 desta decisão‑quadro, a mesma visa permitir a apreciação dos antecedentes criminais do delinquente.

36.

Daí resulta que a Decisão‑Quadro 2008/675 se aplica às situações em que uma pessoa anteriormente condenada noutro Estado‑Membro é objeto de um «novo procedimento penal», nos termos do título desta Decisão‑Quadro e do seu artigo 3.o Conforme decorre do artigo 3.o, n.o 2, e do considerando 7 da referida decisão‑quadro, o conceito de «novo procedimento penal» deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo a fase que antecede o processo penal, o processo penal em si, e a fase de execução da pena.

37.

No presente caso, parece‑me que, uma vez que o processo instaurado na Bulgária contra QS visa o exercício da ação penal quanto à infração de condução em estado de embriaguez cometida nesse país em 1 de setembro de 2020, o mesmo deve ser considerado um «novo procedimento penal» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675. Por conseguinte, as autoridades judiciárias búlgaras são, em princípio, obrigadas a ter em consideração a condenação anterior proferida na Roménia, em conformidade com o princípio da equivalência enunciado no artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675.

38.

A tomada em consideração da condenação anterior, que foi igualmente proferida por condução em estado de embriaguez, pode ter implicações tanto no âmbito do processo penal em si, nomeadamente para determinar o tipo e o nível da pena aplicada em virtude da nova infração penal, como na fase de execução da pena, para determinar as regras da sua execução. Com efeito, conforme referi nas presentes conclusões ( 15 ), o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se precisamente sobre a possibilidade de ordenar a execução efetiva, na Bulgária, da decisão condenatória proferida na Roménia. A questão submetida deve ser entendida neste sentido.

39.

Neste contexto, há que recordar a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a Decisão‑Quadro 2008/675 aplica‑se «não apenas aos procedimentos relacionados com a determinação e estabelecimento da eventual culpabilidade do arguido» ( 16 ), como também a «um procedimento nacional que tem por objeto a aplicação, para efeitos de execução, de uma pena privativa da liberdade unitária que tome em consideração a pena aplicada a uma pessoa pelo juiz nacional, bem como a pena aplicada no quadro de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro contra a mesma pessoa por factos diferentes» ( 17 ). Nestas circunstâncias, trata‑se de um procedimento nacional relativo à execução da pena, no âmbito do qual a pena aplicada por uma decisão condenatória proferida anteriormente noutro Estado‑Membro deve ser tomada em consideração.

40.

Na situação descrita na decisão de reenvio, o procedimento nacional (na Bulgária) diz respeito à execução de uma condenação sujeita a suspensão, proferida noutro Estado‑Membro (na Roménia). O procedimento nacional foi, todavia, apenas instaurado em razão da existência de uma condenação transitada em julgado em virtude de uma nova infração penal cometida na Bulgária no decurso do período probatório. Em conformidade com a regulamentação búlgara em causa, à qual se refere a decisão de reenvio, o órgão jurisdicional búlgaro chamado a aprovar o acordo entre o arguido e o procurador do Ministério Público relativo à infração penal cometida deve igualmente pronunciar‑se sobre a execução da pena suspensa aplicada anteriormente.

41.

Nestas circunstâncias, parece‑me que o procedimento instaurado num Estado‑Membro com vista a revogar a suspensão da execução de uma pena aplicada em sede de decisão condenatória anterior proferida noutro Estado‑Membro, pelo facto de a pessoa em causa ter sido condenada por nova infração penal cometida durante o período probatório previsto por essa condenação anterior, encontra‑se abrangido pelo conceito de «novo procedimento penal» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675. Por conseguinte, esta decisão‑quadro é, em princípio, aplicável ao caso em apreço.

C.   Quanto ao alcance da obrigação de tomada em consideração das condenações anteriores estabelecida pela Decisão‑Quadro 2008/675

42.

Em seguida, há que examinar o alcance da obrigação de tomada em consideração das condenações anteriores estabelecida pela Decisão‑Quadro 2008/675 e abordar a questão de saber se existem exceções suscetíveis de se aplicar a circunstâncias como as do caso em apreço.

