CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 6 de julho de 2023 ( 1 )

Processo C‑147/22

Központi Nyomozó Főügyészség

sendo intervenientes:

Terhelt5

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria)]

«Reenvio prejudicial — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Princípio ne bis in idem — Arquivamento do processo — Decisão de um Procurador — Apreciação do mérito — Investigação exaustiva — Exame da prova»

I. Introdução

1.

O princípio ne bis in idem — que, em suma, proíbe a duplicação de processos e de sanções de natureza penal contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos — está consagrado, nomeadamente, no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e no artigo 54.o da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (a seguir «CAAS») ( 2 ).

2.

Na sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça esclareceu que as decisões de arquivar processos, adotadas pelo Procurador durante a investigação podem igualmente desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem, mas unicamente se tiverem sido adotadas depois de uma decisão de mérito do processo na sequência de uma investigação exaustiva ( 3 ). No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em especial, ao Tribunal de Justiça que esclareça quais os critérios segundo os quais uma investigação deve ser considerada «exaustiva» para efeitos do princípio ne bis in idem.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

3.

O artigo 54.o da CAAS, que figura no capítulo 3 desta (epigrafado «Aplicação do princípio ne bis in idem»), prevê o seguinte:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

B.   Direito húngaro

4.

O artigo XXVIII, n.o 6, da Magyarország Alaptörvénye (Lei Fundamental da Hungria) prevê que, sem prejuízo das vias de recurso extraordinárias previstas na lei, ninguém pode ser perseguido criminalmente ou condenado por um crime do qual tenha sido absolvido ou pelo qual tenha sido condenado por uma decisão definitiva segundo a legislação da Hungria ou, no âmbito de um tratado internacional ou de um ato da União Europeia, segundo a legislação de outro Estado.

5.

Em conformidade com o § 4, n.o 3, da büntetőeljárásról szóló 2017. Évi XC. törvény (Lei XC de 2017 relativa ao Processo Penal; a seguir «Lei do Processo Penal»), não pode ser instaurado procedimento criminal e, se tiver sido instaurado, este deve ser arquivado, se os atos praticados pelo infrator já tiverem sido julgados por decisão definitiva, sem prejuízo dos processos relativos a vias de recurso extraordinárias e de determinados processos especiais. Por sua vez, o n.o 7 do mesmo parágrafo prevê que não pode ser instaurado procedimento criminal e, se tiver sido instaurado, deve ser arquivado se os atos praticados pelo infrator tiverem sido julgados por decisão definitiva num Estado‑Membro da União Europeia ou se, num Estado‑Membro, os atos em questão tiverem sido objeto de uma decisão de mérito que, segundo o direito desse Estado, impeça, a respeito dos mesmos atos, quer a instauração de um novo procedimento criminal quer a reabertura do procedimento criminal, oficiosamente ou através de recurso judicial ordinário.

C.   Direito austríaco

6.

O § 190 do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal; a seguir «StPO»), epigrafado «Encerramento do procedimento de inquérito», prevê:

«A Procuradoria deve pôr termo ao procedimento criminal e encerrar o procedimento de inquérito quando:

1.

a infração que deu origem à investigação não for punível por lei ou quando, por razões jurídicas, prosseguir o procedimento criminal contra o arguido for inadmissível, ou

2.

não existir nenhuma razão real para prosseguir o procedimento criminal contra o arguido.»

7.

O § 193 do StPO, epigrafado «Tramitação posterior», dispõe:

«1)   Depois de encerrado o procedimento, não pode ser levada a cabo nenhuma investigação contra o arguido; quando seja necessário, a Procuradoria ordena que este seja posto em liberdade. Contudo, se a decisão de prosseguir o procedimento exigir determinados atos de investigação ou de administração de provas, o Procurador pode, em tempo útil, ordenar a realização desses atos ou realizá‑los ele próprio.

2)   O Procurador pode ordenar o prosseguimento de uma investigação encerrada ao abrigo dos §§ 190 ou 191 enquanto o procedimento criminal relativo à infração não tiver prescrito e se:

1.

o arguido não tiver sido interrogado acerca dessa infração […] e nenhuma restrição a esse respeito lhe tiver sido imposta, ou

2.

surjam ou venham a ser conhecidos novos factos ou provas que, por si só ou em conjugação com outros resultados do processo, se afigurem justificar a condenação do arguido […]

[…]»

III. Matéria de facto, tramitação processual e questões submetidas a título prejudicial

8.

Em 22 de agosto de 2012, a Zentrale Staatsanwaltschaft zur Verfolgung von Wirtschaftsstrafsachen und Korruption (Procuradoria Central dos Encarregados da Perseguição de Crimes Financeiros e da Corrupção, Áustria; a seguir «WKStA») iniciou investigações criminais contra um nacional húngaro («Arguido 5») por suspeita de suborno, e contra dois coarguidos por suspeita de branqueamento de capitais, de desvio de fundos e de corrupção.

9.

A investigação dizia respeito a factos ocorridos entre 2005 e 2010, constitutivos de suspeitas de suborno a funcionários públicos pagos por intermédio de várias sociedades estabelecidas em diferentes Estados‑Membros, com o intuito de influenciar a decisão a tomar num processo de adjudicação de um contrato público para o fornecimento de novos comboios para duas linhas de metro em Budapeste, na Hungria. Tinha havido transferências, em termos globais, de vários milhões de euros a título de pagamento de serviços de consultoria que se suspeitava nunca terem sido prestados.

10.

Para ganhar esse concurso público, suspeitava‑se que o Arguido 5 — que, alegadamente, tinha conhecimento dos objetivos reais e do caráter fictício dos contratos de consultoria — se tinha comprometido a obter uma vantagem ilícita com o intuito de corromper a(s) pessoa(s) que estava(m) em condições de influenciar as entidades que podiam tomar uma decisão sobre esse contrato. Mais precisamente, entre 5 de abril de 2007 e 8 de fevereiro de 2010, o Arguido 5 efetuou, alegadamente, vários pagamentos através de uma sociedade, num montante total superior a 7000000 euros, a funcionários públicos autores da infração de suborno passivo e que continuavam a ser desconhecidos.

11.

