CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 7 de setembro de 2023 ( 1 )

Processo C‑128/22

BV NORDIC INFO

contra

Belgische Staat

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Língua Neerlandesa de Bruxelas, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Livre circulação de pessoas — Medidas nacionais adotadas para controlar a propagação da pandemia de COVID‑19 — Proibição de viagens “não essenciais” com destino ou origem em países que se considera apresentarem um alto risco de infeção para os viajantes — Requisitos de quarentena e de testes de despistagem para os residentes aquando do seu regresso desses países — Diretiva 2004/38/CE — Artigos 4.o e 5.o — Direitos de saída e de entrada — Restrição — Artigo 27.o, n.o 1, e artigo 29.o, n.o 1 — Justificação — Saúde pública — Proporcionalidade — Controlos efetuados para aplicar as restrições de viagem — Código das Fronteiras Schengen — Artigo 22.o e artigo 23.o, n.o 1 — Distinção entre “controlo das pessoas” na aceção da primeira disposição e “exercício das competências de polícia” na aceção da segunda disposição — Possibilidade de reintroduzir o controlo fronteiriço nas fronteiras internas — Artigo 25.o, n.o 1 — Justificação — Conceito de “ameaça grave à ordem pública” — Risco de perturbações graves para a sociedade provocadas pela pandemia — Proporcionalidade»

I. Introdução

1.

Entre as «intervenções não farmacêuticas» ( 2 ) implementadas pelas autoridades públicas em todo o mundo para controlar a propagação da pandemia de COVID‑19, as limitações à mobilidade das pessoas ocuparam um lugar de destaque. Embora os confinamentos tenham constituído a mais drástica dessas medidas, as restrições aos movimentos internacionais também estiveram na linha da frente da resposta. Com efeito, em diferentes momentos durante a pandemia, os Estados impuseram proibições de entrada e/ou saída dos seus territórios, e reforçaram o controlo fronteiriço para as implementar.

2.

Os Estados‑Membros da União Europeia não foram exceção a esta tendência. Durante a «primeira vaga» da pandemia, a partir de março de 2020 ( 3 ), os Estados‑Membros não só proibiram coletivamente a entrada na União Europeia, isolando parcialmente a «fortaleza Europa» do resto do mundo ( 4 ), mas também as várias restrições à mobilidade transfronteiriça introduzidas entre os Estados‑Membros resultaram num nível de encerramento de fronteiras sem precedentes no interior da União Europeia ( 5 ).

3.

Embora a maioria dessas medidas tenha sido levantada no final de junho de 2020, vários Estados‑Membros, receando uma (então) potencial «segunda vaga» de COVID‑19, mantiveram, a título cautelar, restrições à circulação internacional. O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Língua Neerlandesa de Bruxelas, Bélgica) respeita à compatibilidade com o direito da União de algumas dessas medidas, aplicadas pelo Governo Belga no início de julho de 2020, que consistiam na proibição das viagens «não essenciais» com origem e destino, designadamente, em certos países que se considerava apresentarem um alto risco de infeção para os viajantes; em requisitos de quarentena e de testes para os residentes belgas que após o seu regresso desses países; e na realização de controlos nas fronteiras belgas ou nas suas proximidades, para aplicar as referidas restrições de viagem.

4.

O presente caso não é o primeiro relativo à COVID‑19 a ser submetido ao Tribunal de Justiça. Tão‑pouco é a primeira vez que o Tribunal de Justiça é chamado a apreciar a legalidade de medidas tomadas para controlar a propagação de uma doença epidémica ( 6 ). No entanto, até à data, o Tribunal de Justiça nunca foi chamado a pronunciar‑se sobre a compatibilidade com o direito da União de medidas cautelares que, pela sua própria natureza e severidade, abalam um dos principais fundamentos, e até realizações, da União Europeia, ou seja, a criação de «um espaço […] sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas» ( 7 ). O presente caso também traz à tona a eterna questão do equilíbrio que, numa sociedade democrática, as autoridades públicas devem encontrar entre, por um lado, o objetivo legítimo de combater, de forma eficaz, as ameaças que a sociedade enfrenta e, por outro, os direitos fundamentais das pessoas afetadas pelas medidas adotadas a esse respeito. Ainda que o Tribunal de Justiça já tenha abordado esta questão, nomeadamente, no âmbito da luta contra a criminalidade e o terrorismo ( 8 ), terá de o fazer, pela primeira vez, no contexto da ameaça de uma pandemia.

II. Quadro jurídico

A. Direito da União

1.   Diretiva Cidadania

5.

O artigo 4.o da Diretiva 2004/38/CE relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros ( 9 ) (a seguir «Diretiva Cidadania»), sob a epígrafe «Direito de saída», prevê, no seu n.o 1, que «[s]em prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, têm direito a sair do território de um Estado‑Membro a fim de se deslocar a outro Estado‑Membro todos os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido».

6.

O artigo 5.o desta diretiva, sob a epígrafe «Direito de entrada», enuncia, no seu n.o 1, que, «[s]em prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, os Estados‑Membros devem admitir no seu território os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido».

7.

O capítulo VI da Diretiva Cidadania intitula‑se «Restrições ao direito de entrada e ao direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública». No âmbito deste capítulo, o artigo 27.o, sob a epígrafe «Princípios gerais», estabelece, no seu n.o 1, que «[s]ob reserva do disposto no presente capítulo, os Estados‑Membros podem restringir a livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Tais razões não podem ser invocadas para fins económicos.»

8.

No mesmo capítulo, o artigo 29.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Saúde pública», dispõe, no seu n.o 1, que «[a]s únicas doenças suscetíveis de justificar medidas restritivas da livre circulação são as doenças com potencial epidémico definidas pelos instrumentos pertinentes da Organização Mundial de Saúde» (OMS).

2.   Código das Fronteiras Schengen

9.

O artigo 22.o do Regulamento (UE) 2016/399 que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) ( 10 ) (a seguir «Código das Fronteiras Schengen»), com a epígrafe «Passagem das fronteiras internas», dispõe que «[a]s fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua nacionalidade».

10.

O artigo 25.o do referido código, sob a epígrafe «Quadro geral para a reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Em caso de ameaça grave à ordem pública ou à segurança interna de um Estado‑Membro no espaço sem controlos nas fronteiras internas, esse Estado‑Membro pode reintroduzir, a título excecional, o controlo em todas ou algumas partes específicas das suas fronteiras internas, por um período limitado não superior a 30 dias, ou pelo período de duração previsível da ameaça grave se a duração desta exceder 30 dias. O alcance e a duração da reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas não devem exceder o estritamente necessário para dar resposta à ameaça grave.

2.   O controlo nas fronteiras internas só pode ser reintroduzido em último recurso e de acordo com os artigos 27.o, 28.o e 29.o Os critérios enumerados, respetivamente, nos artigos 26.o e 30.o devem ser tidos em conta caso seja prevista uma decisão sobre a reintrodução do controlo nas fronteiras internas ao abrigo, respetivamente, dos artigos 27.o, 28.o ou 29.o»

B. Direito belga

11.

No âmbito de uma série de «medidas urgentes» destinadas a limitar a propagação da COVID‑19 no território da Bélgica, o Governo Belga adotou restrições de viagem. No entanto, as regras aplicáveis nessa matéria foram alteradas ao longo do tempo. Esses desenvolvimentos, na medida pertinente para efeitos do presente processo, podem ser resumidos da seguinte forma.

12.

Inicialmente, entre 23 de março e 15 de junho de 2020, todas as viagens «não essenciais» de e para a Bélgica eram, em princípio, proibidas ( 11 ). Posteriormente, entre 15 de junho e 12 de julho de 2020, foi aplicada uma exceção a essa proibição no que diz respeito aos «países UE+» ( 12 ). As viagens com destino e origem num desses países eram permitidas, desde que o país em questão o autorizasse ( 13 ). Por último, o Governo Belga decidiu que as viagens «não essenciais» entre a Bélgica e um desses países seriam reguladas com base na situação epidemiológica de cada Estado.

13.

Para esse efeito, foi aplicado o artigo 18.o do Decreto Ministerial, de 30 de junho de 2020, relativo às Medidas Urgentes para Limitar a Propagação do Coronavírus COVID‑19, com a redação que lhe foi dada pelo Ministerieel besluit van 10 juli 2020 (Decreto Ministerial de 10 de julho de 2020) (Moniteur Belge, de 10 de julho de 2020, p. 51609) (a seguir, conjuntamente designados por «decreto impugnado»). Essa disposição estabelecia:

«1. São proibidas as viagens não essenciais de e para a Bélgica.

2. Em derrogação do disposto no n.o 1 […], são autorizadas:

1.o

as viagens da Bélgica para todos os países da União Europeia, do Espaço Schengen e do Reino Unido, e as viagens para a Bélgica a partir destes países, com exceção dos territórios designados como zonas vermelhas, cuja lista é publicada no sítio Web do [Ministério dos Negócios Estrangeiros belga];

[…]»

14.

Assim, a partir de 12 de julho de 2020, e até uma data não especificada na decisão de reenvio, as autoridades belgas utilizaram uma classificação por cores que dividia os países da UE+ em «vermelho», «laranja» e «verde», em função da respetiva situação epidemiológica. De acordo com essa classificação:

«Verde» significava que era permitido viajar para o país em causa sem quaisquer restrições;

«Laranja» significava que a viagem para o país em causa era desaconselhada e que eram solicitados, mas não obrigatórios, a quarentena e um teste aquando do regresso;

«Vermelho» significava a proibição de viajar para o país em causa e a obrigatoriedade de submeter os viajantes a quarentena e a testes aquando do seu regresso (nos termos previstos na regulamentação de cada região belga) ( 14 ).

15.

Para efeitos da classificação por cores acima referida, a avaliação da situação epidemiológica de cada país ou região foi efetuada de acordo com uma metodologia estabelecida num parecer escrito emitido por um órgão consultivo do Governo Belga ( 15 ). Os critérios fundamentais utilizados pela Comissão foram, em primeiro lugar, o número acumulado de novas infeções («incidência») nos 14 dias anteriores por 100000 habitantes, a nível nacional ou regional (caso existissem dados subnacionais); em segundo lugar, a tendência das taxas de infeção; e, em terceiro lugar, as eventuais medidas de contenção impostas a nível nacional ou regional. Por conseguinte, os países foram classificados como:

de «alto risco» (ou seja, «vermelho»), quando a incidência nacional de novos casos de COVID‑19 nos 14 dias anteriores era 10 vezes superior à da Bélgica (100 casos registados por 100000 habitantes). Esta classificação aplicava‑se também às áreas de um país em que tivessem sido impostos um confinamento ou medidas mais restritivas do que as aplicáveis no resto do território;

de «risco moderado» (ou seja, «laranja»), quando a incidência nacional de novos casos de COVID‑9 nos 14 dias anteriores era duas a 10 vezes superior à da Bélgica (entre 20 e 100 casos registados por 100000 habitantes);

de «baixo risco» (ou seja, «verdes»), os países em que a incidência nacional de novos casos de COVID‑19 nos 14 dias anteriores era semelhante à da Bélgica (menos de 20 casos registados por 100000 habitantes).

16.

Os dados sobre a taxa de infeção em cada país ou região (quando disponíveis) foram disponibilizados pelo ECDC, que por sua vez recebeu esses dados dos países em causa. As informações sobre as eventuais medidas de confinamento aplicáveis num determinado país ou região foram obtidas e fornecidas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros belga. O Celeval devia transmitir as informações relativas à classificação por cores dos países pelo menos uma vez por semana.

17.

O artigo 22.o do decreto impugnado previa também que a violação do disposto, nomeadamente, no artigo 18.o do referido decreto, resultaria na aplicação das sanções previstas no artigo 187.o da Lei de 15 de maio de 2007, relativa à Segurança Civil ( 16 ). Esta disposição prevê, em substância, que a recusa de cumprimento ou a negligência no cumprimento destas medidas é punível, em tempo de paz, com pena de prisão de oito dias a três meses e uma coima entre 26 e 500 euros, ou apenas com uma destas sanções. Além disso, esse artigo prevê que o Ministro da Administração Interna ou, quando for o caso, o presidente da câmara ou o comandante da polícia da zona em causa, «podem, além disso, mandar executar oficiosamente as referidas medidas», a expensas dos infratores.

III. Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

18.

A NORDIC INFO BV (a seguir «Nordic Info») é um operador turístico, estabelecido na Bélgica, que organiza e vende viagens aos países nórdicos, especialmente à Suécia.

19.

Em 12 de julho de 2020, a classificação por cores dos países da UE+ referida no artigo 18.o, n.o 2, ponto 1, do decreto impugnado foi publicada, pela primeira vez, no sítio Web do Ministério dos Negócios Estrangeiros belga. A Suécia foi classificada no «vermelho», com base na sua situação epidemiológica. Apesar de a Bélgica não ter aplicado nenhuma restrição de viagem em relação a esse país desde 15 de junho de 2020 ( 17 ), em virtude desta classificação as viagens «não essenciais» de e para a Suécia passaram a ser proibidas por força da referida disposição. Além disso, os requisitos de quarentena e de testes tornaram‑se obrigatórios para os residentes belgas aquando do seu regresso daquele país, em conformidade com os regulamentos regionais aplicáveis.

20.

Subsequentemente, a Nordic Info cancelou todas as viagens programadas para a Suécia na época do verão de 2020, informou dessa situação os viajantes que se encontravam nesse país na altura e prestou‑lhes assistência para regressarem à Bélgica.

21.

Em 15 de julho de 2020, a classificação por cores dos países da UE+ foi atualizada no sítio Web do Ministério dos Negócios Estrangeiros belga. O código de cores da Suécia passou de «vermelho» a «laranja». Consequentemente, as viagens «não essenciais» para esse país deixaram de ser proibidas e a quarentena e os testes de despistagem deixaram de ser impostos aos residentes aquando do seu regresso.

22.

Posteriormente, a Nordic Info intentou uma ação por responsabilidade civil contra o Belgische Staat (Estado belga) no Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Língua Neerlandesa de Bruxelas), pedindo uma indemnização no montante provisório de 481431,00 euros, acrescido de juros, e solicitou a designação de um perito para avaliação do prejuízo definitivo que sofreu devido ao cancelamento das viagens planeadas para a Suécia ( 18 ).

23.

A Nordic Info alega, no essencial, que o Governo Belga cometeu um erro de direito ao adotar as restrições de viagem em causa. Em especial, a demandante no processo principal alega, em primeiro lugar, que estas medidas eram contrárias à Diretiva Cidadania, uma vez que limitaram o direito à livre circulação nela garantido e que nenhuma base jurídica permite tal derrogação. Em segundo lugar, essas medidas implicaram, na prática, a reintrodução do controlo nas fronteiras que a Bélgica partilha com outros Estados‑Membros, em violação das condições estabelecidas, a esse respeito, no Código das Fronteiras Schengen.

24.

Nestas circunstâncias, o Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Língua Neerlandesa de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 2.o, 4.o, 5.o, 27.o e 29.o da [Diretiva Cidadania], que aplicam os artigos 20.o e 21.o TFUE, ser interpretados no sentido de que não se opõem à regulamentação de um Estado‑Membro [neste caso, a resultante dos artigos 18.o e 22.o do [decreto impugnado] que, como medida de caráter geral [algemene maatregel]:

impõe aos cidadãos belgas e seus familiares, bem como aos cidadãos da União residentes na Bélgica e seus familiares, a proibição de princípio de saída do território para viagens não essenciais da Bélgica para países da [União Europeia] e do Espaço Schengen aos quais é atribuída a cor vermelha, de acordo com um código de cores definido com base em dados epidemiológicos;

impõe aos cidadãos da União não belgas e seus familiares (com ou sem autorização de residência no território belga) restrições de entrada (como quarentenas e testes) em relação a viagens não essenciais para a Bélgica desde países da União Europeia e do Espaço Schengen, aos quais é atribuída a cor vermelha, de acordo com um código de cores definido com base em dados epidemiológicos?

2)

Devem os artigos 1.o, 3.o e 22.o do Código das Fronteiras Schengen ser interpretados no sentido de que não se opõem à regulamentação de um Estado‑Membro [neste caso, os artigos 18.o e 22.o do decreto impugnado] que impõe a proibição de saída da Bélgica em relação a viagens não essenciais para países da União Europeia e do Espaço Schengen e a proibição de entrada na Bélgica a partir desses países, as quais não só podem ser controladas e sujeitas a sanções por incumprimento, como podem ser aplicadas oficiosamente pelo ministro, pelo presidente da Câmara e pelo comandante da Polícia?»

25.

O presente pedido de decisão prejudicial, datado de 7 de fevereiro de 2022, foi entregue em 23 de fevereiro de 2022. Foram apresentadas observações escritas pela Nordic Info, pelos Governos Belga, Romeno, Norueguês e Suíço, bem como pela Comissão Europeia. Os Governos Belga, Romeno e Norueguês, bem como a Comissão, estiveram representados na audiência decorreu em 10 de janeiro de 2023.

IV. Análise

26.

O presente processo prende‑se com a compatibilidade com o direito da União de dois conjuntos de medidas conexas, embora distintas, aplicadas pelo Governo Belga em julho de 2020 ( 19 ) para controlar a propagação da COVID‑19. Em primeiro lugar, este processo respeita a certas restrições de viagem, a saber, por um lado, a proibição de viagens «não essenciais», que obstava a que os viajantes saíssem do território belga com destino a países considerados de «alto risco» de infeção, bem como — à exceção dos cidadãos e residentes da Bélgica — a que entrassem nesse território a partir de tais países; e, por outro lado, os requisitos de quarentena e de testes de despistagem impostos a esses cidadãos e residentes ( 20 ) no seu regresso dos países em questão. Em segundo lugar, este processo diz respeito à realização de controlos relativamente às pessoas que atravessaram ou tentaram atravessar as fronteiras belgas, com vista à aplicação coerciva das referidas restrições de viagem.

27.

Essas medidas são regidas por regras diferentes, no direito da União. Por um lado, as restrições de viagem, uma vez que se aplicam aos nacionais dos Estados‑Membros ( 21 ) que pretendem viajar na União Europeia, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação de diversas disposições de direito primário e derivado da União que garantem a esses nacionais o direito à livre circulação. É este o cerne da primeira questão prejudicial. Por outro lado, os controlos de fronteira não estão abrangidos pelas disposições acima referidas ( 22 ). No que diz respeito aos Estados‑Membros em relação aos quais se aplica o acervo de Schengen, como a Bélgica ( 23 ), a legalidade destes controlos deve ser apreciada com base nas disposições do Código das Fronteiras Schengen. Tal está no cerne da segunda questão do órgão jurisdicional de reenvio.

28.

Abordarei ambas as questões sucessivamente nas secções seguintes.

A. Compatibilidade das restrições de viagem controvertidas com as regras da livre circulação de pessoas (primeira questão)

29.

Para efeitos da apreciação jurídica das restrições de viagem controvertidas, e atento o debate que teve lugar no Tribunal de Justiça, considero útil abordar vários aspetos, designadamente, as regras pertinentes em matéria de livre circulação (1), o seu âmbito de aplicação territorial (2), a medida em que essas restrições impedem o exercício dos direitos nelas garantidos (3), a possibilidade de os Estados‑Membros derrogarem o direito da União, a título «excecional», nas circunstâncias em causa (4) e, por último, a legalidade dessas restrições à luz das referidas regras (5).

1.   Regras pertinentes em matéria de livre circulação de pessoas

30.

As restrições de viagem, como as que foram adotadas pela Bélgica, são medidas de aplicação geral que afetaram muitas pessoas. As pessoas em causa podiam ter um diferente estatuto jurídico, por exemplo cidadãos dos Estados‑Membros ou nacionais de países terceiros com direito de residência na Bélgica. Essas pessoas podem ter procurado viajar para diferentes locais ou regressar desses locais — outro Estado‑Membro da União ou um país terceiro, e para diferentes efeitos — trabalho, razões familiares, lazer, etc. Em função destas variáveis, as mesmas restrições de viagem podiam ser apreciadas à luz de diferentes disposições de direito nacional, de direito da União e de direito internacional que regem a circulação transfronteiriça de pessoas.

31.

No entanto, no âmbito do presente pedido de decisão prejudicial, não compete ao Tribunal de Justiça proceder a uma fiscalização integral da legalidade de tais medidas. Pelo contrário, a sua tarefa é chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao órgão jurisdicional de reenvio para resolver o litígio no processo principal, tendo em conta a situação de facto que lhe é apresentada.

32.

O caso em apreço é um pouco invulgar a este respeito. De facto, a legalidade das restrições de viagem relevantes não é contestada por um indivíduo em concreto, impedido de viajar de ou para um determinado destino. Ao invés, trata‑se de uma ação de responsabilidade civil instaurada por uma sociedade que, na qualidade de operador turístico belga que organiza viagens, nomeadamente para a Suécia, foi indiretamente afetada por essas restrições. Dito isto, perante o órgão jurisdicional nacional a Nordic Info não invoca a sua própria liberdade de prestação de serviços turísticos transfronteiriços, protegida por diversas disposições do direito da União ( 24 ). Em vez disso, invoca o direito à livre circulação de que gozam os seus potenciais e efetivos clientes — que se presume serem nacionais dos Estados‑Membros — ao abrigo do direito da União. Assim, o Tribunal de Justiça deve limitar‑se, no caso em apreço, a examinar essencialmente as regras relativas a esse direito.

33.

Observo que, nos termos do artigo 20.o, n.o 1, TFUE, os nacionais dos Estados‑Membros têm o estatuto de cidadãos da União. Este estatuto confere‑lhes, nomeadamente nos termos do artigo 20.o, n.o 2, alínea a), e do artigo 21.o, n.o 1, TFUE e do artigo 45.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ( 25 ), inter alia, o direito de circular livremente no território dos Estados‑Membros, independentemente da finalidade, turismo inclusive. Este direito deve ser exercido em conformidade com as condições estabelecidas nos instrumentos de direito derivado adotados para a sua aplicação ( 26 ), nomeadamente a Diretiva Cidadania ( 27 ).

34.

O direito à livre circulação garantido aos cidadãos da União tem duas componentes. Esse direito implica, em primeiro lugar, um direito de saída, expresso no artigo 4.o da Diretiva Cidadania. É o direito que assiste a todos os cidadãos da União de saírem do território de qualquer Estado‑Membro, incluindo o seu ( 28 ), para se deslocarem a outro Estado‑Membro ( 29 ), com a única condição de estarem munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido e, repito, independentemente do objetivo da saída ( 30 ). Por conseguinte, a situação dos nacionais belgas e dos outros cidadãos da União, que pretendiam sair do território belga para passarem férias na Suécia, está abrangida por esse direito ( 31 ).

35.

