ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Nona Secção)
15 de novembro de 2023 ( *1 )
«Auxílios de Estado — Medida estatal que prorroga as licenças de jogos de fortuna ou azar concedidas pelos Países Baixos — Decisão que declara a inexistência de um auxílio de Estado — Não abertura de procedimento formal de investigação — Dificuldades sérias — Direitos processuais das partes interessadas»
No processo T‑167/21,
European Gaming and Betting Association, com sede em Etterbeek (Bélgica), representada por T. De Meese, K. Bourgeois e M. Van Nieuwenborgh, advogados,
recorrente,
contra
Comissão Europeia, representada por B. Stromsky e J. Carpi Badía, na qualidade de agentes,
recorrida,
apoiada por
Reino dos Países Baixos, representado por M. Bulterman, J. Langer e C. Schillemans, na qualidade de agentes,
interveniente,
O TRIBUNAL GERAL (Nona Secção),
composto por: L. Truchot, presidente, H. Kanninen e T. Perišin (relatora), juízes,
secretário: A. Marghelis, administrador,
vistos os autos,
após a audiência de 1 de março de 2023,
profere o presente
Acórdão
1 |
Com o seu recurso interposto ao abrigo do artigo 263.o TFUE, a recorrente, a European Gaming and Betting Association, pede a anulação da Decisão C(2020) 8965 final da Comissão, de 18 de dezembro de 2020, relativa ao processo SA.44830 (2016/FC) — Países Baixos — Prorrogação de concessões de jogos de fortuna ou azar nos Países Baixos (a seguir «decisão impugnada»), referida no Jornal Oficial da União Europeia de 15 de janeiro de 2021 (JO 2021, C 17, p. 1). |
Antecedentes do litígio
2 |
A regulamentação neerlandesa relativa aos jogos de fortuna ou azar assenta num sistema de autorizações exclusivas, ou licenças, segundo o qual é proibido organizar ou promover jogos de fortuna ou azar, a menos que tenha sido concedida uma autorização administrativa para esse efeito. |
3 |
A recorrente é uma associação sem fins lucrativos, cujos membros são operadores europeus de jogos e de apostas em linha. Em 8 de março de 2016, apresentou uma denúncia à Comissão Europeia, nos termos do artigo 24.o do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o TFUE (JO 2015, L 248, p. 9), relativa a um auxílio alegadamente ilegal e incompatível com o mercado interno concedido pelo Reino dos Países Baixos a vários operadores de lotarias e outras atividades de apostas e de jogos de fortuna ou azar nesse Estado‑Membro. |
4 |
A denúncia visava, por um lado, uma regra de política geral adotada pelo secretário de Estado da Segurança e Justiça neerlandês em 7 de outubro de 2014, relativa à prorrogação, até 1 de janeiro de 2017, das licenças emitidas para apostas desportivas, apostas sobre corridas de cavalos, lotarias e casinos aos titulares de licenças e, por outro, as decisões adotadas pela Nederlandse Kansspelautoriteit (Autoridade neerlandesa dos jogos de fortuna ou azar, Países Baixos) em 25 de novembro de 2014, em aplicação desta regra, que renovavam seis licenças que expiravam para lotarias de caridade, apostas sobre eventos desportivos, lotaria instantânea, loto e apostas sobre corridas de cavalos (a seguir, em conjunto, «medida contestada»). |
5 |
Na sua denúncia, a recorrente alegou, em substância, que, em aplicação da medida contestada, as autoridades neerlandesas tinham concedido um auxílio de Estado aos operadores titulares dessas licenças. Sustentou que o referido auxílio foi concedido sob a forma de prorrogação das licenças existentes a título exclusivo, sem que as autoridades neerlandesas tivessem pedido o pagamento de uma remuneração ao preço do mercado e sem que tivessem organizado um processo de atribuição das licenças aberto, transparente e não discriminatório. |
6 |
Em 30 de março de 2016, a Comissão transmitiu uma versão não confidencial da denúncia às autoridades neerlandesas, que responderam por carta de 22 de julho de 2016. Em seguida, a Comissão, por carta de 16 de agosto de 2016, enviou um pedido de informações às autoridades neerlandesas, que responderam por carta de 11 de outubro de 2016. |
7 |
A recorrente apresentou observações adicionais à Comissão em 4 de maio, 28 de junho e 17 de novembro de 2016. |
8 |
Em 30 de maio de 2017, a Comissão informou a recorrente do resultado da sua análise preliminar. Considerou que a prorrogação das licenças dos titulares de licenças em vigor a título exclusivo não implicava a transferência de recursos estatais. Por conseguinte, considerou que a medida contestada não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Todavia, indicava‑se expressamente que esta posição não era uma posição definitiva da própria Comissão, mas apenas um primeiro parecer dos serviços da Direção‑Geral «Concorrência», baseado nas informações disponíveis e enquanto aguardava outras observações adicionais que a recorrente eventualmente pretendesse apresentar. |
