ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

15 de dezembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política estrangeira e de segurança comum — Regulamento (CE) n.o 1210/2003 — Restrições específicas aplicáveis às relações económicas e financeiras com o Iraque — Artigo 4.o — Congelamento dos fundos e dos recursos económicos que pertencem às pessoas, aos órgãos e às entidades associadas ao regime do ex‑presidente Saddam Hussein — Artigo 6.o — Transferência para o mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque — Propriedade dos fundos e dos recursos económicos congelados»

Nos processos apensos C‑753/21 e C‑754/21,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial nos termos do 267.o TFUE, apresentados pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), por Decisões de 2 de dezembro de 2021, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 8 de dezembro de 2021, nos processos

Instrubel NV

contra

Montana Management Inc.,

BNP Paribas Securities Services (C‑753/21),

e

Montana Management Inc.

contra

Heerema Zwijndrecht BV,

BNP Paribas Securities Services (C‑754/21),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: M. Safjan (relator), presidente de secção, N. Piçarra e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

em representação da Instrubel NV e da Heerema Zwijndrecht BV, por S. Bonifassi e F. Boucard, advogados,

em representação da Montana Management Inc., por D. Célice e B. Périer, advogados,

em representação da BNP Paribas Securities Services, por J. Martinet, advogado,

em representação do Governo francês, por M. R. Bénard e J.‑L. Carré, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J.‑F. Brakeland e M. Carpus Carcea, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar o processo sem conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.os 2 a 4, e do artigo 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003 do Conselho, de 7 de julho de 2003, relativo a determinadas restrições específicas aplicáveis às relações económicas e financeiras com o Iraque e que revoga o Regulamento (CE) n.o 2465/96 (CE) do Conselho (JO 2003, L 169, p. 6), conforme alterado em último lugar pelo Regulamento (UE) n.o 85/2013 do Conselho, de 31 de janeiro de 2013 (JO 2013, L 32, p. 1) (a seguir «Regulamento n.o 1210/2003»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem, respetivamente, a Instrubel NV à Montana Management Inc. e à BNP Paribas Securities Services (a seguir «BNP Paribas») (C‑753/21), bem como a Montana Management à Heerema Zwijndrecht BV (a seguir «Heerema») e à BNP Paribas (C‑754/21) a respeito da validade das medidas cautelares e arrestos diligenciadas pela Instrubel e pela Heerema, sobre bens congelados, em razão dos créditos que estas empresas detêm contra o Estado do Iraque.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

Nos termos do ponto 12 da Resolução 1483 (2003), adotada em 22 de maio de 2003 pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, este último «[r]egista que foi criado um Fundo de Desenvolvimento do Iraque, que será detido pelo Banco Central do Iraque».

4

O ponto 14 desta Resolução dispõe:

«[…] o Fundo de Desenvolvimento do Iraque será utilizado de modo transparente para responder às necessidades humanitárias do povo iraquiano, para a reconstrução económica e a reposição da infraestrutura do Iraque, o prosseguimento do desarmamento do Iraque, as despesas da administração civil iraquiana e para outros fins que correspondam aos interesses do povo iraquiano.»

5

O ponto 23 da referida resolução enuncia:

«[T]odos os Estados‑Membros onde se encontrem:

a)

Fundos ou outros bens financeiros ou recursos económicos do Governo iraquiano precedente ou de órgãos, empresas ou instituições públicas que tivessem deixado o Iraque à data da adoção da presente resolução, ou

b)

Fundos ou outros bens financeiros ou recursos económicos saídos do Iraque ou adquiridos por Saddam Hussein ou por outros altos responsáveis do antigo regime iraquiano ou membros da sua família próxima, incluindo as entidades pertencentes a estas pessoas ou a outras pessoas agindo em nome daquelas ou segundo as suas instruções, ou que se encontrem sob o seu controlo direto ou indireto,

devem congelar sem demora esses fundos ou outros bens financeiros ou recursos económicos e, a menos que esses fundos tenham sido objeto de uma medida ou de uma decisão judicial, administrativa ou arbitral, de que se proceda imediatamente à sua transferência para o Fundo de Desenvolvimento do Iraque, entendendo‑se que, salvo se tiverem sido apresentados de outro modo, os pedidos apresentados por particulares ou por entidades não governamentais relativos a esses fundos ou outros bens financeiros transferidos, podem ser apresentados ao governo representativo do Iraque reconhecido pela comunidade internacional […]»