Este direito à livre circulação implica, em segundo lugar, um direito de entrada, embora, a este respeito, o quadro jurídico seja um pouco mais complicado. Essencialmente, por um lado, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania concede aos cidadãos de um Estado‑Membro o direito de entrar no território de outro Estado‑Membro, com a única condição de estarem munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido e, também neste caso, independentemente da finalidade da entrada. Por outro lado, esta disposição não rege a entrada de cidadãos da União no seu próprio Estado‑Membro ( 32 ). Posto isto, em primeiro lugar, o direito de uma pessoa entrar no território do Estado da sua nacionalidade decorre de um princípio de direito internacional bem estabelecido, que é reafirmado, inter alia, no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH ( 33 ). Em segundo lugar, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 21.o, n.o 1, TFUE aplica‑se à situação específica de um cidadão da União que regressa ao seu próprio Estado‑Membro depois de ter exercido o direito à livre circulação através de uma deslocação ao estrangeiro ( 34 ). Em suma, neste caso os nacionais belgas e os outros cidadãos da União beneficiavam de um direito de entrada no território belga depois, por exemplo, de uma viagem de turismo à Suécia — embora com bases jurídicas diferentes.

2.   Questão de saber se essas regras se aplicam à circulação de pessoas entre a Bélgica e a Islândia ou a Noruega

36.

Neste ponto das presentes conclusões, gostaria de abordar uma questão que, embora secundária, constituiu porém uma parte significativa do debate no Tribunal de Justiça. Concretamente, resulta da decisão de reenvio que a Nordic Info organiza habitualmente viagens não só à Suécia mas também à Islândia e à Noruega. Embora estes países não pertençam à União Europeia, são parte do Espaço Schengen ( 35 ). Por conseguinte, as restrições de viagem controvertidas aplicam‑se, no que lhes diz respeito, da mesma forma que se aplicam aos Estados‑Membros ( 36 ). Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, embora a ação de responsabilidade civil intentada pela Nordic Info tenha por objeto o prejuízo que esta sofreu com a anulação das viagens para a Suécia, esta sociedade «não exclui nenhuma categoria de danos». Assim, o referido órgão jurisdicional parece afirmar que a demandante pode, numa fase posterior do processo principal, rever, ou pelo menos precisar, o seu pedido de modo que incluísse a eventual anulação das viagens à Islândia e/ou à Noruega. Por conseguinte, o órgão jurisdicional nacional mencionou, na sua primeira questão, os cidadãos da União que pretendem viajar da Bélgica para determinados «países da União Europeia e do Espaço Schengen» (e vice‑versa).

37.

Atendendo às considerações precedentes, o Tribunal de Justiça interrogou os intervenientes, na audiência, sobre a questão de saber se as regras relativas à livre circulação de pessoas previstas na Diretiva Cidadania se aplicam à Islândia e à Noruega e, em caso afirmativo, em que medida.

38.

Juntamente com os Governos Belga e Romeno, eu tão‑pouco estou convencido de que o Tribunal de Justiça deva abordar esta questão no acórdão que proferirá no presente processo. Além do facto de o órgão jurisdicional nacional não pedir esclarecimentos sobre esta questão — pois parece estar convencido da resposta ( 37 ) — não é certo que a prestação oficiosa de tais esclarecimentos fosse útil para esse órgão jurisdicional na decisão do processo que lhe foi submetido. Com efeito, o Tribunal de Justiça emitiria essencialmente um parecer consultivo sobre o que é, nesta fase do processo principal, uma questão muito hipotética ( 38 ), a fim de acautelar a possibilidade de, posteriormente, se tornar pertinente se a Nordic Info alterar ou precisar o seu pedido. O Tribunal de Justiça normalmente, e com razão, recusa‑se a seguir uma abordagem tão especulativa no âmbito de um processo prejudicial ( 39 ).

39.

Caso o Tribunal de Justiça decida, ainda assim, pronunciar‑se sobre esta questão, farei, a título subsidiário, as seguintes observações.

40.

De um modo geral, as regras relativas à livre circulação de pessoas previstas no Tratado FUE e nos instrumentos de direito derivado adotados em sua aplicação regem, como já foi referi, o caso dos cidadãos da União que viajam entre Estados‑Membros, e não a circulação de pessoas entre um Estado‑Membro, como a Bélgica, e um país terceiro, como a Islândia ou a Noruega. O facto de estes últimos países fazerem parte do Espaço Schengen é irrelevante a este respeito, uma vez que as referidas regras não fazem parte do acervo Schengen.

41.

No entanto, a Islândia e a Noruega são também partes no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu ( 40 ) (a seguir «Acordo EEE»), juntamente com todos os Estados‑Membros da União Europeia e a própria União. Este acordo inclui, nos seus anexos ( 41 ), duas referências expressas à Diretiva Cidadania, desde a entrada em vigor da Decisão do Comité Misto do EEE n.o 158/2007, de7 de dezembro de 2007 ( 42 ) (a seguir «Decisão do Comité Misto»). Através destas referências, a referida diretiva foi incorporada no direito do EEE, com algumas adaptações menores ( 43 ), e é, por conseguinte, vinculativa para as partes contratantes deste acordo ( 44 ).

42.

Dito isto, uma vez que os anexos em questão se referem, respetivamente, à livre circulação de trabalhadores e ao direito de estabelecimento, e que cada um deles declara que a Diretiva Cidadania «se aplica, se for caso disso, ao domínio abrangido pelo [anexo em questão]», resta esclarecer se esta diretiva foi integrada no Acordo EEE só parcialmente, apenas em relação à circulação de nacionais dos Estados‑Membros da União e dos Estados da EFTA no Espaço Económico Europeu (a seguir «EEE») para fins específicos de emprego e de trabalho independente, respetivamente, ou plenamente, de modo que se regular essa circulação para qualquer fim, como acontece na União Europeia ( 45 ). Neste contexto, a questão de saber se as pessoas «que não exercem uma atividade económica» — ou seja, pessoas como os estudantes, os reformados, etc., que não trabalham por conta de outrem nem por conta própria — beneficiam, no EEE, do direito à livre circulação garantido por esta diretiva, foi objeto de especial discussão no Tribunal de Justiça.

43.

Com efeito, embora o Acordo EEE inclua, tal como o Tratado FUE, disposições que garantem a livre circulação de pessoas para fins económicos ( 46 ), não contém disposições semelhantes às dos artigos 20.o e 21.o TFUE, que regem a circulação na União Europeia dos cidadãos «que não exercem uma atividade económica». De facto, o próprio conceito de «cidadania da União» não tem equivalente nesse acordo ( 47 ).

44.

Embora o Tribunal de Justiça ainda não se tenha pronunciado sobre a questão ( 48 ), o Tribunal da EFTA já o fez. No seu Acórdão Gunnarsson ( 49 ), o Tribunal da EFTA declarou que a Diretiva Cidadania se aplica à circulação de pessoas «que não exercem uma atividade económica» no EEE, independentemente da inexistência, no Acordo EEE, de uma disposição equivalente aos artigos 20.o e 21.o TFUE. No essencial, o Tribunal da EFTA recordou que o direito à livre circulação das pessoas que não exercem uma atividade económica já estava garantido no direito da União e do EEE antes da introdução do conceito de «cidadania da União» e dessas disposições, em várias diretivas ( 50 ), incorporadas desde o início nesse acordo. A Diretiva Cidadania revogou e substituiu estas diretivas, e a Decisão do Comité Misto transpôs este desenvolvimento para o direito do EEE. Embora a circulação de pessoas «que não exercem uma atividade económica» esteja agora associada, no direito da União, ao conceito de «cidadania da União», e embora este conceito não tenha equivalente no direito do EEE, isso não significa, de acordo com o Tribunal da EFTA, que os indivíduos devam ser «privados dos direitos que já adquiriram» ao abrigo desse acordo antes da introdução daquele conceito e que «foram mantidos» nessa diretiva ( 51 ).

45.

Evidentemente, o Tribunal de Justiça não está vinculado pelas decisões do Tribunal da EFTA. No entanto, na minha opinião, o princípio geral de direito internacional da observância dos compromissos contratuais (pacta sunt servanda) ( 52 ), as «relações privilegiadas entre a União, os seus Estados‑Membros e os Estados da EFTA» ( 53 ) e a necessidade de assegurar, na medida do possível, a aplicação uniforme do Acordo EEE em todas as partes contratantes implicam que o Tribunal de Justiça deva ter em conta essas decisões para efeitos de interpretação do referido acordo ( 54 ). Aliás, sugiro que as siga, a menos que existam razões imperiosas para não o fazer.

46.

A meu ver, esta ressalva não se aplica neste caso. Com efeito, o raciocínio do Tribunal da EFTA no seu Acórdão Gunnarsson é convincente. O facto de não existir uma «cidadania do EEE» no direito do EEE não justifica a redução do âmbito material de uma diretiva que foi incorporada como tal no Acordo EEE. Afinal, certas disposições da Diretiva Cidadania destinam‑se especificamente às pessoas que não exercem uma atividade económica ( 55 ). Se o Comité Misto tivesse tido a intenção de «excluir» estas pessoas do âmbito de aplicação da referida diretiva no direito do EEE, poderia facilmente ter incluído uma reserva expressa a essas disposições. No entanto, a decisão do Comité Misto não contém nenhuma reserva a este respeito. Por conseguinte, apenas os direitos que não encontram base jurídica na própria diretiva e que decorrem exclusivamente dos artigos 20.o e 21.o TFUE não são aplicáveis no EEE, devido à inexistência de uma disposição equivalente no Acordo EEE ( 56 ).

47.

Em suma, as regras da Diretiva Cidadania também regem, a meu ver, a circulação dos nacionais dos Estados‑Membros da União e dos Estados da EFTA no EEE, para todos os efeitos. Portanto, estas pessoas gozam, nas condições previstas na referida diretiva, do direito de circular livremente entre, nomeadamente, a Bélgica e a Islândia ou a Noruega, inter alia para turismo ( 57 ).

3.   As restrições de viagem controvertidas impediram o exercício do direito à livre circulação garantido por essas regras

48.

É incontestável que as restrições de viagem como as que estão em causa no processo principal impediram o exercício, pelos cidadãos da União, do direito à livre circulação que lhes assiste.

49.

Primeiro, uma vez que se aplicava aos cidadãos da União que pretendiam sair do território belga para se deslocarem aos Estados‑Membros classificados como «vermelhos» no código de cores em causa, a proibição de deslocações «não essenciais» restringia, drasticamente, o direito de saída garantido, nomeadamente, pelo artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. Isto é verdade, independentemente do facto de as viagens para outros Estados‑Membros (nomeadamente os classificados como «verdes» ou «amarelos») permanecerem, pelo contrário, sem restrições. Basta, na minha opinião, que essas pessoas não pudessem viajar livremente para o Estado da sua escolha ( 58 ). No que respeita aos Estados‑Membros «vermelhos», a possibilidade de os cidadãos da União exercerem esse direito foi significativamente limitada. De facto, esse direito foi negado em relação a muitas razões para viajar, incluindo o turismo. Além disso, uma vez que se aplicava aos cidadãos da União — com exceção dos nacionais belgas ( 59 ) e dos nacionais de outros Estados‑Membros residentes na Bélgica ( 60 ) — que pretendessem entrar no território belga a partir de um Estado‑Membro «vermelho», a proibição de viajar controvertida restringia, de forma igualmente severa, o direito de entrada garantido, nomeadamente, pelo artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva, com fundamentos semelhantes.

50.

Segundo, visto que se aplicavam aos cidadãos da União não belgas, residentes na Bélgica, no regresso de uma viagem «não essencial» a um Estado‑Membro «vermelho», os requisitos de quarentena e de testes de despistagem também restringiam o direito de entrada estabelecido no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. Nomeadamente, a obrigação de quarentena limitou drasticamente a possibilidade de circular no território belga, o que teve, em minha opinião, um efeito equivalente ao de atrasar a entrada nesse território. Visto que se aplicavam aos nacionais belgas nas mesmas circunstâncias, estes requisitos, embora não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do princípio reafirmado no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH ( 61 ), limitavam, no meu entender, o direito à livre circulação, garantido pelo artigo 21.o TFUE, por razões análogas.

4.   Uma possibilidade «excecional» de derrogar o direito da União ao abrigo do artigo 347.o TFUE?

51.

Tendo em conta alguns dos argumentos apresentados pelos intervenientes no Tribunal de Justiça, gostaria de abordar, nesta fase das presentes conclusões, uma consideração importante relativa à possibilidade de os Estados‑Membros derrogarem o direito da União durante a pandemia de COVID‑19.

52.

Com efeito, estes intervenientes alegam que a pandemia constituiu, pelo menos nos seus primeiros meses, uma «crise», que exigiu a intervenção urgente das autoridades públicas. Observo, a este respeito, que vários Estados‑Membros declararam, num momento ou noutro durante a pandemia, um «estado de emergência», que implicou a suspensão temporária ou a derrogação das leis ordinárias nos seus territórios, a fim de aplicar as medidas urgentes consideradas necessárias para responder a essa «crise». De facto, muitas destas medidas — especialmente os confinamentos generalizados — fazem eco das medidas aplicáveis em tempo de guerra.

53.

Isto levanta a questão de saber se deve ser aplicado um quadro jurídico «excecional» para apreciar as medidas controvertidas, em vez das regras «ordinárias» da União e das suas exceções «ordinárias». A este respeito, recordo que o artigo 347.o TFUE prevê uma «cláusula de salvaguarda» que reconhece, no essencial, que os Estados‑Membros podem adotar as medidas que considerem necessárias, nomeadamente em caso de «graves perturbações internas que afetem a ordem pública» ( 62 ). Esta disposição, que nunca foi interpretada pelo Tribunal de Justiça, poderia teoricamente permitir, em tais circunstâncias, uma derrogação geral de todas as regras deste Tratado e das regras adotadas com base nele, incluindo as diferentes disposições relativas à livre circulação de pessoas ( 63 ). Escusado será dizer que as questões de saber se se pode considerar que a pandemia de COVID‑19 causou as referidas «graves perturbações internas» nos Estados‑Membros ( 64 ), bem como as eventuais outras condições e limites associados a essa «cláusula de salvaguarda» e, em caso afirmativo, em que medida, são questões extremamente sensíveis.

54.

Dito isto, além do facto de o Governo Belga não ter invocado o artigo 347.o TFUE ( 65 ), nem no Tribunal de Justiça nem noutro lugar, só seria, em todo o caso, necessário pronunciar‑se sobre esta disposição se as medidas nacionais como as que estão em causa no processo principal não pudessem ser justificadas nos termos das regras «ordinárias» da União e das suas exceções «ordinárias» ( 66 ). No entanto, como explicarei nas presentes conclusões, estas regras são suficientemente flexíveis para se adaptarem à especificidade da situação em causa.

5.   Legalidade das restrições de viagem controvertidas à luz das cláusulas derrogatórias previstas na Diretiva Cidadania

55.

Mesmo ao abrigo do direito «ordinário» da União, o direito à livre circulação de que gozam os cidadãos da União não é absoluto. As restrições são admissíveis ( 67 ). No entanto, para ser compatível com o direito da União, qualquer restrição deve respeitar, nomeadamente, as condições estabelecidas nesse direito. Dado que as restrições de viagem controvertidas estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva Cidadania, devem ser apreciadas de acordo com as condições estabelecidas no capítulo VI deste instrumento. Além disso, visto que essas restrições se aplicavam aos nacionais belgas que regressavam à Bélgica, tendo exercido o seu direito à livre circulação, recordo que, embora essa situação não esteja abrangida pela Diretiva Cidadania, mas pelo artigo 21.o TFUE, as condições de derrogação estabelecidas nessa diretiva aplicam‑se por analogia ( 68 ).

56.

Como introdução ao capítulo VI, o artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania estabelece a regra geral de que os Estados‑Membros estão autorizados a restringir a «livre circulação» dos cidadãos da União por razões de «ordem pública», «segurança pública» ou «saúde pública». Esta regra geral é especificada no resto desse capítulo. Concretamente, o artigo 29.o, n.o 1, da referida diretiva enquadra a possibilidade de os Estados‑Membros restringirem essa «liberdade» por razões de «saúde pública». No que respeita à legalidade das medidas nacionais adotadas por essas razões, estas duas disposições devem, por conseguinte, ser lidas em conjunto. Conjuntamente, impõem uma série de condições que serão explicadas com mais pormenor adiante e que devem ser respeitadas em todos os casos ( 69 ).

57.

Embora o Governo Belga invoque os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, tanto no órgão jurisdicional de reenvio como no Tribunal de Justiça, a Nordic Info alega que, independentemente de estarem preenchidas as condições estabelecidas nessas disposições, estas não abrangem restrições de viagem como as que estão em causa no processo principal. Isto exige uma discussão abstrata sobre o âmbito de aplicação dessas disposições (a) antes de aprofundar uma apreciação específica dessas medidas à luz das condições nelas estabelecidas (b).

a)   Âmbito de aplicação dos artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania

58.

Na opinião da Nordic Info, os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania não são, de um modo geral, suficientemente amplos para abranger — no todo ou, pelo menos, em parte — restrições de viagem como as que estão em causa, porque essas disposições permitem restrições apenas ao direito de entrada, não ao direito de saída (1), e, em todo o caso, só admitem restrições «individuais» à livre circulação, e não restrições «gerais» (2). Abordarei estas objeções sucessivamente nas secções seguintes.

1) Possibilidade de restringir simultaneamente o direito de entrada e o direito de saída

59.

Recordo que o artigo 27.o, n.o 1, lido em conjugação com o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, permite aos Estados‑Membros restringir a «livre circulação» por razões de saúde pública, sem mais especificações quanto ao tipo de medidas que podem ser tomadas pelas autoridades nacionais.

60.

Em primeiro lugar, estes termos abrangem as eventuais restrições ao direito de entrada previstas no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. Isso inclui, por um lado, uma eventual proibição de entrada no território de um Estado‑Membro. No entanto, aplicam‑se algumas ressalvas. Esta disposição nunca pode ser utilizada por um Estado‑Membro para recusar a entrada no seu território aos seus próprios nacionais — pelas simples razões de que, recordo, a) a referida diretiva não se aplica nessa situação e b) o princípio reafirmado no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH se lhe opõe ( 70 ). Além disso, decorre do artigo 29.o, n.o 2, da Diretiva Cidadania que um Estado‑Membro não pode proibir, por razões de «saúde pública», a entrada — após, por exemplo, uma viagem à Suécia — de nacionais de outros Estados‑Membros que residam no seu território ( 71 ). Por outro lado, um Estado‑Membro pode, em princípio, impor, aos cidadãos da União que não possam ser proibidos de entrar no território nacional, outros tipos de restrições à sua entrada que não tenham o efeito equivalente a uma recusa. Os requisitos de quarentena e de testes impostos aos residentes na Bélgica aquando do regresso de países de «alto risco» inserem‑se nessa categoria ( 72 ).

61.

Em segundo lugar, sou da opinião de que, contrariamente ao que a Nordic Info alega, o artigo 27.o, n.o 1, e o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania também podem abranger possíveis restrições ao direito de saída previsto no artigo 4.o, n.o 1, da mesma diretiva, tais como uma proibição de saída ( 73 ). Embora o título do capítulo VI possa induzir o leitor em erro a esse respeito ( 74 ), em primeiro lugar a expressão «livre circulação» aí utilizada é claramente suficientemente ampla para englobar esse direito. Em segundo lugar, não decorre do facto de o artigo 29.o, n.o 2, se referir, em substância, a uma medida específica, a saber, a recusa de entrada, que só sejam permitidas restrições ao direito de entrada por razões de «saúde pública», uma vez que esta disposição não visa enumerar todas as restrições à livre de circulação admissíveis nos termos dos artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, mas simplesmente enquadrar a utilização dessa medida específica. Além disso, esta interpretação está em conformidade com o objetivo prosseguido pela derrogação relativa à «saúde pública» prevista nas referidas disposições, que consiste, como resulta da redação desta última disposição, em permitir que um Estado‑Membro proteja o seu território e população contra a propagação de certas doenças infecciosas ou contagiosas. É certo que os redatores do artigo 29.o, n.o 1 (provavelmente) tinham em mente o exemplo de um Estado‑Membro que impedisse os viajantes portadores dessas doenças de entrarem no seu território e «trazerem» a doença consigo. Dito isto, a proteção do território de um Estado pode também, em certas situações, justificar a restrição da saída dos seus próprios residentes, para evitar que «tragam» essas doenças quando regressam ( 75 ). Por último, esta interpretação é confirmada pelos trabalhos preparatórios ( 76 ) da Diretiva Cidadania ( 77 ).

2) Possibilidade de restringir a livre circulação através de medidas de caráter geral

62.

As medidas nacionais em causa no processo principal eram de aplicação geral. Com efeito, a proibição de viajar e os requisitos de quarentena e de testes aplicavam‑se sistematicamente a categorias abstratas e vastas de pessoas em situações objetivamente determinadas — pessoas que viajavam de ou para um Estado‑Membro da União de «alto risco» para um fim «não essencial», pessoas que viajavam para ou de um país terceiro que não integre o Espaço Schengen, etc.

63.

Todavia, a Nordic Info alega que apenas as medidas individuais que restringem o direito à livre circulação podem ser justificadas com base no artigo 27.o, n.o 1, lido em conjugação com o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. Tais medidas só poderiam ser adotadas caso a caso, quando a avaliação individual da situação de uma determinada pessoa revelasse que ela representava uma ameaça para a saúde pública — por essa pessoa apresentar sintomas de, ou ter sido exposta a uma das doenças mencionadas nessa disposição — e, portanto, representar um risco real de ser infetada e de propagar essa doença.

64.

Como os Governos Belga, Romeno e Norueguês, bem como a Comissão, também entendo que podem ser adotadas restrições gerais à livre circulação, nos termos do artigo 27.o, n.o 1, e do artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, por razões de «saúde pública», sem necessidade de uma avaliação caso a caso ( 78 ).

65.

Primeiro, estas disposições referem‑se, respetivamente, às «restrições» que os Estados‑Membros podem aplicar e às «medidas restritivas da livre circulação» que podem adotar por razões de «saúde pública». Estes termos amplos são suscetíveis de abranger tanto medidas individuais como medidas gerais.

66.

Segundo, a economia geral do capítulo VI da Diretiva Cidadania apoia esta interpretação. Com efeito, enquanto o artigo 27.o, n.o 2, estabelece, no que respeita às medidas tomadas por razões de «ordem pública» ou de «segurança pública», que estas «devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão» e que «[n]ão podem ser utilizadas justificações não relacionadas com o caso individual ou baseadas em motivos de prevenção geral», o artigo 29.o não menciona tal exigência no que respeita às medidas tomadas por razões de «saúde pública» ( 79 ).

67.

É certo que esta diferença de redação não pode, por si só, ser decisiva. O texto da Diretiva Cidadania não está isento de incoerências ( 80 ). No passado, o Tribunal de Justiça alargou, com razão, a necessidade de uma apreciação individual a outras disposições da Diretiva Cidadania que não a mencionam expressamente. Fê‑lo, nomeadamente, no seu Acórdão McCarthy e o ( 81 )., em relação às medidas tomadas com fundamento num abuso de direito, nos termos do artigo 35.o dessa diretiva.

68.

No entanto, o Tribunal de Justiça deve ser prudente ao fazê‑lo em relação a medidas tomadas por razões de «saúde pública», nos termos dos artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da referida diretiva. De facto, juntamente com os Governos Belga, Romeno e Norueguês, bem como com a Comissão, observo, em terceiro lugar, que é lógico conceder maior margem de apreciação aos Estados‑Membros quando estão em causa ameaças à «saúde pública», por oposição a ameaças à «ordem pública» ou à «segurança pública», e comportamentos abusivos, uma vez que estes são, muito simplesmente, assuntos diferentes.