As suspeitas a respeito do Arguido 5 baseavam‑se nos elementos de investigação fornecidos na sequência de um pedido de cooperação judiciária apresentado pelo Serious Fraud Office (Serviço de Fraude Grave), Reino Unido, bem como na apresentação de elementos sobre contas bancárias e na audição dos dois nacionais austríacos investigados.

12.

O Arguido 5 não foi ouvido na qualidade de suspeito durante o inquérito da WKStA, uma vez que a diligência de investigação tomada pela WKStA em 26 de maio de 2014 para o localizar — uma diligência suscetível de ser qualificada de medida coerciva para efeitos do § 193, n.o 2, do StPO — se revelou infrutífera.

13.

Por Despacho de 3 de novembro de 2014, a WKStA arquivou o inquérito por falta de provas. A WKStA reexaminou a situação várias vezes posteriormente, mas concluiu sempre que não estavam preenchidas as condições que permitiam prosseguir o inquérito e instaurar um processo ao abrigo do direito nacional. Em especial, considerou que os atos de corrupção imputados ao Arguido 5 estavam prescritos na Áustria, desde 2015, o mais tardar.

14.

Em 10 de abril e 29 de agosto de 2019, o Központi Nyomozó Főügyészség (Procuradoria Nacional, Hungria; a seguir «KNF») deduziu no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria) acusação contra o Arguido 5, dando início a um procedimento criminal por suborno, na aceção do § 254, n.os 1 e 2, do Código Penal húngaro.

15.

Por Despacho de 8 de dezembro de 2020, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) encerrou o processo penal contra o Arguido 5 em aplicação do princípio ne bis in idem, com o fundamento de que os factos imputados a essa pessoa correspondiam aos que tinham sido objeto da investigação na WKStA.

16.

O Despacho do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) foi posteriormente anulado em sede de recurso, por Despacho do Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Regional de Recurso de Budapeste‑Capital, Hungria) de 15 de junho de 2021. Este órgão jurisdicional considerou que a decisão da WKStA de 3 de novembro de 2014 que ordenou o encerramento da investigação não podia ser considerada uma decisão definitiva, na aceção do artigo 50.o da Carta e do artigo 54.o da CAAS. A este respeito, este órgão jurisdicional considerou que os documentos disponíveis não permitiam determinar claramente se a decisão de encerramento da investigação da WKStA se baseava numa apreciação suficientemente exaustiva e completa das provas. Em seu entender, não estava provado que a WKStA tivesse recolhido provas, com exceção da audição dos dois suspeitos austríacos coacusados juntamente com o Arguido 5, ou que tivesse procedido à audição de alguma das quase 90 pessoas identificadas pelo KNF na sua acusação, a fim de as ouvir ou de reunir prova. Além disso, o Arguido 5 não foi ouvido na qualidade de suspeito. Assim, o Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Superior de Budapeste‑Capital) remeteu o processo ao Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) para nova apreciação.

17.

Foi neste contexto que, tendo dúvidas quanto à interpretação correta das disposições pertinentes do direito da União, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 50.o da [Carta] e no artigo 54.o da [CAAS], opõe‑se à tramitação de um processo penal instaurado num Estado‑Membro contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos relativamente aos quais já foi instaurado um processo penal noutro Estado‑Membro, encerrado definitivamente através de despacho do Procurador que ordenou o arquivamento do inquérito?

2)

O facto de a Procuradoria não considerar justificado reabrir oficiosamente o inquérito é compatível com o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 50.o da [Carta] e no artigo 54.o da [CAAS], e impede definitivamente a instauração de um novo processo penal num Estado‑Membro contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos, embora o despacho do Procurador que ordena o arquivamento do processo penal (inquérito) num Estado‑Membro admita a possibilidade de reabertura do inquérito até ao momento em que a infração penal prescreve?

3)

É compatível com o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 50.o da [Carta] e no artigo 54.o da [CAAS], e pode ser considerado suficientemente minucioso e exaustivo um inquérito arquivado em relação a um arguido que não foi interrogado na qualidade de suspeito sobre uma infração penal relativa aos seus coarguidos, apesar de essa pessoa, na qualidade de arguido, ter sido sujeita a diligências de investigação, e o arquivamento do inquérito se ter baseado nos elementos de investigação fornecidos no âmbito de um pedido de cooperação judiciária, bem como na apresentação de elementos sobre contas bancárias e no interrogatório dos coarguidos na qualidade de suspeitos?»

18.

Foram apresentadas observações escritas no presente processo pelo KNF, pelo Arguido 5, pelos Governos austríaco, húngaro e suíço, bem como pela Comissão Europeia. Estas partes responderam igualmente a uma pergunta para ser respondida por escrito, enviada pelo Tribunal de Justiça como uma medida de organização do processo, em que lhes era perguntado quais os critérios que, na sua opinião, um órgão jurisdicional nacional deve utilizar para determinar se está respeitada a exigência de uma «instrução exaustiva», na aceção do Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski ( 4 ).

19.

Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões abordarão apenas a terceira questão prejudicial.

IV. Análise

20.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende obter esclarecimentos sobre a componente «bis» do princípio ne bis in idem: a duplicação de processos.

21.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se se deve considerar que a decisão de um Procurador que ordenou o arquivamento do processo a respeito de um arguido que não foi interrogado no decurso do inquérito, mas em relação ao qual foram tomadas medidas para fins de inquérito, e a respeito do qual foram recolhidas informações através da cooperação com as autoridades de outros Estados‑Membros, da análise de uma conta bancária e do interrogatório de dois coarguidos, se baseia numa instrução exaustiva e, se, por conseguinte, não é aplicável ao arguido o princípio ne bis in idem, ao abrigo do artigo 50.o da Carta e do artigo 54.o da CAAS.

22.

Não tenho a certeza de que o Tribunal de Justiça possa e deva responder a uma questão formulada nestes termos. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que proceda a uma apreciação jurídica que equivale, de facto, a uma aplicação das disposições pertinentes do direito da União às circunstâncias específicas do caso. No entanto, não é esse o papel do Tribunal de Justiça no âmbito de processos ao abrigo do artigo 267.o TFUE.

23.

O papel do Tribunal de Justiça, num processo prejudicial, é fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe permitam resolver o litígio que lhe foi submetido ( 5 ). Isto significa que, num processo como o presente, o Tribunal de Justiça deve clarificar as condições em que o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta e no artigo 54.o da CAAS é aplicável, permitindo assim ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar por si próprio se uma decisão do Procurador de encerrar uma investigação sem tomar outras medidas pode ou não implicar a aplicação desse princípio ( 6 ).

