Processos apensos T‑710/21, T‑722/21 e T‑723/21
Robert Roos e o.
contra
Parlamento Europeu
Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção Alargada) de 27 de abril de 2022
«Saúde pública — Exigência de apresentação de um certificado COVID‑19 digital da União válido para aceder aos edifícios do Parlamento — Base legal — Liberdade e independência dos deputados — Obrigação de assegurar a saúde do pessoal ao serviço da União — Imunidade parlamentar — Tratamento de dados pessoais — Direito ao respeito da vida privada — Direito à integridade física — Direito à segurança — Igualdade de tratamento — Proporcionalidade»
Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos regulamentares — Atos que não necessitam de medidas de execução e que dizem diretamente respeito ao recorrente — Conceito de afetação direta — Critérios — Ato que produz diretamente efeitos na situação jurídica do recorrente — Decisão da Mesa do Parlamento sobre as regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento nos seus três locais de trabalho — Admissibilidade
(Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE)
(cf. n.os 33, 35‑41)
Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos regulamentares — Atos que não necessitam de medidas de execução e que dizem diretamente respeito ao recorrente — Conceito de medidas de execução — Critérios — Decisão da Mesa do Parlamento sobre as regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento nos seus três locais de trabalho — Admissibilidade
(Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE)
(cf. n.os 42‑46, 51, 55, 56)
Processo jurisdicional — Decisão ou regulamento que substitui ou altera no decurso da instância o ato recorrido — Pedido de adaptação da petição — Obrigação de o recorrente apresentar o referido pedido por requerimento separado — Pedido apresentado oralmente na audiência — Falta de pedido em requerimento separado — Inadmissibilidade
(Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 86.o, n.o 2)
(cf. n.os 59, 60)
Parlamento Europeu — Poder de organização interna — Alcance — Determinação das regras de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento — Obrigação de dispor de um certificado COVID válido
(Regimento do Parlamento Europeu, artigo 25.o, n.o 2)
(cf. n.os 70‑74)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Limitação do exercício dos direitos e liberdades consagrados pela Carta — Pressupostos — Necessidade de inscrição da limitação numa lei — Conceito de lei — Critérios de acessibilidade e de previsibilidade da lei — Direito ao respeito da vida privada — Proteção dos dados pessoais — Inclusão
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 8.° e 52.°, n.o 1)
(cf. n.os 79‑87, 194)
Parlamento Europeu — Membros — Independência — Alcance — Limitações — Decisão da Mesa do Parlamento sobre as regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento nos seus três locais de trabalho — Violação do princípio da proporcionalidade — Inexistência
(Decisão 2005/684 do Parlamento Europeu, artigo 2.o, n.o 1; Regimento do Parlamento Europeu, artigos 2.° e 5.°, n.o 4)
(cf. n.os 95‑101, 104, 121)
Privilégios e imunidades da União Europeia — Membros do Parlamento Europeu — Imunidade — Alcance
(Protocolo n.o 7 anexo aos Tratados UE e FUE, artigo 7.o; Regimento do Parlamento Europeu, artigos 5.° e 25.°, n.o 2)
(cf. n.os 128‑133)
Instituições da União Europeia — Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Necessidade de licitude do tratamento — Fundamento das atividades de tratamento — Criação de uma base jurídica no direito da União — Alcance
(Artigo 232.o TFUE; Regulamento 2018/1725 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 5.o, n.o 2)
(cf. n.os 149, 150)
Instituições da União Europeia — Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Necessidade de licitude do tratamento — Tratamento posterior dos dados para uma finalidade diferente da que justificou a sua recolha inicial — Requisitos — Informação prévia — Minimização dos dados — Admissibilidade
[Regulamento n.o 2018/1725 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 4.°, n.o 1, 15.°, n.os 1 e 2, 16.°, n.o 1, alínea a), e 25.°, n.o 1]
(cf. n.os 156, 170‑174, 184)
Recurso de anulação — Fiscalização da legalidade — Critérios — Consideração unicamente dos elementos de facto e de direito existentes à data da adoção do ato controvertido — Caráter apropriado das medidas — Regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento — Obrigação de dispor de um certificado COVID válido — Situação epidemiológica e conhecimentos científicos no momento da adoção das regras — Proteção da saúde das pessoas — Admissibilidade