6

Em 15 de dezembro de 2010, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1956 (2010), que prevê, no seu ponto 5:

«[O Conselho de Segurança decide] transferir todos os produtos do Fundo de Desenvolvimento do Iraque para a conta ou contas do mecanismo do Governo iraquiano instituído para lhe suceder e encerrar o Fundo de Desenvolvimento do Iraque, até 30 de junho de 2011, o mais tardar, e pede para receber uma confirmação por escrito uma vez efetuados a transferência e o encerramento.»

Direito da União

Regulamento n.o 1210/2003

7

O considerando 5 do Regulamento n.o 1210/2003 tem a seguinte redação:

«A fim de permitir que os Estados‑Membros transfiram os fundos, os recursos económicos e as receitas de recursos económicos congelados para o Fundo de Desenvolvimento [do] Iraque, dever‑se‑á prever o desbloqueamento desses fundos e recursos económicos.»

8

Nos termos do artigo 1.o, n.os 4 e 5, deste regulamento:

«Para efeitos do presente Regulamento, entende‑se por:

[…]

4)

“Congelamento de fundos”, qualquer ação destinada a impedir qualquer movimento, transferência, alteração, utilização ou operação de fundos, suscetível de provocar uma alteração do respetivo volume, montante, localização, propriedade, posse, natureza, destino ou qualquer outra alteração que possa permitir a sua utilização, incluindo a gestão de carteiras de valores mobiliários;

5)

“Congelamento de recursos económicos”, qualquer ação destinada a impedir a respetiva utilização para a obtenção de fundos, bens ou serviços por qualquer meio, designadamente mas não exclusivamente, mediante a sua venda, locação ou hipoteca.»

9

O artigo 4.o, n.os 2 a 4, do referido regulamento dispõe:

«2.   Ficam congelados todos os fundos e recursos económicos que pertençam, sejam propriedade ou estejam na posse das seguintes pessoas, identificadas pelo Comité de Sanções e enumeradas no anexo IV:

a)

Ex‑presidente Saddam Hussein;

b)

Altos responsáveis do seu regime;

c)

Membros próximos das respetivas famílias; ou

d)

Pessoas coletivas, organismos ou entidades possuídos ou controlados direta ou indiretamente pelas pessoas a que se referem as alíneas a), b) e c) ou por qualquer pessoa singular ou coletiva que atue em seu nome ou sob as suas instruções.

3.   É proibido colocar quaisquer fundos, direta ou indiretamente, à disposição ou por conta de qualquer pessoa singular ou coletiva, organismo ou entidade enumerados no anexo IV.

4.   É proibido colocar quaisquer recursos económicos, direta ou indiretamente, à disposição ou por conta de qualquer pessoa singular ou coletiva, organismo ou entidade enumerados no anexo IV, de forma a que essa pessoa, organismo ou entidade possam obter fundos, bens ou serviços.»

10

O artigo 6.o do Regulamento n.o 1210/2003 enuncia:

«1.   Em derrogação ao artigo 4.o, as autoridades competentes indicadas nos sítios Web enumerados no anexo V podem autorizar o desbloqueamento de fundos ou recursos económicos congelados, se estiverem preenchidas as seguintes condições:

a)

Os fundos e recursos económicos serem objeto de uma garantia judicial, administrativa ou arbitral constituída antes de 22 de maio de 2003 ou de uma decisão judicial, administrativa ou arbitral proferida antes dessa data;

b)

Os fundos ou recursos económicos se destinarem a ser utilizados exclusivamente para satisfazer créditos objeto de tal garantia ou reconhecidos como válidos por tal decisão, nos limites fixados pelas leis e regulamentação que regem os direitos das pessoas titulares desses créditos;

c)

A satisfação dos créditos não infringir o disposto no Regulamento (CE) n.o 3541/92 [de 7 de dezembro de 1992, que proíbe que sejam satisfeitos os pedidos do Iraque no que se refere aos contratos e transações cuja realização foi afetada pela Resolução 661 (1990) do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelas resoluções conexas (JO 1992, L 361, p. 1)]; e

d)

O reconhecimento da garantia ou decisão não ser contrário à ordem pública no Estado‑Membro em questão.