24.

Pelo contrário, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, nomeadamente, interpretar o direito nacional, examinar os atos processuais que figuram nos autos, se necessário, interrogar as partes (Procurador/ou arguido) no que respeita ao peso e ao significado dos atos de investigação específicos e, com base no anteriormente referido, aplicar as disposições (da União e nacionais) pertinentes no caso em apreço.

25.

À luz das considerações precedentes, entendo que a terceira questão deve ser reformulada no sentido de que procura determinar as condições segundo as quais uma decisão de um Procurador de arquivar um processo a respeito de um arguido se baseia numa «instrução exaustiva», na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, e confere, portanto, a essa pessoa direito à proteção do princípio ne bis in idem, em conformidade com o artigo 50.o da Carta e com o artigo 54.o da CAAS.

26.

Esta questão suscita um problema que abordei recentemente nas minhas Conclusões no processo Parchetul de pe lângă Curtea de Apel Craiova ( 7 ). Por conseguinte, nas presentes conclusões, referir‑me‑ei às passagens pertinentes das minhas Conclusões no processo Parchetul, tendo simultaneamente em conta as especificidades do processo atualmente pendente no órgão jurisdicional de reenvio, bem como os argumentos expostos pelas partes que apresentaram observações no presente processo.

A.   Condição «bis» no sentido de que exige uma apreciação do mérito do processo ( 8 )

27.

O artigo 50.o da Carta opõe‑se à duplicação de procedimentos e sanções quando alguém «já tenha sido absolvido ou […] já tenha sido condenado […] por sentença transitada em julgado.» Por sua vez, o artigo 54.o da CAAS garante a proteção do princípio ne bis in idem àquele «que tenha sido definitivamente julgado». A este respeito, a jurisprudência do Tribunal de Justiça referiu que, para que se possa considerar que uma decisão judicial se pronunciou definitivamente sobre os factos submetidos a um segundo processo, é necessário não só que «essa decisão tenha transitado em julgado, mas também que tenha sido proferida na sequência da apreciação do objeto do processo» ( 9 ).

28.

Assim, há que analisar dois aspetos da decisão em causa, a fim de determinar se um conjunto de processos posterior dá lugar a uma duplicação de processos, excluída pelo princípio ne bis in idem: um diz respeito à natureza definitiva da decisão (o seu «caráter definitivo»), o outro ao seu conteúdo (se a decisão apreciou «o objeto do processo»). A terceira questão submetida no presente processo diz respeito ao segundo aspeto.

29.

Para efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem, deve ser proferida uma decisão judicial na sequência de uma apreciação de mérito do processo; isto decorre — como o Tribunal de Justiça salientou — da própria redação do artigo 50.o da Carta, uma vez que os conceitos de «condenação» e de «absolvição» a que se refere esta disposição implicam necessariamente que a responsabilidade penal da pessoa em causa tenha sido apreciada e que tenha sido adotada uma decisão a este respeito ( 10 ).

30.

O Tribunal de Justiça teve igualmente a oportunidade de clarificar que se deve considerar que uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado‑Membro, pela qual um arguido foi definitivamente absolvido devido a insuficiência ou a falta de provas, se baseou, em princípio, numa apreciação do mérito do processo ( 11 ).

31.

Na mesma ordem de ideias, direi que a apreciação do mérito inclui a situação em que o processo é encerrado e a acusação é retirada porque — apesar de terem sido apurados os elementos factuais da infração — existiam motivos que ilibavam o presumível infrator (por exemplo, legítima defesa, estado de necessidade ou força maior) ou que o tornavam inimputável (por exemplo, a menoridade ou uma perturbação mental grave) ( 12 ).

32.

Em contrapartida, o Tribunal de Justiça também esclareceu que as decisões em que uma pessoa é absolvida, a acusação é retirada ou o processo é arquivado por razões meramente processuais ou que, de qualquer modo, não envolvem qualquer avaliação da responsabilidade penal da pessoa não podem ser consideradas «definitivas» para efeitos do princípio ne bis in idem ( 13 ). Esse é normalmente o caso, em minha opinião, de processos encerrados com base, por exemplo, em amnistia, imunidade, abolitio criminis, ou de processos que prescreveram ( 14 ).

33.

Neste contexto, recordo que a jurisprudência indica que o requisito de que a decisão contenha uma apreciação do mérito do processo — isto é, uma apreciação da responsabilidade penal da pessoa investigada — não pode estar preenchido numa base puramente formal.

34.

Naturalmente, quando uma decisão de arquivar um processo se baseia expressamente em fundamentos processuais, não há necessidade de qualquer verificação adicional: a decisão não é, enquanto tal, suscetível de desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem. No entanto, quando uma decisão se baseia na falta ou insuficiência da prova é necessária uma etapa adicional. De facto, como o Tribunal de Justiça concluiu no Acórdão Kossowski ( 15 ), secundado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») no Acórdão Mihalache ( 16 ), uma verdadeira apreciação sobre o mérito do processo implica necessariamente uma investigação exaustiva. Por conseguinte, há que determinar se essa investigação exaustiva teve ou não lugar.

35.

Estas conclusões — com as quais estou inteiramente de acordo — requerem uma explicação.

1. Necessidade de verificar a existência de uma investigação exaustiva

36.

Na sua jurisprudência, tanto o Tribunal de Justiça como o TEDH alargaram o âmbito de proteção do princípio ne bis in idem além do âmbito das decisões judiciais em sentido estrito. Ambos os tribunais decidiram que as decisões de outras autoridades públicas, que participam na administração da justiça penal a nível nacional, às quais o direito nacional confere poderes para determinar a existência de comportamentos ilegais e punir esses comportamentos, como os Procuradores, também podem ser consideradas decisões «definitivas» para efeitos do princípio ne bis in idem. Isto não obstante o facto de nenhum órgão jurisdicional intervir no processo e de a decisão em causa não assumir a forma de uma decisão judicial ( 17 ).

37.