43.

A este respeito, importa, primeiro, mencionar o considerando 2 da Decisão‑Quadro 2008/675, do qual resulta que esta visa aplicar o princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais e prevê que «o juiz de um Estado‑Membro deve estar em condições de tomar em consideração as decisões penais transitadas em julgado proferidas nos outros Estados‑Membros para apreciar os antecedentes criminais do delinquente, para ter em conta a reincidência e para determinar a natureza das penas e as regras de execução suscetíveis de serem aplicadas». Em conformidade com o considerando 3, esta decisão‑quadro «destina‑se a instituir a obrigação mínima de os Estados‑Membros tomarem em consideração condenações proferidas noutros Estados‑Membros» ( 18 ) com base no princípio do reconhecimento mútuo. Importa salientar o facto de o Tribunal de Justiça ter entendido esta obrigação no sentido de que as condenações proferidas anteriormente «[devem] ser tomadas em consideração tal como foram proferidas» ( 19 ).

44.

Segundo, é necessário evocar o princípio da equivalência, consagrado no artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675 e ao qual se referem os seus considerandos 5 e 6. Por força deste princípio, «uma decisão de condenação proferida num Estado‑Membro deverá ter nos outros Estados‑Membros efeitos equivalentes aos das condenações proferidas de acordo com o direito nacional» ( 20 ). Este considerando 5 especifica que esta decisão‑quadro «não se destina a harmonizar os efeitos atribuídos pelas diferentes legislações nacionais à existência de condenações anteriores», mas exige apenas que as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros sejam tomadas em consideração como se tivessem sido proferidas pelas autoridades judiciárias do Estado‑Membro responsável por um novo procedimento penal.

45.

Terceiro, importa chamar a atenção para o princípio da não interferência consagrado no artigo 3, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, que me parece particularmente pertinente para efeitos do presente processo. Por força deste princípio, «[a] tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros […] não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento» ( 21 ). Este princípio é especificado no artigo 3.o, n.o 4, desta decisão‑quadro, do qual resulta que o princípio do reconhecimento mútuo «não se aplica na medida em que, se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional proferida no Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento, a tomada em consideração dessa condenação teria tido por efeito, de acordo com o direito nacional desse Estado‑Membro, interferir com a condenação anterior ou com qualquer outra decisão relativa à sua execução, ou levar à sua revogação ou ao seu reexame» ( 22 ).

46.

Estes números 3 e 4 são complementares e devem, portanto, ser lidos em conjunto para apreciar o alcance do princípio da não interferência. Daí resulta a necessidade de incluir o artigo 3.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2008/675 no exame da questão prejudicial. O facto de o órgão jurisdicional de reenvio não o ter mencionado expressamente não obsta a tal, uma vez que compete ao Tribunal de Justiça fornecer àquele todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões, quer não. O Tribunal de Justiça recordou várias vezes que uma questão prejudicial deve ser examinada à luz de todas as disposições dos Tratados e do direito derivado que possam ser pertinentes em relação ao problema que se coloca ( 23 ).

47.

Do mesmo modo, a importância do preâmbulo para a interpretação das disposições pertinentes da Decisão‑Quadro 2008/675 não pode ser subestimada. Com efeito, embora os considerandos dos atos da União não tenham valor jurídico só por si, sendo antes de natureza descritiva e não normativa, não é menos verdade que a jurisprudência do Tribunal de Justiça lhes atribui uma importância que não é de somenos para efeitos da exegese ( 24 ). Os considerandos constituem efetivamente elementos preciosos de interpretação destes atos, visto que permitem compreender melhor a intenção do legislador da União ( 25 ). É nesta perspetiva que o considerando 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser mencionado, tendo em conta que desenvolve o conceito de «interferência com uma sentença ou a sua execução» ( 26 ), utilizado no artigo 3.o, n.os 3 e 4, desta decisão‑quadro.