2.   Em todos os outros casos, os fundos, os recursos económicos e os produtos de recursos económicos congelados nos termos do artigo 4.o só podem ser desbloqueados para efeito da sua transferência para o Fundo de Desenvolvimento do Iraque detido pelo Banco Central do Iraque, nas condições definidas na Resolução 1483 (2003) do CSNU.»

11

A sociedade Montana Management foi inscrita, pelo Regulamento (CE) n.o 785/2006 da Comissão, de 23 de maio de 2006, que altera o Regulamento n.o 1210/2003 (JO 2006, L 138, p. 7), na lista, que figura no anexo IV do Regulamento n.o 1210/2003, das pessoas singulares e coletivas, dos órgãos e das entidades associadas ao regime do antigo presidente Saddam Hussein visadas no artigo 4.o, n.os 2 a 4, deste último regulamento.

Regulamento (CE) n.o 1799/2003

12

O considerando 4 do Regulamento (CE) n.o 1799/2003 que altera o Regulamento n.o 1210/2003 (JO 2003, L 264, p. 12), está assim redigido:

«De acordo com a Resolução 1483 (2003), o congelamento dos fundos e recursos económicos constitui a primeira etapa de um processo que conduzirá à transferência desses fundos e recursos económicos para o Fundo de Desenvolvimento do Iraque. A resolução isenta igualmente deste processo os fundos e recursos económicos objeto de uma decisão judicial proferida antes de 22 de maio de 2003. Por conseguinte, a manutenção das medidas de congelamento não é oportuna se os fundos e recursos económicos em questão estiverem explicitamente excluídos da disposição que impõe a sua transferência para o fundo.»

Direito francês

13

O artigo R. 523‑3 do código do processo civil de execução prevê:

«No prazo de oito dias, sob pena de caducidade, o arresto cautelar é notificado ao devedor mediante ato do funcionário judicial.

Esse ato deve conter, sob pena de nulidade:

[…]

2)

Uma cópia do ato de arresto e a reprodução das informações comunicadas pelo terceiro arrestado se o ato lhe tiver sido notificado por via eletrónica;

3)

A menção, em carateres destacados, do direito que pertence ao devedor, se as condições de validade do arresto não estiverem reunidas, de pedir o seu levantamento ao juiz da execução do lugar do seu domicílio;

[…]»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑753/21

14

Na sequência de duas sentenças arbitrais proferidas, respetivamente, em 6 de fevereiro de 1996 e em 22 de março de 2003 e que se tornaram, entretanto, definitivas, pondo a cargo do Estado do Iraque uma quantia a pagar à Instrubel, sociedade de direito neerlandês, o tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris, França) proferiu dois despachos de exequatur em 20 de março de 2013.

15

Em 20 de janeiro de 2014, para efeitos da execução dessas duas sentenças arbitrais, a Instrubel fez proceder a arrestos cautelares de bens na posse de BNP Paribas «contra a República do Iraque e as suas entidades cujos fundos pertencem ao Iraque por força de resoluções da ONU, a saber, a sociedade Montana [Management]». Os referidos arrestos foram notificados ao Estado do Iraque em 28 de julho de 2014, que não os impugnou.

16

Em 26 de dezembro de 2017, a Montana Management citou a Instrubel perante o juiz da execução do tribunal de grande instance de Bobigny (Tribunal de Primeira Instância de Bobigny, França) e pediu que os arrestos fossem levantados, invocando tanto a caducidade quanto a nulidade desses arrestos, com o fundamento de que não lhe tinham sido notificados, não obstante ser ela a proprietária dos fundos visados pelos referidos arrestos.

17

Por decisão de 24 de julho de 2018, esse juiz de execução declarou a caducidade dos arrestos e ordenou o seu levantamento. Com efeito, considerou que, uma vez que as atas de arresto designavam como devedor o Estado do Iraque e as suas entidades, designadamente a Montana Management, esta última devia ser considerada devedora, na aceção do artigo R.‑523‑3 do código do processo civil de execução. Por conseguinte, segundo o referido juiz de execução, as atas deviam ser notificadas à Montana Management e, não o tendo sido, os arrestos caducavam e devia ser ordenado o seu levantamento. Por acórdão de 24 de outubro de 2019, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) confirmou essa decisão.