Essa extensão constitui uma melhoria significativa para a proteção dos direitos das pessoas em direito e em processo penal. Porém, nem preciso de salientar que a decisão de um Procurador de arquivar um processo durante a fase de investigação não pode ser equiparada ipso facto a uma decisão de um órgão jurisdicional de absolver uma pessoa, proferida ao termo de um processo adequado, no qual a prova é apresentada ao juiz (ou ao júri), debatida entre as partes e, finalmente, apreciada pelo juiz (ou pelo júri).

38.

Como é sabido, os sistemas penais dos Estados‑Membros incluem uma variedade de normas e princípios que regulam, por um lado, as condições em que os Procuradores podem ou devem investigar alegadas infrações e, se for caso disso, instaurar procedimentos criminais contra os suspeitos e, por outro, os motivos pelos quais os procedimentos criminais podem ser arquivados. Por exemplo, em vários Estados‑Membros, razões relativas à inexistência de interesse público, à gravidade do crime ou à queixa da vítima, à conduta anterior do arguido ou mesmo a restrições orçamentais, constituem motivos válidos para um Procurador encerrar a investigação ( 18 ).

39.

Além disso, independentemente de, no sistema penal de um Estado‑Membro, a ação penal ser, em princípio, obrigatória ou discricionária, é inevitável que considerações de oportunidade, economia ou política judicial (como, por exemplo, volume de trabalho, prioridades na aplicação da lei, custos financeiros e laborais da investigação) possam influenciar as decisões dos Procuradores de investigar, mais ou menos proativamente, uma alegada infração ou, inversamente, de arquivar o processo. Seria utópico supor que todos os Procuradores da União Europeia decidem o destino das investigações e dos processos de que estão encarregados unicamente com base na sua convicção pessoal no que respeita à culpa do presumível infrator e da sua capacidade de provar essa culpa em tribunal.

40.

Parece‑me que considerações deste tipo podem ter um peso ainda maior quando os Procuradores são confrontados com crimes transnacionais, cometidos em dois ou mais Estados‑Membros ou que afetam dois ou mais Estados‑Membros, por infratores que tiram proveito dos direitos que lhes são conferidos pelo direito da União, de circular livremente através das fronteiras nacionais. Nessas situações, é claro que alguns Procuradores podem estar mais bem colocados do que outros para concluir uma investigação com êxito e, se necessário, instaurar processos contra os possíveis infratores. É igualmente evidente que a coordenação efetiva de vários Procuradores, que se encontrem em diversos Estados‑Membros, eventualmente a milhares de quilómetros de distância, trabalhando cada um na sua própria língua, e potencialmente ignorando a existência de processos paralelos, não é algo que possa ser dado como garantido — não obstante a existência de instrumentos específicos nesta matéria ( 19 ).

41.

Por conseguinte, num sistema baseado na confiança mútua e aplicável de forma transnacional, é, a meu ver, absolutamente crucial que o princípio ne bis in idem só seja aplicável se a decisão de um Procurador de arquivar um processo se basear na apreciação do mérito do caso, em resultado de uma investigação exaustiva, demonstrada por uma avaliação rigorosa de um conjunto de provas suficientemente completo.

42.

Com efeito, quando a responsabilidade penal da pessoa sob investigação tenha sido excluída com base num conjunto de provas insuficiente e fragmentado, pode presumir‑se com segurança que a decisão do Procurador se baseia, em grande medida, em razões de oportunidade, economia ou política judicial.

43.

Naturalmente, o facto de um Procurador ter procedido a uma avaliação exaustiva de um conjunto de provas suficientemente completo não significa que, ao tomar a decisão de pôr termo ao processo, todas as dúvidas relativas à responsabilidade penal da pessoa sob investigação devam necessariamente ser afastadas. Com efeito, um Procurador pode ter de retirar as necessárias consequências do facto de que, independentemente da sua opinião pessoal sobre a culpa da pessoa em questão, uma investigação exaustiva não tenha produzido um conjunto de provas que possam fundamentar uma condenação.

44.

No entanto, desde que a investigação tenha sido razoavelmente exaustiva e rigorosa, a decisão de arquivar o processo pode, de facto, ser equiparada a uma absolvição. Como referido no n.o 30, supra, o Tribunal de Justiça admitiu que as decisões baseadas na insuficiência ou falta de provas se devem considerar, em princípio, baseadas na apreciação do mérito do processo. Em minha opinião, trata‑se da consequência lógica, nomeadamente, do princípio da presunção de inocência ( 20 ).

45.

As considerações supra levantam a seguinte questão: como determinar se uma decisão como a que está aqui em causa se baseia numa investigação exaustiva?

2. Exame da decisão de arquivamento do processo

46.

A questão de saber se a decisão do Procurador de arquivar o processo se baseou numa investigação exaustiva deve ser resolvida principalmente com base na fundamentação contida no próprio corpo da decisão ( 21 ) (se necessário, lida em conjugação com os documentos nela referidos e/ou anexados ( 22 )). É efetivamente esse documento que explica os fundamentos do arquivamento e os elementos de prova invocados para esse fim.

47.

Por exemplo, como o Tribunal de Justiça concluiu no Acórdão Kossowski, o facto de, num caso específico, nem a vítima nem uma eventual testemunha terem sido ouvidas durante a investigação pode ser considerado um indício de que não houve uma investigação exaustiva ( 23 ). Em contrapartida, como o TEDH declarou no Acórdão Mihalache, quando uma investigação criminal tenha sido aberta na sequência de uma denúncia feita contra a pessoa em questão, a vítima tenha sido ouvida, as provas tenham sido recolhidas e examinadas pela autoridade competente, e uma decisão fundamentada tenha sido proferida com base nessas provas, é provável que tais fatores levem à conclusão de que houve uma apreciação do mérito do processo ( 24 ).

48.

Por conseguinte, uma apreciação caso a caso deverá ser feita, principalmente à luz do conteúdo concreto da decisão de encerrar o processo ( 25 ). Se essa decisão contiver passagens obscuras, nada impede as autoridades do segundo Estado‑Membro de recorrerem aos instrumentos de cooperação previstos no sistema jurídico da União ( 26 ) a fim de obterem os esclarecimentos necessários junto das autoridades do primeiro Estado‑Membro ( 27 ).

49.