48.

Parece‑me ser de igual modo pertinente, para apreciar o alcance do princípio do reconhecimento mútuo neste domínio específico do direito da União, o considerando 6 da Decisão‑Quadro 2008/675, do qual resulta que esta decisão‑quadro «não se destina a executar num Estado‑Membro decisões judiciais tomadas noutros Estados‑Membros» ( 27 ). Esta clarificação é lógica do ponto de vista do princípio da não interferência subjacente à referida decisão‑quadro, uma vez que, de outro modo, cada Estado‑Membro seria livre de intervir como entendesse nas decisões de execução dos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro, o que seria também prejudicial à coerência das decisões judiciais num espaço integrado de justiça.

49.

As disposições acima mencionadas, lidas à luz dos considerandos que as especificam, mostram que o princípio da não interferência impõe certos limites ao princípio do reconhecimento mútuo, os quais são determinados pelo conceito de «interferência» já referido. O considerando 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 fornece alguns esclarecimentos a este respeito, dado que aí se especifica que a aplicação de uma pena global para várias infrações penais constitui uma«interferência» e, portanto, uma interferência proibida por esta decisão‑quadro, quando a primeira condenação ainda não tenha sido executada ou não tenha sido «transferida» para outro Estado‑Membro para efeitos da sua execução ( 28 ).

50.

No que respeita especificamente à possibilidade, prevista neste considerando 14, de «transferir» uma sentença para outro Estado‑Membro para efeitos da sua execução, importa sublinhar que se trata, em qualquer caso, de uma exceção ao princípio geral, aplicável por defeito, da territorialidade das leis penais. Esta apreciação corresponde à análise do advogado‑geral M. Bobek nas suas Conclusões no Processo C‑2/19, A. P. (Medidas de vigilância) ( 29 ). O princípio da não interferência, consagrado no artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Decisão‑Quadro 2008/675, garante o respeito do direito do Estado‑Membro de condenação de executar as decisões de condenação proferidas pelos seus órgãos jurisdicionais, no seu território e de acordo com as modalidades previstas no seu direito nacional.

51.

Concretamente, o princípio geral pode ser derrogado quando o Estado‑Membro que proferiu a condenação anterior tiver transmitido a sentença que impõe uma pena suspensa (e, sendo caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional) à autoridade competente do Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento penal para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância neste último Estado‑Membro, em conformidade com as disposições da Decisão‑Quadro 2008/947. Se este último Estado‑Membro reconhecer a decisão condenatória proferida no primeiro Estado‑Membro, pode assumir a responsabilidade por qualquer decisão posterior, em aplicação do artigo 14.o desta decisão‑quadro, e, nomeadamente, revogar a suspensão da execução da sentença no caso de a pessoa condenada cometer uma nova infração penal. Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947, o objetivo deste mecanismo é «facilitar a reinserção social da pessoa condenada, melhorar a proteção da vítima e do público em geral, bem como promover a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado de condenação».

52.

Não obstante esta possibilidade prevista pelo legislador da União, não se pode esquecer que a faculdade de a ela recorrer assenta, no fim de contas, numa decisão voluntária e soberana do Estado‑Membro que proferiu a condenação em causa. Por conseguinte, é evidente que a possibilidade de prever uma transferência da execução de uma condenação para outro Estado‑Membro mais não faz do que confirmar a regra por força da qual cada Estado‑Membro é competente para a execução das decisões de condenação proferidas pelos seus órgãos jurisdicionais no seu território, em conformidade com as modalidades previstas no seu direito nacional.

53.

No Acórdão Beshkov, o Tribunal de Justiça reconheceu a repartição de competências entre os Estados‑Membros na administração da justiça penal prevista na Decisão‑Quadro 2008/675, e estabeleceu que o artigo 3.o, n.o 3, da mesma «exclui […] qualquer reexame das referidas condenações [anteriores], que, por conseguinte, devem ser tomadas em consideração tal como foram proferidas» ( 30 ). Em seguida, o Tribunal de Justiça declarou que esta decisão‑quadro impede que um Estado‑Membro, ao ter em conta condenações anteriores, «altere […] as regras de execução» da pena aplicada noutro Estado‑Membro ( 31 ).