69.

Por um lado, as ameaças à «ordem pública» ou à «segurança pública» resultam normalmente do comportamento de certas pessoas específicas, como os terroristas ou os criminosos perigosos. Por conseguinte, as autoridades públicas não deveriam, em princípio, especialmente tendo em conta a importância do direito à livre circulação de que gozam os cidadãos da União, poder adotar medidas gerais por razões cautelares, como proibir a entrada de todas as pessoas que se deslocam a partir de determinados países porque algumas dessas pessoas podem ser perigosas. Isso não só iria além do necessário nessa matéria como considero que, numa sociedade democrática, salvo em circunstâncias muito excecionais, as autoridades públicas não devem ser autorizadas a presumir que os indivíduos são perigosos simplesmente por pertencerem a uma categoria tão vasta e abstrata de pessoas ( 82 ). As considerações acerca da dignidade individual são pertinentes neste domínio. De facto, em muitos casos, esse tipo de abordagem seria preconceituoso ( 83 ). A mesma lógica se aplica no que respeita à prevenção do abuso do direito à livre circulação. Mesmo que existam numerosos casos de entrada abusiva de nacionais de países terceiros que se fazem passar por membros da família de cidadãos da União, os Estados‑Membros não podem, por razões cautelares, adotar medidas gerais que privem todos esses membros da família do direito que lhes é conferido, nomeadamente, pela Diretiva Cidadania ( 84 ).

70.

Por outro lado, a ameaça para a «saúde pública» que é pertinente nos termos do artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, ou seja, o risco de propagação de certas «doenças com potencial epidémico» ou de «outras doenças infecciosas ou parasitárias contagiosas» no território de um Estado‑Membro, não está normalmente relacionada com o comportamento de determinados indivíduos específicos. A situação epidemiológica de um determinado país pode ser uma consideração pertinente a este respeito ( 85 ). Em certas circunstâncias, em função do seu grau de contágio, uma grande parte, se não toda a população, pode ser infetada. Neste contexto, as medidas individuais adotadas no ponto de entrada ou de saída dos viajantes no território de um Estado‑Membro, com base em sintomas aparentes ou na exposição confirmada à doença em causa, nem sempre seriam suficientemente eficazes para evitar ou limitar a sua propagação ( 86 ). As restrições gerais à livre circulação, adotadas com fundamentos cautelares e visando, por exemplo, todas as pessoas que viajam a partir de determinados países ou regiões de «alto risco», podem, portanto, ser necessárias para esse efeito. Os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania devem ser interpretados em conformidade. Embora estas disposições, enquanto cláusulas derrogatórias, devam ser objeto de interpretação estrita ( 87 ), tal interpretação deve, no entanto, garantir a sua adequação ao fim a que se destinam ( 88 ). Além disso, nos termos do artigo 168.o, n.o 1, TFUE, «[n]a definição e execução de todas as políticas e ações da União será assegurado um elevado nível de proteção da saúde», incluindo a livre circulação de pessoas — um imperativo tão importante que é reafirmado no segundo período do artigo 35.o da Carta. O controlo das epidemias é um aspeto inerente a este objetivo ( 89 ).

71.

Há um último contra‑argumento que deve ser abordado antes de encerrar esta secção. Com efeito, os artigos 30.o e 31.o da Diretiva Cidadania contêm garantias para os cidadãos da União que são sujeitos a medidas restritivas dos direitos que decorrem dessa diretiva. Por força do artigo 30.o, n.os 1 e 2, as autoridades nacionais devem, respetivamente, notificar as «pessoas em questão» de «qualquer decisão tomada nos termos do artigo 27.o, n.o 1, e informá‑las das «razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública em que se baseia a decisão». Além disso, nos termos do artigo 31.o, n.o 1, dessa diretiva, essas autoridades devem assegurar que as «pessoas em questão» tenham acesso a vias de recurso «para impugnar qualquer decisão a seu respeito por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública».

72.

Neste contexto, a Nordic Info alega que o facto de estas disposições se referirem sistematicamente a «decisões» dirigidas a determinadas «pessoas em questão» implica necessariamente que, com base no artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania apenas podem ser tomadas medidas individuais e, portanto, mesmo por motivos de «saúde pública». Poder‑se‑ia também legitimamente argumentar que, uma vez que as garantias em questão foram concebidas, nas palavras do Tribunal de Justiça, para «permitir que a pessoa interessada invoque circunstâncias e considerações relativas à sua situação individual ( 90 )», permitir que os Estados‑Membros adotem, com base nesta disposição, medidas de aplicação geral poderia privá‑las da sua substância.

73.

No entanto, não me parece que seja esse o caso. Primeiro, como salienta a Comissão, os artigos 30.o e 31.o não têm por objetivo limitar o tipo de medidas que podem ser adotadas nos termos do artigo 27.o, n.o 1, mas apenas prever determinadas garantias quando essas medidas são tomadas. O facto de os artigos 30.o e 31.o utilizarem o termo «decisão», por oposição aos termos mais amplos «restrições» ou «medidas», reflete apenas o facto de que, como se pode concluir das considerações precedentes, esta diretiva exige frequentemente medidas individuais e, claramente, o legislador da União tinha essas medidas em mente ao redigir estas disposições. De um modo geral, os termos «medidas» e «decisões» são utilizados de forma aparentemente indistinta na Diretiva Cidadania, e nem sempre de forma coerente ( 91 ), o que significa que não se pode tirar nenhuma conclusão da utilização de um termo ou de outro numa determinada disposição. Segundo, embora essas disposições não tenham sido redigidas tendo em vista medidas gerais, isso não significa que a possibilidade de adotar essas medidas por razões de «saúde pública» as privaria de toda a eficácia. Os cidadãos da União devem ainda poder, em certa medida, «invo[car] circunstâncias e considerações relativas à sua situação individual». Voltarei a este aspeto nos n.os 115 a 119, infra.

b)   Questão de saber se as condições previstas nos artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania estavam preenchidas nas circunstâncias em causa

74.

Expliquei, nas secções anteriores, por que razão medidas nacionais como as controvertidas no processo principal podem, em princípio, ser justificadas ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, lido em conjugação com o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania.

75.

No entanto, para serem plenamente compatíveis com estas disposições, essas medidas devem preencher todas as condições que delas decorrem. Mais concretamente, devem ter sido aplicadas em resposta a uma ameaça grave, real e relevante para a «saúde pública» (1) e devem respeitar os princípios da segurança jurídica (2), da igualdade de tratamento (3) e da proporcionalidade (4). Cabe ao Estado‑Membro em causa demonstrar que é esse o caso. Além disso, em última análise caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, que é o único competente para apreciar os factos, determinar se estas condições estão preenchidas no processo principal. Todavia, o Tribunal de Justiça pode oferecer indicações a este respeito, com base nos elementos de que dispõe. Para o efeito, nas próximas secções examinarei sucessivamente as referidas condições.

1) A existência de uma ameaça grave, real e relevante para a «saúde pública»

76.

Conforme já foi referido, o recurso à justificação de «saúde pública» prevista no artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania está enquadrado. O artigo 29.o define com precisão as circunstâncias em que esses motivos podem ser validamente invocados ( 92 ). Nos termos do seu n.o 1, só determinadas doenças podem justificar a aplicação de medidas restritivas da livre circulação. Estas incluem «doenças com potencial epidémico definidas pelos instrumentos pertinentes da [OMS]» — ou seja, o Regulamento Sanitário Internacional (2005) (a seguir «RSI») ( 93 ).

77.

A COVID‑19 insere‑se obviamente nesta categoria. Observo que, em 30 de janeiro de 2020 ( 94 ), o Diretor‑Geral da OMS determinou que o surto da doença em causa constituía uma «emergência de saúde pública de âmbito internacional» na aceção do referido instrumento ( 95 ). Além disso, em 11 de março de 2020, a mesma instituição, à luz do aumento exponencial de casos notificados e de países afetados, qualificou a COVID‑19 como uma pandemia ( 96 ).

78.

No entanto, o facto de certas medidas terem sido adotadas tendo em conta esta doença não é suficiente para que possam ser consideradas justificadas nos termos do artigo 27.o, n.o 1, e do artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quando as autoridades públicas invocam razões de «saúde pública» para justificar uma restrição ao direito de livre circulação dos cidadãos da União, devem demonstrar, de forma satisfatória, que as medidas em causa são necessárias para proteger eficazmente o interesse visado por essas disposições ( 97 ). Embora decorra da própria lógica do artigo 29.o, n.o 1, que, de um modo geral, se considera que as doenças nele mencionadas constituem uma ameaça grave para a «saúde pública», as medidas preventivas contra essa doença não podem ser impostas aos cidadãos da União com caráter de rotina ( 98 ): essa ameaça deve ser real, e não meramente hipotética, nas circunstâncias do caso em apreço. Assim, as autoridades públicas devem demonstrar, através de uma avaliação do risco, com base nos dados científicos disponíveis mais fiáveis e nos resultados mais recentes da investigação internacional, a probabilidade de a ameaça em questão se concretizar, bem como a gravidade do impacto sobre a «saúde pública», caso se concretize ( 99 ).

79.

No entanto, como alegaram os Governos intervenientes e a Comissão, decorre também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando, após a realização de uma tal avaliação do risco, subsiste a incerteza quanto à existência ou a medida do alegado risco para a «saúde pública», mas persiste a probabilidade de um prejuízo real para esse interesse caso o risco se concretize, um Estado‑Membro pode, ao abrigo do princípio da precaução, tomar medidas sem ter de esperar que a realidade e a gravidade desse risco se tornem plenamente evidentes ( 100 ). Embora deva continuar a existir alguma evidência da necessidade das medidas cautelares, o ónus da prova é reduzido nestas circunstâncias, permitindo às autoridades nacionais agir com a urgência necessária. Por conseguinte, um órgão jurisdicional chamado a apreciar tais medidas deve, no meu entender, limitar‑se a verificar se a apreciação das autoridades acerca da existência de uma ameaça real e grave para a «saúde pública» assenta em motivos razoáveis.

80.

No caso em apreço, é indiscutível que foi esse o caso, no que diz respeito à COVID‑19, no auge da «primeira vaga» da pandemia na União Europeia. Na altura, o aumento exponencial do número de casos transformou o surto desta doença numa «crise sanitária». Independentemente da incerteza científica em torno da origem, transmissibilidade, dinâmica da infeção e efeitos do (então) novo coronavírus, as autoridades públicas tinham motivos mais do que suficientes para acreditar que a pandemia representava uma ameaça real e grave para a segurança da prestação de cuidados de saúde — uma vez que os sistemas nacionais de saúde se esforçavam por lidar com o número de pessoas que tinham de ser hospitalizadas —, bem como para a própria vida e integridade física da sua população. Além disso, é difícil refutar a constatação de que, na altura, a pandemia era «suscetível de ter consequências muito graves não só para a saúde, mas também para a sociedade, a economia, o funcionamento do Estado e a vida em geral» ( 101 ).

81.

Por conseguinte, as autoridades públicas podiam razoavelmente, no mínimo, considerar que o controlo da propagação da COVID‑19 se tinha tornado uma necessidade para salvaguardar os seus sistemas de saúde e atenuar as consequências do vírus para a sociedade em geral e que, para esse efeito, deviam, nomeadamente, aplicar um conjunto de «intervenções não farmacêuticas», incluindo restrições de viagem, numa tentativa de abrandar a transmissão comunitária ( 102 ) da doença ( 103 ).

82.

No entanto, a questão crucial, para efeitos do processo principal, consiste em saber se era ainda esse o caso, na Bélgica, no momento em que as medidas controvertidas foram adotadas e aplicadas em detrimento da Nordic Info, ou seja, grosso modo, no início de julho de 2020. De facto, a licitude dessas medidas deve ser apreciada à luz do contexto existente ( 104 ).

83.

Nessa altura, a gravidade da «primeira vaga» já tinha passado. A partir de maio, a situação epidemiológica global na União Europeia começava a dar sinais de melhoria, o que deu origem a um «otimismo cauteloso» ( 105 ), de tal forma que a Comissão convidou os Estados‑Membros a considerarem a possibilidade de flexibilizar gradualmente e, eventualmente, levantar as restrições de viagem que tinham aplicado entre si no início de março ( 106 ). Esta melhoria foi confirmada em junho. Consequentemente, vários Estados‑Membros levantaram essas restrições a partir de 15 de junho e a Comissão encorajou os demais Estados‑Membros a fazerem o mesmo. A restrição temporária das deslocações não indispensáveis na União Europeia foi igualmente atenuada a 30 de junho ( 107 ).

84.

No entanto, o Governo Belga alega que, embora a situação epidemiológica na União Europeia no início de julho tivesse melhorado globalmente, a pandemia não tinha terminado nem estava totalmente sob controlo. Esta situação, de facto, variou muito de um país para outro. Embora se tenha estabilizado na Bélgica, dados objetivos ( 108 ) revelaram aumentos significativos de infeções noutros Estados‑Membros, incluindo a Suécia. Tendo em conta a natureza altamente contagiosa do vírus ( 109 ), as autoridades belgas consideraram que o risco de um recrudescimento total da pandemia no território nacional — uma (então) potencial «segunda vaga» — era real, especialmente se as medidas de confinamento fossem levantadas demasiado cedo, com o início das férias de verão, e, por conseguinte, decidiram manter algumas dessas medidas, nomeadamente as restrições de viagem controvertidas, adaptando‑as ao risco.

85.

No meu entender, a apreciação das autoridades belgas do risco para a «saúde pública» no momento dos factos afigura‑se razoável, à luz do princípio da precaução ( 110 ). Portanto, as medidas controvertidas parecem justificadas à luz dos artigos 27.o, n.o 1, e do 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania. O facto de, na altura, ainda não existirem tratamento ou vacinas autorizados e/ou eficazes para atenuar o impacto que o vírus poderia ter sobre a população tende a confirmar a razoabilidade desta apreciação. No entanto, como salientou a Comissão, a amplitude do risco dependeria também da capacidade previsível, nomeadamente do sistema de saúde belga, para fazer face a um eventual novo surto de infeções no território nacional, o que caberia ao órgão jurisdicional de reenvio verificar ( 111 ).

86.

Em contrapartida, o facto de outros Estados‑Membros terem levantado, por volta dessa data, algumas ou todas as medidas que tinham posto em prática para limitar a transmissão do vírus não é determinante a este respeito. Com efeito, tendo em conta, por um lado, que a saúde e a vida humanas ocupam o primeiro lugar entre os interesses protegidos pelo Tratado FUE ( 112 ), por outro, que a competência neste domínio é maioritariamente deixada aos Estados‑Membros ( 113 ) e, por último, que qualquer ação da União deve respeitar as «responsabilidades» dos Estados‑Membros na matéria ( 114 ), o Tribunal de Justiça tem repetidamente considerado que cabe aos Estados‑Membros determinar, nomeadamente, «o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública» e que, por conseguinte, devem dispor de uma «margem de apreciação» neste domínio ( 115 ). Assim, embora alguns Estados‑Membros tenham evidentemente considerado aceitável o nível de risco associado à COVID‑19, isso não põe em causa a razoabilidade da apreciação das autoridades belgas quanto à necessidade de medidas cautelares na Bélgica ( 116 ).

2) Transparência das restrições de viagem controvertidas

87.

Embora as autoridades belgas tivessem, à primeira vista, razões legítimas para aplicar medidas cautelares no momento dos factos, para serem compatíveis com os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania essas medidas deviam, além disso, ser transparentes, ou seja, respeitar o princípio da segurança jurídica. Este princípio exige, designadamente, que as normas jurídicas sejam claras, precisas e previsíveis nos seus efeitos, especialmente quando têm, como no presente processo, consequências negativas para os particulares e as empresas ( 117 ).

88.

Na minha opinião, as medidas controvertidas foram formuladas com suficiente clareza e precisão para permitir que as pessoas em causa regulassem o seu comportamento. Primeiro, as medidas foram claramente definidas — proibição de viajar, quarentena e requisitos de testes. Segundo, a lista de países de «alto risco» ou «vermelhos» em relação aos quais as medidas se aplicavam estava disponível numa página Web específica e, por conseguinte, era facilmente acessível. Terceiro, é verdade que estas medidas se baseavam num conceito — o de viagens «não essenciais» — cujo caráter aberto criava uma certa incerteza para as pessoas que pretendiam viajar de e para a Bélgica. O Governo Belga explicou que, embora este conceito não estivesse especificado na regulamentação aplicável, estava, no entanto, disponível em linha uma lista exemplificativa das razões para deslocações consideradas «essenciais», que correspondia à lista aplicável no âmbito da restrição temporária das deslocações não essenciais para a União Europeia ( 118 ). É indubitável que tal ajudava as pessoas a perceberem se a viagem que pretendiam fazer poderia ser considerada «essencial» ou não. No entanto, embora, com base nessa lista, algumas viagens fossem claramente proibidas — viagens de turismo, por exemplo —, algumas das menções desta lista, como «viagens por razões familiares imperiosas», também tinham natureza aberta. A este respeito, afigura‑se‑me que as autoridades nacionais eram obrigadas, por força do princípio da segurança jurídica, a criar um mecanismo que permitisse que os membros do público perguntassem antecipadamente, através dos meios adequados, se um determinado tipo de viagem — por exemplo, por razões familiares — era considerado «essencial» ou não, para evitar serem confrontados com uma recusa inesperada no momento da partida ou da chegada. De facto, o Governo Belga explicou que tinha disponibilizado em linha as respostas a perguntas frequentes sobre este tema. Sempre que uma questão deste tipo era frequentemente colocada pelo público, as autoridades publicavam aí a sua resposta. Isto parece satisfazer o requisito que acabei de enunciar.

3) Aplicação não discriminatória das restrições de viagem controvertidas

89.

Para serem compatíveis com o artigo 27.o, n.o 1, e com o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, as medidas controvertidas também tinham de ser aplicadas de forma não discriminatória ( 119 ).

90.

Este aspeto pode ser abordado sucintamente, uma vez que parece ter sido claramente esse o caso. Primeiro, a proibição de saída do território belga para os países «de alto risco» ou «vermelhos» aplicava‑se independentemente da nacionalidade dos viajantes. Segundo, no que respeita à proibição de entrada, é um facto que esta medida não se aplicava aos nacionais belgas e aos nacionais de outros Estados‑Membros que residiam na Bélgica, ao passo que era imposta aos restantes cidadãos da União. No entanto, esta diferença de tratamento é justificada pelo facto de estas categorias de pessoas não se encontrarem numa situação comparável ( 120 ). Terceiro, a quarentena e os testes eram exigidos aos residentes belgas aquando do regresso dos mesmos países, independentemente da sua nacionalidade.

4) Proporcionalidade das restrições de viagem controvertidas

91.

Para serem compatíveis com os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, as medidas controvertidas devem, além disso, respeitar o princípio da proporcionalidade ( 121 ). Conforme será explicado em pormenor nas secções seguintes, a apreciação deste requisito implica o exame de três critérios cumulativos, a saber, se essas medidas eram «adequadas» (i), «necessárias» (ii) e «proporcionais stricto sensu» (iii).

92.

No entanto, antes de nos debruçarmos sobre cada um dos critérios, impõem‑se alguns esclarecimentos quanto ao grau de fiscalização aplicável a esse princípio no caso em apreço. Como o Governo Norueguês assinala, em questões de saúde pública é necessária alguma contenção nesta matéria. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado que, em conformidade com a «margem de apreciação» de que os Estados‑Membros dispõem neste domínio, cabe‑lhes determinar não só o grau a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública no seu território mas também «o modo como esse nível deve ser alcançado» ( 122 ). Além disso, este poder discricionário é particularmente amplo em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, em que as autoridades públicas procuram responder a uma pandemia causada por um novo vírus, ainda numa fase relativamente precoce e incerta dessa conjuntura, com tempo ou conhecimentos limitados para ponderar as medidas mais adequadas. Em tal situação, o princípio da precaução exige que as autoridades públicas disponham de uma margem de ação significativa ( 123 ).

93.

Importa esclarecer que isso não significa que essas autoridades tenham gozado de uma espécie de carta branca na resposta à pandemia de COVID‑19, de tal modo que a fiscalização jurisdicional dos seus atos nesse sentido deva ser excluída. Com efeito, a fiscalização jurisdicional é tanto mais necessária quanto, devido à urgência da situação, as medidas tomadas para lutar contra a propagação desta doença foram frequentemente adotadas apenas pelos Governos, sem seguir o processo normal de decisão democrática e, nomeadamente, sem controlo parlamentar ex ante.

94.

Assim, para conciliar, por um lado, esta ampla margem de apreciação e, por outro, o necessário cumprimento das normas jurídicas, o âmbito da fiscalização jurisdicional do princípio da proporcionalidade no caso em apreço deve, a meu ver, limitar‑se, também neste caso, à questão de saber se as autoridades podiam razoavelmente considerar que as medidas controvertidas eram adequadas e necessárias para gerir o risco para a «saúde pública» acima referido, e proporcionais stricto sensu ( 124 ).

95.

Gostaria também de esclarecer desde já que, na mesma altura, as instituições da União adotaram ( 125 ), de acordo com a competência limitada da União Europeia no domínio da saúde pública ( 126 ), uma série de comunicações, recomendações e orientações, a fim de promover uma certa coordenação entre as várias medidas adotadas pelos Estados‑Membros em resposta à pandemia ( 127 ). Embora estes instrumentos de soft law não fossem, por definição, vinculativos para os Estados‑Membros, estes deviam tê‑los devidamente em conta, em conformidade com o princípio da cooperação leal. Por conseguinte, os princípios e normas recomendados aí estabelecidos são elementos contextuais relevantes no presente caso.

i) Aparente adequação das restrições de viagem controvertidas

96.

De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a exigência de que qualquer medida restritiva da livre circulação seja «adequada» engloba dois critérios cumulativos: a medida em causa deve, por um lado, ser suscetível de contribuir para a realização do objetivo prosseguido, bem como, por outro, «responder verdadeiramente à intenção de o alcançar e [ser] aplicada de maneira coerente e sistemática» ( 128 ).

– Aparente suscetibilidade das restrições de viagem para contribuir para o objetivo prosseguido

97.

Para satisfazer a primeira parte do requisito de «adequação», o Governo Belga teve de demonstrar que as restrições de viagem como as controvertidas poderiam contribuir para evitar o risco de um novo surto de casos de COVID‑19 no território belga. São necessárias provas científicas que o corroborem. Dito isto, também neste caso, por força do princípio da precaução, o ónus da prova é reduzido. Com efeito, à data dos factos, embora a ameaça representada pela pandemia parecesse real e grave, existia um grau significativo de incerteza quanto às soluções disponíveis para a enfrentar.

98.