No entanto, por razões de certeza jurídica e previsibilidade, é fundamental que os principais elementos que tornam possível entender os fundamentos com base nos quais é tomada uma decisão de arquivar o processo sejam incluídos no corpo da decisão (conforme completados pelos documentos nela referidos e/ou anexados, consoante o caso). Com efeito, o presumível infrator deve poder verificar se, à luz do direito da União e do direito interno pertinentes, a decisão em questão é suscetível de desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem ( 28 ). Assim, as trocas de informações ex post podem ser úteis para clarificar o alcance e o sentido da decisão, ou para completar a exposição de motivos, mas não podem alterar substancialmente o seu conteúdo.

50.

Nesta fase, pode ser útil sublinhar um ponto importante. A apreciação acima referida não pode ser interpretada no sentido de que permite às autoridades penais que atuam num segundo processo que fiscalizem, em substância, a correção das decisões adotadas num primeiro processo. Isso seria contrário ao princípio da confiança mútua, princípio que está no cerne das normas da União relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, e tornaria o princípio ne bis in idem em larga medida ineficaz ( 29 ).

51.

As autoridades que atuam num segundo processo estão autorizadas a verificar unicamente a natureza das três razões (substantivas e/ou processuais) pelas quais o primeiro Procurador decidiu arquivar o processo. Para esse fim, essas autoridades devem estar autorizadas a verificar que o Procurador o fez após ter examinado um conjunto de provas suficientemente completo e sem omitir a recolha (por considerar a mesma impossível, muito difícil ou simplesmente desnecessária) de provas adicionais suscetíveis de serem de especial relevância para a apreciação.

52.

Quanto ao resto, as considerações feitas na decisão de arquivamento proferida pelo primeiro Procurador (por exemplo, o valor probatório das provas examinadas) devem ser tomadas à letra. As autoridades que atuam no âmbito de um segundo processo estão impedidas de proceder a uma nova apreciação das provas já examinadas pelo primeiro Procurador ( 30 ). A confiança mútua no funcionamento dos sistemas penais dos Estados‑Membros impõe às autoridades penais nacionais que respeitem as verificações efetuadas por outras autoridades nacionais, independentemente do «veredicto» a que se chegue ( 31 ).

53.

A este respeito, talvez seja útil um outro esclarecimento. A necessidade de verificar se uma decisão de arquivamento do processo foi precedida de uma apreciação do mérito do processo com base numa investigação exaustiva é uma exigência que diz respeito, muito claramente, a «meras» decisões de arquivar o processo, ou seja, aquelas decisões em que o processo é encerrado e a pessoa sob investigação — metaforicamente falando — «sai em liberdade».

54.

Com efeito, no direito de todos os Estados‑Membros existem vários mecanismos alternativos de resolução de litígios que podem conduzir ao arquivamento do processo penal em troca da aceitação, por parte do presumível infrator, da aplicação de uma sanção administrativa leve ou de uma medida punitiva alternativa. É evidente que este tipo de decisões de arquivar o processo deveria normalmente ser considerado, para efeitos do princípio ne bis in idem, equivalente a uma condenação. Isto é válido independentemente do facto de implicarem ou não um apuramento formal da responsabilidade do presumível infrator. Uma vez que a jurisprudência sobre este ponto é relativamente clara, não há, a meu ver, necessidade de aprofundar esta questão ( 32 ).

B.   A razão de ser e o objetivo do princípio ne bis in idem ( 33 )

55.

A interpretação supramencionada do princípio ne bis in idem parece‑me ser a mais conforme com a sua razão de ser e com o seu objetivo. A este respeito, recordo que este princípio é uma construção jurídica muito antiga, da qual foram encontrados vestígios, nomeadamente, no Código de Hamurabi, nos trabalhos de Demóstenes, em Digesto de Justiniano, bem como em numerosas leis canónicas medievais ( 34 ). Na (atual) União Europeia — mesmo na falta de qualquer disposição nesse sentido — este princípio foi enunciado já em meados da década de 1960 e considerado ligado à ideia de justiça natural ( 35 ).

56.

Afigura‑se que, enquanto o significado preciso e o alcance do princípio ne bis in idem variaram um pouco ao longo dos séculos, o entendimento sobre a sua dupla razão de ser permaneceu relativamente coerente: equidade e certeza jurídica ( 36 ).

57.

Por um lado, é geralmente considerado injusto e arbitrário que o Estado, «com todos os seus recursos e poderes, [faça] tentativas repetidas de condenar um indivíduo por um alegado crime, sujeitando‑o assim a constrangimentos, despesas e provações, e obrigando‑o a viver num estado permanente de ansiedade e insegurança» ( 37 ). O princípio ne bis in idem visa assim, em primeiro lugar, evitar a situação em que uma pessoa esteja «em risco» mais do que uma vez ( 38 ).

58.

Por outro lado, o princípio ne bis in idem está também indissociavelmente ligado ao princípio da autoridade do caso julgado: a ideia de que, a fim de garantir tanto a estabilidade do direito e das relações jurídicas como uma boa administração da justiça, é necessário que as decisões judiciais que se tornaram definitivas já não possam ser postas em causa ( 39 ).

59.

Na ordem jurídica da União, a proteção do princípio ne bis in idem encontra uma terceira justificação: garantir a livre circulação de pessoas no espaço de liberdade, segurança e justiça. O Tribunal de Justiça salientou, com referência ao artigo 54.o da CAAS, que uma pessoa cujo processo já tenha sido definitivamente decidido deve poder circular livremente sem ter de recear um novo julgamento pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro ( 40 ).

60.

Consequentemente, estes objetivos militam contra uma interpretação excessivamente restritiva do princípio ne bis in idem. Ao mesmo tempo, porém, uma aplicação excessivamente ampla do princípio estaria em conflito com outros interesses públicos que merecem proteção.

61.

Refiro‑me, em especial, ao interesse geral da sociedade em perseguir de modo eficaz os infratores ( 41 ) e ao interesse específico das vítimas de crimes, não só em obterem uma indemnização dos infratores, mas também em que se «faça justiça» ( 42 ). Com efeito, a própria designação «espaço de liberdade, segurança e justiça» implica que a liberdade não pode ser exercida em detrimento da segurança e da justiça. Este último conceito deve ser indubitavelmente entendido como justiça para todos: alegados autores, mas também alegadas vítimas. É por esta razão que, por força do artigo 3.o, n.o 2, TUE, no interior deste espaço, a livre circulação de pessoas deve ser assegurada em conjugação com medidas adequadas para garantir, nomeadamente, a prevenção e o combate à criminalidade ( 43 ).

