ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

16 de fevereiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política de asilo — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Artigo 6.o, n.o 1 — Interesse superior da criança — Artigo 16.o, n.o 1 — Pessoa a cargo — Artigo 17.o, n.o 1 — Cláusula discricionária — Aplicação por um Estado‑Membro — Nacional de um país terceiro grávida no momento da apresentação do seu pedido de proteção internacional — Casamento — Cônjuge que beneficia de proteção internacional no Estado‑Membro em questão — Decisão de recusa de tratar o pedido e de transferir a requerente para outro Estado‑Membro considerado responsável por esse pedido»

No processo C‑745/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos), por Decisão de 29 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de dezembro de 2021, no processo

L.G.

contra

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: D. Gratsias, presidente de secção, E. Regan (relator), presidente da Quinta Secção, e Z. Csehi, juiz,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a fase escrita,

considerando as observações apresentadas:

em representação de L.G., por F. van Dijk e A. Khalaf, advocaten,

em representação do governo neerlandês, por M. K. Bulterman e M. H. S. Gijzen, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por L. Grønfeldt e M. F. Wilman, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31) (a seguir «Regulamento Dublim III»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe um nacional de um país terceiro ao staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado») a respeito da decisão de este último recusar tratar o pedido de proteção internacional apresentado por esse nacional e transferir este último para a República da Lituânia com o fundamento de que esse outro Estado‑Membro é responsável pela análise desse pedido.

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento (UE) n.o 343/2003

3

O artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise e um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1) (a seguir «regulamento Dublim II»), que figura no capítulo IV deste regulamento, intitulado «Cláusula humanitária», previa, no seu n.o 2:

«Nos casos em que a pessoa em causa seja dependente da assistência da outra, devido a encontrar‑se grávida ou ter dado à luz recentemente, ou ser portadora de doença ou deficiência grave ou ser de idade avançada, os Estados‑Membros manterão, por norma, juntos ou reunirão o candidato a asilo e um membro da sua família que se encontre no território de um dos Estados‑Membros, desde que os laços familiares existissem já no país de origem.»

4

O Regulamento Dublim II foi substituído e revogado pelo Regulamento Dublim III a partir de 19 de julho de 2013.

Regulamento Dublim III

5

Figurando no capítulo I do Regulamento Dublim III, intitulado «Objeto e definições», o artigo 2.o deste, epigrafado «Definições», tem a seguinte redação:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

g)

“Membros da família”, desde que a família tenha sido constituída previamente no país de origem, os seguintes membros do grupo familiar do requerente, presentes no território dos Estados‑Membros:

o cônjuge do requerente ou o seu companheiro numa relação duradoura, se a lei ou a prática do Estado‑Membro em causa tratar de forma comparável os casais que contraíram e os casais que não contraíram matrimónio na sua legislação sobre os nacionais de países terceiros,

[…]»

6

Figurando no capítulo II deste regulamento, intitulado «Princípios e garantias», o artigo 3.o deste, epigrafado «Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.»

7

O artigo 6.o do referido regulamento, epigrafado «Garantias dos menores», prevê:

«1.   O interesse superior da criança deve constituir um aspeto fundamental a ter em conta pelos Estados‑Membros relativamente a todos os procedimentos previstos no presente regulamento.

[…]

3.   Os Estados‑Membros cooperam estreitamente a fim de determinar o interesse superior da criança, e, em especial, tomam em consideração os seguintes fatores:

a)

As possibilidades de reagrupamento familiar;

[…]»

8

O capítulo III do Regulamento Dublim III, intitulado «Critérios de determinação do Estado‑Membro responsável», contém os artigos 7.o a 15.o

9

Nos termos do artigo 9.o deste regulamento, epigrafado «Membros da família beneficiários de proteção internacional»:

«Se um membro da família do requerente, independentemente de a família ter sido constituída previamente no país de origem, tiver sido autorizado a residir como beneficiário de proteção internacional num Estado‑Membro, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, desde que os interessados manifestem o seu desejo por escrito.»