(Artigo 263.o TFUE)
(cf. n.os 211, 235, 236)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Respeito pela vida privada — Proteção de dados pessoais — Regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento — Obrigação de dispor de um certificado COVID válido — Ingerência nesses direitos fundamentais — Limitações ao exercício desses direitos — Respeito do princípio da proporcionalidade — Necessidade das medidas — Princípio da precaução — Proteção da saúde das pessoas
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 8.° e 52.°, n.o 1)
(cf. n.os 217‑223)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Respeito pela vida privada — Proteção dos dados pessoais — Regras excecionais em matéria de saúde e de segurança que regem o acesso aos edifícios do Parlamento — Obrigação de dispor de um certificado COVID válido — Ingerência nesses direitos fundamentais — Limitações ao exercício desses direitos — Respeito do princípio da proporcionalidade — Inexistência de medidas menos restritivas — Consideração das especificidades do Parlamento — Medidas limitadas no tempo e sujeitas a revisão regular — Admissibilidade
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 8.° e 52.°, n.o 1)
(cf. n.os 240, 241, 246‑254)
Resumo
Certificado COVID e acesso aos edifícios do Parlamento Europeu: o Tribunal Geral da UE nega provimento aos recursos de alguns deputados europeus
As condições de acesso não causam uma lesão desproporcionada ou não razoável no exercício livre e independente do mandato de deputado
Em 27 de outubro de 2021, a Mesa do Parlamento Europeu aprovou regras excecionais em matéria de saúde e segurança no acesso aos edifícios do Parlamento Europeu nos seus três locais de trabalho (Bruxelas, Estrasburgo e Luxemburgo). Em substância, esta decisão tem por objeto condicionar o acesso aos referidos edifícios à apresentação de um certificado COVID 19 digital de vacinação, teste ou recuperação ( 1 ), ou de um certificado equivalente ( 2 ), por um período que ia inicialmente até 31 de janeiro de 2022. Os recorrentes, todos os deputados europeus, recorreram para o Tribunal Geral da União Europeia a fim de obter a sua anulação.
O Tribunal Geral, em secção alargada, analisa pela primeira vez a legalidade de certas restrições impostas pelas instituições da UE com vista à proteção da saúde, nomeadamente do seu pessoal, no contexto da pandemia de COVID 19. Nega provimento aos recursos dos deputados europeus e considera que o Parlamento pode impor‑lhes que apresentem um certificado COVID válido para acederem aos seus edifícios.
Apreciação do Tribunal Geral
Em primeiro lugar, o Tribunal Geral considera que o Parlamento não necessitava de autorização expressa do legislador da União para adotar a decisão recorrida. Com efeito, na medida em que visa limitar o acesso aos edifícios do Parlamento apenas às pessoas que dispõem de um certificado COVID válido, esta decisão está abrangida pelo poder de organização interna do Parlamento ( 3 ) e só é aplicável nas suas instalações. Além disso, pode determinar elementos do tratamento de dados pessoais, uma vez que constitui uma «lei» ( 4 ), pois este conceito não está limitado aos diplomas legislativos adotados na sequência de um debate parlamentar.
Em segundo lugar, o Tribunal sublinha que a decisão recorrida não causa uma lesão desproporcionada ou não razoável no exercício livre e independente do mandato de deputado. Reconhece ser certo que, na medida em que lhes impõe uma condição suplementar para acederem às instalações do Parlamento, essa decisão constitui uma ingerência no exercício livre e independente do mandato dos deputados. No entanto, a referida decisão prossegue um objetivo legítimo, que visa equilibrar dois interesses concorrentes num contexto de pandemia, a saber, a continuidade das atividades do Parlamento e a saúde das pessoas presentes nos seus edifícios.
No que respeita a uma alegada violação das imunidades conferidas aos deputados, o Tribunal refere que não resulta do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia ( 5 ) nem do Regimento do Parlamento que este último não podia adotar as medidas de organização interna em causa. Pelo contrário, o referido regimento prevê expressamente que o direito de os deputados participarem ativamente nos trabalhos do Parlamento é exercido em conformidade com as suas disposições ( 6 ).