A este respeito, aquele Governo alegou que, embora não fosse possível estabelecer com certeza, à data dos factos, que essas medidas teriam um efeito preventivo, era razoável, com base nas informações científicas disponíveis nessa altura, presumir que poderiam ter esse efeito. Existia um «amplo consenso» entre os peritos médicos nacionais e os conselheiros do Governo no sentido de que os movimentos internacionais de pessoas contribuíam significativamente para a propagação da COVID‑19. A restrição desses movimentos parecia, por conseguinte, ser uma medida adequada para controlar a pandemia.

99.

Concordo que as autoridades belgas podiam razoavelmente presumir que as restrições de viagem eram passíveis de contribuir para alcançar o objetivo de «saúde pública» prosseguido. Contudo, é necessária maior clarificação a este respeito, uma vez que tal contribuição não é tão evidente como foi apresentado pelos Governos intervenientes e pela Comissão ao Tribunal de Justiça.

100.

De facto, no que diz respeito à base científica de tais medidas, noto que, antes da COVID‑19, se considerava geralmente que as restrições de viagem não eram eficazes na contenção de surtos de doenças epidémicas ( 129 ). Assim, nas primeiras semanas da pandemia, a OMS não recomendou a aplicação de tais restrições em relação à China ou a outros países ( 130 ). No entanto, como sabemos, a maioria dos países ignorou a recomendação da OMS a esse propósito ( 131 ). As próprias instituições da União aprovaram as restrições de viagem impostas na União Europeia pelos Estados‑Membros e recomendaram a aplicação da restrição temporária coordenada das viagens não indispensáveis para a União Europeia, considerando que o grande afluxo de pessoas provenientes de países afetados pelo vírus implicava a «importação» de um número considerável de casos «estrangeiros» de COVID‑19 nos seus países de chegada, o que poderia provocar, e efetivamente provocou, surtos locais ( 132 ). Neste contexto, vários documentos científicos publicados na primavera de 2020 sugeriram que essas restrições de viagem contribuíam efetivamente para limitar ou, pelo menos, atrasar a chegada inicial e o surto da doença nos países em causa ( 133 ). De facto, a OMS acabou por rever a sua posição e considerou que essas medidas tinham algum valor nessa matéria ( 134 ).

101.

Importa notar, porém, que, na data dos factos, a COVID‑9 já se tinha estabelecido no território belga. Pode legitimamente questionar‑se a restrição à circulação internacional após o vírus já se ter propagado entre a população local. No entanto, como alega o Governo Belga, e embora os elementos disponíveis na altura sobre a matéria fossem limitados e inconclusivos ( 135 ), era razoável supor que, num contexto em que, por um lado, a situação epidemiológica variava significativamente de um Estado‑Membro para outro, com alguns países a registarem uma elevada taxa de transmissão do vírus, enquanto a situação no território belga era comparativamente segura ( 136 ), e em que, por outro, se previa, com a aproximação do verão, um grande afluxo de viajantes que chegariam ou regressariam desses países com maior incidência, por razões relacionadas com o turismo, fazia sentido manter algumas restrições de viagem entre a Bélgica e os países em causa. Poderia contribuir, numa medida limitada, mas ainda assim apreciável ( 137 ), para prevenir o risco de um novo surto de casos de COVID‑19 no território belga. Com efeito, poderia evitar uma importação significativa de casos «estrangeiros» de COVID‑19 que, por sua vez, poderiam perturbar o frágil equilíbrio local. De facto, a própria OMS previu a possibilidade de aplicar ou manter tais restrições como uma das medidas adequadas para limitar a transmissão comunitária neste contexto ( 138 ).

102.

Obviamente, uma vez que parece estabelecido — numa medida razoável — que a restrição dos movimentos internacionais de pessoas pode contribuir para limitar a propagação da COVID‑19, dificilmente se pode duvidar de que, como o Governo interveniente alegou perante o Tribunal de Justiça, a proibição controvertida de viagens «não essenciais» era adequada para limitar esses movimentos entre a Bélgica e os países de «alto risco» em questão. A proibição de «entrada» evitou o risco de os viajantes provenientes dessas zonas «trazerem consigo» casos de doença. A proibição de «saída» impediu que os residentes belgas se deslocassem a essas áreas, com o mesmo resultado em relação ao seu regresso. Além disso, os requisitos de quarentena e de testes de despistagem impostos aos residentes belgas permitiram, como argumenta o Governo Belga, que as autoridades acompanhassem de perto o seu estado de saúde, o que era suscetível de contribuir para a deteção e isolamento nos casos de suspeita de casos importados, limitando assim o risco de transmissão à população local ( 139 ).

– Coerência das restrições de viagem controvertidas

103.

A questão de saber se as restrições de viagem controvertidas «respondiam verdadeiramente» à intenção de alcançar o objetivo de «saúde pública» prosseguido depende de se essas medidas faziam parte de uma estratégia mais ampla para limitar a propagação da COVID‑19 ( 140 ). Parece ter sido esse o caso. O Governo Belga refere que outras «intervenções não farmacêuticas» destinadas a impedir a transmissão comunitária — tais como medidas de higiene, testes, isolamento e rastreio de contactos — estavam em vigor à data dos factos. Além disso, quando um Estado‑Membro restringe, como a Bélgica fez na altura, as deslocações de e para outros Estados‑Membros com base na sua situação epidemiológica comparativamente pior, a coerência exigia, na minha opinião, que impusesse restrições semelhantes às deslocações de e para as zonas, dentro do território nacional, com uma situação epidemiológica igualmente grave ( 141 ). Não resulta claramente do processo se era esse o caso na Bélgica nessa altura. Esse facto deve ser verificado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

104.

Quanto à questão de saber se as medidas controvertidas foram aplicadas de forma coerente e sistemática, recordo que a sua aplicação dependia da situação epidemiológica nos países em causa, um fator que é claramente coerente com o objetivo de saúde pública prosseguido. Além disso, todos os países com uma situação epidemiológica semelhante foram tratados da mesma forma a este respeito. Além disso, a avaliação da situação em cada país foi efetuada com base em dados razoavelmente fiáveis e atualizados fornecidos pelo ECDC ( 142 ) —fator que contribuiu inquestionavelmente para a coerência do sistema global.

105.

Na minha perspetiva, o facto de as restrições controvertidas não se aplicarem às deslocações para fins «essenciais» não põe em causa a sua coerência. Efetivamente, um número limitado de razões para viajar eram reconhecidas como «indispensáveis». O alcance desta exclusão não era, portanto, de molde a impedir a realização do objetivo de saúde pública prosseguido ( 143 ). Com efeito, esta exclusão era uma necessidade à luz deste objetivo. Impedir algumas dessas deslocações «indispensáveis», nomeadamente a circulação de trabalhadores «essenciais» como os profissionais de saúde, teria sido prejudicial para a luta contra a COVID‑19. Por último, como explicarei em pormenor mais adiante, essa exclusão era um requisito da garantia da proporcionalidade estrita dessas medidas ( 144 ). Além disso, o «alvo» das medidas era, recordo, o potencial afluxo de viajantes para fins turísticos que não estava abrangido por essa exclusão.

ii) Aparente necessidade das restrições de viagem controvertidas

106.

A exigência de que qualquer medida restritiva da livre circulação seja «necessária» engloba também duas condições. Há que verificar, por um lado, se existem medidas alternativas tão eficazes como a medida escolhida para atingir o objetivo prosseguido e que sejam menos restritivas ( 145 ), e, por outro, se essa medida é «estritamente necessária», ou seja, não ultrapassa o necessário para alcançar esse objetivo ( 146 ).

– Questão de saber se existiam alternativas menos restritivas, mas igualmente eficazes

107.

A título preliminar, gostaria de recordar que cabe a cada Estado‑Membro determinar o nível de proteção que deseja conceder à saúde pública no seu território e a forma como essa proteção deve ser assegurada — desde que os requisitos da legislação da União sejam cumpridos. O facto de outros Estados‑Membros poderem ter imposto medidas menos rigorosas não é, por conseguinte, determinante ( 147 ). É evidente que quanto mais elevado é o nível de proteção da saúde pública pretendido, mais fortes são as medidas necessárias para o atingir. É evidente que, neste caso, a Bélgica procurava um nível de proteção elevado.

108.

Passando agora à existência de alternativas às restrições de viagem controvertidas que fossem igualmente eficazes na proteção da saúde pública e, ao mesmo tempo, menos restritivas da livre circulação, noto que o ónus da prova imposto às autoridades nacionais neste domínio não é tão amplo que as obrigue a demonstrar que nenhuma outra medida poderia constituir uma alternativa viável ( 148 ). Portanto, no caso em apreço não é necessário examinar todas as medidas concebíveis. É suficiente passar em revista as alternativas mais evidentes, que foram discutidas no Tribunal de Justiça.

109.

Em primeiro lugar, a imposição de medidas individuais de recusa de entrada ou de quarentena apenas a certos viajantes (por exemplo, aos que apresentavam sintomas da doença) teria sido, evidentemente, menos restritiva. Contudo, não teria sido tão eficaz para evitar o risco de «importação» de casos de COVID‑19 ao nível pretendido pelas autoridades belgas. Mesmo admitindo que o rastreio dos sintomas de todos os viajantes no ponto de entrada no território belga fosse exequível, seria razoável supor que esse rastreio só permitiria identificar alguns portadores da doença e que uma parte deles — ou seja, as pessoas assintomáticas e pré‑sintomáticas — teria passado pelo filtro sem ser detetada ( 149 ). O rastreio geral dos viajantes através de testes rápidos tinha falhas semelhantes ( 150 ).

110.

Em segundo lugar, a simples imposição de uma quarentena a todos os viajantes que chegam ou regressam de países de «alto risco» também não teria sido tão eficaz para atingir o nível de proteção pretendido pelo Governo Belga como a proibição de viajar de e para esses países, aplicando‑se os requisitos de quarentena apenas aos residentes. É evidente que a quarentena dos viajantes durante um período de tempo adequado contribui, em certa medida, para atenuar o risco acima referido ( 151 ). Em teoria, a quarentena garante que todos, incluindo os portadores assintomáticos e os que se encontram na fase pré‑sintomática de incubação, estão isolados do resto da população local e, por conseguinte, não provocam cadeias de infeção. No entanto, como afirmam os Governos Belga e Norueguês, enquanto a proibição de viajar evita o risco de importação de casos «estrangeiros» de COVID‑19 para o território nacional, a quarentena, pelo contrário, é apenas uma medida corretiva, que atua quando esses casos já foram importados e, dependendo das suas modalidades, é apenas parcialmente eficaz para atenuar o risco de transmissão posterior à população local. Exigir às pessoas uma quarentena no domicílio, como parece ter sido aqui o caso, tem essas limitações. Além do facto de as pessoas poderem não respeitar plenamente a obrigação de se isolarem, é frequente partilharem a sua casa com familiares que podem, eles próprios, ser infetados e propagar a doença ( 152 ).

– Necessidade estrita das restrições de viagem controvertidas

111.

Quanto à questão de saber se as restrições de viagem controvertidas não excediam o necessário para atingir o objetivo de «saúde pública» prosseguido, recordo que essas medidas se aplicavam apenas em relação aos países que se considerava apresentarem um risco elevado de infeção para viajantes. Além disso, aparentemente — embora isso deva ser verificado pelo órgão jurisdicional de reenvio — sempre que estavam disponíveis dados sobre a taxa de infeção dentro de um determinado país, a nível regional, as restrições eram aplicadas de forma mais direcionada, apenas em relação às deslocações entre a Bélgica e as regiões problemáticas ( 153 ).

112.

É certo que poderiam ter sido concebidas medidas mais específicas, que permitissem uma abordagem ainda mais direcionada. A avaliação da situação epidemiológica num determinado país poderia ter sido aperfeiçoada. A consideração de dados como a taxa de testagem, a estrutura populacional, etc., poderia ter permitido uma avaliação mais precisa ( 154 ). No entanto, isso teria, obviamente, tornado mais complexa essa apreciação, e o tempo era um fator essencial. Como salientam os Governos Belga e Norueguês, o direito da União permite que as autoridades nacionais adotem regras fáceis de aplicar e de fazer cumprir, mesmo que não conduzam a uma solução perfeita para cada situação ( 155 ).

113.

Recordo ainda que, para satisfazer o requisito em causa nesta secção, as medidas que restringem o direito à livre circulação devem também ser acompanhadas de certas garantias, que são capazes de assegurar que a ingerência nesse direito é efetivamente limitada ao estritamente necessário ( 156 ).

114.

No presente processo, uma primeira salvaguarda contra uma ingerência desnecessária reside, a meu ver, na reavaliação regular das restrições de viagem controvertidas ( 157 ). Como sublinham os Governos intervenientes e a Comissão, a situação epidemiológica em cada país ou região era regularmente revista para garantir que as restrições se aplicavam, em relação a cada zona, enquanto essa situação fosse problemática. Os dados sobre a taxa de infeção nacional ou regional eram, ao que parece, atualizados semanalmente ( 158 ), de modo que as autoridades públicas pudessem adaptar a classificação por cores de forma dinâmica ( 159 ). Quanto à necessidade geral destas medidas, caberia ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os decretos em causa incluíam uma «cláusula de caducidade» que previsse a sua cessação numa determinada data ou, pelo menos, se as autoridades belgas acompanhavam a evolução da ameaça que as justificava.

115.

Segundo, o órgão jurisdicional de reenvio devia também verificar se as garantias processuais previstas nos artigos 30.o e 31.o da Diretiva Cidadania estavam em vigor. Embora, como indiquei no n.o 73, supra, essas disposições não tenham sido redigidas tendo em mente medidas gerais como as que estão em causa, aquelas garantias continuam a ser aplicáveis. Com efeito, destinavam‑se a «assegurar, por um lado, um elevado nível de proteção dos direitos dos cidadãos da União» em caso de restrições à sua liberdade de circulação e, por outro, «o respeito do princípio de que as medidas tomadas pelas autoridades devem ser devidamente justificadas» ( 160 ). As garantias em causa constituem, além disso, uma expressão específica do princípio da proteção jurisdicional efetiva garantido pelo artigo 47.o da Carta, o que justifica o seu amplo alcance. Dito isto, concordo com o Governo Belga e com a Comissão quanto ao facto de serem necessárias algumas adaptações no presente caso.

116.

Por um lado, no que diz respeito às obrigações de «notificar por escrito» a «decisão» que restringe a livre circulação à «pessoa em questão» e de a informar das razões pelas quais essa «decisão» foi adotada, previstas respetivamente nos n.os 1 e 2 do artigo 30.o da Diretiva Cidadania, é óbvio que as restrições de viagem controvertidas não podiam ter sido notificadas dessa forma e que essas informações foram prestadas, numa base individual, a todas as pessoas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação. No entanto, a proteção oferecida por essas garantias tinha de ser adequadamente assegurada. Conforme o Governo Belga alegou na audiência, o facto de as informações a respeito da adoção destas restrições e as razões de «saúde pública» em que se baseavam terem sido frequentemente divulgadas ao público em geral através de vários meios de comunicação social de grande audiência satisfaz, a meu ver, esta exigência ( 161 ).

117.

No que diz respeito, por outro lado, à obrigação de dar aos cidadãos da União acesso a meios de tutela judicial para efeitos de recurso ou pedido de revisão de qualquer «decisão» que restrinja o seu direito à livre circulação, estabelecida no n.o 1 do artigo 31.o da Diretiva Cidadania, isso não significa, na minha opinião, que os cidadãos da União devessem ter o direito de contestar diretamente medidas gerais como as que estão em causa, se essa possibilidade não existisse no direito nacional. Com efeito, esta disposição deve, na minha perspetiva, ser lida à luz do artigo 47.o da Carta e do requisito fundamental que dele emana ( 162 ). Recordo que o princípio da proteção jurisdicional efetiva aí garantido não exige, enquanto tal, que exista uma ação autónoma destinada a impugnar a conformidade de disposições nacionais com normas do direito da União, desde que existam uma ou mais vias de recurso que permitam assegurar, a título incidental, o respeito pelos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União ( 163 ).

118.

Há várias formas pelas quais os órgãos jurisdicionais belgas poderiam ter assegurado a proteção jurisdicional dos direitos que assistem aos cidadãos da União ao abrigo da Diretiva Cidadania durante a pandemia. Em primeiro lugar, qualquer ato praticado, por exemplo, pelas autoridades policiais que recuse, com base nas restrições de viagem controvertidas, o embarque de uma determinada pessoa num voo, ou que imponha uma sanção pela tentativa de embarque, qualificar‑se‑ia, ele próprio, como uma «decisão» na aceção do artigo 31.o, n.o 1, da referida diretiva ( 164 ), e deveria, por conseguinte, ser suscetível de recurso jurisdicional. Neste contexto, a pessoa em causa deveria ter tido a oportunidade de suscitar, a título preliminar, a questão da compatibilidade com o direito da União das medidas gerais com base nas quais essa «decisão» tinha sido tomada. Em segundo lugar, era evidentemente possível — uma vez que a Nordic Info apresentou tal pedido — fazê‑lo no âmbito de um pedido de reparação contra o Estado ( 165 ).

119.

No contexto desses procedimentos de recurso, um cidadão da União deveria ter podido não só impugnar a compatibilidade global dessas medidas com o direito da União mas também alegar que não deveriam ter sido aplicadas a si. Essa pessoa deveria ter podido alegar, por exemplo, que lhe foi indevidamente recusado o direito de embarcar no seu voo, quando viajava com um objetivo «indispensável». Os órgãos jurisdicionais deveriam ter podido analisar, por exemplo, se as autoridades tinham o direito de considerar que a viagem em questão, apesar de relacionada com a família, não se enquadrava na categoria de «razões familiares imperiosas» ( 166 ), ou se as circunstâncias individuais muito específicas dessa pessoa deveriam ter justificado, independentemente dessas categorias gerais de viagens consideradas «indispensáveis», uma derrogação excecional à proibição de viajar ( 167 ).

iii) Proporcionalidade estrita das restrições de viagem controvertidas

120.

A proporcionalidade stricto sensu implica uma avaliação dos inconvenientes causados por uma determinada medida e da proporcionalidade de tais inconvenientes em relação aos fins pretendidos ( 168 ). Esta exigência foi largamente ignorada pelos Governos intervenientes e pela Comissão nas suas alegações. No entanto, podem ser desculpados por esta omissão, uma vez que esta etapa do teste de proporcionalidade está geralmente ausente da jurisprudência «tradicional» do Tribunal de Justiça em matéria de livre circulação ( 169 ). Em contrapartida, o Tribunal de Justiça é relativamente constante nas suas decisões relativas à legalidade das medidas nacionais que limitam o exercício dos direitos fundamentais garantidos pela Carta, nos termos do seu artigo 52.o, n.o 1 ( 170 ). Neste contexto, o Tribunal de Justiça perguntou ao Governo Belga e à Comissão, na audiência, se o órgão jurisdicional de reenvio devia, efetivamente, verificar também a proporcionalidade estrita das restrições de viagem controvertidas. Estes intervenientes admitiram que assim deveria ser. Estou também convencido de que esta é a abordagem correta, pelas razões que se seguem.

121.

As medidas que restringem a livre circulação de pessoas levantam, de um modo geral, questões relacionadas com os direitos fundamentais. Além do facto de o direito à livre circulação de que gozam os cidadãos da União estar, em si mesmo, protegido pela Carta ( 171 ), as medidas nacionais que restringem esse direito limitam geralmente, ao mesmo tempo, outros direitos e liberdades nela garantidos. É certamente o que acontece neste caso. As restrições de viagem controvertidas, ao impedirem a circulação entre Estados‑Membros, podem ter, consoante as circunstâncias, limitado a) o direito à vida privada e familiar protegido pelo artigo 7.o (uma vez que poderia, nomeadamente, ter mantido as famílias separadas) ( 172 ), b) o direito à educação protegido pelo artigo 14.o (visto que poderiam, por exemplo, impedir os estudantes de frequentarem cursos numa universidade estrangeira), c) o direito ao trabalho garantido no artigo 15.o (porquanto poderiam impedir as pessoas de procurar emprego no estrangeiro) e a liberdade de empresa protegida no artigo 16.o (designadamente porque tornavam praticamente impossível a prestação de serviços turísticos em relação aos países de «alto risco» em causa).

122.

Nesta situação, as condições de derrogação ao direito de livre circulação, previstas no artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, devem ser interpretadas em conformidade com as exigências que decorrem da Carta. Com efeito, esta disposição não pode tolerar restrições à livre circulação de pessoas que não sejam admissíveis nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Daí resulta, a meu ver, que o teste de proporcionalidade deve ser tão rigoroso no âmbito da primeira disposição como no da segunda.

123.

Com efeito, existe uma diferença significativa, em termos de proteção dos direitos fundamentais, entre as várias etapas do critério de proporcionalidade. As exigências de «adequação» e de «necessidade» respeitam unicamente à eficácia das medidas em causa em relação ao objetivo prosseguido. Em última análise, não é mais do que um controlo jurisdicional limitado que visa determinar se as autoridades avaliaram a situação de facto de uma forma razoavelmente correta a esse respeito. Além disso, esta fiscalização depende em grande medida de considerações abstratas como o «nível de proteção» do interesse em causa que as autoridades públicas pretendiam alcançar. Como já referi, quanto mais elevado for esse nível de proteção, mais «necessárias» se afiguram as medidas restritivas, mesmo que sejam particularmente drásticas. No entanto, algumas medidas, por mais «necessárias» que sejam para salvaguardar determinados interesses, são simplesmente demasiado onerosas para outros interesses para serem aceitáveis numa sociedade democrática. É precisamente este o objetivo do requisito de «proporcionalidade stricto sensu». De acordo com este requisito, as vantagens resultantes das medidas controvertidas para o objetivo prosseguido são ponderadas em função das desvantagens que causam em relação aos direitos fundamentais ( 173 ). Tal como o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe observou nas suas conclusões no processo Tele2 Sverige e o ( 174 )., esse exercício de ponderação «dá origem a um debate sobre os valores que devem prevalecer numa sociedade democrática e, em definitivo, sobre o tipo de sociedade em que desejamos viver». Este debate é necessário, mesmo em relação a medidas de «saúde pública» ( 175 ) e, acrescentaria eu, particularmente em relação às medidas adotadas durante a pandemia de COVID‑19, dado o seu impacto sem precedentes em toda a população dos Estados‑Membros ( 176 ).

124.

Passando agora à proporcionalidade estrita das restrições de viagem controvertidas, observo que, como já foi referido, por um lado essas medidas limitaram, consoante as circunstâncias, vários direitos e liberdades fundamentais protegidos pela Carta. Por outro lado, afiguram‑se adequadas e necessárias para prosseguir um objetivo de interesse geral reconhecido pela União, a saber, a proteção da saúde pública. Além disso, como os Governos Belga e Norueguês sublinharam, a aplicação de tais medidas era necessária para proteger o «direito à saúde» das populações nacionais, que é reconhecido em numerosos instrumentos internacionais de que os Estados‑Membros são partes e que lhes impõe obrigações positivas de tomar medidas adequadas para, designadamente, controlar as doenças epidémicas ( 177 ). Neste contexto, deve ser mantido um «justo equilíbrio» entre esses diferentes direitos e interesses ( 178 ).

125.