10

O artigo 12.o do referido regulamento, epigrafado «Emissão de documentos de residência ou vistos», prevê, nos seus n.os 2 e 3:

«2.   Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado‑Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional […]

3.   Se o requente for titular de vários títulos de residência ou de vários vistos válidos, emitidos por diferentes Estados‑Membros, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional é, pela seguinte ordem:

a)

O Estado‑Membro que tiver emitido o título de residência que confira o direito de residência mais longo ou, caso os títulos tenham períodos de validade idênticos, o Estado‑Membro que tiver emitido o título de residência cuja validade cesse mais tarde;

b)

O Estado‑Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde, quando os vistos forem da mesma natureza;

c)

Em caso de vistos de natureza diferente, o Estado‑Membro que tiver emitido o visto com um período de validade mais longo ou, caso os períodos de validade sejam idênticos, o Estado‑Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde.»

11

Figurando no capítulo IV do Regulamento Dublim III, intitulado «Dependentes e cláusulas discricionárias», o artigo 16.o deste, intitulado «Dependentes», dispõe, no seu n.o 1:

«Se, devido a gravidez ou ao nascimento recente de um filho, ou por ser portador(a) de doença ou deficiência grave ou ser de idade avançada, o requente for dependente da assistência de um filho, de um irmão ou do pai ou da mãe legalmente residente num dos Estados‑Membros, ou se um filho, um irmão, o pai ou a mãe do requerente for dependente da assistência do requerente, os Estados‑Membros, em princípio, devem manter juntos ou reunir o requerente com esse filho, irmão, o pai ou a mãe, desde que os laços familiares existissem já no país de origem, que a pessoa ou o requerente seja capaz de prestar assistência à pessoa dependente, e que os interessados manifestem o seu desejo por escrito.»

12

No mesmo capítulo, o artigo 17.o deste regulamento, intitulado «Cláusulas discricionárias», prevê, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

«Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.»

13

Figurando na secção I do capítulo VI do referido regulamento, intitulado «Procedimentos de tomada e retomada a cargo», o artigo 20.o deste, epigrafado «Início do procedimento», dispõe, no seu n.o 3:

«Para efeitos da aplicação do presente regulamento, a situação do menor que acompanhe o requerente e corresponda à definição de membro da família é indissociável da situação de seu membro da família e é da competência do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional desse membro da família, mesmo que o menor não seja requerente, desde que seja no interesse superior do menor. O mesmo se aplica aos filhos nascidos após a chegada dos requerentes ao território dos Estados‑Membros, não havendo necessidade de iniciar para estes um novo procedimento de tomada a cargo.»

Direito neerlandês

14

Por força do artigo 2.o do Livro 1 do Burgerlijk Wetboek (Código Cível neerlandês), a criança de que uma mulher esteja grávida é considerada nascida, sempre que o seu interesse assim o exija.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15

A recorrente no processo principal, nacional síria, obteve da representação da República da Lituânia na Bielorrússia um visto válido de 10 de agosto de 2016 a 9 de novembro de 2017.

16

No correr do mês de julho de 2017, deixou a Síria, após ter atravessado, designadamente, a Turquia, a Grécia, a Lituânia e a Polónia, chegou aos Países Baixos, em 27 de setembro de 2017.

17

Em 28 de setembro de 2017, a recorrente no processo principal apresentou um pedido de asilo aos Países Baixos.

18

Em 10 de outubro de 2017, essa recorrente casou com um nacional de um país terceiro a quem já tinha sido concedido asilo por esse Estado‑Membro e onde aquele reside desde o ano de 2011. A referida recorrente e o seu marido conheciam‑se antes do seu casamento, mas não viviam juntos nessa época.

19

Em 12 de outubro de 2017, as autoridades neerlandesas pediram às autoridades lituanas que tomassem a cargo a recorrente no processo principal, com o fundamento de que a República da Lituânia devia ser considerada responsável pela análise do pedido de asilo, por força do artigo 12.o, n.o 2 ou 3 do Regulamento Dublim III.

20

Em 12 de dezembro de 2017, as autoridades lituanas aceitaram essa tomada a cargo.

