ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de junho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑quadro 2002/584/JAI — Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu — Artigo 4.o, ponto 6 — Objetivo de reinserção social — Nacionais de países terceiros que se encontram ou que residem no território do Estado‑Membro de execução — Igualdade de tratamento — Artigo 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑700/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), por Decisão de 18 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de novembro de 2021, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

O. G.

sendo interveniente:

Presidente del Consiglio dei Ministri,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, K. Jürimäe (relatora), C. Lycourgos, E. Regan, L. S. Rossi e L. Arastey Sahún, presidentes de secção, J.‑C. Bonichot, S. Rodin, I. Jarukaitis, N. Jääskinen, M. Gavalec e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 11 de outubro de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Faraci, avvocato dello Stato,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e F. Werni, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por G. Gattinara e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 3, e do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), bem como do artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra O. G. para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2002/584

3

O considerando 6 da Decisão-Quadro 2002/584 enuncia:

«(6)

O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.»

4

O artigo 1.o desta decisão‑quadro, epigrafado «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.   O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.   Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.   A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [TUE].»

5

O artigo 4.o desta decisão‑quadro, epigrafado «Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu», prevê, no seu ponto 6:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

[…]

6)

Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.»

Diretiva 2003/109/CE

6

O considerando 12 da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração (JO 2004, L 16, p. 44), enuncia:

«A fim de constituir um verdadeiro instrumento de integração na sociedade em que se estabeleceu o residente de longa duração, este deverá ser tratado em pé de igualdade com os cidadãos do Estado‑Membro num amplo leque de domínios económicos e sociais, de acordo com as condições relevantes definidas na presente diretiva.»

7

O artigo 12.o desta diretiva dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros só podem tomar uma decisão de expulsão de um residente de longa duração se este representar uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem pública ou a segurança pública.

2.   A decisão a que se refere o n.o 1 não deve basear‑se em razões económicas.

3.   Antes de tomarem uma decisão de expulsão de um residente de longa duração, os Estados‑Membros devem ter em consideração os seguintes elementos:

a)

a duração da residência no território;

b)

a idade da pessoa em questão;

c)

as consequências para essa pessoa e para os seus familiares;

d)

os laços com o país de residência ou a ausência de laços com o país de origem.

[…]»

Decisão‑Quadro 2008/909/JAI

8

O considerando 9 da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27), enuncia:

«A execução da condenação no Estado de execução deverá aumentar a possibilidade de reinserção social da pessoa condenada. Para se certificar de que a execução da condenação pelo Estado de execução contribuirá para facilitar a reinserção social da pessoa condenada, a autoridade competente do Estado de emissão deverá atender a elementos como, por exemplo, a ligação da pessoa ao Estado de execução e o facto de o considerar ou não como o local onde mantém laços familiares, linguísticos, culturais, sociais, económicos ou outros.»

9

O artigo 3.o, n.os 1 a 3, desta decisão‑quadro dispõe:

«1.   A presente decisão‑quadro tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado‑Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença e executa a condenação imposta.

2.   A presente decisão‑quadro é aplicável independentemente de a pessoa condenada se encontrar no Estado de emissão ou no Estado de execução.

3.   A presente decisão‑quadro aplica‑se apenas ao reconhecimento de sentenças e à execução de condenações, na aceção da presente decisão‑quadro. […]»

10

Nos termos do artigo 25.o desta decisão‑quadro, epigrafado «Execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu»:

«Sem prejuízo da Decisão‑Quadro [2002/584], o disposto na presente decisão‑quadro deve aplicar‑se, mutatis mutandis, na medida em que seja compatível com as disposições dessa mesma decisão‑quadro, à execução de condenações, se um Estado‑Membro tiver decidido executar a condenação nos casos abrangidos pelo n.o 6 do artigo 4.o daquela decisão‑quadro ou se, nos termos do disposto no n.o 3 do artigo 5.o da mesma decisão‑quadro, tiver estabelecido como condição que a pessoa seja devolvida ao Estado‑Membro em questão para nele cumprir a pena, de forma a evitar a impunidade da pessoa em causa.»