Obviamente, manter esse equilíbrio não era um exercício fácil. Manter a pandemia sob controlo e, ao mesmo tempo, limitar o impacto das medidas sanitárias nas liberdades civis foi, sem dúvida, uma tarefa complexa. As autoridades públicas tiveram de fazer muitas escolhas políticas, económicas e sociais, e com bastante rapidez, dada a rápida evolução da situação com que se defrontaram. De facto, este foi provavelmente um dos maiores desafios que as autoridades públicas tiveram de enfrentar na história recente.

126.

A ponderação das vantagens e desvantagens de restrições de viagem como as ora em causa era particularmente difícil. Por um lado, essas medidas poderiam ajudar a limitar a propagação da COVID‑19. Por outro lado, eram suscetíveis de causar perturbações sociais e económicas significativas ( 179 ).

127.

Em primeiro lugar, as restrições de viagem tiveram um enorme impacto nos negócios e na liberdade conexa garantida pelo artigo 16.o da Carta. Em particular, o setor do turismo sofreu consequências sem precedentes. Devido a estas restrições, as atividades dos operadores turísticos, por exemplo, como a Nordic Info, foram suspensas em geral ( 180 ). No entanto, na ponderação de valores concorrentes, as autoridades públicas poderiam, a meu ver, razoavelmente considerar que a saúde pública deve prevalecer sobre tais considerações económicas ( 181 ) e/ou que uma pandemia não controlada poderia ter consequências ainda mais graves para a economia, a longo prazo, se não fossem temporariamente tomadas medidas para limitar a sua propagação. Além disso, foram adotadas outras medidas, a nível da União e a nível nacional, para atenuar o impacto dessas restrições no setor em questão ( 182 ).

128.

Em segundo lugar, as restrições de viagem implicaram desvantagens significativas para as pessoas. Essas desvantagens são um rude golpe para o jurista da União, uma vez que essas medidas tiveram o maior impacto no «filho dileto» do direito da União, a saber, o cidadão móvel da União. Esse estatuto, e o direito à livre circulação que lhe está associado, foi concebido como um meio de emancipação das pessoas, através do estudo, do trabalho, das amizades, da criação de laços familiares, etc., em toda a União Europeia. Para muitos desses cidadãos, as deslocações internacionais constituem uma parte essencial da vida. De repente, a mesma mobilidade que a União Europeia tinha vindo a promover era agora vista como uma ameaça e, consequentemente, foi restringida ( 183 ).

129.

Posto isto, é evidente que, de um modo geral, as restrições de viagem podem ter um impacto diferente nos cidadãos da União consoante as circunstâncias. Por exemplo, impedir uma pessoa de regressar ao seu país de origem e/ou se reúna com os seus entes queridos num outro país, viola o seu direito fundamental dessa pessoa à vida privada e familiar, mais do que meramente impedi‑la de fazer uma viagem de turismo à Suécia. É por isso que, normalmente, a proporcionalidade estrita de tais medidas deve ser apreciada in concreto, tendo em conta as circunstâncias individuais das pessoas afetadas ( 184 ).

130.

Já expliquei no n.o 70, supra, que, quando se trata de restrições de viagem adotadas em resposta à ameaça colocada por uma doença epidémica, tal avaliação individual muitas vezes não seria possível sem comprometer a eficácia de tais restrições. Podem ser adotadas medidas gerais a esse respeito. No entanto, nessa hipótese deve ser efetuada uma avaliação da proporcionalidade in abstracto, distinguindo diferentes categorias de pessoas e circunstâncias, para ter em conta o facto de algumas razões para viajar merecerem mais proteção do que outras e deve prevalecer sobre as exigências de saúde pública ( 185 ).

131.

O Governo Belga alegou na audiência, em resposta a questões que lhe forma colocadas pelo Tribunal, que as restrições de viagem controvertidas assentavam nessa lógica. Foi nomeadamente para garantir a proporcionalidade estrita destas medidas que as pessoas que viajavam por razões «indispensáveis», mormente por «razões familiares imperiosas», foram excluídas do seu âmbito de aplicação.

132.

Na minha opinião, assumindo que as categorias gerais de viagens «indispensáveis» tenham sido entendidas de forma suficientemente ampla para satisfazer as exigências, nomeadamente, do direito fundamental à vida privada e familiar, e que as provas necessárias para demonstrar que uma viagem era «essencial» não fossem de molde a tornar, na prática, excessivamente difícil viajar ( 186 ), isso contribuiu efetivamente para garantir a proporcionalidade estrita das medidas controvertidas ( 187 ). No entanto, além destas categorias gerais, as medidas controvertidas deveriam também, em minha opinião, ter sido aplicadas de forma flexível. Outras circunstâncias individuais específicas deveriam ter justificado derrogações excecionais no momento da aplicação das medidas. As pessoas que se encontravam temporariamente na Bélgica deveriam ter sido autorizadas a regressar ao seu Estado‑Membro de residência, quer se tratasse da Suécia ou de outro país de «alto risco» ( 188 ). Outras circunstâncias humanitárias poderiam, e deveriam, ter também justificado tal derrogação com base nos direitos fundamentais. Isso cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

133.

Em contrapartida, as autoridades públicas podiam razoavelmente considerar que as deslocações turísticas, por muito importantes que fossem, devem ceder temporariamente às exigências da saúde pública. Além disso, a este respeito, há que ter em conta que as restrições em causa apenas se aplicavam em relação a determinados países de «alto risco», ao passo que as viagens turísticas para outros países eram permitidas. Este facto também contribuiu para satisfazer a proporcionalidade estrita das medidas controvertidas.

6.   Conclusão intercalar

134.

Atendendo às considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão no sentido de que os artigos 4.o, n.o 1, e 5.o, n.o 1, lidos em conjugação com os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, em princípio, a medidas nacionais, aplicadas em resposta à ameaça grave e real para a saúde pública colocada por uma pandemia, que consistam, por um lado, na proibição de viajar de e para países nos quais a situação epidemiológica é comparativamente pior do que a que existe no Estado‑Membro em questão e, por outro, em requisitos de quarentena e de testagem para os residentes aquando do seu regresso desses países.

B. Legalidade dos controlos efetuados para aplicar as restrições de viagem controvertidas (segunda questão)

135.

No órgão jurisdicional de reenvio, a Nordic Info alega que, para aplicar as restrições de viagem abordadas na minha análise da primeira questão, as autoridades belgas efetuaram, na data dos factos, controlos nas fronteiras entre a Bélgica e os outros Estados Schengen, em violação das regras do Código das Fronteiras Schengen.

136.

Recordo que, para concretizar o objetivo da União Europeia de criar «um espaço […] sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas» ( 189 ), o Código das Fronteiras Schengen prevê o princípio da ausência de controlo fronteiriço das pessoas que atravessam as «fronteiras internas» ( 190 ) entre os países aos quais se aplica o acervo de Schengen, como a Bélgica e a Suécia ( 191 ). O artigo 22.o do referido código consagra este princípio ao prever que as fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas. No entanto, a título excecional, os artigos 25.o a 35.o do mesmo código permitem, em determinadas condições, a reintrodução temporária desses controlos.

137.

No caso vertente, a Nordic Info alega que os controlos controvertidos foram efetuados em violação do artigo 22.o do Código das Fronteiras Schengen. Além disso, no seu entender não estavam preenchidas as condições para uma reintrodução excecional do controlo nas fronteiras internas, prevista nos artigos 25.o e seguintes deste código.

138.

Na decisão de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio parece partir da premissa de que os controlos efetuados pelas autoridades belgas constituíam efetivamente «controlos de fronteira» na aceção do artigo 22.o do Código das Fronteiras Schengen e, por conseguinte, parece interrogar‑se sobre a sua legalidade apenas à luz dos artigos 25.o e seguintes do referido código. No entanto, o Governo Belga contesta esta premissa nas suas alegações. Além disso, a segunda questão é formulada de forma ampla e aberta, abrangendo potencialmente também esse tema. Por conseguinte, considero adequado fazer alguns esclarecimentos sobre a qualificação dos controlos controvertidos (1), antes de examinar as condições para a reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas (2).

1.   Qualificação dos controlos controvertidos

139.

O pedido de decisão prejudicial é vago no que respeita aos controlos efetuados pelas autoridades belgas para aplicar as restrições de viagem controvertidas na data dos factos. O órgão jurisdicional de reenvio explica apenas — e recorda na formulação da sua segunda questão — que a proibição de viajar prevista no artigo 18.o do decreto impugnado ( 192 ) era «controlada e sujeita a sanções» em caso de violação e que podia ser «aplicada oficiosamente» pelas autoridades competentes. Quanto ao restante, o referido órgão jurisdicional reproduz o conteúdo de algumas das disposições pertinentes do direito belga, sem explicar o que implicam na prática. Em todo o caso, os elementos que se seguem decorrem do processo e, nomeadamente, das respostas dadas pelo Governo Belga às questões que lhe foram colocadas pelo Tribunal de Justiça.

140.

Por um lado, não se discute que, à data dos factos, as autoridades belgas não tinham reintroduzido formalmente o controlo nas fronteiras internas que a Bélgica partilha com os outros países Schengen, em conformidade com os artigos 25.o e seguintes do Código das Fronteiras Schengen. Por outro lado, nessa altura foram efetuados alguns controlos por agentes da polícia, nomeadamente:

nos aeroportos, em princípio relativamente a todos os voos. No entanto, em relação aos voos provenientes de países Schengen de «alto risco» ou «vermelhos», forma efetuados controlos aleatórios a passageiros;

nas estações ferroviárias, foram efetuados pelos agentes policiais controlos aleatórios de determinados passageiros de comboios internacionais de alta velocidade provenientes de países vizinhos, no momento do desembarque na primeira estação em que esses comboios paravam após a entrada no território belga;

nas estradas que atravessavam as fronteiras, com unidades móveis de agentes que efetuavam controlos aleatórios durante o seu horário normal de trabalho.

141.

No entender do Governo Belga, estes controlos não eram os «controlos de fronteira» na aceção do artigo 22.o do Código das Fronteiras Schengen. Consistiam apenas no «exercício das competências de polícia pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros, ao abrigo do direito nacional […] nas zonas fronteiriças» e, além disso, não tinham um «efeito equivalente a um controlo de fronteira» na aceção do artigo 23.o, alínea a), do referido código. Por conseguinte, não se enquadravam na proibição de controlo nas fronteiras internas, tal como esclarece esta última disposição.

142.

A qualificação adequada dos controlos controvertidos é, obviamente, uma questão que deve ser determinada pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com vista a orientar esse órgão jurisdicional a este respeito, farei, no entanto, algumas observações.

143.

Por um lado, os controlos em causa poderiam, à primeira vista, parecer corresponder à definição de «controlos de fronteira» prevista no artigo 2.o, ponto 11, do Código das Fronteiras Schengen. Primeiro, foram aparentemente «efetuados nos pontos de passagem de fronteira» ou perto desses pontos — pelo menos no que diz respeito a estradas e aeroportos ( 193 ), embora o caso das estações ferroviárias não seja muito diferente ( 194 ). Segundo, foram alegadamente efetuados «a fim de assegurar que as pessoas […] po[ssam] ser autorizadas a entrar no território [de um Estado‑Membro] ou autorizadas a abandoná‑lo», uma vez que os agentes de polícia aparentemente verificavam se os viajantes preenchiam pelo menos uma das condições impostas no momento dos factos para «ser[em] autorizad[o]s a entrar» ou «a abandon[ar]» o território belga — nomeadamente, a condição de viajarem para um «fim indispensável» ou, em alternativa, de não procederem de um país de «alto risco» nem tentarem partir para um país de «alto risco».

144.

Por outro lado, o facto de os controlos controvertidos aparentemente não terem sido efetuados em instalações fixas, mas por unidades móveis de agentes de polícia presentes em locais que variavam ao longo do tempo, bem como o facto de não se tratar de controlos sistemáticos ( 195 ), mas sim de «controlos por amostragem» aleatórios, constituem indícios fortes ( 196 ) de que eram, como alega o Governo Belga, casos de «exercício das competências de polícia […] nas zonas fronteiriças», conforme previsto no artigo 23.o, alínea a), do Código das Fronteiras Schengen. Visto que a intensidade e a frequência desses controlos — que devem ser verificadas pelo órgão jurisdicional de reenvio com base nas regras pertinentes do direito belga — não eram de molde a ter um «efeito equivalente a um controlo de fronteira», os referidos controlos não estavam, de facto, abrangidos pela proibição prevista no artigo 22.o daquele código ( 197 ). O facto de a alínea a) do artigo 23.o apenas prever, na subalínea ii), os controlos efetuados em resposta a «ameaças à ordem pública» e não a «ameaças à saúde pública» é irrelevante a este respeito. Com efeito, essa disposição não oferece uma base jurídica nem define as razões pelas quais podem ser exercidas «competências públicas» — uma vez que essas razões são definidas no direito nacional aplicável — e o cenário dos controlos relacionados com a segurança pública é apresentado apenas a título de exemplo ( 198 ).

2.   Condições para a reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas

145.

Expliquei na secção anterior por que razão, no meu entender, sem prejuízo da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, controlos como os que foram efetuados na altura dos factos pelas autoridades belgas para aplicar as restrições de viagem controvertidas não constituíam os «controlos de pessoas» proibidos nas fronteiras internas, na aceção do artigo 22.o do Código das Fronteiras Schengen. Por conseguinte, a questão de saber se nessa altura as condições para uma reintrodução excecional do controlo de pessoas nessas fronteiras estavam preenchidas na Bélgica já não se afigura pertinente. No entanto, por uma questão de exaustividade, abordá‑la‑ei ( 199 ).

146.

O artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen estabelece o quadro geral que rege a reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas. Prevê, nomeadamente, que esse controlo pode ser reintroduzido «[e]m caso de ameaça grave à ordem pública ou à segurança interna» de um Estado‑Membro. É necessário que estejam preenchidas outras condições processuais e materiais, como explicarei de seguida ( 200 ).

147.

No entanto, independentemente do facto de estas outras condições estarem ou não preenchidas no momento dos factos na Bélgica, a Nordic Info alega que a reintrodução do controlo fronteiriço simplesmente não era possível em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, pela singela razão de que o artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen não faz referência à «saúde pública» como justificação para tal medida. Esta matéria está, como decorre da decisão de reenvio, no cerne da segunda questão do órgão jurisdicional de reenvio. Sendo assim, começarei por analisar, em abstrato, o alcance dessa disposição (a), antes de tecer algumas observações breves sobre a questão de saber se as condições de aplicação dessa medida estavam preenchidas nas circunstâncias aqui em causa (b).

a)   Âmbito de aplicação do artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen

148.

Na minha opinião, o argumento da Nordic Info relativo aos motivos pelos quais o controlo nas fronteiras internas pode ser legalmente reintroduzido ao abrigo do artigo 25.o, n.o 1 do Código das Fronteiras Schengen tem algum peso ( 201 ).

149.

Com efeito, enquanto o artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania enumera expressamente a «ordem pública, […] segurança pública ou […] saúde pública» (o sublinhado é meu) como motivos admissíveis para restringir a livre circulação, o artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen refere, no que diz respeito ao controlo nas fronteiras internas, apenas a «ameaça grave à ordem pública ou à segurança interna», deixando aparentemente de lado a «saúde pública». A prevenção das «ameaças à saúde pública» dos Estados‑Membros é efetivamente mencionada nesse código, mas apenas em relação à entrada de nacionais de países terceiros que chegam às fronteiras externas ( 202 ).

150.

Além disso, a análise dos antecedentes deste código tende a indicar que esta diferença de regime não é uma simples omissão, mas uma escolha deliberada do legislador da União. A este respeito, recordo que a Convenção de aplicação do Acordo de Schengen ( 203 ), assinada em Schengen, em 19 de junho de 1990 ( 204 ), não se referiu à «saúde pública» nem em relação à condição de entrada de estrangeiros nem em relação à reintrodução temporária do controlo fronteiriço nas fronteiras internas ( 205 ). No entanto, na sua proposta legislativa, que se tornou a primeira versão do Código das Fronteiras Schengen ( 206 ), a Comissão propôs, entre outras coisas, acrescentar às condições de entrada existentes a de que os estrangeiros não devem constituir uma ameaça para a saúde pública ( 207 ) e de que o controlo fronteiriço pode ser reintroduzido em caso de «ameaça grave para a ordem pública, a saúde pública ou a segurança interna» ( 208 ). No entanto, durante a primeira leitura do texto, o Parlamento Europeu alterou as disposições relativas ao controlo nas fronteiras internas, suprimindo qualquer referência a ameaças à «saúde pública» ( 209 ). A alteração em causa sobreviveu à restante parte do processo legislativo.

151.

Dito isto, tal como os Governos Belga, Norueguês e Suíço, bem como a Comissão, sou de opinião que, embora as «ameaças à saúde pública» não possam, por si só, justificar a reintrodução do controlo nas fronteiras internas ao abrigo do n.o 1 do artigo 25.o do Código das Fronteiras Schengen, algumas situações relacionadas com a saúde pública são tão graves que podem, ainda assim, ser incluídas no conceito de «ameaça grave à ordem pública» empregado nessa disposição ( 210 ).

152.

Embora o conceito de «ameaça grave à ordem pública» não esteja definido no Código das Fronteiras Schengen, decorre do considerando 27 deste código que o legislador da União pretendeu que a definição dada pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência em matéria de livre circulação se aplicasse a este respeito. De acordo com a jurisprudência pertinente, o conceito de «ordem pública» pressupõe a existência de «uma ameaça real, atual e suficientemente grave para um interesse fundamental da sociedade» ( 211 ).

153.

Primeiro, a proteção da população contra os perigos, nomeadamente através do controlo das doenças epidémicas, bem como a prestação de cuidados de saúde a essa população, podem facilmente ser consideradas parte desses «interesses fundamentais da sociedade». De facto, esta pode ser uma das «funções essenciais do Estado» que a União Europeia «respeita», nos termos do artigo 4.o, n.o 2, TUE. Segundo, os riscos colocados por essas doenças podem, em determinadas circunstâncias, ser suficientemente graves para constituírem uma «ameaça real, atual e suficientemente grave» que afete esses «interesses» ( 212 ).

154.

Uma vez que, por exemplo, uma determinada pandemia corresponde à definição de «ordem pública» acima referida, não vejo nenhuma razão para a excluir do âmbito de aplicação do artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen. A redação desta disposição não é restritiva quanto ao tipo de «ameaças à ordem pública» que podem justificar a reintrodução do controlo nas fronteiras internas. Desde que seja «grave», qualquer ameaça deste género está coberta. Os elementos históricos acima referidos não excluem, na minha opinião, essa interpretação ( 213 ). Para esclarecer, isto não significa que a «saúde pública» e a «ordem pública» sejam coincidentes e que a primeira possa sempre justificar aquela medida. Esse só seria o caso em circunstâncias excecionais em que a situação de saúde pública é suficientemente grave para ameaçar seriamente a ordem pública ( 214 ).

b)   Questão de saber se as condições para a reintrodução do controlo fronteiriço estavam preenchidas nas circunstâncias aqui em causa

155.

Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não se interroga verdadeiramente sobre a questão que consiste em saber se as condições para a reintrodução do controlo fronteiriço estavam preenchidas nas circunstâncias aqui em causa e que, além disso, quaisquer esclarecimentos sobre esta matéria provavelmente serão irrelevantes para o processo principal, limitar‑me‑ei a fazer apenas algumas observações sobre este aspeto.

156.

Em primeiro lugar, como acabo de explicar, a reintrodução do controlo nas fronteiras internas justifica‑se, nos termos do artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen, como resposta a uma «ameaça grave à ordem pública ou à segurança interna de um Estado‑Membro». Quanto a saber se a pandemia de COVID‑19 constituía efetivamente uma «ameaça» à data dos factos, recordo os n.os 76 a 86, supra.

157.

Em segundo lugar, decorre dos artigos 25.o, n.o 2, e 26.o do Código das Fronteiras Schengen que a aplicação de tal medida deve respeitar o princípio da proporcionalidade ( 215 ).

158.

Primeiro, no tocante a saber se a reintrodução do controlo nas fronteiras internas constitui uma solução adequada para a «ameaça grave à ordem pública» que a COVID‑19 pode ter representado na altura dos factos, recordo os n.os 97 a 102 das presentes conclusões, a propósito da discussão sobre o efeito (limitado) das restrições aos movimentos internacionais de pessoas na propagação de uma doença epidémica. No entanto, tal como as restrições de viagem, como as que estão em causa, eram adequadas a este respeito, creio que o mesmo se aplica à reintrodução do controlo nas fronteiras internas. De facto, tal medida contribuiu (ou poderia ter contribuído) para a aplicação daquelas restrições e, por conseguinte, para a sua aplicação sistemática e coerente.

159.

Segundo, determinar se a reintrodução do controlo nas fronteiras internas era necessária depende, essencialmente, de saber se existiam medidas alternativas menos restritivas, mas igualmente eficazes, para fazer cumprir as restrições de viagem controvertidas. A este respeito, observo que a realização de «controlos por amostragem» aleatórios no território, incluindo nas zonas fronteiriças, acompanhados de sanções efetivas e dissuasivas em caso de violação dessas medidas, poderia provavelmente ter sido uma forma menos restritiva, mas igualmente eficaz, de as fazer cumprir — e, de facto, parece ter sido a linha de ação escolhida precisamente pelas autoridades belgas na altura dos factos ( 216 ).

160.

Terceiro, no que diz respeito à proporcionalidade estrita da reintrodução do controlo nas fronteiras internas, recordo as minhas observações nos n.os 120 a 133, supra, acerca da discussão sobre a aceitabilidade, numa sociedade democrática, de restrições aos movimentos internacionais de pessoas por razões de «saúde pública». Acrescento ainda que, além dos inconvenientes decorrentes das restrições substantivas de viagem, os controlos fronteiriços acarretam, em si mesmos, algumas desvantagens ( 217 ). Os controlos fronteiriços efetuados pelos Estados‑Membros durante a pandemia dificultaram significativamente a circulação de pessoas que viajavam para fins «essenciais» e que, por isso, não estavam abrangidas pelas proibições de viagem e para quem a circulação sem entraves através das fronteiras era crucial. O impacto destes controlos sobre os trabalhadores fronteiriços e os profissionais de saúde foi por vezes significativo, nomeadamente resultou em longas filas de espera e atrasos consideráveis. O mesmo é verdade no que respeita à circulação de mercadorias entre fronteiras. No mínimo, para «equilibrar» as possíveis vantagens e inconvenientes do controlo fronteiriço, deviam ter sido tomadas medidas como o sistema de «corredores verdes» recomendado pela Comissão, para facilitar o fluxo de pessoas e bens «essenciais» ( 218 ).

161.

Por último, recordo que é necessário seguir um procedimento específico para reintroduzir o controlo nas fronteiras internas. Concretamente, nos termos do artigo 27.o do Código das Fronteiras Schengen, as autoridades nacionais devem notificar as suas homólogas dos outros Estados‑Membros e a Comissão, o mais tardar quatro semanas antes da reintrodução prevista. Excecionalmente, ao abrigo do artigo 28.o, podem reintroduzir de forma imediata o controlo fronteiriço, notificando simultaneamente essa medida. Em qualquer dos casos, era necessária uma notificação. Ao que parece, nem todos os Estados‑Membros que tomaram essa medida durante a pandemia cumpriram esse requisito ( 219 ).