21

Tendo o Secretário de Estado emitido, em 2 de fevereiro de 2018, um projeto de decisão de transferência da recorrente no processo principal para a Lituânia, a recorrente apresentou as suas observações sobre esse projeto, declarando e provando, em 16 de fevereiro de 2018, que estava grávida.

22

Por Decisão de 12 de março de 2018, o Secretário de Estado decidiu não analisar o pedido de autorização de residência temporária para requerente de asilo apresentado pela recorrente no processo principal com o fundamento de que a República da Lituânia era responsável pelo tratamento desse pedido (a seguir «decisão controvertida»).

23

Em 20 de junho de 2018, a recorrente no processo principal deu à luz uma menina nos Países Baixos. Um relatório de 3 de agosto de 2018, apresentado pela recorrente no processo principal e preparado por dois peritos, concluiu, com base numa comparação do material genético, que o cônjuge dessa recorrente é, com uma probabilidade próxima da certeza, o pai dessa criança. É‑o igualmente de pleno direito por força do direito neerlandês, uma vez que a criança nasceu na constância do matrimónio.

24

O Secretário de Estado emitiu então à filha da recorrente no processo principal uma autorização de residência regular de duração limitada, sujeita à restrição segundo a qual a residência devia ter lugar «junto do [pai]».

25

A recorrente no processo principal interpôs para o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos), que é o órgão jurisdicional de reenvio, um recurso destinado a obter a anulação da decisão controvertida. Como fundamento desse recurso invocou a violação, respetivamente do artigo 9.o, do artigo 16.o, n.o 1, e do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, lidos à luz do interesse superior do filho nascituro, no momento da apresentação do seu pedido.

26

No que diz respeito, em primeiro lugar, ao artigo 9.o do Regulamento Dublim III, o órgão jurisdicional de reenvio indica que rejeitou a argumentação relativa à violação desta disposição numa Decisão interlocutória de 4 de abril de 2018. Por conseguinte, está vinculada por essa apreciação sem haver uma razão imperativa para a reconsiderar.

27

No que respeita, em seguida, ao artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, este órgão jurisdicional assinala que, se, à luz desta disposição, considerou, nessa mesma decisão interlocutória, que a análise efetuada pelo Secretário de Estado na decisão controvertida era demasiado limitada, essa apreciação não pode ser mantida. Com efeito, no Acórdão de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, EU:C:2019:53, n.o 71), o Tribunal de Justiça declarou entretanto que as considerações relativas ao interesse superior da criança não podem obrigar um Estado‑Membro a usar esse artigo 17.o, n.o 1, e, portanto, para analisar um pedido que não lhe incumbe. Esta interpretação do direito da União pelo Tribunal de Justiça constitui uma razão imperativa para se afastar da apreciação efetuada na decisão interlocutória.

28

No que diz respeito, por último, ao artigo 16.o, n.o 1, do referido regulamento, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, segundo a recorrente no processo principal, esta disposição deveria ser objeto de interpretação lata, à semelhança da interpretação da disposição semelhante, que a precedeu, contida no artigo 15.o, n.o 2, do Regulamento Dublim II, acolhida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, EU:C:2012:685), uma vez que, tendo em conta o interesse superior da criança, careceria de importância o facto de o vínculo familiar entre o pai e o filho nascituro não ter existido no país de origem da mãe.

29

Em contrapartida, o Secretário de Estado alega que o artigo 2.o do Livro 1 do Código Civil neerlandês diz apenas respeito aos direitos civis e não aos direitos relativos à residência ou à responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional. Além disso, o artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não diz respeito à proteção de um filho nascituro. Além disso, o artigo 16.o do Regulamento Dublim III não visa as relações de dependência entre o requerente de proteção internacional e o seu parceiro. A interpretação dada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, EU:C:2012:685), está, em seu entender, ultrapassada, salvo na medida em que esse acórdão sublinha a exigência da existência de um vínculo familiar no país de origem. Por último, esse regulamento também não é suscetível de se aplicar à filha da recorrente no processo principal, uma vez que essa filha obteve, entretanto, uma autorização de residência temporária que a autorizava a ficar junto de seu pai. De resto, na medida em que isso sirva o interesse superior da criança, a vida familiar pode ser conduzida com os dois progenitores na Lituânia.