18

A Instrubel interpôs recurso de cassação para a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), a saber, o órgão jurisdicional de reenvio, e alegou que um arresto cautelar deve ser notificado unicamente ao devedor mencionado no título executivo que serve de base a esse arresto, o que foi o caso, uma vez que o título executivo menciona como devedor o Estado do Iraque e foi notificado a esse Estado.

19

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a propriedade dos bens que foram objeto das medidas cautelares. Com efeito, para que essas medidas cautelares sejam regulares e produzam efeitos, é necessário, segundo o direito francês, que os bens afetados por essas medidas pertençam ao devedor mencionado no título executivo, no caso em apreço, o Estado do Iraque.

20

Ora, no caso vertente, esses bens eram objeto de congelamento em razão da designação da Montana Management pelo Regulamento n.o 1210/2003. Além disso, o congelamento dos bens por força deste regulamento tem por objetivo a sua transferência para o mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque (a seguir «Fundo de Desenvolvimento»), tendo por efeito transferir a propriedade desses bens para o Estado do Iraque.

21

Assim, o referido órgão jurisdicional pergunta‑se se os bens congelados continuam a ser propriedade das pessoas designadas por este regulamento, no caso em apreço, a Montana Management, até à decisão de transferência da autoridade nacional competente ou se os fundos congelados pertencem a esse Fundo de Desenvolvimento, a saber, o Estado do Iraque, uma vez que, tendo em conta a transferência prevista pelo referido regulamento, os bens congelados não estão destinados a regressar ao património das pessoas designadas pelo mesmo regulamento.

22

Nestas circunstâncias, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 4.o, n.os 2, 3 e 4, e 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003 conforme alterado, ser interpretados no sentido de que:

os fundos e recursos económicos congelados continuam, até à decisão de transferência para o mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque, a ser propriedade das pessoas singulares e coletivas, organismos e entidades associados com o regime do ex‑presidente Saddam Hussein visados pelo congelamento dos fundos e dos recursos económicos?

ou esses fundos congelados são propriedade do mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque desde a entrada em vigor do regulamento que identifica, nos anexos III e IV, as pessoas singulares e coletivas, organismos e entidades associados ao regime do ex‑presidente Saddam Hussein visados pelo congelamento dos fundos e dos recursos económicos?

2)

Na hipótese de se responder à primeira questão que os fundos e recursos económicos são propriedade do mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque, devem os artigos 4.o e 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003, conforme alterado, ser interpretados no sentido de que uma apreensão dos ativos congelados está sujeita à autorização prévia da autoridade nacional competente? Ou devem essas disposições ser interpretadas no sentido de que apenas exigem a autorização dessa autoridade nacional no momento do desbloqueamento dos fundos congelados?»

Processo C‑754/21

23

Por um acórdão do Gerechtshof’s‑Gravenhage (Tribunal de Recurso de Haia, Países Baixos) de 31 de outubro de 2000, que se tornou executório em França por um despacho do presidente do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris) de 31 de agosto de 2011, o Estado do Iraque e o Banco Central do Iraque foram condenados a pagar solidariamente uma quantia à Heerema, sociedade de direito neerlandês.

24

Em 28 de julho de 2011, a Heerema fez proceder a arrestos cautelares de valores móveis na posse de BNP Paribas detidos pela Montana Management. Esses arrestos cautelares foram convertidos em arresto de bens em poder de terceiros e arresto para efeito de venda nos meses de junho e de setembro de 2014.

25

Em 12 de dezembro de 2014, a Montana Management citou a Heerema perante o juiz da execução do tribunal de grande instance de Bobigny (Tribunal de Primeira Instância de Bobigny), a fim de pronunciar a nulidade e a caducidade dos arrestos e de ordenar o seu levantamento.

26

Por decisão de 12 de maio de 2015, esse juiz rejeitou o pedido da Montana Management por razões processuais. Por acórdão de 28 de fevereiro de 2019, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) anulou esta sentença e validou o arresto para efeito de venda e o arresto de bens em poder de terceiros com fundamento na presunção de que os fundos congelados pertenciam ao Estado do Iraque.