Em terceiro lugar, o Tribunal Geral declara que o tratamento dos dados pessoais efetuado pelo Parlamento nos termos da decisão recorrida não é ilícito ou desleal. Por um lado, a decisão recorrida, adotada com base no poder de organização interna decorrente do Tratado FUE, constitui uma base jurídica para o tratamento dos dados contidos nos certificados COVID ( 7 ). A esse título, o Tribunal Geral refere que esse tratamento prossegue um objetivo de interesse público geral da União, a saber, a proteção da saúde pública. Por outro lado, o tratamento dos dados é transparente e leal, uma vez que o Parlamento forneceu previamente às pessoas em causa informações sobre o posterior tratamento dos dados para uma finalidade diferente daquela para a qual tinham sido inicialmente obtidos ( 8 ).
Em quarto lugar, o Tribunal considera que a decisão recorrida não lesa ou não lesa de forma desmedida o direito à integridade física, os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, o direito ao consentimento livre e esclarecido para qualquer intervenção de ordem médica no corpo, o direito à liberdade e, por último, o direito ao respeito pela vida privada e à proteção dos dados pessoais. Além disso, considera que, tendo em conta a situação epidemiológica e os conhecimentos científicos existentes no momento em que foram adotadas, as medidas em causa eram necessárias e adequadas. Com efeito, embora seja verdade que nem a vacinação nem os testes nem o restabelecimento permitem excluir totalmente a transmissão da COVID 19, a obrigação de apresentar um certificado COVID válido permite, de forma objetiva e não discriminatória, reduzir esse risco e, portanto, atingir o objetivo de proteção da saúde.
O Tribunal observa ainda que as medidas em causa são igualmente proporcionadas em relação ao objetivo prosseguido. Com efeito, os recorrentes não demonstraram a existência de medidas menos restritivas e igualmente eficazes. Assim, na ausência das medidas em causa, uma pessoa que não estivesse vacinada nem recuperada, potencialmente portadora do vírus, teria podido aceder livremente aos edifícios do Parlamento, com o risco, por esse facto, de contaminar outras pessoas. Além disso, a decisão recorrida tem em conta a situação epidemiológica geral na Europa mas também as especificidades do Parlamento, nomeadamente as frequentes viagens internacionais das pessoas que acedem aos seus edifícios. Por outro lado, as medidas em causa são limitadas no tempo e são regularmente reexaminadas.
Por último, o Tribunal considera que os inconvenientes práticos gerados pela apresentação de um certificado válido não podem prevalecer sobre a proteção da saúde humana de outrem nem ser equiparados a violações desproporcionadas dos direitos fundamentais dos recorrentes.
No entanto, recorda que estas medidas devem ser reavaliadas periodicamente à luz da situação sanitária na União e nos três locais de trabalho do Parlamento e que só se devem aplicar na medida em que perdurem as circunstâncias excecionais que as justifiquem.
( 1 ) Regulamento (UE) 2021/953 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2021 relativo a um regime para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, teste e recuperação da COVID‑19 (Certificado Digital COVID da UE), a fim de facilitar a livre circulação durante a pandemia de COVID‑19 (JO 2021, L 211, p. 1).
( 2 ) Na aceção do artigo 8.o do Regulamento n.o 2021/953 («Certificados COVID 19 e outros documentos emitidos por um país terceiro»).
( 3 ) Na aceção do artigo 25.o, n.o 2, do Regimento do Parlamento Europeu, por sua vez baseado no artigo 232.o TFUE.
( 4 ) Violação do artigo 8.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
( 5 ) Protocolo n.o 7, Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia (JO 2012, C 326, p. 1).
( 6 ) Artigo 5.o do Regimento do Parlamento Europeu.
( 7 ) Regulamento (UE) 2018/1725 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e pelos órgãos e organismos da União e à livre circulação desses dados, e que revoga o Regulamento (CE) n.o 45/2001 e a Decisão n.o 1247/2002/CE (JO L 2018 de 21.11.2018, p. 39).
( 8 ) Em conformidade com o artigo 16.o, n.o 4, do Regulamento n.o 2018/1725.