54.

Nos números anteriores das presentes conclusões, identifiquei as exceções à obrigação de tomar em consideração condenações anteriores que, na minha opinião, são suscetíveis de ser tidas em conta no presente processo. Importa salientar que as exceções em causa não têm por efeito subtrair do âmbito de aplicação da referida decisão‑quadro as situações visadas, antes prevendo derrogações ao princípio do reconhecimento mútuo quando estejam preenchidos determinados requisitos.

D.   Aplicação dos princípios em que se baseia a Decisão‑Quadro 2008/675 ao caso em apreço

55.

À luz das considerações anteriores, chego à conclusão de que a revogação da suspensão da execução de uma pena aplicada no âmbito da primeira condenação com o fim de ordenar a execução efetiva dessa pena no território búlgaro constitui uma alteração das regras de execução e, por conseguinte, uma «interferência» na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675. Com efeito, tal decisão tem por efeito interferir com a decisão relativa à execução de uma condenação anterior. Importa observar que tal revogação encontra‑se, além disso, abrangida pelo artigo 3.o, n.o 4, desta decisão‑quadro, uma vez que, se a primeira condenação tivesse sido proferida na Bulgária e não na Roménia, a sua tomada em consideração ao abrigo da regulamentação búlgara aplicável teria tido por efeito a imposição de uma alteração das suas regras de execução, uma vez que o órgão jurisdicional nacional teria ordenado a execução efetiva da pena inicialmente suspensa.

56.

Tal como recordei nas presentes conclusões ( 32 ), o Tribunal de Justiça considerou na sua jurisprudência que a alteração das regras de execução da decisão condenatória, nomeadamente através da revogação da suspensão da pena aplicada pela decisão condenatória anterior noutro Estado‑Membro e pela transformação da pena suspensa numa pena de prisão efetiva, constitui uma «interferência» na execução da condenação anterior. Os princípios decorrentes desta jurisprudência parecem‑me plenamente aplicáveis ao presente processo.

57.

A circunstância, exposta pelo juiz a quo na sua decisão de reenvio, de a revogação da suspensão da execução da pena dever ser ordenada com fundamento numa disposição imperativa que não confere nenhum poder de apreciação ao juiz nacional, e não em razão de um reexame da condenação anterior propriamente dito, parece‑me ser aqui irrelevante. Cabe recordar que, por força do artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, os destinatários das obrigações impostas por esta decisão‑quadro são os Estados‑Membros. Daí decorre, para os diversos poderes estatais, o dever de assegurar a observância dessas obrigações, em conformidade com as suas competências respetivas, como previstas na sua ordem constitucional interna. Esta responsabilidade incumbe tanto ao poder judicial como ao poder legislativo. Por esta razão, considero que pouco importa que o juiz nacional disponha de um poder de apreciação ao abrigo da lei ou que o legislador nacional o vincule a agir de determinada forma. Assim sendo, existe «interferência» na execução da primeira condenação.

58.

É importante salientar nesta fase da análise que o considerando 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 não se opõe a esta constatação, uma vez que não se verificou nenhuma das duas situações aí mencionadas, que excluem uma «interferência» proibida na aceção do artigo 3.o, n.os 3 e 4, desta decisão‑quadro ( 33 ), conforme adiante irei explicar.

59.

Primeiro, há que observar que a decisão de reenvio não contém nenhum elemento que permita deduzir que a primeira condenação já foi integralmente executada. Em conformidade com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, QS cometeu a infração objeto da segunda condenação «durante o período de suspensão» previsto na primeira condenação ( 34 ). Importa salientar que as circunstâncias do presente processo se distinguem das subjacentes ao Acórdão Beshkov, em sede do qual o Tribunal de Justiça concluiu que «o período de regime de prova [da primeira condenação] tinha terminado e, por conseguinte, [tinha colocado] definitivamente termo à parte da pena suspensa aplicada [à pessoa em causa]», pelo que, segundo o Tribunal de Justiça, «a totalidade desta pena foi integralmente executada» ( 35 ). Por estas razões, considero que, para efeitos do presente processo, há que partir da premissa de que a primeira condenação ainda não foi integralmente executada.