62.

A este respeito, não se pode ignorar que uma abordagem superficial da aplicação do princípio ne bis in idem pode conduzir a abusos e manipulações por parte de infratores, que poderiam recorrer — como o Governo húngaro salientou com razão — ao «forum shopping» para garantir a impunidade para as suas ações. Com efeito, quando os crimes são investigados por vários Procuradores ao mesmo tempo, existe um risco real de que a Procuradoria menos bem colocada (ou com menos pessoal ou com excesso de trabalho) possa impedir de facto a realização de uma investigação séria desse crime, uma vez que uma decisão de arquivar proferida por essa Procuradoria poderia antecipar‑se à ação de qualquer outra Procuradoria.

63.

Além disso, também neste lado da balança há um interesse relacionado com a União que merece ser seriamente considerado: a confiança mútua. Decorre de jurisprudência constante que a confiança mútua só pode ser mantida e reforçada se as autoridades de um Estado‑Membro puderem certificar‑se de que, noutro Estado‑Membro, houve uma avaliação adequada da responsabilidade penal de um suspeito de infração ( 44 ). Na falta de tal avaliação, simplesmente não há base para que a confiança mútua possa operar. Como poderia um órgão jurisdicional nacional confiar numa apreciação ou remeter para uma apreciação feita por outro órgão jurisdicional acerca da responsabilidade de uma pessoa que, de facto, não tenha sido feita de modo aprofundado?

64.

Consequentemente, é da maior importância que, ao interpretar o artigo 50.o da Carta e o artigo 54.o da CAAS, seja alcançado um justo equilíbrio entre esses interesses. Em especial, a proteção eficaz dos direitos individuais deve ser conciliada com o interesse legítimo dos Estados‑Membros em prevenir a impunidade dos criminosos ( 45 ). Foi esta a ideia principal que me orientou nas presentes conclusões (bem como nas minhas conclusões anteriores) quando, depois de ter revisto e refletido sobre a jurisprudência, tentei propor ao Tribunal de Justiça o que me parece ser uma abordagem «equilibrada» da interpretação do princípio ne bis in idem.

65.

Em especial, não vejo como é que uma pessoa cuja responsabilidade num alegado crime tenha sido examinada, durante um primeiro processo, apenas na fase da investigação e com base num conjunto de provas inadequado e fragmentado, poderia validamente alegar que um processo posterior, no qual a sua participação é analisada com base num conjunto de provas sólido e completo, a colocaria duas vezes «em risco» e/ou estaria em conflito com o princípio da autoridade do caso julgado.

C.   O presente processo

66.

Como salientei nos n.os 23 e 24, supra, compete, em princípio, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se as condições acima discutidas estão ou não preenchidas no processo nele pendente. Todavia, com a finalidade de prestar uma melhor assistência a esse órgão jurisdicional, gostaria agora de tecer algumas breves considerações sobre a eventual aplicação do princípio ne bis in idem ao processo principal.

67.

Concretamente, o aspeto fundamental suscitado pela terceira questão submetida consiste em saber se os atos de investigação mencionados como tendo sido praticados (recolha de informações através da cooperação com as autoridades de outros Estados‑Membros, exame de uma conta bancária e interrogatório de dois arguidos) e como não tendo sido praticados (audição da pessoa em causa) indicam que o Procurador austríaco realizou efetivamente uma instrução suficientemente exaustiva.

68.

Tenho sérias dúvidas de que o Tribunal de Justiça possa dar uma resposta de «sim ou não» a tal questão. Com efeito, uma simples lista das diligências de investigação realizadas ou não realizadas pouco nos transmite (se é que nos transmite alguma coisa) acerca da completude e do rigor da investigação levada a cabo pelo Procurador em questão. Em especial, o Tribunal de Justiça não conhece i) a complexidade dos factos pertinentes, ii) o que foi demonstrado pelas provas recolhidas e iii) que provas adicionais poderiam ter sido recolhidas.

69.

A avaliação do caráter exaustivo de uma investigação é, como indicado no n.o 48, supra, necessariamente uma apreciação caso a caso que depende de todas as circunstâncias relevantes. Não existe uma lista de controlo de eventuais diligências de investigação que, simplesmente assinalando ou não quadrados, possa indicar às autoridades se determinada investigação foi ou não adequada. Não só os Estados‑Membros têm, como acima referido, normas jurídicas diferentes a esse respeito, como também, e mais importante ainda, um caso é diferente do outro.

70.

Alguns casos podem exigir numerosos atos de investigação e outros muito menos. Em alguns casos, o quadro probatório pode ser inconclusivo, apesar de ser constituído por vários elementos de prova, ao passo que, noutros casos, a recolha de alguns elementos de prova chave poderá bastar para alcançar clareza suficiente no que respeita à responsabilidade penal do arguido.

71.

Além disso, o caráter exaustivo de uma investigação não é determinado unicamente pelo número de diligências de inquérito realizadas, mas também — como sublinha o Governo húngaro — pelo grau de cuidado com que foram examinados os resultados dessa investigação.

72.

Por conseguinte, convido o Tribunal de Justiça a deixar a apreciação final destes pontos para o órgão jurisdicional de reenvio. Dito isto, acrescentarei apenas duas observações finais.

73.

Em primeiro lugar, é perfeitamente possível que a variedade e a natureza dos atos de inquérito praticados pelo Procurador austríaco possam ser consideradas uma indicação de que — como sustenta o Governo austríaco — esse Procurador levou efetivamente a cabo uma investigação exaustiva. Por outro lado, porém, não partilho da opinião desse governo de que uma investigação deve ser considerada insuficiente e, portanto, incapaz de desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem unicamente em circunstâncias muito extremas ou especiais. Em minha opinião, não pode haver qualquer presunção a este respeito. Os dados de domínio público sugerem que um número significativo de investigações penais nos Estados‑Membros que são encerradas por insuficiência ou por falta de provas são igualmente baseadas em razões de oportunidade, economia ou política judicial.

74.