9 |
A recorrente respondeu por carta de 30 de junho de 2017, na qual contestou a apreciação da Comissão e forneceu informações adicionais. |
10 |
Em 1 de setembro de 2017, a Comissão enviou às autoridades neerlandesas um pedido de informações adicionais, que lhe foram fornecidas em 7 de dezembro de 2017. |
11 |
Em 9 de novembro de 2018, a Comissão solicitou às autoridades neerlandesas informações sobre a reforma em curso da legislação relativa aos jogos de fortuna ou azar nos Países Baixos. |
12 |
Em 19 de fevereiro de 2019, o Senado neerlandês adotou uma nova lei sobre os jogos de fortuna ou azar, que entrou em vigor em 1 de abril de 2021. |
13 |
Em 1 de março de 2019, a Comissão convidou a recorrente a dar o seu parecer sobre a evolução recente da legislação que rege o setor dos jogos de fortuna ou azar nos Países Baixos. |
14 |
Por carta de 5 de abril de 2019, a recorrente apresentou as suas observações relativamente à adoção da nova lei sobre os jogos de fortuna ou azar. Nessa carta, a recorrente sustentou que a adoção desta lei não tinha alterado nem suprimido a ilegalidade do auxílio de Estado objeto da denúncia. |
15 |
Por carta de 27 de junho de 2019, a Comissão informou a recorrente da sua conclusão preliminar de que a prorrogação das licenças exclusivas em questão não conferia uma vantagem aos operadores existentes e que, por conseguinte, a medida contestada não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. |
16 |
Em 22 de agosto de 2019, a recorrente escreveu à Comissão para lhe comunicar que mantinha a sua posição de que a medida contestada constituía um auxílio de Estado. |
17 |
A Comissão enviou às autoridades neerlandesas pedidos de informações por cartas de 2 de dezembro de 2019 e de 16 de junho de 2020, às quais estas responderam por cartas de 7 de fevereiro e 18 de setembro de 2020. |
18 |
O processo foi concluído com a adoção da decisão impugnada. |
19 |
Nessa decisão, a Comissão salientou que, nos termos do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da wet houdende nadere regelen met betrekking tot kansspelen (Lei relativa à Regulamentação Complementar dos Jogos de Fortuna ou Azar), de 10 de dezembro de 1964 (Stb. 1964, n.o 483), a oferta de atividades de jogos de fortuna ou azar era proibida nos Países Baixos, a menos que fosse concedida uma licença ao abrigo desta lei. Por força do artigo 3.o da referida lei, essas licenças só podiam ser concedidas se as receitas geradas pelas atividades de jogo fossem entregues a organizações de interesse geral. |
20 |
Por outro lado, a Comissão observou que o artigo 2.o, alínea b), do besluit tot vaststelling van de algemene maatregel van bestuur, bedoeld in artikel 6 van de Wet op de kansspelen (Kansspelenbesluit) [Decreto que estabelece a medida administrativa geral referida no artigo 6.o da Lei sobre os Jogos de Fortuna ou Azar (Decreto sobre os Jogos de Fortuna ou Azar)], de 1 de dezembro de 1997 (Stb. 1997, n.o 616), previa, nomeadamente, que os operadores de jogo licenciados ao abrigo da lei neerlandesa relativa ao jogo eram obrigados a entregar as receitas geradas pela venda de bilhetes de participação aos beneficiários especificados nas licenças. Essa entrega devia ascender a, pelo menos, 50 % do valor nominal dos bilhetes de participação vendidos. |
21 |
A Comissão considerou que, se o Estado‑Membro concedesse um direito exclusivo a um operador económico ou prorrogasse esse direito e não permitisse ao titular desse direito cobrar mais do que o rendimento mínimo necessário para cobrir os custos de exploração e de investimento ligados ao exercício do direito, acrescido de um lucro razoável, esta medida não conferia uma vantagem ao beneficiário. Nestas circunstâncias, não se pode considerar que o beneficiário do direito exclusivo obteve uma vantagem que não poderia ter obtido em condições normais de mercado. |
22 |
A Comissão constatou que os titulares de licenças eram obrigados a entregar a totalidade do produto das suas atividades de jogos de fortuna ou azar, a saber, as suas receitas após dedução das despesas relativas aos prémios atribuídos e dos custos razoáveis, a organismos de interesse geral e que, por conseguinte, esses operadores não podiam obter lucros ou podiam apenas obter um lucro que não era superior a um lucro razoável. Além disso, a Comissão considerou que os dados financeiros dos titulares de licenças para o período de 2015‑2016, fornecidos pelas autoridades neerlandesas, confirmavam esta análise. |