27

Tendo interposto recurso para o órgão jurisdicional de reenvio, a Montana Management contesta, em primeiro lugar, a aplicação de uma presunção segundo a qual os fundos congelados pertencem ao Estado do Iraque. Sustenta que esses fundos continuam a ser propriedade sua até à decisão de transferência para o Fundo de Desenvolvimento, uma vez que o congelamento de fundos implica uma medida temporária que não viola o direito de propriedade.

28

E, segundo lugar, a Montana Management alega que a Heerema devia obter a autorização prévia da autoridade nacional competente em aplicação do artigo 6.o do Regulamento n.o 1210/2003 uma vez que a notificação do ato de conversão acarretaria a atribuição imediata do crédito ao credor.

29

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se os bens congelados continuam a ser propriedade das pessoas coletivas visadas pelo congelamento até à decisão de transferência da autoridade nacional competente para o Fundo de Desenvolvimento ou se estes pertencem a esse Fundo desde a entrada em vigor do Regulamento que designou as referidas pessoas.

30

Na hipótese de os bens congelados pertencerem ao referido Fundo desde a entrada em vigor do regulamento que tiver inscrito, no caso em apreço, a Montana Management na lista das sociedades visadas pelo congelamento em questão, colocar‑se‑ia a questão da validade dos arrestos tendo em conta a falta de autorização prévia da autoridade nacional para a utilização dos bens congelados.

31

Nestas circunstâncias, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 4.o, n.os 2, 3 e 4, e 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003, conforme alterado, ser interpretados no sentido de que:

os fundos e recursos económicos congelados continuam, até à decisão de transferência para o mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque, a ser propriedade das pessoas singulares e coletivas, organismos e entidades associados com o regime do ex‑presidente Saddam Hussein visados pelo congelamento dos fundos e dos recursos económicos?

ou esses fundos congelados são propriedade do mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque desde a entrada em vigor do regulamento que identifica, nos anexos III e IV, as pessoas singulares e coletivas, organismos e entidades associados ao regime do ex‑presidente Saddam Hussein visados pelo congelamento dos fundos e dos recursos económicos?

2)

Na hipótese de se responder à primeira questão que os fundos e recursos económicos são propriedade do mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque, devem os artigos 4.o e 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003, conforme alterado, ser interpretados no sentido de que uma apreensão dos ativos congelados está sujeita à autorização prévia da autoridade nacional competente? Ou devem essas disposições ser interpretadas no sentido de que apenas exigem a autorização dessa autoridade nacional no momento do desbloqueamento dos fundos congelados?»

Quanto à tramitação no Tribunal de Justiça

32

Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2022, os processos C‑753/21 e C‑754/21 foram apensados para efeito da fase escrita e oral, bem como do Acórdão.

Sobre os pedidos de abertura da fase oral

33

Por pedidos apresentados em 25 de julho e 7 de novembro de 2022, a Instrubel e a Heerema solicitaram a abertura da fase oral do processo ao abrigo do artigo 83.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, invocando a existência de certos factos novos cuja natureza poderia exercer uma influência decisiva na decisão do Tribunal de Justiça.

34

Esses factos novos consistiriam, em primeiro lugar, na irradiação do nome de Montana Management da lista das pessoas e das entidades às quais se deveria aplicar o congelamento dos bens, que se verificou posteriormente à apresentação das observações escritas das partes e dos interessados visados no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

35

Com efeito, se o Tribunal de Justiça responder às primeiras questões nos processos C‑753/21 e C‑754/21 que os bens congelados continuam a ser, até à decisão de transferência para o Fundo de Desenvolvimento, propriedade das entidades visadas pela medida de congelamento, isso implicaria, devido a essa irradiação, que esses bens, que continuariam por transferir para esse Fundo de Desenvolvimento, serão restituídos a essa sociedade. Ora, tal consequência seria contrária aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1210/2003.

36

Em segundo lugar, a abertura da fase escrita do processo seria motivada pela circunstância de que a Montana Management deixaria de ter legitimidade ativa na sequência do falecimento do seu presidente e representante legal, durante o ano de 2020.