3.   Conclusão intercalar

162.

Atendendo às considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão no sentido de que o artigo 25.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen não se opõe, em princípio, a que um Estado‑Membro reintroduza temporariamente o controlo nas fronteiras internas em resposta a uma pandemia, desde que esta seja suficientemente grave para ser qualificada como uma «ameaça grave à ordem pública» na aceção dessa disposição e que estejam preenchidas todas as condições aí previstas.

V. Conclusão

163.

Atendendo às considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Língua Neerlandesa de Bruxelas, Bélgica) do seguinte modo:

1)

Os artigos 4.o, n.o 1, e 5.o, n.o 1, lidos em conjugação com os artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE,

devem ser interpretados no sentido de que

não se opõem, em princípio, a medidas nacionais, aplicadas em resposta à ameaça grave e real para a saúde pública colocada por uma pandemia, que consistam, por um lado, na proibição de viajar de e para países com uma situação epidemiológica comparativamente pior do que a existente no Estado‑Membro em questão e, por outro, em requisitos de quarentena e de testagem para os residentes aquando do seu regresso desses países.

2)

O artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2016/399 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen),

deve ser interpretado no sentido de que

não se opõe, em princípio, a que um Estado‑Membro reintroduza temporariamente o controlo nas fronteiras internas em resposta a uma pandemia, desde que esta seja suficientemente grave para ser qualificada como uma «ameaça grave à ordem pública» na aceção dessa disposição e que estejam preenchidas todas as condições aí previstas.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) As «intervenções não farmacêuticas» são medidas de saúde pública, diferentes da vacinação e do fornecimento de medicamentos e prestação de tratamentos médicos, que visam prevenir e/ou controlar a transmissão de uma doença contagiosa numa comunidade. V. Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (a seguir «ECDC»), Guidelines for non‑pharmaceutical interventions to reduce the impact of COVID‑19 in the EU/EEA and the UK (Orientações relativas às intervenções não farmacêuticas destinadas a reduzir o impacto da COVID‑19 na UE/EEE e no Reino Unido), ECDC, Estocolmo, 24 de setembro de 2020 (a seguir «Orientações do ECDC»).

( 3 ) É verdade que os Estados‑Membros viveram diferentes «vagas» da pandemia em diferentes momentos. No entanto, no que diz respeito ao ano pertinente para o presente caso, a saber, 2020, é possível fazer uma distinção aproximada entre uma «primeira vaga», do fim de fevereiro ao fim de junho, e uma «segunda vaga», que começou no outono de 2020 e coincidiu com o aparecimento de novas estirpes de COVID‑19.

( 4 ) Comissão Europeia, 16 de março de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho — COVID‑19: Restrições temporárias aplicáveis às viagens não indispensáveis para a UE [COM(2020) 115 final], e Conselho Europeu, Conclusões do presidente do Conselho Europeu na sequência da reunião por videoconferência sobre a COVID‑19 com os membros do Conselho Europeu, 17 de março de 2020.

( 5 ) V., sobre as diferentes restrições à mobilidade transfronteiriça aplicadas pelos Estados‑Membros, Orientações do ECDC, pp. 18‑20 e as referências indicadas.

( 6 ) V., a este propósito, a jurisprudência relativa ao aparecimento da doença das «vacas loucas», nomeadamente Acórdão de 5 de maio de 1998, Reino Unido/Comissão (C‑180/96, EU:C:1998:192).

( 7 ) V. artigo 3.o, n.o 2, TUE e artigo 26.o, n.o 2, TFUE.

( 8 ) V., por exemplo, jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a conservação de dados de tráfego na Internet, nomeadamente Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791).

( 9 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77).

( 10 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016 (JO 2016, L 77, p. 1).

( 11 ) V. artigo 7.o do Ministerieel besluit van 20 maart 2020 houdende dringende maatregelen om de verspreiding van het coronavirus COVID‑19 te beperken (Decreto Ministerial, de 23 de março de 2020, sobre as Medidas de Emergência para Limitar a Propagação do Coronavírus COVID‑19) (Moniteur Belge, de 23 de março de 2020, p. 17603).

( 12 ) Esta expressão designa os Estados‑Membros da União Europeia e os países terceiros que aplicam o acervo de Schengen, nomeadamente a Islândia, o Listenstaine, a Noruega e a Suíça.

( 13 ) V. artigo 7.o do Decreto Ministerial, de 23 de março de 2020, sobre as Medidas de Emergência para Limitar a Propagação do Coronavírus COVID‑19, conforme alterado pelo Decreto Ministerial de 5 de junho de 2020 (Moniteur Belge, de 5 de junho de 2020, p. 41544), e, subsequentemente, artigo 18.o do Ministerieel Besluit van 30 juni 2020 houdende dringende maatregelen om de verspreiding van het coronavirus COVID‑19 te beperken (Decreto Ministerial, de 30 de junho de 2020, relativo às Medidas Urgentes para Limitar a Propagação do Coronavírus COVID‑19) (Moniteur Belge, de 30 de junho de 2020, p. 48715).

( 14 ) A decisão de reenvio não explica a base jurídica para a imposição das obrigações de quarentena e de teste no regresso. Perante o Tribunal de Justiça, o Governo Belga explicou que os requisitos de quarentena e de testes não estavam abrangidos pela competência do Estado federal, mas sim das entidades federadas. Consequentemente, eram aplicáveis diferentes regulamentos em diferentes partes da Bélgica.

( 15 ) A saber, o Celeval, um organismo criado pelo Governo Belga em abril de 2020, presidido pelo Serviço Federal de Saúde Pública e composto por peritos em saúde, virologistas, economistas, psicólogos, peritos em comportamento e em comunicação.

( 16 ) Moniteur Belge, de 31 de julho de 2007.

( 17 ) V. n.o 12, supra. É incontestável que a Suécia não impôs restrições à entrada de residentes belgas na altura dos factos.

( 18 ) A Nordic Info pede uma indemnização, mais concretamente, pelos prejuízos relacionados com a anulação de todas as viagens para a Suécia, com a prestação de informações aos viajantes em causa e com a assistência no seu regresso, bem como com a impossibilidade de realização de futuras reservas devido à proibição de viajar. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio especifica que, nesta fase do processo principal, a Nordic Info «não exclui nenhuma categoria de danos», o que, se bem entendi, significa que pode invocar outros prejuízos numa fase posterior. Voltarei a este aspeto no n.o 36, infra.

( 19 ) A decisão de reenvio não especifica quanto tempo essas medidas estiveram em vigor.

( 20 ) Saliento que, contrariamente ao que a redação da primeira questão parece indicar, resulta claramente da decisão de reenvio que estes requisitos se aplicavam não só aos nacionais de outros Estados‑Membros que residem na Bélgica, mas também aos cidadãos belgas. O órgão jurisdicional de reenvio explica, a este propósito, que esta questão não reflete o seu âmbito efetivo, mas antes o facto de a Nordic Info contestar a compatibilidade destas medidas com o direito da União apenas porque se aplicam a nacionais de outros Estados‑Membros.

( 21 ) Bem como aos membros das suas famílias que sejam nacionais de países terceiros. Nas presentes conclusões, por uma questão de simplicidade, referir‑me‑ei aos nacionais dos Estados‑Membros, mas a análise será igualmente válida para os nacionais de países terceiros.

( 22 ) Com efeito, embora as regras sobre a livre circulação atribuam aos nacionais dos Estados‑Membros o direito de circular entre estes Estados, não lhes concedem o direito de não serem submetidos a controlos fronteiriços quando o fazem. V., para o efeito, considerando 7 e artigos 4.o e 5.o da Diretiva Cidadania.

( 23 ) V. Protocolo n.o 19 relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (JO 2010, C 83, p. 290), anexo ao Tratado de Lisboa, artigos 1.o e 2.o

( 24 ) V., nomeadamente, artigo 56.o TFUE.

( 25 ) Além disso, o direito dos nacionais dos Estados‑Membros de viajarem no interior da União Europeia com o objetivo específico do turismo está protegido ao abrigo da livre prestação de serviços prevista, nomeadamente, no artigo 56.o TFUE. V., nomeadamente, Acórdão de 31 de janeiro de 1984, Luisi e Carbone (286/82 e 26/83, EU:C:1984:35, n.o 16).

( 26 ) V. artigos 20.o, n.o 2, e 21.o, n.o 1, TFUE, e artigo 52.o, n.o 2, da Carta.

( 27 ) V. artigo 1.o, alínea a), da Diretiva Cidadania.

( 28 ) V., nomeadamente, Acórdão de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.os 30 e 32 e jurisprudência referida).

( 29 ) Inversamente, a possibilidade de os cidadãos da União saírem de um Estado‑Membro para se deslocarem a um país terceiro não está abrangida por essa disposição, nem em geral pelo direito da União em matéria de livre circulação.

( 30 ) V., neste sentido, considerandos 2 e 3 da Diretiva Cidadania.

( 31 ) Em direito internacional, o direito de sair de qualquer país, incluindo do seu próprio, é garantido, nomeadamente, no artigo 2.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950. Uma vez que todos os Estados‑Membros, com exceção da Grécia, ratificaram o protocolo, este constitui um elemento contextual pertinente para a análise do presente caso.

( 32 ) Esta solução decorre da delimitação do âmbito de aplicação geral da Diretiva Cidadania, que, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 1, se aplica «a todos os cidadãos da União que se desloquem ou residam num Estado‑Membro que não aquele de que são nacionais» [v., entre outros, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras numa embarcação de recreio) (C‑35/20, EU:C:2021:813, n.os 67 a 69 e jurisprudência referida)]. Na audiência, o Tribunal de Justiça perguntou aos intervenientes se, consequentemente, o artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva não regula também a saída, do território belga, de um nacional sueco que pretende viajar para a Suécia. No meu entender, a resposta é afirmativa. Em primeiro lugar, de um ponto de vista lógico, do facto de a Diretiva Cidadania não abordar a questão específica da entrada de um nacional sueco na Suécia não decorre que também não regule a questão da saída desse nacional da Bélgica — pois estas questões são conexas, mas distintas. Por outro lado, quando um nacional sueco reside na Bélgica, é um «[cidadão] da União que […] [reside] num Estado‑Membro que não aquele de que [é nacional]», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva. Essa pessoa é, por conseguinte, um «beneficiário» do direito conferido por esse instrumento. O artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva aplica‑se, portanto, à questão de saber se a Bélgica pode ou não proibir essa pessoa de sair do seu território, independentemente do destino.

( 33 ) Em contrapartida, o direito geral de um estrangeiro entrar num determinado país não está garantido, como tal, no direito internacional. V., relativamente à CEDH, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH»), 26 de junho de 2012, Kurić e o. c. Eslovénia (CE:ECHR:2014:0312JUD00268280, § 355).

( 34 ) V., a este respeito, nomeadamente, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras numa embarcação de recreio) (C‑35/20, EU:C:2021:813, n.o 70 e jurisprudência referida). O artigo 56.o TFUE poderia também, na minha opinião, ser invocado por cidadãos da União contra o seu próprio Estado‑Membro, no contexto do regresso de uma viagem de turismo a outro Estado‑Membro (v. nota 26, supra).

( 35 ) V. artigo 2.o do Acordo celebrado pelo Conselho da União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega relativo à associação destes Estados à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen, de 18 de maio de 1999 (JO 1999, L 176, p. 36).

( 36 ) V. n.os 12 e 13, supra.

( 37 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere, na decisão de reenvio, que considera que a Diretiva Cidadania regula a circulação de pessoas entre, nomeadamente, a Bélgica e a Islândia ou a Noruega.

( 38 ) Com efeito, a categorização destes países na classificação por cores que está em causa no processo principal não é mencionada na decisão de reenvio, o que significa que nem sequer é claro se as restrições de viagem se aplicavam a estes países à data dos factos.

( 39 ) V., por exemplo, Acórdãos de 11 de dezembro de 2018, Weiss e o. (C‑493/17, EU:C:2018:1000, n.o 166), e de 26 de novembro de 2020, Sögård Fastigheter (C‑787/18, EU:C:2020:964, n.os 79 a 81).

( 40 ) Acordo de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3).

( 41 ) Mais especificamente no anexo V, ponto 1, e no anexo VIII, ponto 3.

( 42 ) JO 2008, L 124, p. 20, e Suplemento EEE n.o 26, de 8 de maio de 2008, p. 17.

( 43 ) No direito do EEE, qualquer referência, na Diretiva Cidadania, a «Estado(s)‑Membro(s)» deve ser interpretada no sentido de incluir também os Estados da EFTA (Islândia, Listenstaine e Noruega) e qualquer referência a «cidadão(s) da União» é substituída pela expressão «nacional(ais) dos Estados‑Membros da CE e dos Estados da EFTA» (v. anexo V e anexo VIII do Acordo EEE).

( 44 ) V., para o efeito, artigo 7.o do Acordo EEE.

( 45 ) V. n.os 34 e 35, supra.

( 46 ) V., nomeadamente, artigo 28.o (livre circulação dos trabalhadores) e artigo 31.o (liberdade de estabelecimento) do Acordo EEE. A este respeito, a Comissão recordou, na audiência, que a livre prestação de serviços garantida pelo artigo 36.o deste acordo confere aos nacionais dos Estados‑Membros da União e dos Estados da EFTA o direito de se deslocarem no interior do EEE para fins turísticos (v. Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.os 51 a 54), como acontece com o artigo 56.o TFUE no interior da União Europeia (v. nota 26, supra), e, tal independentemente do estatuto económico desses nacionais. Por conseguinte, no presente processo, independentemente da medida em que a Diretiva Cidadania se aplica no EEE, os clientes da Nordic Info tinham um direito garantido ao abrigo da legislação do EEE de viajar da Bélgica para a Islândia ou para a Noruega (e vice‑versa). Este facto reforça a minha convicção de que não há necessidade de decidir esta questão no presente processo.

( 47 ) V. Decisão do Comité Misto, considerando 8. V. também Declaração comum das partes contratantes relativa à [referida decisão].

( 48 ) Sublinho que o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o Acordo EEE. Com efeito, uma vez que foi celebrado, nomeadamente, pela União Europeia, é parte integrante do direito da União. V. Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 49).

( 49 ) Acórdão de 27 de junho de 2014 (E‑26/13, [2014] EFTA Ct. Rep. 254) (a seguir «Acórdão Gunnarsson»).

( 50 ) V. Diretivas 90/364/CEE do Conselho, de 28 de junho de 1990, relativa ao direito de residência (JO 1990, L 180, p. 26); 90/365/CEE do Conselho, de 28 de junho de 1990, relativa ao direito de residência dos trabalhadores assalariados e não assalariados que cessaram a sua atividade profissional (JO 1990, L 180, p. 28); e 90/366/CEE do Conselho, de 28 de junho de 1990, relativa ao direito de residência dos estudantes (JO 1990, L 180, p. 30). Estas diretivas tinham sido adotadas, na altura, com base na «cláusula de flexibilidade» prevista no artigo 235.o do Tratado CE (atual artigo 352.o TFUE).

( 51 ) V. Acórdão Gunnarsson (n.os 75 a 82).

( 52 ) Conforme estabelecido no artigo 26.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations Unies, vol. 1155, p. 331).

( 53 ) V., entre outros, Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 54 ) V., por analogia, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:792, n.o 92).

( 55 ) V., nomeadamente, artigo 7.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva Cidadania.

( 56 ) Na minha opinião, o raciocínio do Tribunal da EFTA no n.o 80 do seu Acórdão Gunnarsson, segundo o qual, por um lado, a incorporação da Diretiva Cidadania no Acordo EEE não pode ter introduzido nesse acordo «direitos baseados no conceito de cidadania da União», enquanto, por outro lado, os indivíduos devem poder invocar os «direitos estabelecidos» que foram «mantidos» nessa diretiva, pode ser lido dessa forma. Todavia, o Tribunal de Justiça perguntou aos intervenientes, na audiência, se este raciocínio devia, pelo contrário, ser entendido no sentido de que apenas alguns dos direitos garantidos por esta diretiva, considerados «estabelecidos», deviam aproveitar às pessoas que não exercem uma atividade económica no EEE, ao passo que outros, como o direito de residência de curta duração (artigo 6.o) e o direito de residência permanente (artigos 16.o a 21.o), não o deviam fazer, por se tratar de direitos «novos», «baseados no conceito de cidadania da União». Tal como todos os intervenientes, não creio que seja necessária uma interpretação tão restritiva. Repito: não consta da decisão do Comité Misto nenhuma reserva nesse sentido. Seguramente, para o Tribunal da EFTA bastava que os «direitos» à livre circulação e residência, de um modo geral, já tivessem sido «estabelecidos» para as pessoas que não exercem uma atividade económica ao abrigo das anteriores diretivas, mesmo que os «subdireitos» específicos deles decorrentes tenham evoluído na Diretiva Cidadania.

( 57 ) Por uma questão de simplicidade, continuarei, nas presentes conclusões, a referir‑me apenas aos cidadãos da União que viajam no interior da União Europeia. Este raciocínio será válido, mutatis mutandis, para o cenário da circulação de cidadãos da União e nacionais de Estados EFTA no interior do EEE.

( 58 ) V., por analogia, TEDH, 14 de junho de 2022, L.B. c. Lituânia (CE:ECHR:2022:0614JUD003812120, § 81).

( 59 ) Com efeito, em conformidade com o princípio de direito internacional reafirmado no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH, um Estado não pode recusar a entrada no seu território aos seus próprios nacionais.

( 60 ) O que pode ser explicado pelo facto de o artigo 29.o, n.o 2, da Diretiva Cidadania não permitir que um Estado‑Membro recuse, por razões de «saúde pública», a entrada de nacionais de outros Estados‑Membros que residam no seu território (v. n.o 60, infra).

( 61 ) Com efeito, esta disposição tem, na minha opinião, um âmbito de aplicação mais restrito do que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania ou o artigo 21.o, n.o 1, TFUE, uma vez que se limita a proibir a privação ex lege ou de facto do direito de entrar no território nacional. O mesmo não se pode dizer sobre as medidas temporárias, como a quarentena. V. TEDH, 14 de setembro de 2022, H.F. e o. c. França (CE:ECHR:2022:0914JUD002438419, §§ 128 e 248).

( 62 ) V., por analogia, artigo 123.o, alínea c), do Acordo EEE.

( 63 ) V. minhas Conclusões no processo Valstybės sienos apsaugos tarnyba e o. (C‑72/22 PPU, EU:C:2022:431, n.o 112 e referências citadas). No que respeita ao artigo 2.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH, recordo que, do mesmo modo, o artigo 15.o, n.o 1, dessa convenção permite aos Estados‑Membros, em caso de «perigo público que ameace a vida da nação», «tomar providências que derroguem as obrigações previstas na presente Convenção, na estrita medida em que o exigir a situação, e em que tais providências não estejam em contradição com as outras obrigações decorrentes do direito internacional».

( 64 ) Limito‑me a observar que, de acordo com a jurisprudência do TEDH, o conceito de «perigo público que ameace a vida da nação», na aceção do artigo 15.o da CEDH, se refere a «uma situação excecional de crise ou de emergência que afeta toda a população e constitui uma ameaça para a vida organizada da comunidade que compõe o Estado» (v. TEDH, 1 de julho de 1961, Lawless c. Irlanda, n.o 3, CE:ECHR:1961:0701JUD000033257, § 28). O TEDH ainda não se pronunciou sobre a questão de saber se a pandemia de COVID‑19 está abrangida por essa definição. No entanto, na sua decisão de 13 de abril de 2021, Terheş c. Roménia (CE:ECHR:2021:0413DEC00499332, § 39, a seguir «Acórdão Terheş c. Roménia»), deu a entender que poderia ser esse o caso, pelo menos durante os seus primeiros meses (v. § 39). Nas minhas Conclusões no processo Valstybės sienos apsaugos tarnyba e o. (C‑72/22 PPU, EU:C:2022:431, n.os 110 a 113), sugeri uma definição semelhante do conceito de «perturbações internas graves» utilizado no artigo 347.o TFUE. Na minha perspetiva, a situação em certos Estados‑Membros, no auge da primeira vaga, poderia ter consubstanciado tais «perturbações». Essa consideração parece mais rebuscada em relação à situação nos outros Estados‑Membros na altura dos factos (v. n.os 80 a 85, infra).

( 65 ) Tanto quanto sei, nenhum Estado‑Membro invocou o artigo 347.o TFUE durante a pandemia de COVID‑19. No que diz respeito ao artigo 15.o, n.o 1, da CEDH, a Bélgica não figura entre os Estados que emitiram, durante esta pandemia, notificações ao abrigo do artigo 15.o, n.o 3 (lista das notificações disponível em https://www.coe.int/en/web/conventions/derogations‑covid‑19).

( 66 ) V., por analogia, TEDH, Terheş c. Roménia (§ 46 e jurisprudência referida).

( 67 ) V., para o efeito, artigos 20.o e 21.o, n.o 1, TFUE. V. também, no que respeita ao artigo 45.o da Carta, artigo 52.o, n.o 1, do mesmo instrumento.

( 68 ) V., mutatis mutandis, Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 25 e jurisprudência referida).

( 69 ) V. n.os 75 e seguintes. Saliento que, ao contrário das exceções de «ordem pública» ou de «segurança pública», a exceção de «saúde pública» nunca foi, até à data, interpretada pelo Tribunal de Justiça.

( 70 ) V. n.o 35 e nota 61, supra.

( 71 ) De facto, nos termos do artigo 29.o, n.o 2, um Estado‑Membro não pode expulsar um cidadão da União por razões de «saúde pública» após decorridos «três meses depois da data de entrada no território». Daqui decorre que um Estado‑Membro só pode recusar a entrada inicial desse cidadão no seu território ou expulsá‑lo antes de ele ter começado a exercer o direito de residência previsto no artigo 7.o da Diretiva Cidadania. Em contrapartida, a partir do momento em que esse cidadão se torna residente, se abandonar temporariamente o território não lhe pode ser recusada a entrada aquando do regresso com esses fundamentos.

( 72 ) No que diz respeito aos nacionais belgas, uma vez que o princípio reafirmado no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH não se opõe a tais medidas (v. nota 61, supra), estas poderiam ser adotadas nos termos do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, aplicando‑se, por analogia, as condições estabelecidas nos artigos 27.o, n.o 1, e 29.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania.

( 73 ) V., neste sentido, Acórdãos de 10 de julho de 2008, Jipa (C‑33/07, EU:C:2008:396, n.os 19 a 22); de 17 de novembro de 2011, Gaydarov (C‑430/10, EU:C:2011:749, n.os 26, 29 e 30); e de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.os 35 e 36).

( 74 ) O capítulo VI da Diretiva Cidadania intitula‑se «Restrições ao direito de entrada e ao direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública» (o sublinhado é meu).

( 75 ) V., no que respeita à COVID‑19, n.o 102, infra.