30

O órgão jurisdicional de reenvio considera que, tendo em conta a data do parto da recorrente no processo principal, esta estava grávida desde cerca de meados de setembro de 2017, ou seja, antes da apresentação do seu pedido proteção internacional. Ora, por força do artigo 2.o do Livro 1 do código civil neerlandês, existe uma obrigação de considerar a criança da qual a recorrente no processo principal estava grávida como se já tivesse nascido quando tal seja do interesse dessa criança.

31

Colocar‑se‑ia, por conseguinte, a questão de saber se o direito da União se opõe a que os interesses do nascituro sejam tomados em conta de modo autónomo quando da determinação do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo e quando é tomada uma decisão de transferência. A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou, no Acórdão de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, EU:C:2019:53), que decorre do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III que se presume que a preservação da unidade do grupo familiar é no interesse superior da criança. Ora, por um lado, esta disposição concede explicitamente o mesmo estatuto tanto à criança que nasce depois da chegada do requerente de asilo ao território de um Estado‑Membro como à criança que acompanha este último. Por outro lado, seria errado considerar que essa unidade poderia ser realizada durante a análise do pedido de asilo na Lituânia, uma vez que o pai da criança não dispõe de um direito de residência nesse Estado‑Membro.

32

Uma outra questão a resolver seria a de saber se a aplicação do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III está excluída. Com efeito, nos termos da sua redação, esta disposição visaria apenas os filhos, os irmãos, as irmãs, o pai e a mãe do requerente, mas não o cônjuge deste último. Todavia, no Acórdão de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, EU:C:2012:685), o Tribunal de Justiça deu uma interpretação lata à disposição semelhante que precedeu este artigo 16.o, n.o 1, a saber, o artigo 15.o, n.o 2, do Regulamento Dublim II.

33

No caso de o referido artigo 16.o, n.o 1, ser suscetível de se aplicar, colocar‑se‑ia igualmente a questão de saber se a gravidez da recorrente no processo principal criou uma situação de dependência em relação ao seu marido, na aceção desta disposição. A este respeito, importaria ter em consideração o facto de que essa recorrente não tem família ou outras relações na Lituânia, que não conhece a língua desse Estado‑Membro e que não tem meios de subsistência. Ora, uma relação de dependência existiria, em princípio, entre um filho muito novo e cada um dos seus progenitores.

34

Por último, admitindo que o direito da União não se opõe a que sejam tidos em conta os interesses da criança a nascer, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se os interesses dessa criança implicam que as autoridades neerlandesas tenham, por força do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, de velar, salvo circunstâncias excecionais, por que essa criança possa ficar com o seu pai enquanto é analisado o pedido de proteção internacional.

35

Nestas condições, o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Na determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo, o direito da União Europeia opõe‑se a uma disposição de direito nacional que confere um alcance autónomo ao interesse superior da criança de que a recorrente estava grávida no momento em que o pedido foi apresentado?

2.

a)

O artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim opõe‑se à aplicação da referida disposição no que diz respeito ao cônjuge da recorrente que reside legalmente no Estado‑Membro ao qual foi apresentado o pedido?

b)

Em caso de resposta negativa, a gravidez da recorrente implicava uma dependência, no sentido da disposição acima referida, do cônjuge de quem estava grávida?

3.

Se o direito da União Europeia não se opõe, na determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo, a uma disposição de direito nacional que confere um alcance autónomo ao interesse superior do nascituro, pode o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim aplicar‑se à relação entre o nascituro e o pai desse nascituro, que reside legalmente no Estado‑Membro em que o pedido é apresentado?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto às segunda e terceira questões

36

Com as suas segunda e terceira questões, que importa examinar em conjunto e em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que se aplica quando existe uma relação de dependência quer entre um requerente de proteção internacional e o seu cônjuge residente legalmente no Estado‑Membro no qual foi introduzido o pedido dessa proteção, quer entre o filho nascituro desse requerente e esse cônjuge que é igualmente o pai dessa criança.