37

Em terceiro lugar, seria necessário discutir acerca da influência, na decisão prejudicial do Tribunal de Justiça, do Decreto n.o 2015‑1134 de 11 de setembro de 2015, relativo às modalidades de transferência de fundos e de recursos económicos para o mecanismo instituído para suceder ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque, e da sentença de 12 de janeiro de 2021 do tribunal judiciaire de Grasse (Tribunal Judicial de Grasse, França).

38

A este respeito, importa salientar que, em conformidade com o artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, ouvido o advogado‑geral, ordenar em qualquer momento a abertura ou a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecida ou quando uma parte tiver submetido, posteriormente ao encerramento dessa fase, um facto novo que possa exercer uma influência na decisão do Tribunal de Justiça, ou ainda quando o processo deve ser resolvido com base num argumento que ainda não foi debatido.

39

No caso em apreço, o Tribunal de Justiça, ouvido o advogado‑geral, considera, com base nos pedidos de decisão prejudicial e nas observações escritas, que dispõe de todos os elementos necessários para tratar o presente reenvio prejudicial e que os factos invocados pela Instrubel e pela Heerema nos seus pedidos de 25 de julho e de 7 de novembro de 2022, cujo alcance para a tramitação nos processos principais deve ser apreciado pelo órgão jurisdicional de reenvio, não constituem factos novos suscetíveis de exercer uma influência decisiva sobre a decisão prejudicial do Tribunal de Justiça.

40

Por conseguinte, há que ordenar a abertura da fase oral do processo.

Sobre as questões prejudiciais

Sobre as primeiras questões nos processos C‑753/21 e C‑754/21

41

Com as suas primeiras questões nos presentes processos, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.os 2 a 4, e o artigo 6.o do Regulamento n.o 1210/2003 devem ser interpretados no sentido de os fundos e os recursos económicos congelados continuam, até à decisão de transferência para o Fundo de Desenvolvimento, a ser a propriedade das pessoas individuais e coletivas e das entidades associadas ao regime do antigo presidente Saddam Hussein, visadas pelo congelamento, ou se esses fundos e esses recursos económicos pertencem a esse Fundo de Desenvolvimento a partir da entrada em vigor do regulamento que designa as pessoas, os órgãos e as entidades visadas pelo congelamento.

42

A este respeito, o artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1210/2003 prevê o congelamento dos fundos e dos recursos económicos que pertençam a pessoas designadas pelo Comité das Sanções e enumeradas no anexo IV deste regulamento, ou estando na posse destas ou detidos por estas.

43

O artigo 6.o do referido regulamento prevê, no seu n.o 1, derrogações que permitem, nas condições enumeradas nesse número, que a utilização de certos fundos e recursos económicos congelados seja autorizada pelas autoridades competentes. O n.o 2 deste artigo dispõe que, em todos os casos não visados no referido n.o 1, os fundos e os recursos económicos apenas são objeto de levantamento para efeito da sua transferência para o Fundo de Desenvolvimento. Essa transferência tem como consequência que o Estado do Iraque se torna proprietário dos bens transferidos.

44

Assim, a conjugação do artigo 4.o, n.o 2, com o artigo 6.o do mesmo regulamento revela duas etapas distintas que consistem, por um lado, num congelamento dos bens e, por outro, numa transferência desses bens para o Fundo de Desenvolvimento.

45

Mais particularmente, o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1210/2003 prevê, em conformidade com o n.o 23 da Resolução 1483 (2003), que as autoridades nacionais competentes podem autorizar a utilização de certos fundos e recursos económicos congelados quando estes são objeto de uma medida ou de uma decisão judicial, administrativa ou arbitrária tomada antes de 22 de maio de 2003. Noutros termos, e como resulta igualmente do considerando 4 do Regulamento n.o 1799/2003, na hipótese de os fundos ou os recursos económicos congelados serem objeto de tal medida ou de tal decisão, essa circunstância poderia ser suficiente para levantar o congelamento sobre estes, a fim de permitir a sua utilização e deste modo os isentar da obrigação de os fazer transferir para o Fundo de Desenvolvimento.

46

Em contrapartida, se se devesse considerar que a transferência para o Fundo de Desenvolvimento se efetua automaticamente no momento do congelamento, o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1210/2003 ficaria privado de qualquer efeito útil.