Direito italiano

11

Legge n.o 69 — Disposizioni per conformare il diritto interno alla decisione quadro 2002/584/GAI del Consiglio, del 13 giugno 2002, relativa al mandato d'arresto europeo e alle procedure di consegna tra Stati membri (Lei n.o 69 — Disposições para tornar o direito interno conforme com a Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros), de 22 de abril de 2005 (GURI n.o 98, de 29 de abril de 2005), na sua versão aplicável aos factos do litígio no processo principal (a seguir «Lei n.o 69 de 2005»), prevê no seu artigo 18.o‑A, epigrafado «Motivos de recusa facultativa da entrega», que a Corte d’appello (Tribunal de Recurso, Itália) pode recusar a entrega pedida pela autoridade estrangeira, designadamente «se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, se a pessoa procurada for um nacional italiano ou um nacional de outro Estado‑Membro da União [Europeia], que resida ou se encontre legalmente e efetivamente em Itália, na condição de a [Corte d’appello (Tribunal de Recurso)] ordenar que essa pena ou medida de segurança seja executada em Itália em conformidade com o seu direito interno.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

Em 13 de fevereiro de 2012, o Judecătoria Brașov (Tribunal de Primeira Instância de Brașov, Roménia) emitiu contra O. G., um nacional moldavo, um mandado de detenção europeu para fins de execução de uma pena privativa de liberdade. Este foi condenado, por sentença definitiva, na Roménia, a cinco anos de prisão pelos crimes de fraude fiscal e de desvio de quantias devidas a título do imposto sobre o rendimento e do IVA, cometidos na sua qualidade de gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada entre os meses de setembro de 2003 e de abril de 2004.

13

Num primeiro Acórdão de 7 de julho de 2020, a Corte d’appello di Bologna (Tribunal de Recurso de Bolonha, Itália) ordenou a entrega da pessoa procurada à autoridade judiciária de emissão. O. G. interpôs recurso para a Corte suprema di cassazione (Tribunal de Cassação, Itália), que anulou esse Acórdão e remeteu o processo à Corte d’appello di Bologna (Tribunal de Recurso de Bolonha), convidando‑o a examinar a possibilidade de suscitar questões de constitucionalidade relativas ao artigo 18.o‑A da Lei n.o 69 de 2005.

14

Tendo constatado que a defesa de O. G. tinha feito prova bastante do caráter duradouro da sua instalação familiar e profissional em Itália, este último órgão jurisdicional submeteu à Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, questões relativas à constitucionalidade desta disposição.

15

Esse órgão jurisdicional indica que a Corte d’appello di Bologna (Tribunal de Recurso de Bolonha) salientou, designadamente, que o motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, previsto no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, tem por objetivo assegurar que a pena tenha uma verdadeira função de reintegração social. Esta pressupõe a manutenção de laços familiares e sociais do condenado para que se possa reintegrar de modo correto na sociedade no fim da sua pena. Ora, o artigo 18.o‑A da Lei n.o 69 de 2005 restringiu indevidamente o âmbito de aplicação deste artigo 4.o, ponto 6, na medida em que a faculdade de recusar a entrega, em caso de mandado de detenção europeu para fins de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, é limitada exclusivamente aos nacionais italianos e aos nacionais de outros Estados‑Membros da União, estando excluídos os nacionais de países terceiros, e isto mesmo quando estes últimos provem que estabeleceram vínculos económicos, profissionais ou afetivos sólidos em Itália. Ao impor a entrega de nacionais de países terceiros que residem de modo permanente em Itália para efeitos de execução de uma pena privativa de liberdade no estrangeiro, o artigo 18.o‑A da Lei n.o 69 de 2005 está em contradição com a finalidade reeducativa da pena, bem como com o direito à vida familiar da pessoa em questão, consagrado no artigo 7.o da Carta.