37

A este respeito, importa recordar que, nos termos desta disposição, os Estados‑Membros permitem geralmente que se junte ou aproxime o requerente, respetivamente, ao «filho, irmão, o pai ou a mãe» que residam legalmente num Estado‑Membro, quando existe uma relação de dependência entre eles, na condição de que os vínculos familiares tenham existido no país de origem, esse filho, esse irmão ou essa irmã, ou esse pai ou essa mãe ou o requerente, segundo o caso, seja capaz de cuidar da pessoa a cargo e que as pessoas em questão tenham exprimido esse desejo por escrito.

38

Observe‑se que resulta claramente dessa redação que o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não se aplica no caso de uma relação de dependência entre um requerente de proteção internacional e o seu cônjuge, uma vez que essa relação não é visada por esta disposição.

39

Como acertadamente salientaram o Governo neerlandês e a Comissão Europeia, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça, nos n.os 38 a 43 do Acórdão de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, EU:C:2012:685), à expressão «um membro da sua família», usada no artigo 15.o, n.o 2, do Regulamento Dublim II, que precedeu o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, não tem pertinência a este respeito, uma vez que esta última disposição substituiu esta expressão por uma lista exaustiva de pessoas na qual não figura o cônjuge ou o parceiro estável, e isso ainda que estes façam parte dos «membros da família», tal como esses membros são definidos no artigo 2.o, alínea g), do Regulamento Dublim III.

40

Além disso, resulta claramente da redação do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III que esta disposição se aplica unicamente no caso de uma relação de dependência que implique o requerente de proteção internacional, quer este seja dependente das pessoas que estejam enumeradas nessa disposição, quer, inversamente, estas últimas dependam desse requerente.

41

Daqui decorre que essa disposição não se aplica no caso de uma relação de dependência entre o filho desse requerente e uma dessas pessoas, como, no caso vertente, o pai dessa criança que é igualmente o cônjuge da requerente de proteção internacional em causa no processo principal.

42

Tendo em conta as considerações que precedem, deve responder‑se às segunda e terceira questões que o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não se aplica quando existe uma relação de dependência quer entre um requerente de proteção internacional e o seu cônjuge que reside legalmente no Estado‑Membro em que foi apresentado o pedido dessa proteção, quer entre o filho nascituro desse requerente e esse cônjuge que é igualmente o pai dessa criança.

Quanto à primeira questão

43

Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não visa, com a sua primeira questão, nenhuma disposição específica do direito da União, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída no artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio nele pendente. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça reformular, se for caso disso, a questão que lhe é submetida. Para esse efeito, o Tribunal de Justiça pode extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 20 de outubro de 2022, Koalitsia Demokratichna Bulgaria — Obedinenie, C‑306/21, EU:C:2022:813, n.os 43 e 44 e jurisprudência referida).

44

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, como foi salientado no n.o 27 do presente Acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio inicialmente considerou, numa decisão interlocutória proferida no contexto do processo principal, que, na decisão controvertida, o Secretário de Estado não tinha analisado suficientemente a incidência do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. Esse órgão jurisdicional parece ter, porém, reconsiderado essa apreciação na sequência do acórdão proferido em 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, EU:C:2019:53).

45

Nestas condições, há que considerar que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que aquele artigo se opõe a que a legislação de um Estado‑Membro imponha, exclusivamente com fundamento no interesse superior da criança, às autoridades nacionais competentes que analisem um pedido de proteção internacional apresentado por uma nacional de país terceiro que esteja grávida no momento da apresentação do seu pedido, mesmo que os critérios enunciados nos artigos 7.o a 15.o desse regulamento designem outro Estado‑Membro como sendo responsável por esse pedido.

46

A este respeito, recorde‑se que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, um pedido de proteção internacional é analisado apenas por um Estado‑Membro, que é aquele que os critérios enunciados no capítulo III desse regulamento, o qual comporta os artigos 7.o a 15.o, designem como responsável.