( 76 ) Na proposta da Comissão de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao direito à livre circulação e residência dos cidadãos da União e membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros [COM(2001) 257 final], o artigo 27.o (então artigo 25.o) referia‑se às «decisões de recusa de entrada […] de um cidadão da União […]», enquanto o artigo 29.o (então artigo 27.o) se referia à «recusa de entrada». No entanto, estas disposições foram alteradas durante a tramitação legislativa da proposta, passando a referir eventuais restrições à «livre circulação», expressão que foi considerada preferível, dado que «cobre todos os tipos de medidas, quer se trate de um afastamento, de uma recusa de entrada ou de uma recusa de saída do território» [v. Proposta alterada de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao direito à livre circulação e residência dos cidadãos da União e membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, COM(2003) 199 final, p. 8, 29 e 30]. O facto de o título do capítulo VI não ter sido alterado em conformidade é, portanto, uma mera omissão do legislador da União. O mesmo se aplica ao facto de o n.o 1 do artigo 29.o continuar a referir‑se ao «Estado‑Membro de acolhimento», em vez de utilizar um termo mais geral como «o Estado‑Membro em causa», para atender à situação em que um Estado‑Membro restringe o direito de saída dos seus próprios nacionais.

( 77 ) Por analogia, o direito de saída previsto no artigo 2.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH pode ser restringido, nomeadamente por razões de «saúde pública» (v. artigo 2.o, n.o 3).

( 78 ) V., do mesmo ponto de vista, Goldner Lang, I., «‘‘Laws of Fear” in the EU: The Precautionary Principle and Public Health Restrictions to Free Movement of Persons in the Time of COVID‑19», European Journal of Risk Regulation, 2021, pp. 1‑24; Thym, D., e Bornemann, J., «Schengen and Free Movement Law During the First Phase of the Covid‑19 Pandemic: Of Symbolism, Law and Politics», European Papers, vol. 5, n.o 3, 2020, pp. 1162‑1163; van Eijken, H. H., e Rjipma, J. J., «Stopping virus from moving freely: border controls and travel restrictions in times of corona», Utrecht Law Review, vol. 17, n.o 3, 2021, pp. 34 a 50.

( 79 ) É verdade que o artigo 29.o, n.o 3, da Diretiva Cidadania prevê que um Estado‑Membro não pode, com «caráter de rotina», condicionar a entrada no seu território a um exame médico «para se certificar que [os cidadãos da União que chegam a esse Estado‑Membro] não sofrem das doenças mencionadas no [artigo 29.o, n.o 1»]. Só o pode fazer «[s]e indícios graves o justificarem». A Comissão referiu, nas notas explicativas da sua proposta inicial, que esta afirmação tinha por objetivo esclarecer que a derrogação relativa à «saúde pública» só pode ser utilizada «desde que existam indícios sérios de que a pessoa em causa sofre de uma das doenças [previstas no artigo 29.o, n.o 1]». No entanto, isso não significa, a meu ver, que nos termos do artigo 29.o, n.o 1, só possam ser adotadas medidas individuais. Com efeito, o facto de uma pessoa apresentar sintomas de uma doença com potencial epidémico pode constituir um «indício sério» de que tal medida é necessária. No entanto, o mesmo também é verdade relativamente ao facto de essa pessoa pretender viajar temporariamente para um país que enfrenta um surto grave dessa doença ou de ser proveniente desse país. Por conseguinte, as medidas restritivas geralmente aplicáveis às pessoas que viajem ou pretendam viajar para tal país não são contrárias ao artigo 29.o, n.o 3.

( 80 ) V. n.o 61 e nota 76, supra. Para dar mais um exemplo: o artigo 27.o, n.o 2, faz referência ao princípio da proporcionalidade, ao passo que o artigo 29.o não o faz, apesar de este princípio dever ser sempre respeitado (v. n.o 91, infra).

( 81 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2014 (C‑202/13, EU:C:2014:2450, n.os 43 a 58).

( 82 ) V., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2020, Comissão/Polónia, Hungria e República Checa (Mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional) (C‑715/17, C‑718/17 e C‑719/17, EU:C:2020:257, n.os 135, 159 e 160).

( 83 ) V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral H. Mayras no processo Bonsignore (67/74, não publicado, EU:C:1975:22, p. 315).

( 84 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, McCarthy e o. (C‑202/13, EU:C:2014:2450, n.o 56).

( 85 ) V., mutatis mutandis, Acórdão de 4 de abril de 2017, Fahimian (C‑544/15, EU:C:2017:255, n.os 40 e 41).

( 86 ) V., em relação à COVID‑19, n.o 109, infra.

( 87 ) V., nomeadamente, Acórdão de 22 de junho de 2021, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o. (Medidas preventivas tendo em vista o afastamento) (C‑718/19, EU:C:2021:505, n.o 56 e jurisprudência referida).

( 88 ) V., por analogia, Acórdão de 29 de julho de 2019, Spiegel Online (C‑516/17, EU:C:2019:625, n.os 53 a 55 e jurisprudência referida). É certo que, em geral, é necessária uma apreciação individual para garantir, além da necessidade das medidas restritivas em causa, a proporcionalidade estrita dessas medidas. No entanto, no que diz respeito às medidas gerais adotadas por razões de «saúde pública», essa proporcionalidade pode ser assegurada através de uma adaptação adequada dessas medidas e da garantia de que circunstâncias individuais muito específicas podem ser tidas em conta no momento da execução, como explicarei nos n.os 128 a 132, infra.

( 89 ) V., para o efeito, segundo parágrafo do artigo 168.o, n.o 1, TFUE, que especifica que a ação da União no domínio da saúde pública abrange, nomeadamente, «a vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão transfronteiriça, o alerta em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas». É verdade que, tal como explicarei em relação ao Código das Fronteiras Schengen, na parte B das presentes conclusões, algumas situações relacionadas com a «saúde pública» são tão graves que se poderia dizer que constituem uma ameaça à «ordem pública», o que poderia levar à situação paradoxal de que, nesses casos, as medidas que restringem a livre circulação só poderiam ser adotadas numa base individual. No entanto, no meu entender, esta questão pode ser resolvida através de uma simples aplicação da doutrina da lex specialis. Uma vez que o legislador previu, na Diretiva Cidadania, um regime especial para as medidas tomadas por razões de «saúde pública», este regime, uma vez que derroga o regime aplicável às medidas adotadas por razões de «ordem pública», deve prevalecer sobre este último.

( 90 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2014, McCarthy e o. (C‑202/13, EU:C:2014:2450, n.o 50 e 51).

( 91 ) Por exemplo, o artigo 27.o, n.o 2, refere‑se a «medidas», ao passo que, nos termos dessa mesma disposição, só podem ser tomadas medidas individuais, ou seja, decisões, por razões de «ordem pública» ou de «segurança pública».

( 92 ) V., para este efeito, considerando 22 da Diretiva Cidadania.

( 93 ) O RSI é vinculativo para todos os membros da OMS, nos quais estão incluídos os Estados‑Membros da União.

( 94 ) OMS, Declaração sobre a segunda reunião do Comité de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional (2005) relativa ao surto do novo coronavírus (2019‑nCoV), de 30 de janeiro de 2020.

( 95 ) Nos termos do artigo 1.o do RSI, isso significa «um acontecimento extraordinário que se determina […] constituir um risco para a saúde pública de outros Estados através da propagação internacional de doenças».

( 96 ) OMS, Observações iniciais do Diretor‑Geral da OMS na conferência de imprensa sobre a COVID‑19, de 11 de março de 2020.

( 97 ) V., por analogia, Acórdão de 19 de novembro de 2020, B S e C A [Comercialização do canabidiol (CBD)] (C‑663/18, EU:C:2020:938, n.o 87 e jurisprudência referida). De igual modo, nos termos do artigo 2.o, n.o 3, do Protocolo n.o 4 à CEDH, uma medida que interfira com o direito de saída previsto no artigo 2.o, n.o 2, é considerada «necessária numa sociedade democrática» para a proteção da saúde pública se responder a «uma necessidade social imperiosa» e, especialmente, se as razões invocadas pelas autoridades nacionais para a justificar forem «pertinentes e suficientes».

( 98 ) V., para o efeito, artigo 29.o, n.o 3, da Diretiva Cidadania.

( 99 ) V., por analogia, Acórdão de 19 de novembro de 2020, B S e C A [Comercialização do canabidiol (CBD)] (C‑663/18, EU:C:2020:938, n.os 88 e 91 e jurisprudência referida).

( 100 ) Ibid., n.o 92.

( 101 ) TEDH, Acórdão Terheş c. Roménia, § 39. V. também OMS, Atualização da estratégia de preparação e resposta para a COVID‑19, de 14 de abril de 2020, que refere que, em 13 de abril de 2020, mais de 1,7 milhões de pessoas tinham sido infetadas em todo o mundo e quase 85000 pessoas tinham perdido a vida. A capacidade de propagação rápida do vírus tinha ultrapassado até os sistemas de saúde mais resistentes. Nessa altura, 20 % da totalidade dos casos eram graves ou críticos, com uma taxa de mortalidade superior a 3 %, que aumentava nos grupos etários mais velhos e nas pessoas com problemas de saúde subjacentes.

( 102 ) A expressão «transmissão comunitária» refere‑se ao processo de propagação de uma doença infecciosa num grande grupo de pessoas mediante contactos casuais.

( 103 ) V. Conselho Europeu, Conclusões do Presidente do Conselho Europeu na sequência da reunião por videoconferência sobre a COVID‑19 com os membros do Conselho Europeu, 17 de março de 2020, e OMS, Atualização da estratégia de preparação e resposta para a COVID‑19, de 14 de abril de 2020.

( 104 ) V., nesse sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o. (C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 62 e jurisprudência referida).

( 105 ) Comissão Europeia, 8 de maio de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho relativa à segunda revisão da aplicação das restrições temporárias às viagens não indispensáveis para a UE [COM(2020) 222 final].

( 106 ) Comissão Europeia, 15 de maio de 2020, Comunicação da Comissão para uma abordagem faseada e coordenada do restabelecimento da livre circulação e da supressão dos controlos nas fronteiras internas — COVID‑19 (JO 2020, C 169, p. 30).

( 107 ) Comissão Europeia, 11 de junho de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho relativa à terceira revisão da aplicação das restrições temporárias às viagens não indispensáveis para a UE [COM (2020) 399 final].

( 108 ) A Bélgica remeteu para os dados do seu instituto nacional de saúde. V., também, ECDC, Doença do coronavírus de 2019 (COVID‑19) na EU/EEE e no Reino Unido —10.a atualização, 11 de junho de 2020, Estocolmo, p. 3, e Doença do coronavírus de 2019 (COVID‑19) na EU/EEE e no Reino Unido — 11.a atualização, 10 de agosto de 2020, Estocolmo, p. 3.

( 109 ) Que já tinha sido objeto de estudos publicados na primavera de 2020. V. Liu, Y., Gayle, A., Wilder‑Smith, A., e Rocklöv, J., The reproductive number of COVID‑19 is higher compared to SARS coronavirus, J. Travel Med, 2020. Este elevado grau de contágio parecia tanto mais evidente, no início de julho de 2020, quanto a OMS acabava de reconhecer que o vírus era transmitido por via aérea [v. OMS, Doença do coronavírus (COVID‑19), Relatório de situação — 172, 10 de julho de 2020].

( 110 ) V. também OMS, Doença do coronavírus (COVID‑19), Relatório de situação — 172, 10 de julho de 2020, no qual o Diretor Regional da OMS para a Europa exortou os países a «manterem‑se firmes e concentrados».

( 111 ) Verifico que esta apreciação do risco, baseada em dados epidemiológicos e nas capacidades locais, segue, em geral, a apreciação desenvolvida pela OMS e pelas instituições da União nas respetivas recomendações. V., entre outros, OMS, Atualização da estratégia de preparação e resposta para a COVID‑19, de 14 de abril de 2020, e Comissão Europeia, 15 de maio de 2020, Comunicação da Comissão para uma abordagem faseada e coordenada do restabelecimento da livre circulação e da supressão dos controlos nas fronteiras internas — COVID‑19.

( 112 ) V., a este respeito, artigo 168.o, n.o 1, TFUE e artigo 35.o, segundo período, da Carta.

( 113 ) V., no entanto, n.o 95, infra.

( 114 ) V. artigo 168.o, n.o 7, TFUE.

( 115 ) V., entre outros, Acórdão de 19 de janeiro de 2023, CIHEF e o. (C‑147/21, EU:C:2023:31, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 116 ) A título acessório, acrescento que, embora o artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania inclua a ressalva de que os motivos de «saúde pública» não podem ser invocados «para fins económicos», esse não era evidentemente o caso no presente processo, como alega o Governo Belga. É certo que as restrições controvertidas foram introduzidas para garantir, nomeadamente, que o sistema de saúde belga dispunha de capacidade material e pessoal, mas também financeira, para fazer face à pandemia. Porém, qualquer medida pública implica algumas considerações financeiras. As únicas considerações problemáticas são as que prosseguem um «objetivo exclusivamente económico» [Acórdão de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.o 39)]. A manutenção de um sistema de saúde funcional não se enquadra nesta categoria [v., por analogia, Acórdão de 28 de janeiro de 2016, CASTA e o. (C‑50/14, EU:C:2016:56, n.o 61 e jurisprudência referida].

( 117 ) V., nomeadamente, Acórdão de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.os 74, 76 e 77 e jurisprudência referida).

( 118 ) V., nomeadamente, Recomendação (UE) 2020/912 do Conselho, de 30 de junho de 2020, relativa à restrição temporária das viagens não indispensáveis para a UE e ao eventual levantamento de tal restrição (JO 2020, L 208 I, p. 1), anexo II.

( 119 ) V. artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania («[…] independentemente da nacionalidade […]»).

( 120 ) V. n.o 60, supra.

( 121 ) Com efeito, embora esta exigência só seja mencionada no artigo 27.o, n.o 2, da Diretiva Cidadania em relação às medidas adotadas por razões de «ordem pública» ou de «segurança pública», o princípio da proporcionalidade é um princípio geral do direito da União, que deve ser sempre respeitado pelos Estados‑Membros quando restringem a livre circulação [v., nomeadamente, Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín (C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 45 e jurisprudência referida)].

( 122 ) V., nomeadamente, Acórdão de 19 de janeiro de 2023, CIHEF e o. (C‑147/21, EU:C:2023:31, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 123 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de setembro de 2019, VIPA (C‑222/18, EU:C:2019:751, n.o 72 e jurisprudência referida).

( 124 ) V., para o efeito, Acórdãos de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o. (C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 36), e de 1 de março de 2018, CMVRO (C‑297/16, EU:C:2018:141, n.os 70 e 71).

( 125 ) A cronologia da ação da União relativamente à COVID‑19 está disponível em https://commission.europa.eu/strategy‑and‑policy/coronavirus‑response/timeline‑eu‑action_pt.

( 126 ) Nos termos do artigo 168.o, n.os 1 e 2, TFUE, a ação da União «será complementar das políticas nacionais», «incentivará a cooperação entre os Estados‑Membros […] apoiando, se necessário, a sua ação» no que respeita, nomeadamente, à «vigilância das ameaças graves para a saúde […] e o combate contra as mesmas». Para o efeito, a Comissão, «em estreito contacto com os Estados‑Membros, pode tomar todas as iniciativas adequadas para promover [a] coordenação [dos Estados‑Membros]», nomeadamente através da «defini[ção de] orientações». Por último, nos termos do artigo 168.o, n.o 5, o Parlamento Europeu e o Conselho podem também adotar, designadamente, «medidas relativas à vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão transfronteiriça, ao alerta em caso de tais ameaças e ao combate contra as mesmas».

( 127 ) Sublinho, no entanto, que a coordenação completa das medidas relativas às viagens na União Europeia só foi alcançada após a data dos factos. V., nomeadamente, Recomendação (UE) 2020/1475 do Conselho, de 13 de outubro de 2020, sobre uma abordagem coordenada das restrições à liberdade de circulação em resposta à pandemia de COVID‑19 (JO 2020, L 337, p. 3).

( 128 ) V., entre outros, Acórdão de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o. (C‑391/20, EU:C:2022:638, n.os 74 e 75 e jurisprudência referida).

( 129 ) V., entre outros, von Tigerstrom, B., e Wilson, K., «COVID‑19 travel restrictions and the International Health Regulations (2005)», BMJ Glob Health, vol. 5, n.o e002629, 2020; Grépin, K.A., Ho, T., Liu, Z., et al., «Evidence of the effectiveness of travel‑related measures during the early phase of the COVID‑19 pandemic: a rapid systematic review», BMJ Global Health, vol. 6, n.o e004537, 2021.

( 130 ) V. OMS, Recomendações da OMS sobre as viagens e comércio internacionais no contexto do surto de pneumonia provocado por um novo coronavírus na China, 10 de janeiro de 2020; Declaração sobre a segunda reunião do Comité de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional (2005) relativa ao surto do novo coronavírus (2019‑nCoV), de 30 de janeiro de 2020.

( 131 ) A sua conformidade com o RSI está fora do âmbito das presentes conclusões. V., a este respeito, von Tigerstrom B, e Wilson K., op. cit.

( 132 ) V. Comissão Europeia, 16 de março de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho — COVID‑19: Restrições temporárias aplicáveis às viagens não indispensáveis para a UE [COM(2020) 115 final]; Comissão Europeia, 16 de março de 2020, Covid‑19 — Orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais (JO 2020, C 86I, p. 1); e Conselho Europeu, conclusões do presidente do Conselho Europeu na sequência da reunião por videoconferência sobre a COVID‑19 com os membros do Conselho Europeu, 17 de março de 2020. Esta recomendação temporária, inicialmente adotada por 30 dias, foi posteriormente prorrogada até 30 de junho de 2020. V. Comissão Europeia, 8 de abril de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho relativa à avaliação da aplicação das restrições temporárias às viagens não indispensáveis para a UE [COM(2020) 148 final]; 8 de maio de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho relativa à segunda revisão da aplicação das restrições temporárias às viagens não indispensáveis para a UE [COM(2020) 222 final].

( 133 ) V., nomeadamente, Lau, H., et al. «The association between international and domestic air traffic and the coronavirus (COVID‑19) outbreak», Journal of microbiology, immunology and infection, vol. 53, n.o 3, 2020, pp. 467‑472; Chinazzi, M., et al., «The effect of travel restrictions on the spread of the 2019 novel coronavirus (COVID‑19) outbreak», Science, vol. 368, n.o 6489, 2020, pp. 395‑400; Wells, C. R., et al., «Impact of international travel and border control measures on the global spread of the novel 2019 coronavirus outbreak», PNAS, vol. 117, n.o 13, pp. 7504‑7509; e Linka, K., et al., «Outbreak dynamics of COVID‑19 in Europe and the effect of travel restrictions», Computer methods in biomechanics and biomedical engineering, vol. 23, n.o 11, 2020, pp. 710 a 717. Sublinho que estes estudos sobre a eficácia das restrições de viagem se baseiam em modelos, e não em provas concretas — que eram limitadas na altura, como reconhecem os autores. Esses estudos apresentam cenários simulados e contrafactuais — assentes em hipóteses sobre a transmissibilidade do vírus, o volume de viajantes doentes, etc. — relativos ao que teria acontecido se essas medidas não estivessem em vigor.

( 134 ) V., entre outros, OMS, Recomendações sobre o tráfego internacional no âmbito do surto de COVID‑19, 29 de fevereiro de 2020, e Declaração sobre a terceira reunião do Comité de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional (2005) relativa ao surto do novo coronavírus (COVID‑19), de 1 de maio de 2020.

( 135 ) V. Orientações do ECDC, pp. 18 e 19.

( 136 ) Recordo que, de acordo com a metodologia aplicável, os países considerados de «alto risco», em relação aos quais se aplicavam as restrições de viagem controvertidas, eram aqueles em que a incidência nacional de novos casos de COVID‑19 era mais de dez vezes superior à da Bélgica (100 casos registados por 100000 habitantes nos 14 dias anteriores) (v. n.o 15, supra).

( 137 ) Noto que, para ser considerada adequada, uma determinada medida não tem de ser suscetível de eliminar, por si só, o risco para a «saúde pública» em questão. Basta que possa trazer uma contribuição apreciável a esse respeito (v., neste sentido, Acórdão de 19 de janeiro de 2023, CIHEF e o. (C‑147/21, EU:C:2023:31, n.o 56).

( 138 ) V., nomeadamente, OMS, Atualização da estratégia de preparação e resposta para a COVID‑19, de 14 de abril de 2020, e Considerações de saúde pública no retomar das viagens internacionais, de 30 de julho de 2020. A Comissão sugeriu esta linha de atuação em várias comunicações (v., entre outras, Comissão Europeia, 15 de maio de 2020, Comunicação da Comissão para uma abordagem faseada e coordenada do restabelecimento da livre circulação e da supressão dos controlos nas fronteiras internas — COVID‑19) — ainda que, conforme acima referido, à data dos factos defendesse o levantamento das restrições de viagem na União Europeia. A restrição temporária coordenada das viagens não essenciais para a União Europeia também seguiu uma lógica semelhante a partir de 1 de julho de 2020, sendo as restrições aplicáveis apenas em relação a países com uma situação relativa à COVID‑19 relativamente pior do que a da União Europeia. V. Recomendação (UE) 2020/912 do Conselho, de 30 de junho de 2020, relativa à restrição temporária das viagens não indispensáveis para a UE e ao eventual levantamento de tal restrição (JO 2020, L 208 I, p. 1). A metodologia e os critérios utilizados para avaliar a situação num determinado país (o número de novas infeções por 100000 habitantes nos 14 dias anteriores, a evolução da taxa de novas infeções no mesmo período e a resposta global à COVID‑19) também eram análogos aos utilizados pela Bélgica na altura (v. n.o 15, supra).

( 139 ) V., em defesa da adequação dessas medidas, nomeadamente, Comissão Europeia, 16 de março de 2020, Covid‑19 — Orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais (JO 2020, C 86I, p. 1), n.o 21; OMS, Considerações fundamentais sobre o repatriamento e a quarentena dos viajantes no âmbito do surto do novo coronavírus 2019‑nCoV, de 11 de fevereiro de 2020. V. também, em geral, artigo 31.o, n.o 2, alínea c), do RSI.

( 140 ) V., por analogia, Acórdão de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o. (C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 38).

( 141 ) V., por analogia, Acórdão de 18 de maio de 1982, Adoui e Cornuaille (115/81 e 116/81, EU:C:1982:183, n.o 8). Isso não afetou a margem de discrição dos Estados‑Membros quanto à adoção de uma política mais liberal ou mais restritiva em resposta à pandemia. Os Estados‑Membros continuaram a ter a liberdade de escolher uma ou outra, mas, para serem coerentes, tinham de tratar de forma semelhante cenários internos e externos comparáveis. V. van Eijken, H. H., e Rijpma, J. J., op. cit., p. 43, e Thym, D., e Bornemann, J., op. cit., pp. 1168 e 1169.

( 142 ) V. n.o 16, supra.

( 143 ) V., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o. (C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 76).

( 144 ) V. n.os 128 a 132, infra. V., por analogia, Acórdão de 19 de maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑172/07, EU:C:2009:316, n.o 45).