47

Esta conclusão não é invalidada pelas disposições do n.o 23 da Resolução 1483 (2003). Com efeito, embora esse número preveja uma transferência imediata dos bens para o Fundo de Desenvolvimento, a sua própria redação condiciona, porém, essa transferência à falta de uma medida ou de uma decisão judicial, administrativa ou arbitral suscetível de levar ao adiamento ou à anulação da referida transferência.

48

Além disso, o considerando 5 do Regulamento n.o 1210/2003 mostra igualmente as duas etapas mencionadas no n.o 44 do presente acórdão, uma vez que enuncia, por um lado, que são os Estados‑Membros que procedem à transferência dos fundos e dos recursos económicos para o Fundo de Desenvolvimento na sequência do congelamento desses bens e, por outro, que, a fim de lhes permitir efetuar essa transferência, haverá que prever disposições para levantar o congelamento. Assim, a transferência surge como uma medida ativa por parte dos Estados‑Membros depois do congelamento e apenas é feita na sequência do levantamento desse congelamento em conformidade com as modalidades previstas para esse efeito por este regulamento.

49

Por conseguinte, a própria existência de disposições que regulam o procedimento de transferência para o Fundo de Desenvolvimento demonstra que essa transferência não se opera automaticamente pelo simples congelamento dos bens em questão. Ainda que a transferência seja obrigatória no âmbito do Regulamento n.o 1210/2003, não é menos verdade que ela ocorre após o congelamento e constitui uma etapa distinta em relação a este último.

50

No que diz respeito, mais particularmente, ao conceito de «congelamento», conforme definido nos n.os 4 e 5, do artigo 1.o deste regulamento, e à questão de saber se o congelamento pode, enquanto tal, acarretar uma alteração da propriedade dos bens congelados, o Tribunal de Justiça já declarou que a medida de congelamento é uma medida cautelar que não se destina a privar da sua propriedade as pessoas visadas por essa medida (v., neste sentido, Acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.o 358), uma vez que esta é uma medida temporária e reversível por natureza (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2015, Ezz e o./Conselho, C‑220/14 P, EU:C:2015:147, n.o 113).

51

Decorre daqui que a medida de congelamento não tem, só por si, incidência na propriedade dos bens que são objeto dessa medida.

52

A este propósito, importa precisar que a circunstância de que o Regulamento n.o 1210/2003 visa transferir os bens congelados para o Fundo de Desenvolvimento não pode justificar, no que diz respeito à etapa prévia a essa transferência, que se dê ao conceito de «congelamento» uma interpretação diferente da que foi acolhida no âmbito de outros regulamentos relativos às medidas restritivas que não preveem essa transferência, tanto mais que esse conceito é definido de modo idêntico na maior parte desses regulamentos.

53

Tendo em conta os fundamentos precedentes, há que responder às duas primeiras questões nos processos C‑753/21 e C‑754/21 que o artigo 4.o, n.os 2 a 4, e o artigo 6.o do Regulamento n.o 1210/2003 devem ser interpretados no sentido de que os fundos e os recursos económicos congelados continuam, até à decisão de transferência para o Fundo de Desenvolvimento, a propriedade das pessoas singulares e coletivas, dos órgãos e das entidades associadas ao regime do antigo presidente Saddam Hussein, visados pelo congelamento.

Quanto às segundas questões nos processos C‑753/21 e C‑754/21

54

Tendo em conta a resposta dada às primeiras questões nos presentes processos, não há que dar resposta às segundas questões.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

 

O artigo 4.o, n.os 2 a 4, e o artigo 6.o do Regulamento (CE) n.o 1210/2003 do Conselho, de 7 de julho de 2003, relativo a determinadas restrições específicas aplicáveis às relações económicas e financeiras com o Iraque e que revoga o Regulamento (CE) n.o 2465/96 (CE) do Conselho, conforme alterado em último lugar pelo Regulamento (UE) n.o 85/2013 do Conselho, de 31 de janeiro de 2013,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

os fundos e os recursos económicos congelados continuam, até à decisão de transferência para o Fundo de Desenvolvimento do Iraque, a ser propriedade das pessoas singulares e coletivas, dos órgãos e das entidades associadas ao regime do antigo presidente Saddam Hussein, visados pelo congelamento.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.