23 |
Por conseguinte, a Comissão concluiu que a medida contestada não conferia uma vantagem aos seus beneficiários e, deste modo, não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, do TFUE. |
Pedidos das partes
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A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:
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25 |
A Comissão, apoiada pelo Reino dos Países Baixos, conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:
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Quanto ao direito
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Em apoio do seu recurso, a recorrente invoca dois fundamentos, relativos, o primeiro, à violação dos seus direitos processuais devido à recusa da Comissão de dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE (a seguir «procedimento formal de investigação»), quando a análise preliminar na aceção do artigo 108.o, n.o 3, TFUE (a seguir«análise preliminar») não permitia eliminar todas as dúvidas quanto à existência de um auxílio e, o segundo, relativo a um erro manifesto de apreciação porquanto a Comissão concluiu que a medida contestada não concedia uma vantagem, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, aos titulares de licenças. |
27 |
Importa começar por analisar o primeiro fundamento. |
28 |
Com o primeiro fundamento, a recorrente sustenta que a Comissão violou os seus direitos processuais ao não dar início ao procedimento formal de investigação, quando a análise preliminar não permitia eliminar todas as dúvidas quanto à existência de um auxílio. Este fundamento divide‑se em três partes, relativas, a primeira, à duração e às circunstâncias da análise preliminar, a segunda, à alteração substancial da apreciação da Comissão no decurso da análise preliminar e, a terceira, ao facto de a Comissão ter concluído erradamente, na decisão impugnada, que não subsistia nenhuma dúvida quanto à questão de saber se a medida contestada conferia uma vantagem aos titulares de licenças. |
Quanto aos princípios aplicáveis
29 |
Segundo a jurisprudência, a legalidade de uma decisão de não levantar objeções, baseada no artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, depende da questão de saber se a apreciação das informações e dos elementos de que a Comissão dispunha, na fase de análise preliminar, deveria ter objetivamente suscitado dúvidas quanto à compatibilidade de uma medida de auxílio com o mercado interno, uma vez que tais dúvidas, a existirem, devem dar lugar ao início de um procedimento formal de investigação no qual podem participar as partes interessadas referidas no artigo 1.o, alínea h), deste regulamento (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 38 e jurisprudência referida). |
30 |
Esta obrigação é confirmada pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento 2015/1589, por força do qual a Comissão está obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação quando a medida em causa suscite dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, sem dispor, a este respeito, de uma margem de apreciação (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão,C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.os 113 e 185 e jurisprudência referida; Despacho de 25 de junho de 2019, Fred Olsen/Naviera Armas, C‑319/18 P, não publicado, EU:C:2019:542, n.o 30, e Acórdão de 20 de junho de 2019, a&o hostel and hotel Berlin/Comissão, T‑578/17, não publicado, EU:T:2019:437, n.o 57). |
31 |
Quando um recorrente pede a anulação de uma decisão de não levantar objeções, impugna, em substância, o facto de a decisão da Comissão sobre o auxílio em causa ter sido adotada sem que essa instituição tivesse iniciado o procedimento formal de investigação, violando assim os seus direitos processuais. Para que o seu pedido de anulação seja procedente, o recorrente pode invocar todos os fundamentos que demonstrem que a apreciação das informações e dos elementos de que a Comissão dispunha na fase preliminar de investigação da medida notificada deveria ter suscitado dúvidas quanto à compatibilidade dessa medida com o mercado interno. A utilização desses argumentos não pode ter por efeito transformar o objeto do recurso nem alterar as condições da sua admissibilidade. Pelo contrário, a existência de dúvidas sobre essa compatibilidade é precisamente a prova que deve ser apresentada para demonstrar que a Comissão estava obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 39 e jurisprudência referida). |