47

Porém, em derrogação a esse artigo 3.o, n.o 1, o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III prevê que cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe é apresentado por um nacional de país terceiro ou um apátrida, mesmo que essa análise não lhe incumba por força de tais critérios.

48

É certo que, como o Governo neerlandês salientou, o Tribunal de Justiça, no n.o 72 do Acórdão de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, EU:C:2019:53), declarou, em substância, que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não impõe a um Estado‑Membro que não é responsável, por força dos critérios enunciados no capítulo III deste regulamento, pela análise de um pedido de proteção internacional que tome em conta o interesse superior da criança e que analise ele próprio esse pedido, em aplicação do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento.

49

Porém, há que observar que resulta igualmente desse acórdão que nada impede um Estado‑Membro de analisar tal pedido com o fundamento de que tal análise corresponde ao interesse superior da criança.

50

Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou igualmente no referido Acórdão que resulta claramente da própria redação do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III que esta disposição, que visa preservar as prerrogativas dos Estados‑Membros no exercício do direito de conceder uma proteção internacional ao permitir a cada Estado‑Membro decidir soberanamente, em função de considerações políticas, humanitárias ou práticas, aceitar analisar um pedido de proteção internacional mesmo que não seja responsável em aplicação dos critérios definidos por esse regulamento, deixa ao seu poder discricionário a decisão de proceder a essa análise, uma vez que o exercício da faculdade prevista nessa disposição não está, por outro lado, sujeito a nenhum requisito particular. Por conseguinte, cabe ao Estado‑Membro em questão, tendo em conta o alcance do poder de apreciação deste modo concedido por este regulamento, determinar as circunstâncias nas quais pretende fazer uso da faculdade conferida por este artigo 17.o, n.o 1, e decidir analisar ele próprio um pedido de proteção internacional para o qual não é responsável por força dos critérios definidos pelo referido regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o., C‑661/17, EU:C:2019:53, n.os 58 a 60 e 71).

51

Ora, no caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a disposição do código civil neerlandês, segundo a qual um nascituro deve ser considerado já nascido quando tal for do seu interesse, obriga, em razão da importância particular que esta disposição confere ao interesse superior da criança, as autoridades nacionais a analisar, exclusivamente com esse fundamento, um pedido de proteção internacional apresentado por uma nacional de país terceiro que esteja grávida no momento da apresentação desse pedido, mesmo que os critérios enunciados no capítulo III do Regulamento Dublim III designem outro Estado‑Membro como sendo responsável por esse pedido.

52

Assim, segundo esse órgão jurisdicional, esta disposição de direito nacional impõe às autoridades neerlandesas, em tais circunstâncias, que façam uso da faculdade oferecida pela cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento.

53

Dito isto, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se, no processo principal, as autoridades nacionais competentes violaram o direito nacional ao indeferir o pedido de proteção internacional apresentado pela recorrente no processo principal, apesar de estar grávida no momento da apresentação desse pedido.

54

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que uma legislação de um Estado‑Membro imponha às autoridades nacionais competentes, exclusivamente com fundamento no interesse superior da criança, que analisem um pedido de proteção internacional apresentado por uma nacional de país terceiro que esteja grávida no momento da apresentação do seu pedido, mesmo que os critérios enunciados nos artigos 7.o a 15.o desse regulamento designem outro Estado‑Membro como sendo responsável por esse pedido.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

1)

O artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se aplica quando existe uma relação de dependência quer entre um requerente de proteção internacional e o seu cônjuge que reside legalmente no Estado‑Membro em que foi apresentado o pedido dessa proteção, quer entre o filho nascituro desse requerente e esse cônjuge que é igualmente o pai dessa criança.

 

2)

O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a que uma legislação de um Estado‑Membro imponha às autoridades nacionais competentes, exclusivamente com fundamento no interesse superior da criança, que analisem um pedido de proteção internacional apresentado por uma nacional de país terceiro que esteja grávida no momento da apresentação do seu pedido, mesmo que os critérios enunciados nos artigos 7.o a 15.o desse regulamento designem outro Estado‑Membro como sendo responsável por esse pedido.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.