60.

Segundo, note‑se que nada na decisão de reenvio indica que as autoridades judiciárias romenas tenham autorizado a execução da primeira condenação na Bulgária. Pelo contrário, o facto de o órgão jurisdicional de reenvio se questionar precisamente sobre o alcance e a aplicabilidade ao caso em apreço do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, nomeadamente tendo em conta a obrigação pretensamente clara, não lhe deixando nenhuma margem de manobra, a que está vinculado pela regulamentação búlgara, a saber, de revogar a suspensão da execução de uma pena suspensa aplicada numa decisão condenatória anterior noutro Estado‑Membro e de ordenar a execução efetiva dessa pena no seu território, permite antes supor que as autoridades judiciárias búlgaras agiram por sua própria iniciativa, sem que qualquer transferência da execução da primeira condenação tenha sido acordada entre esses Estados‑Membros.

E.   Considerações referentes a uma eventual transferência da execução da condenação penal

61.

Aliás, duvido que tal acordo possa ter lugar nas circunstâncias do processo principal, uma vez que uma transferência de execução para a Bulgária iria contra o objetivo prosseguido pela Decisão‑Quadro 2008/947, o qual é, entre outros, facilitar «a reinserção social da pessoa condenada», bem como promover «a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado de condenação» ( 36 ). As autoridades do Estado‑Membro em que reside a pessoa condenada estão, regra geral, mais aptas para vigiar o respeito da obrigação legal de se abster de cometer uma nova infração penal durante o período de suspensão e para tirar as consequências da sua eventual violação ( 37 ). É por esta razão que o artigo 5.o, n.os 1 e 2, desta decisão‑quadro prevê que a transmissão da sentença tenha lugar quer por iniciativa das autoridades competentes do Estado de emissão, quando a pessoa condenada tenha regressado ou pretenda regressar ao Estado‑Membro onde tenha a sua residência legal e habitual, quer a pedido da pessoa condenada.

62.

Neste contexto, gostaria de recordar que a reinserção social e a reintegração da pessoa condenada na sociedade constituem um objetivo prosseguido igualmente por outros atos normativos da União ( 38 ), como é o caso da Decisão‑Quadro 2008/909. Conforme resulta do seu considerando 9, a execução da condenação no Estado de execução «deverá aumentar a possibilidade de reinserção social da pessoa condenada» ( 39 ). Além disso, resulta deste considerando que, para obter a certeza de que a execução da condenação pelo Estado de execução contribuirá para a realização do objetivo acima referido, a autoridade competente do Estado de emissão, ou seja, o Estado‑Membro em que a sentença em matéria penal é proferida, «deverá atender a elementos como, por exemplo, a ligação da pessoa ao Estado de execução e o facto de o considerar ou não como o local onde mantém laços familiares, linguísticos, culturais, sociais, económicos ou outros» ( 40 ). Ademais, recorde‑se que, nas suas Conclusões no Processo C‑582/15, van Vemde, o advogado‑geral Y. Bot interpretou o referido considerando 9 no sentido de que «todas as medidas relativas à execução e à adaptação das penas sejam individualizadas pelas autoridades judiciárias de forma a favorecer, além da prevenção da reincidência, a inserção ou a reinserção social da pessoa condenada, respeitando os interesses da sociedade e os direitos das vítimas» ( 41 ).

63.