Além disso, entendo que o Procurador austríaco decidiu não prosseguir a investigação e não instaurar um processo com o fundamento, nomeadamente, de que a investigação dos crimes de que o Arguido 5 era suspeito tinha prescrito na Áustria. Como expliquei anteriormente, no n.o 32 das presentes conclusões, as decisões de pôr termo a um processo devido a prescrição não implicam, em geral, nenhuma avaliação da responsabilidade penal da pessoa e, enquanto tais, devem ser consideradas intrinsecamente incapazes de desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem. Trata‑se de um elemento que, em minha opinião, o órgão jurisdicional de reenvio quiçá tenha de ter em conta.

75.

Em segundo lugar, estou de acordo com o Governo suíço quando este afirma que o simples facto de o arguido não ter podido ser ouvido não indica, por si só, que a investigação não foi suficientemente exaustiva. Não vejo nenhuma razão que possa justificar que a audição do arguido seja considerada uma condição sine qua non para que uma investigação seja considerada adequadamente exaustiva e minuciosa.

76.

Assim, a menos que as autoridades húngaras disponham de elementos específicos para afirmar que essa audição teria provavelmente podido fornecer elementos com importância significativa para a apreciação da responsabilidade penal do arguido — com isto quer dizer, elementos que, se fossem tidos em conta, poderiam eventualmente fazer pender a balança a favor da perseguição penal dessa pessoa —, o facto de que era impossível realizar essa audição não pode ser considerado, em si mesmo, uma razão suficiente para afirmar que a investigação era inadequada. A este respeito, devo sublinhar que, uma vez que a fase do procedimento criminal em questão é a fase da investigação, o critério a aplicar para apreciar o cenário «e se» não pode ser um critério de certeza ou de quase certeza, mas é necessariamente um critério de equilíbrio de probabilidades.

77.

Por outro lado, porém, não se pode certamente impedir que um Procurador extraia deduções do facto de um arguido se ter podido subtrair voluntariamente à possibilidade de ser ouvido, por exemplo, não se colocando à disposição das autoridades policiais.

78.

À luz das considerações precedentes, entendo que o conceito de «investigação exaustiva», na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao princípio ne bis in idem, deve ser entendido como uma investigação na qual o Procurador adotou uma decisão de arquivar o processo depois de uma avaliação minuciosa de um conjunto de provas suficientemente completo. A fim de verificar se foi esse o caso, as autoridades do segundo Estado‑Membro deverão analisar, em especial se i) a decisão de encerrar o processo se baseou, em larga medida, em razões de oportunidade, economia ou política judicial, e se ii) o Procurador do primeiro Estado‑Membro não procedeu à recolha — por considerar impossível, demasiado difícil ou simplesmente desnecessário — de elementos de prova adicionais que pudessem ser de especial relevância para a apreciação da responsabilidade penal do arguido.

V. Conclusão

79.

Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão prejudicial submetida pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste — Capital, Hungria) do seguinte modo:

O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 54.o da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, devem ser interpretados no sentido de que a decisão de um Procurador de arquivar um processo em relação a um arguido se baseia numa «investigação exaustiva» e, por conseguinte, confere ao arguido a proteção do princípio ne bis in idem quando o Procurador tiver adotado essa decisão depois de uma avaliação minuciosa de um conjunto de provas suficientemente completo. A fim de verificar se foi esse o caso, as autoridades do segundo Estado‑Membro deverão analisar, em especial se i) a decisão de encerrar o processo se baseou, em larga medida, em razões de oportunidade, economia ou política judicial, e se ii) o Procurador do primeiro Estado‑Membro não procedeu à recolha — por considerar impossível, demasiado difícil ou simplesmente desnecessário — de elementos de prova adicionais que pudessem ser de especial relevância para a apreciação da responsabilidade penal do arguido.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO 2000, L 239, p. 19.

( 3 ) V. infra, n.o 34 das presentes conclusões.

( 4 ) C-486/14, EU:C:2016:483 («Acórdão Kossowski»).

( 5 ) V., neste sentido, Acórdão de 14 de julho de 2022, Volkswagen (C-134/20, EU:C:2022:571, n.o 33).

( 6 ) V., no mesmo sentido, Conclusões do advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer nos processos Gözütok e Brügge (C-187/01 e C-385/01, EU:C:2002:516, n.os 36 e 37).

( 7 ) C-58/22, EU:C:2023:464 (a seguir «minhas Conclusões no processo Parchetul»).

( 8 ) A presente secção A das conclusões reproduz, em grande parte, os n.os 48, 49 e 59 a 84 das minhas Conclusões no processo Parchetul.

( 9 ) V., por exemplo, Acórdão de 23 de março de 2023, Dual Prod (C-412/21, EU:C:2023:234, n.o 55 e jurisprudência referida, a seguir «Acórdão AB e o.»).

( 10 ) V., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação de uma amnistia) (C-203/20, EU:C:2021:1016, n.os 56 e 57 e jurisprudência referida; Acórdão AB e o.). Note-se que também o artigo 4.o do Protocolo n.o 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais se refere a «absolvição ou condenação definitiva».

( 11 ) V., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2014, M (C-398/12, EU:C:2014:1057, n.os 28 e 29 e jurisprudência referida).

( 12 ) Cf. Conclusões do advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer no processo van Straaten (C-150/05, EU:C:2006:381, n.o 65).

( 13 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 15 de outubro de 2002, Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão (C-238/99 P, C-244/99 P, C-245/99 P, C-247/99 P, C-250/99 P a C-252/99 P e C-254/99 P, EU:C:2002:582, n.os 54 a 69), de 10 de março de 2005, Miraglia (C-469/03, EU:C:2005:156, n.os 31 a 34), de 22 de dezembro de 2008, Turanský (C-491/07, EU:C:2008:768, n.os 40 a 45), e Acórdão AB e o., n.o 61. V., igualmente, TEDH, Decisão de 15 de março de 2005, Horciag c. Roménia (CE:ECHR:2005:0315DEC007098201).