32 |
A prova da existência de dúvidas sobre a compatibilidade do auxílio em causa com o mercado interno, que deve ser procurada tanto nas circunstâncias da adoção da decisão de não levantar objeções como no seu conteúdo, deve ser apresentada pelo requerente da anulação dessa decisão a partir de um conjunto de indícios concordantes (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 40 e jurisprudência referida). |
33 |
Concretamente, o caráter insuficiente ou incompleto da análise levada a cabo pela Comissão no procedimento de análise preliminar constitui um indício da existência de dificuldades sérias na apreciação da medida em causa, cuja presença a obriga a dar início ao procedimento formal de investigação (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 41 e jurisprudência referida). |
34 |
Além disso, a legalidade de uma decisão de não levantar objeções tomada no termo do procedimento de análise preliminar deve ser apreciada pelo juiz da União em função não apenas dos elementos de informação de que a Comissão dispunha no momento em que a adotou, mas também dos elementos de que podia dispor (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 42 e jurisprudência referida). |
35 |
Ora, os elementos de informação de que a Comissão «podia dispor» incluem os que se afiguravam pertinentes para a apreciação a efetuar em conformidade com a jurisprudência referida no n.o 29, supra, e cuja apresentação, a seu pedido, poderia ter obtido no decurso do procedimento administrativo (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 43 e jurisprudência referida). |
36 |
Com efeito, a Comissão é obrigada a conduzir o procedimento de investigação das medidas em causa de forma diligente e imparcial para dispor, quando da adoção de uma decisão final que declare a existência e, se for caso disso, a incompatibilidade ou ilegalidade do auxílio, dos elementos o mais completos e fiáveis possíveis para tal (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 44 e jurisprudência referida). |
37 |
No entanto, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que, quando da análise da existência e da legalidade de um auxílio de Estado, pode ser necessário que a Comissão vá, sendo caso disso, além da simples análise dos elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento, não se pode deduzir dessa jurisprudência que incumbe à Comissão procurar, por sua própria iniciativa e na falta de qualquer indício nesse sentido, todas as informações que possam apresentar uma ligação com o processo que lhe é submetido, ainda que tais informações sejam do domínio público (v. Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 45 e jurisprudência referida). |
38 |
Daqui resulta que a fiscalização, pelo Tribunal Geral, da legalidade de uma decisão de não iniciar um procedimento formal de investigação por não existirem dificuldades sérias não se pode limitar a procurar um erro manifesto de apreciação. Com efeito, uma decisão adotada pela Comissão sem que tenha sido dado início ao procedimento formal de investigação pode ser anulada por não ter sido realizada a análise contraditória e aprofundada prevista no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, mesmo que não seja demonstrado que as apreciações materiais feitas pela Comissão constituíam erros de direito ou de facto (v., neste sentido, Acórdão de 15 de outubro de 2020, První novinová společnost/Comissão, T‑316/18, não publicado, EU:T:2020:489, n.os 88, 90 e 91 e jurisprudência referida). A fiscalização exercida pelo Tribunal Geral não é, portanto, restrita (v., neste sentido, Acórdão de 20 de junho de 2019, a&o hostel and hotel Berlin/Comissão, T‑578/17, não publicado, EU:T:2019:437, n.o 66). |
39 |
É à luz destes princípios jurisprudenciais e destas considerações que há que examinar a argumentação da recorrente destinada a demonstrar a existência de dúvidas que deveriam ter levado a Comissão a dar início ao procedimento formal de investigação. |
40 |
O Tribunal Geral considera oportuno examinar em primeiro lugar a terceira parte do primeiro fundamento. |
Quanto à terceira parte do primeiro fundamento, relativa à existência de uma vantagem conferida aos titulares de licenças
41 |