Ora, no caso em apreço, a pessoa condenada é um nacional romeno residente na Roménia, pelo que as autoridades romenas competentes não tinham, à primeira vista, nenhuma razão para transmitir a primeira condenação às autoridades búlgaras para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância, nem essa pessoa tinha, provavelmente, nenhum interesse em pedir essa transferência. A posterior transmissão desta condenação às autoridades búlgaras para efeitos da sua execução efetiva, na sequência da prática de uma nova infração na Bulgária durante o período de suspensão, bem como a revogação da suspensão da execução que daí resultaria em conformidade com a legislação búlgara, não podem contribuir para a reinserção social da referida pessoa. Estas considerações determinam a minha convicção de que o objetivo da Decisão‑Quadro 2008/947 sairia frustrado se QS tivesse de cumprir a sua pena no estrangeiro.

64.

Dito isto, importa salientar que, embora existam certos obstáculos à execução da primeira condenação proferida na Roménia, as autoridades búlgaras competentes continuam a poder transmitir a segunda condenação às autoridades romenas competentes, em aplicação da Decisão‑Quadro 2008/909, para efeitos de execução desta segunda condenação na Roménia, sob reserva do consentimento de QS e do respeito pelos requisitos previstos nesta decisão‑quadro. Caberá, se for necessário, aos órgãos jurisdicionais romenos, apreciar os efeitos da segunda condenação sobre as regras de execução da primeira. No interesse da boa administração da justiça, parece‑me oportuno que o Tribunal de Justiça chame a atenção do órgão jurisdicional de reenvio para essa possibilidade oferecida pela Decisão‑Quadro 2008/909.

65.

Tendo em conta as considerações precedentes, há que concluir que o artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Decisão‑Quadro 2008/675 se opõe à aplicação de disposições nacionais que tenham por efeito impor a um órgão jurisdicional nacional de um Estado‑Membro, no âmbito de um novo procedimento penal instaurado contra uma pessoa anteriormente condenada noutro Estado‑Membro, que revogue a suspensão da execução de uma pena aplicada no âmbito de uma condenação anterior proferida no outro Estado‑Membro e que ordene a execução efetiva dessa pena no território do seu Estado‑Membro.

VI. Conclusão

66.

À luz de todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pelo Rayonen sad — Nesebar (Tribunal de Primeira Instância de Nesebar, Bulgária):

O artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe à aplicação de disposições nacionais que tenham por efeito impor a um órgão jurisdicional nacional de um Estado‑Membro, no âmbito de um novo procedimento penal instaurado contra uma pessoa anteriormente condenada noutro Estado‑Membro, que revogue a suspensão da execução de uma pena aplicada no âmbito de uma condenação anterior proferida no outro Estado‑Membro e que ordene a execução efetiva dessa pena no território do seu Estado‑Membro.


( 1 ) Língua original: francês

( 2 ) JO 2008, L 220, p. 32.

( 3 ) JO 2008, L 337, p. 102.

( 4 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27).

( 5 ) Acórdão de 21 de setembro de 2017, Beshkov (C‑171/16, a seguir «Acórdão Beshkov, EU:C:2017:710).

( 6 ) No Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 36), o Tribunal de Justiça evoca a criação de uma «cultura [judiciária]» no espaço europeu de justiça na medida em que as condenações anteriores proferidas num Estado‑Membro são, em princípio, tomadas em consideração.

( 7 ) No Acórdão de 12 de janeiro de 2023, MV (Cúmulo jurídico das penas) (C‑583/22 PPU, EU:C:2023:5, n.o 65), o Tribunal de Justiça declarou que a Decisão‑Quadro 2008/675 respeita as diversas soluções e procedimentos nacionais necessários para atingir este objetivo. Assim, «esta decisão‑quadro contribui para a constituição de um espaço de liberdade, segurança e justiça na União, no respeito dos diferentes sistemas e tradições jurídicas dos Estados‑Membros», em conformidade com o artigo 67.o, n.o 1, TFUE».

( 8 ) V., a este respeito, Muñoz de Morales Romero, M., «The taking into account of EU previous convictions in joint/accumulated punishment: the Spanish Case», European Criminal Law Review, 2018, vol. 8 (2), pp. 244 e segs.

( 9 ) V. n.o 35 e segs. das presentes conclusões.