( 145 ) V., entre outros, Acórdão de 4 de maio de 2016, Philip Morris Brands e o. (C‑547/14, EU:C:2016:325, n.o 160).

( 146 ) V., entre outros, Acórdão de 26 de abril de 2012, ANETT (C‑456/10, EU:C:2012:241, n.o 45).

( 147 ) V., entre outros, Acórdão de 10 de março de 2021, Ordine Nazionale dei Biologi e o. (C‑96/20, EU:C:2021:191, n.o 36 e jurisprudência referida).

( 148 ) V., entre outros, Acórdão de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o. (C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 55 e jurisprudência referida).

( 149 ) Com efeito, estudos publicados na época dos factos estimaram que, durante a primeira fase da pandemia, mais de metade dos viajantes que «importaram» casos da China para outros países chegaram no período pré‑sintomático e de incubação, sendo já contagiosos, e só começaram a apresentar sintomas alguns dias após a sua chegada. V., entre outros, Wells, C.R., et al., op. cit., p. 7505, e referências aí contidas. V., em geral, sobre a falta de eficácia do controlo de entrada, Orientações do ECDC, p. 20.

( 150 ) Como o Governo Norueguês alegou, os dados científicos disponíveis à data dos factos tendiam a indicar que existia, em relação à COVID‑19, um «período de janela» após a infeção, durante o qual os marcadores biológicos utilizados nos testes permanecem negativos.

( 151 ) V. n.o 102, supra. V. também Orientações do ECDC, p. 20.

( 152 ) É certo que a colocação de todos os viajantes em quarentena rigorosa em instalações específicas junto ao seu ponto de entrada teria assegurado um isolamento adequado em relação ao resto da população. No entanto, isso não só teria sido excessivamente difícil de pôr em prática como teria sido certamente mais do que questionável do ponto de vista dos direitos fundamentais.

( 153 ) V., neste sentido, n.os 14 e 15, supra.

( 154 ) Este método de cálculo revelou‑se, por exemplo, particularmente injusto para Estados‑Membros como o Luxemburgo, que efetuaram uma campanha de testagem muito mais intensiva do que outros e que, devido ao número de casos identificados através das suas práticas de testagem, foram considerados países de «alto risco», apesar de, na realidade, a situação epidemiológica no seu território ser provavelmente semelhante à de outros países classificados como «laranja», que simplesmente testaram de forma menos intensiva.

( 155 ) V., entre outros, Acórdão de 20 de novembro de 2019, Infohos (C‑400/18, EU:C:2019:992, n.o 49 e jurisprudência referida).

( 156 ) V., por analogia, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 132 e jurisprudência referida).

( 157 ) V., em relação à necessidade de reexaminar periodicamente a persistência da ameaça para a saúde pública que justificou inicialmente as medidas cautelares, entre outros, Acórdão de 11 de julho de 2013, França/Comissão (C‑601/11 P, EU:C:2013:465, n.o 110 e jurisprudência referida). V., sobre esse requisito no tocante às restrições de viagem, Acórdão de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.os 44 e 47), e TEDH, 8 de dezembro de 2020, Rotaru c. República da Moldávia (CE:ECHR:2020:1208JUD002676412, §§ 25 e jurisprudência referida).

( 158 ) V. n.o 16, supra.

( 159 ) O caso em apreço no processo principal parece constituir um bom exemplo a este respeito. Em 12 de julho de 2020, a Suécia foi classificada como «vermelha» na classificação por cores em causa, em conformidade com a metodologia estabelecida (v. n.o 15, supra), com base no facto de, segundo os dados do ECDC de 10 de julho, a taxa de incidência nos 14 dias anteriores ter sido de 102,1 casos por 100000 habitantes, apesar de se ter observado uma tendência decrescente. Por conseguinte, as restrições de viagem eram aplicáveis a partir desse dia. No entanto, em 13 de julho, o ECDC publicou novos dados que indicavam uma taxa de 94,5/100 000 casos. No dia seguinte, a embaixada sueca confirmou uma diminuição significativa das infeções. Consequentemente, a classificação desse país foi alterada para «laranja» em 15 de julho, e as restrições de viagem foram levantadas em relação a esse país. Poder‑se‑ia certamente questionar a necessidade de classificar a Suécia como um país de «alto risco», apesar de os números mal ultrapassarem o limiar pertinente e de já se notar uma tendência decrescente, quando finalmente se levantaram as restrições dois dias depois. Talvez não fosse necessária uma aplicação tão zelosa das regras, questionável do ponto de vista da segurança jurídica. No entanto, isso não põe em causa, no meu entender, a legitimidade do sistema em si.

( 160 ) Considerando 25 da Diretiva Cidadania (o sublinhado é meu).

( 161 ) V. também, para o efeito, artigo 34.o da Diretiva Cidadania.

( 162 ) V., neste sentido, Acórdão de 4 de junho de 2013, ZZ (C‑300/11, EU:C:2013:363, n.o 52).

( 163 ) V. Acórdão de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, EU:C:2007:163, n.os 47 a 64).

( 164 ) V., por analogia, Acórdão de 27 de outubro de 1977, Bouchereau (30/77, EU:C:1977:172, n.o 15).

( 165 ) V., por analogia, Acórdão de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, EU:C:2007:163, n.os 56 a 64).

( 166 ) V. n.o 88, supra.

( 167 ) V. n.o 132, infra.

( 168 ) V., entre outros, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o. (C‑336/19, EU:C:2020:1031, n.o 64 e jurisprudência referida).

( 169 ) V., entre outros, referindo exclusivamente a adequação e a necessidade, Acórdãos de 14 de julho de 1983, Sandoz (174/82, EU:C:1983:213, n.o 2); de 10 de julho de 2008, Jipa (C‑33/07, EU:C:2008:396, n.o 29); e de 16 de março de 2023, OL (Extensão das concessões italianas) (C‑517/20, não publicado, EU:C:2023:219, n.o 53).

( 170 ) V., entre outros, Acórdãos de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich (C‑283/11, EU:C:2013:28, n.o 50); de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 54); e de 17 de dezembro de 2020, Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o. (C‑336/19, EU:C:2020:1031, n.o 64).

( 171 ) Sublinho que a Carta é aplicável numa situação como a que está em causa no processo principal. Com efeito, quando os Estados‑Membros restringem o direito de livre circulação de que gozam os cidadãos da União e procuram invocar os fundamentos previstos no direito da União, como o artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva Cidadania, para justificar essa restrição, estão a «apli[car] o direito da União», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. V., designadamente, Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.os 63 e 64 e jurisprudência referida).

( 172 ) Do mesmo modo, embora a liberdade de circulação seja garantida enquanto tal pelo artigo 2.o do Protocolo n.o 4 à CEDH, o TEDH considera‑a também como um aspeto importante do direito de uma pessoa ao respeito pela sua vida privada, garantido pelo artigo 8.o da referida convenção. V., entre outros, TEDH, 6 de dezembro de 2005, İletmiş c. Turquia (CE:ECHR:2005:1206JUD002987196, § 47).

( 173 ) Do mesmo modo, perante uma medida restritiva do direito de saída garantido no artigo 2.o, n.o 2, do Protocolo n.o 4 à CEDH, o TEDH examinou se essa medida estabelece um justo equilíbrio entre o interesse público e os direitos do indivíduo. V., entre outros, TEDH, 23 de fevereiro de 2017, De Tommaso c. Itália (CE:ECHR:2017:0223JUD004339509, § 104).

( 174 ) Conclusões nos processos C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:572, n.o 248.

( 175 ) V. Resolução do Parlamento Europeu, de 17 de abril de 2020, sobre a ação coordenada da UE para combater a pandemia de COVID‑19 e as suas consequências [2020/2616(RSP)], n.os 46 e seguintes, e Conselho da UE, Declaração do alto representante, Josep Borrell, em nome da União Europeia, sobre os direitos humanos em tempos de pandemia de coronavírus, de 5 de maio de 2020.

( 176 ) O grau de proteção dos direitos fundamentais pode ter variado nos termos de um regime excecional de «estado de emergência», em conformidade com o artigo 347.o TFUE. No entanto, não abordarei esta questão nas presentes conclusões pelas razões expostas nos n.os 51 a 54, supra.

( 177 ) V., nomeadamente, artigo 12.o, n.o 2, alínea c), do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 1966, e artigo 11.o, n.o 3, da Carta Social Europeia (revista), assinada em Estrasburgo, em 3 de maio de 1996. Além disso, de acordo com a jurisprudência constante do TEDH, embora o «direito à saúde» não seja garantido enquanto tal pela CEDH, as obrigações positivas em matéria de saúde decorrem dos seus artigos 2.o e 8.o (direito à vida e direito ao respeito pela vida privada e familiar, respetivamente). Nomeadamente, o artigo 2.o da referida convenção impõe aos Estados Partes a obrigação positiva de tomar as medidas adequadas para salvaguardar a vida das pessoas sob a sua jurisdição e para proteger a sua integridade física, incluindo no domínio da saúde pública (v., nomeadamente, TEDH, 5 de novembro de 2020, Le Mailloux c. França (CE:ECHR:2020:1105DEC001810820, § 9 e jurisprudência referida). No direito da União Europeia, tais obrigações positivas decorrem também, a meu ver, do artigo 2.o, n.o 1, da Carta — uma vez que o «direito à vida» aí garantido corresponde ao previsto no artigo 2.o da CEDH — e do artigo 35.o, primeiro período, da Carta.

( 178 ) Como nota lateral, recordo que, nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, qualquer limitação ao exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos deve também respeitar o «conteúdo essencial» desses direitos e liberdades e que, quando isso não acontece, essa ponderação de interesses não é possível. No entanto, não me parece que as restrições de viagem controvertidas tenham violado o «conteúdo essencial» do direito à livre circulação, tal como garantido no artigo 45.o, n.o 1, da Carta, ou dos outros direitos fundamentais em causa. Embora a proibição de viajar, em particular, seja a forma mais grave de restrição ao direito de livre circulação, o facto de essa proibição não ser absoluta é determinante a este respeito. De facto, aplicava‑se apenas a viagens de e para certos países de «alto risco»; as viagens «indispensáveis» estavam excluídas do seu âmbito de aplicação; e foi imposta apenas temporariamente [v., a contrario, Acórdão de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.os 44 e 79)].

( 179 ) V. Orientações do ECDC, pp. 18 e 19.

( 180 ) V., entre outros, World Economic Forum, This is the impact of COVID‑19 on the travel sector (https://www.weforum.org/agenda/2022/01/global‑travel‑tourism‑pandemic‑covid‑19/), e Conclusões da advogada‑geral L. Medina no processo UFC — Que choisir e CLCV (C‑407/21, EU:C:2022:690, n.os 1 e 2).

( 181 ) V. Conselho Europeu, Conclusões do presidente do Conselho Europeu na sequência da reunião por videoconferência sobre a COVID‑19 com os membros do Conselho Europeu, 17 de março de 2020.

( 182 ) V., no que respeita às várias medidas propostas na altura dos factos pela Comissão a este respeito, Turismo e transportes: Orientações da Comissão para restabelecer de forma segura as viagens e relançar o turismo europeu em 2020 e nos anos seguintes, Comunicado de imprensa, 13 de maio de 2020.

( 183 ) V. Iliopoulou‑Penot, A., «La Citoyenneté de l’Union aux temps du coronavirus», in Dubout, E., e Picod, F. (EE.), Coronavirus et droit de l’Union européenne, Bruylant, 2021, pp. 178 a 180.

( 184 ) V., por analogia, Acórdão de 29 de abril de 2004, Orfanopoulos e Oliveri (C‑482/01 e C‑493/01, EU:C:2004:262, n.os 93 a 99), e TEDH, 8 de dezembro de 2020, Rotaru c. República da Moldávia (CE:ECHR:2020:1208JUD002676412, § 31 e jurisprudência referida).

( 185 ) V., particularmente, Thym, D., e Bornemann, J., op. cit., pp. 1164 e 1165.

( 186 ) V., por analogia, no que respeita à categoria das viagens relacionadas com «razões familiares imperiosas», Comissão Europeia, 28 de outubro de 2020, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho — COVID‑19 — Orientações sobre as pessoas isentas da restrição temporária das viagens não indispensáveis para a UE no que respeita à aplicação da Recomendação (UE) 2020/912 do Conselho de 30 junho de 2020 [COM(2020) 686 final], p. 8.

( 187 ) V. uma avaliação semelhante à luz da CEDH, McBride, J., An Analysis of Covid‑19 Responses and ECHR Requirements, ECHR Blog, 27 de março de 2020 (disponível em https://www.echrblog.com/2020/03/an‑analysis‑of‑covid‑19‑responses‑and.html).

( 188 ) V., nomeadamente, Comissão Europeia, 16 de março de 2020, Covid‑19 — Orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais, n.o 21.

( 189 ) V. n.o 4, supra.

( 190 ) Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, do Código das Fronteiras Schengen, para efeitos deste código por «fronteiras internas» entende‑se: «a) As fronteiras comuns terrestres, incluindo as fronteiras fluviais e lacustres, dos Estados‑Membros; b) Os aeroportos dos Estados‑Membros, no que respeita aos voos internos; c) Os portos marítimos, fluviais e lacustres dos Estados‑Membros no que diz respeito às ligações regulares internas por ferry

( 191 ) Bem como a Islândia e a Noruega e, se isso fosse pertinente para efeitos do processo principal (v. notas 23 e 35, supra).

( 192 ) Aparentemente, a aplicação dos requisitos de quarentena e de testes não está em causa.

( 193 ) Recordo que, para efeitos do Código das Fronteiras Schengen, os aeroportos dos Estados‑Membros são considerados pontos de passagem de fronteira. V., para o efeito, definições de «fronteiras internas» e de «fronteiras externas» constantes do artigo 2.o, n.os 1 e 2, respetivamente, do referido código.

( 194 ) Por um lado, mesmo em relação ao comboio internacional, as estações ferroviárias não são consideradas como pontos de passagem de fronteira para efeitos do Código das Fronteiras Schengen (v., para o efeito, definições de «fronteiras internas» e de «fronteiras externas» nos n.os 1 e 2 do artigo 2.o). Por outro lado, segundo as regras do referido código, os «controlos de fronteira» devem ser efetuados em relação aos passageiros de comboios que atravessam as fronteiras externas, no momento do desembarque (ou do embarque), na primeira estação ferroviária de chegada (ou na última estação de partida) no território de um Estado Schengen. V. anexo VI «Regras específicas aplicáveis aos vários tipos de fronteiras e aos vários meios de transporte utilizados para a passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros», ponto 1 («Fronteiras terrestres») e ponto 1.2 («Controlo do tráfego ferroviário»).

( 195 ) Aparentemente, os únicos controlos efetuados de forma sistemática diziam respeito aos passageiros que embarcavam ou desembarcavam os comboios Eurostar que chegavam de ou partiam para Londres (Reino Unido) na estação ferroviária de Midi em Bruxelas (Bélgica). No entanto, esses controlos não são pertinentes para efeitos do presente caso. De facto, como sublinhou o Governo Belga na audiência, estas condições não respeitam à passagem de uma «fronteira interna», mas das «fronteiras externas» dos Estados Schengen. Como, obviamente, estes comboios não param em pleno Canal da Mancha, na fronteira virtual entre a França e o Reino Unido, os passageiros são, pelo contrário, sujeitos ao controlo antes de embarcarem ou desembarcarem na estação ferroviária de Midi (v. nota 193, supra). O facto de esses comboios pararem por vezes no território dos Estados Schengen entre Bruxelas e Londres é irrelevante a este respeito. Com efeito, nesta matéria aplica‑se um regime específico, segundo o qual os passageiros que embarcam nestes comboios, por exemplo, em Lille (França) com destino a Bruxelas, são sujeitos a «controlos de fronteira» na estação de destino (v. anexo VI, ponto 1.2.3 do Código das Fronteiras Schengen). Sublinho que, no que respeita a estes passageiros, os controlos em causa não se consideram relacionados com a passagem de uma «fronteira interna». Ao invés, através de uma ficção jurídica, considera‑se que estas pessoas atravessaram as «fronteiras externas» dos Estados Schengen.

( 196 ) V., neste sentido, artigo 23.o, alínea a), iii) e iv), do Código das Fronteiras Schengen.

( 197 ) V., neste sentido, Acórdão de 21 de junho de 2017, A (C‑9/16, EU:C:2017:483, n.os 38 a 40 e jurisprudência referida).

( 198 ) Tal como o emprego da expressão «nomeadamente» no artigo 23.o, alínea a), deixa bem claro.

( 199 ) Estes desenvolvimentos podem vir a ser pelo menos instrutivos para outros casos, uma vez que, conforme indicado na introdução das presentes conclusões, os Estados‑Membros reintroduziram em grande escala o controlo nas fronteiras internas em vários momentos durante a pandemia. V. notificações dos Estados‑Membros sobre a reintrodução temporária do controlo nas fronteiras internas nos termos dos artigos 25.o e 28.o e seguintes do Código das Fronteiras Schengen (disponíveis em https://home‑affairs.ec.europa.eu/policies/schengen‑borders‑and‑visa/schengen‑area/temporary‑reintroduction‑border‑control_en).

( 200 ) V. n.os 155 a 161, infra.

( 201 ) Tanto assim que o seu entendimento é, ou pelo menos era, aparentemente partilhado pelo Parlamento. V. Resolução do Parlamento Europeu, de 19 de junho de 2020, sobre a situação no Espaço Schengen na sequência do surto de COVID‑19 [2020/2640(RSP)] (JO 2021, C 362, p. 77), n.o 7.

( 202 ) Não «perturbar a ordem pública, a segurança interna [ou] a saúde pública» (o sublinhado é meu) é uma das condições de entrada aplicáveis aos nacionais de países terceiros para uma estada de curta duração no território dos Estados‑Membros [v. artigo 6.o, n.o 1, alínea e), do Código das Fronteiras Schengen], que é, em princípio, verificada pelos guardas de fronteira no âmbito dos controlos fronteiriços «pormenorizados» a que os nacionais de países terceiros são submetidos à entrada no Espaço Schengen [v. artigo 8.o, n.o 3, alínea a), subalínea vi), daquele código].

( 203 ) Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em 14 de junho de 1985, em Schengen (JO 2000, L 239, p. 13).

( 204 ) JO 2000, L 239, p. 19.

( 205 ) V., respetivamente, artigo 2.o, n.o 2, e artigo 5.o, n.o 1, alínea e), da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.

( 206 ) Proposta de Regulamento do Conselho que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem das fronteiras pelas pessoas, apresentada pela Comissão, 26 de maio de 2004 [COM(2004) 391 final].

( 207 ) V. artigo 5.o, n.o 1, alínea e), dessa proposta.

( 208 ) V. artigos 20.o, n.o 1, 22.o, n.o 1, e 24.o, dessa proposta (o sublinhado é meu).

( 209 ) V. Resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre a proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem das fronteiras pelas pessoas [COM(2004)0391 — C6‑0080/2004 — 2004/0127(COD)]. Esta alteração remonta a uma proposta da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos. V. Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, 14 de Abril de 2005, alterações 138 a 198, projeto de relatório, Michael Cashman, Doc. n.o PE 355.529v01‑00, p. 20, alteração 171 («Existe uma diferença entre a “ameaça à saúde pública” como razão para recusar a entrada de uma pessoa e a “ameaça à saúde pública” como razão para reintroduzir controlos nas fronteiras internas que afetariam todas as pessoas que desejassem atravessar a fronteira interna. Embora no primeiro caso seja fácil ver a vantagem de acrescentar a “ameaça à saúde pública” como motivo de recusa[,] isso não é verdadeiramente evidente no caso da reintrodução dos controlos nas fronteiras internas: no caso de surto de tal doença no território de um Estado‑Membro, a reação política adequada e proporcional consistiria, por exemplo, em colocar as pessoas afetadas em quarentena, talvez em isolar um hospital ou de alguns edifícios.»).

( 210 ) V., com o mesmo ponto de vista, Comissão, 16 de março de 2020, Covid‑19 — Orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais, n.o 18.

( 211 ) V., entre outros, Acórdãos de 4 de dezembro de 1974, Van Duyn (41/74, EU:C:1974:133, n.o 18), e de 4 de outubro de 2012, Byankov (C‑249/11, EU:C:2012:608, n.o 40).

( 212 ) V., para o efeito, n.o 81, supra. V. também Leboeuf, L, La fermeture des frontières de l’Union pour motifs de santé publique: la recherche d’une approche coordonnée in Dubout, E., e Picod, F. (EE.), op. cit., pp. 223 a 239; van Eijken, H. H., e Rijpma, J. J., op. cit., p. 40, e Thym, D., e Bornemann, J, op. cit., pp. 1148 e 1149.

( 213 ) É evidente que a alteração foi inicialmente proposta pela razão indicada na nota 208, supra. No entanto, não é claro que os vários membros do Parlamento e do Conselho tenham aceitado a alteração por esse motivo. Podem muito bem ter considerado que não era necessária uma referência à «saúde pública», uma vez que uma crise de saúde pública suficientemente grave para justificar a reintrodução dos controlos nas fronteiras estaria abrangida pelos motivos de «ordem pública».

( 214 ) A mesma interpretação figura, no essencial, na recente proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que altera o Regulamento (UE) 2016/399 que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras, de 14 de dezembro de 2021 [COM(2021) 891 final]. A Comissão propõe, nessa proposta, que se especifique que uma «ameaça grave para a ordem pública ou a segurança interna pode ser considerada como tendo origem, nomeadamente[,] [e]m emergências de saúde pública em grande escala» [v. considerando 28 e artigo 25.o, n.o 1, alínea b), da proposta de regulamento].

( 215 ) O artigo 25.o, n.o 2, estabelece que a reintrodução do controlo nas fronteiras internas só pode ser uma medida de «último recurso», enquanto o artigo 26.o dispõe que as autoridades públicas devem verificar «de que forma essa medida é suscetível de responder adequadamente à ameaça à ordem pública ou à segurança interna» e apreciar «a proporcionalidade da medida em relação a essa ameaça». Estas condições correspondem, na minha opinião, aos critérios clássicos de proporcionalidade da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu.

( 216 ) V. n.os 139 a 144, supra.

( 217 ) V., para uma análise pormenorizada sobre esta matéria, Comissão Europeia, Direção‑Geral da Política Regional e Urbana, Peyrony, J., Rubio, J., e Viaggi, R., Os efeitos do encerramento de fronteiras devido à COVID‑19 nas regiões transfronteiriças: um relatório empírico que abrange o período de março a junho de 2020, Serviço das Publicações da União Europeia, 2021.

( 218 ) Comissão Europeia, 24 de março de 2020, Comunicação da Comissão sobre a implementação de corredores verdes ao abrigo das orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais (JO 2020, C 96I, p. 1), e 30 de março de 2020, Comunicação da Comissão — Orientações sobre o exercício da livre circulação de trabalhadores durante o surto de COVID‑19 (JO 2020, C 102I, p. 1).

( 219 ) V., entre outros, Heinikoski, S., «Covid‑19 bends the rules on internal border controls: Yet another crisis undermining the Schengen acquis?», FIIA Briefing Paper 281, 29 de abril de 2020.