Com a terceira parte do primeiro fundamento, a recorrente sustenta, em substância, que a Comissão concluiu erradamente na decisão impugnada que não subsistia nenhuma dúvida quanto à questão de saber se a medida contestada conferia uma vantagem aos seus beneficiários. Esta parte comporta, em substância, duas acusações, relativas, a primeira, a uma vantagem alegadamente concedida aos titulares de licenças e, a segunda, à falta de avaliação da questão de saber se as licenças em causa não conferiam uma vantagem indireta aos organismos aos quais os titulares das referidas licenças deviam entregar uma parte das suas receitas geradas pelas atividades de jogos de fortuna ou azar. |
42 |
Quanto à segunda acusação, a recorrente considera que a Comissão dispunha de informações e de elementos de prova que permitiam suspeitar da existência de uma vantagem indireta em benefício dos organismos aos quais os titulares de licenças deviam entregar uma parte das suas receitas geradas pelas atividades de jogos de fortuna ou azar. Ora, ao não examinar esta circunstância, a Comissão não conseguiu dissipar todas as dúvidas quanto à existência de um auxílio de Estado, tanto mais que se baseou amplamente, na decisão impugnada, na obrigação imposta aos titulares de licenças de entregar uma parte das receitas das atividades de jogos de fortuna ou azar às instituições de beneficência em questão para concluir pela inexistência de uma vantagem em relação aos titulares de licenças. Segundo a recorrente, o facto de essas instituições de beneficência serem organismos sem fins lucrativos não impede que sejam considerados beneficiários indiretos do auxílio, uma vez que as entidades sem fins lucrativos podem igualmente propor bens e serviços no mercado e, portanto, ser consideradas empresas. |
43 |
A Comissão contesta este argumento, pelo facto de os organismos em causa não poderem ser considerados empresas que operam em níveis de atividade subsequentes aos dos titulares de licenças de jogos de fortuna ou azar, na aceção do ponto 115 da sua Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do artigo 107.o, n.o 1, [TFUE] (JO 2016, C 262, p. 1). Além disso, considera que a argumentação da recorrente relativa a esta acusação não foi apresentada na sua denúncia nem no âmbito das suas observações posteriores. Neste contexto, a Comissão sustenta que não lhe competia procurar, por sua própria iniciativa e na falta de qualquer indício nesse sentido, todas as informações que pudessem apresentar uma ligação com o processo que lhe foi submetido, ainda que essas informações fossem do domínio público. |
44 |
A este respeito, há que salientar, como se observou, nomeadamente, nos n.os 19 e 20, supra, que resulta da regulamentação neerlandesa relativa aos jogos de fortuna ou azar submetida à apreciação da Comissão que uma parte das receitas geradas pelas atividades de jogos de fortuna ou azar devia ser entregue, pelos titulares das licenças, exclusivamente a organismos de interesse geral, nos termos em que são designados nas licenças. Nestas condições, a Comissão não podia ignorar que essa obrigação existia na regulamentação neerlandesa em causa. |
45 |
De resto, há que observar que, na decisão impugnada, a Comissão baseou a sua análise quanto à inexistência de uma vantagem para os titulares de licenças precisamente na obrigação que lhes incumbe de entregar uma parte das suas receitas a organismos de interesse geral, como resulta, nomeadamente, dos n.os 49 e 54 a 57 da decisão impugnada. Com efeito, no n.o 49 da decisão impugnada, a Comissão considerou que a concessão de direitos especiais ou exclusivos sem uma remuneração adequada em conformidade com as tarifas de mercado podia constituir uma renúncia a receitas estatais e a concessão de uma vantagem. Além disso, resulta do n.o 54 da decisão impugnada que, segundo a Comissão, o facto de a medida contestada subordinar a concessão de licenças que permitem exercer atividades de jogos de fortuna ou azar à obrigação de os titulares das mesmas entregarem uma parte das receitas resultantes dessas atividades exclusivamente a organismos de interesse geral garante que os referidos titulares não receberão mais do que o rendimento mínimo necessário para cobrir os seus custos, acrescido de um lucro razoável. Por conseguinte, atendendo a que existe uma obrigação de os titulares de licenças entregarem uma parte das suas receitas aos organismos de interesse geral, a Comissão concluiu que a medida contestada não conferia vantagem e, deste modo, não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (n.os 56 e 57 da decisão impugnada). |
46 |