( 10 ) V. n.o 42 e segs. das presentes conclusões.

( 11 ) V. n.o 55 e segs. das presentes conclusões.

( 12 ) A Decisão‑Quadro 2008/675 foi transposta para o direito búlgaro pelo artigo 8.o, n.o 2, do Código Penal. Ora, a redação desta disposição não impõe ao órgão jurisdicional búlgaro que ordene unilateralmente a execução de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro. Tal obrigação resulta antes da aplicação e da interpretação da referida disposição em conjugação com o artigo 68.o, n.o 1, deste código. Dito isto, convém notar que esta última disposição constitui apenas o reflexo de um princípio geral do direito penal dos Estados‑Membros em matéria de condenação, a saber, a revogação da suspensão da execução da condenação nos casos em que a pessoa condenada comete uma nova infração penal no decurso do período probatório.

( 13 ) Acórdãos de 7 de agosto de 2018, Banco Santander e Escobedo Cortés (C‑96/16 e C‑94/17, EU:C:2018:643, n.o 57), e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia) (C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 62).

( 14 ) O sublinhado é meu.

( 15 ) V. n.o 31 das presentes conclusões.

( 16 ) V. Acórdão Beshkov, n.o 28.

( 17 ) Acórdãos Beshkov, n.o 29, e de 15 de abril de 2021, AV (Sentença global) (C‑221/19, EU:C:2021:278, n.o 52). O sublinhado é meu.

( 18 ) O sublinhado é meu.

( 19 ) Acórdãos Beshkov, n.o 37, de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 39) e de 15 de abril de 2021, AV (Sentença global) (C‑221/19, EU:C:2021:278, n.o 53). O sublinhado é meu.

( 20 ) Considerando 5 da Decisão‑Quadro 2008/675. O sublinhado é meu.

( 21 ) O sublinhado é meu.

( 22 ) O sublinhado é meu.

( 23 ) Acórdão de 16 de junho de 2022, Obshtina Razlog (C‑376/21, EU:C:2022:472, n.o 51).

( 24 ) V. Acórdão de 15 de setembro de 2022, HN (Processo de um arguido afastado do território) (C‑420/20, EU:C:2022:679, n.os 35, 52 e 53).

( 25 ) V. Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no Processo Sofiyska rayonna prokuratura e o. (Processo de um arguido afastado do território) (C‑420/20, EU:C:2022:157, n.o 68).

( 26 ) O sublinhado é meu.

( 27 ) O sublinhado é meu.

( 28 ) V. Acórdão de 15 de abril de 2021, AV (Sentença global) (C‑221/19, EU:C:2021:278, n.o 55).

( 29 ) EU:C:2020:80, n.o 67.

( 30 ) Acórdão Beshkov, n.o 44. O sublinhado é meu.

( 31 ) Acórdão Beshkov, n.o 47. O sublinhado é meu.

( 32 ) V. n.o 53 das presentes conclusões.

( 33 ) V. n.o 49 das presentes conclusões.

( 34 ) V. n.o 14 das presentes conclusões.

( 35 ) Acórdão Beshkov, n.o 42.

( 36 ) V. n.o 51 das presentes conclusões. O sublinhado é meu.

( 37 ) V., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, A. P. (Medidas de vigilância) (C‑2/19, EU:C:2020:237, n.os 52 e 53).

( 38 ) Rosanò, A., «Beshkov or the long road to the principle of social rehabilitation of offenders», European Papers, vol. 3, 2018, n.o 1, p. 434. Segundo este autor, a reinserção social dos delinquentes faz parte das tradições constitucionais de certos Estados‑Membros e é mencionada em certos atos normativos da União, por vezes como um objetivo a prosseguir.

( 39 ) O sublinhado é meu.

( 40 ) O sublinhado é meu.

( 41 ) Conclusões do advogado‑geral Y. Bot nos Processos van Vemde (C‑582/15, EU:C:2016:766, n.o 48) e Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:319, n.os 107 e 108). O sublinhado é meu.