( 14 ) No que respeita à prescrição, devo admitir que o Acórdão de 28 de setembro de 2006, Gasparini e o. (C-467/04, EU:C:2006:610, n.os 22 a 33) parece chegar a uma conclusão diferente. Todavia, sou de opinião que, quanto a este ponto, o Acórdão Gasparini e o. não é conciliável com a jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça em matéria de absolvições por motivos processuais. Com efeito, os processos encerrados por terem prescrito não envolvem geralmente qualquer avaliação da responsabilidade penal da pessoa. Além disso, e em todo o caso, esta passagem do Acórdão Gasparini e o. foi, em minha opinião, implicitamente anulada pelo Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C-105/14, EU:C:2015:555), no qual o Tribunal de Justiça considerou as normas nacionais relativas à prescrição como normas de natureza processual. Acrescentaria que tal posição é coerente com a jurisprudência do TEDH: v., por exemplo, Decisão de 5 de dezembro de 2019, Smoković c. Croácia (CE:ECHR:2019:1112DEC005784912, n.os 43 a 45).

( 15 ) V. Acórdão Kossowski, n.os 48, 53 e 54.

( 16 ) TEDH, Acórdão de 8 de julho de 2019, Mihalache c. Roménia (CE:ECHR:2019:0708JUD005401210, §§ 97 e 98) (a seguir «Acórdão Mihalache»).

( 17 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C-187/01 e C-385/01, EU:C:2003:87, n.os 27, 28 e 31), e de 12 de maio de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (C-505/19, EU:C:2021:376, n.o 73 e jurisprudência referida). De modo semelhante, TEDH, Mihalache, §§ 94 e 95.

( 18 ) V. por exemplo, declaração de voto concordante do juiz Pinto de Albuquerque no Acórdão Mihalache, §§ 10 et seq.

( 19 ) V., em especial, artigo 57.o da CAAS, que prevê, nomeadamente, que, «[s]empre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão.» V. também Decisão-Quadro 2009/948/JHA do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativa à prevenção e resolução de conflitos de exercício de competência em processo penal (JO 2009, L 328, p. 42).

( 20 ) Este princípio está consagrado, nomeadamente, no artigo 48.o, n.o 1, da Carta.

( 21 ) V., neste sentido, Acórdão Kossowski, n.o 52.

( 22 ) V., mais detalhadamente, as minhas Conclusões no processo GR e o. (C-726/21, EU:C:2023:240, n.os 35 a 53).

( 23 ) Acórdão Kossowski, n.o 53.

( 24 ) Acórdão Mihalache, § 98.

( 25 ) Ibidem, § 97.

( 26 ) Por exemplo, artigo 57.o da CAAS e Decisão-Quadro 2009/948 (v. nota de rodapé 18, supra).

( 27 ) V., por analogia, Acórdão de 16 de novembro de 2010, Mantello (C-261/09, EU:C:2010:683, n.o 48).

( 28 ) V. Conclusões do advogado-geral M. Bobek no processo bpost (C-117/20, EU:C:2021:680, n.o 119).

( 29 ) V., no mesmo sentido, Conclusões do advogado-geral Y. Bot no processo Kossowski (C-486/14, EU:C:2015:812, n.os 75 e 76).

( 30 ) V., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2014, M (C-398/12, EU:C:2014:1057, n.o 30).

( 31 ) V., nomeadamente, Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradition e ne bis in idem) (C-435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.os 92 e 93 e jurisprudência referida). V. também conclusões do advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer no processo van Straaten (C-150/05, EU:C:2006:381, n.os 52 e 63).

( 32 ) V., nomeadamente, Acórdão de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C-187/01 e C-385/01, EU:C:2003:87). V. também Conclusões do advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer nos processos Gözütok e Brügge (EU:C:2002:516, n.os 83, 88, 89, 97 e 106) e a declaração de voto concordante do juiz Bošnjak, subscrita pelo juiz Serghides, no Acórdão Mihalache.

( 33 ) A presente secção B das Conclusões reproduz, em grande parte, os n.os 108 a 118 das minhas Conclusões no processo Parchetul.

( 34 ) Coffey, G., «A History of the Common Law Double Jeopardy Principle: From Classical Antiquity to Modern Era», Athens Journal of Law, Vol. 8, Issue 3, julho de 2022, pp. 253 a 278.

( 35 ) V. Acórdão de 5 de maio de 1966, Gutmann/Comissão (18/65 e 35/65, EU:C:1966:24) e, com outras referências à jurisprudência anterior, Tomada de posição do advogado-geral N. Jääskinen no processo Spasic (C-129/14 PPU, EU:C:2014:739, n.o 43).

( 36 ) V. Coffey, G., referido na nota 34, supra. No mesmo sentido, Conclusões do advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer no processo Gözütok e Brügge (C-187/01 e C-385/01, EU:C:2002:516, n.o 49).

( 37 ) Como referido pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos no Acórdão Green/Estados Unidos (1957) 355 US 184 (n.o 187). V., igualmente, Conclusões do advogado-geral Y. Bot no processo Kossowski (C-486/14, EU:C:2015:812, n.o 36).

( 38 ) V., a este respeito, Conclusões da advogada-geral E. Sharpston no processo M (C-398/12, EU:C:2014:65, n.o 48).

( 39 ) No que respeita ao conceito de «autoridade do caso julgado», v., entre outros, Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C-224/01, EU:C:2003:513, n.o 38). Sobre a relação entre os dois conceitos, v. Acórdão de 22 de março de 2022, Nordzucker e o. (C-151/20, EU:C:2022:203, n.o 62 e jurisprudência referida).

( 40 ) V. Acórdão de 12 de maio de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (C-505/19, EU:C:2021:376, n.o 79 e jurisprudência referida).

( 41 ) V., neste sentido, Acórdão de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — Ne bis in idem) (C-665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.o 97) e Acórdão AB e o., n.o 58.

( 42 ) V. Conclusões do advogado-geral Y. Bot no processo Kossowski (C-486/14, EU:C:2015:812, n.o 80) e Conclusões do advogado-geral M. Bobek no processo BV (C-129/19, EU:C:2020:375, n.o 113).

( 43 ) V., a este respeito, Acórdão de 10 de março de 2005, Miraglia (C-469/03, EU:C:2005:156, n.o 34).

( 44 ) V. Acórdão de 12 de maio de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (C-505/19, EU:C:2021:376, n.o 81 e jurisprudência referida).

( 45 ) No mesmo sentido, Conclusões do advogado-geral M. Bobek nos processos Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (C-505/19, EU:C:2020:939, n.o 93) e bpost (C-117/20, EU:C:2021:680, n.o 121).