Assim, quando da adoção da decisão impugnada, a Comissão dispunha de informações sobre a medida contestada que a deveriam ter levado a questionar‑se se a regulamentação neerlandesa relativa aos jogos de fortuna ou azar estava concebida para orientar a entrega das receitas geradas pela atividade dos titulares de licenças em causa essencialmente para organismos de interesse geral designados por essas licenças. |
47 |
Com efeito, importa recordar que já foi declarado que, no âmbito da análise de uma medida, a Comissão pode ser levada a examinar se se pode considerar que uma vantagem foi indiretamente concedida a operadores diferentes do destinatário imediato da transferência de recursos estatais. A este título, o juiz da União também reconheceu que uma vantagem diretamente concedida a determinadas pessoas singulares ou coletivas pode constituir uma vantagem indireta e, por isso, um auxílio estatal para outras pessoas coletivas que eram empresas (v. Acórdão de 13 de maio de 2020, Germanwings/Comissão,T‑716/17, EU:T:2020:181, n.o 75 e jurisprudência referida). |
48 |
A este respeito, há que salientar, por outro lado, que o ponto 115 da Comunicação da Comissão sobre a noção de auxílio estatal indica que pode ser conferida uma vantagem indireta a uma empresa que não aquela para a qual foram diretamente transferidos recursos estatais. Além disso, o ponto 116 da referida comunicação prevê que o conceito de «vantagem indireta» abrange a situação em que a medida é concebida para distribuir os seus efeitos secundários por empresas ou grupos de empresas identificáveis. Por conseguinte, a Comissão deveria ter-se questionado sobre se a medida contestada não conferia uma vantagem indireta aos organismos de interesse geral. |
49 |
Ora, não pode deixar de se observar que, não obstante a circunstância de a Comissão ter sido informada dessa parte da regulamentação neerlandesa relativa aos jogos de fortuna ou azar, a decisão impugnada nada mencionou quanto a este aspeto. |
50 |
Por outro lado, no que se refere ao argumento da Comissão de que, ao obrigar os titulares de licenças a entregar uma parte das suas receitas a organismos de interesse geral, as autoridades neerlandesas prosseguem objetivos diretamente ligados à ordem pública e à moralidade pública, importa sublinhar que, na decisão impugnada, a Comissão não examinou se os organismos associados à medida contestada constituíam empresas ou prosseguiam missões de serviço público. |
51 |
Por conseguinte, cabe concluir que, para efeitos da adoção da decisão impugnada, a Comissão não examinou a questão de saber se a medida contestada conferia ou não uma vantagem indireta aos organismos aos quais os titulares de licenças deviam entregar uma parte das suas receitas. Ao fazê‑lo, excluiu, sem mais precisões, que esta questão pudesse suscitar sérias dificuldades na qualificação da medida contestada como auxílio de Estado, que só o procedimento formal de investigação teria permitido esclarecer. Ora, dado que a Comissão não procedeu a uma investigação adequada, na fase da análise preliminar, da questão de saber se a medida contestada conferia uma vantagem indireta a esses organismos, e isto apesar de a entrega de uma parte das receitas geradas pela atividade dos titulares de licenças a organismos de interesse geral designados por essas licenças constituir uma das principais características da regulamentação controvertida, o facto de esta questão não ter sido examinada na decisão impugnada não permite excluir a existência de sérias dificuldades a este respeito. |
52 |
Nestas circunstâncias, a terceira parte do primeiro fundamento deve ser acolhida no que respeita à acusação relativa a vantagens indiretas concedidas aos organismos aos quais os titulares de licenças devem entregar uma parte das suas receitas geradas pelas atividades de jogos de fortuna ou azar, sem que seja necessário examinar os outros argumentos apresentados pela recorrente no âmbito da primeira e segunda partes. |
53 |
Por conseguinte, a decisão impugnada deve ser anulada sem que seja necessário apreciar o segundo fundamento. |
Quanto às despesas
54 |
Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas da recorrente, em conformidade com os pedidos desta. |
55 |
Por outro lado, nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. |
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Por conseguinte, há que decidir que o Reino dos Países Baixos suportará as suas próprias despesas. |
Pelos fundamentos expostos, O TRIBUNAL GERAL (Nona Secção) decide: |
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Truchot Kanninen Perišin Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de novembro de 2023. Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: inglês.