16

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha, além disso, que a Corte d’appello di Bologna (Tribunal de Recurso de Bolonha) considerou injustificada a diferença de tratamento, prevista pela regulamentação nacional, entre, por um lado, um nacional de um país terceiro, que reside de modo permanente em Itália e que é objeto de um mandado de detenção europeu emitido para fins de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, que não pode cumprir essa pena em Itália, e, por outro, um nacional de um país terceiro que reside igualmente de modo permanente em Itália, mas que é objeto de um mandado de detenção emitido para efeitos de procedimento penal, que pode, ao invés, cumprir em Itália a pena proferida no Estado de emissão findo o processo.

17

Resulta da decisão de reenvio que o Presidente del Consiglio dei ministri (presidente do Conselho de Ministros, Itália), representado e defendido pela Avvocatura Generale dello Stato (Gabinete do Procurador‑Geral, Itália), interveio no processo principal para pedir que as questões de constitucionalidade relativas ao artigo 18.o‑A da Lei n.o 69 de 2005 fossem declaradas inadmissíveis, ou que a legalidade desta disposição fosse confirmada, alegando, nomeadamente, que o objetivo de reinserção social da pessoa em questão não pode limitar o alcance do princípio geral do reconhecimento mútuo das decisões, que exige que a recusa de executar um mandado de detenção europeu seja considerada uma exceção à regra geral de execução desse mandado e que essa disposição não viola diversas disposições do direito primário da União que protegem os cidadãos da União contra as discriminações em razão da nacionalidade. Salientou, por outro lado, que a reintegração da pessoa condenada não constitui o objetivo específico da Decisão‑Quadro 2002/584.

18

Na decisão de reenvio, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) considera que, antes de verificar a conformidade com a Constituição italiana da regulamentação nacional em causa no processo principal, deve ser examinada a conformidade desta regulamentação com o direito da União, designadamente com o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz do artigo 7.o da Carta. Observa que a jurisprudência do Tribunal de Justiça já reconheceu que se justificavam certas limitações dos motivos de recusa introduzidos pela legislação dos Estados‑Membros, na medida em que contribuiriam para reforçar o sistema de entrega instaurado por esta decisão‑quadro a favor de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

19

Todavia, o artigo 4.o, ponto 6, da referida decisão‑quadro deve ser interpretado em conformidade com os direitos fundamentais e com os princípios fundamentais do direito da União reconhecidos pelo artigo 6.o TUE, cujo respeito é uma condição de validade de qualquer ato do direito da União. Assim, a execução de um mandado de detenção europeu não pode implicar uma violação dos direitos fundamentais da pessoa em questão.

20

A Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) recorda igualmente que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros não podem fazer depender a aplicação do direito da União, nos domínios de harmonização completa, como o mandado de detenção europeu instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584, do respeito dos padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, quando isso possa pôr em causa o primado, a unidade e a eficácia do direito da União. Sublinha, no entanto, que subsistem dúvidas quanto à faculdade de um Estado‑Membro excluir de maneira absoluta e automática do benefício de uma disposição que visa transpor o motivo de não execução facultativa previsto no artigo 4.o, ponto 6, desta decisão‑quadro o nacional de um país terceiro que se encontra ou que reside legalmente e efetivamente no território italiano e que é visado por um mandado de detenção europeu para efeitos de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, dado que, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade não pode ser invocado por esse nacional.

21

Por último, recorda que o interesse de um nacional de um país terceiro que resida ou que se encontre legalmente num Estado‑Membro em não ser desenraizado do seu meio familiar e social é protegido pelo direito da União, bem como pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950.

22

Foi nestas circunstâncias que a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1)

O artigo 4.o, ponto 6, da [Decisão‑Quadro 2002/584], interpretado à luz do artigo 1.o, n.o 3, desta decisão‑quadro e do artigo 7.o da [Carta], opõe‑se a uma legislação, como a italiana, que — no âmbito de um processo de mandado de detenção europeu destinado ao cumprimento de uma pena ou medida de segurança — impede as autoridades judiciárias de execução de forma absoluta e automática de recusarem a entrega de nacionais de países terceiros que se encontrem ou residam no seu território, independentemente dos laços que apresentam com este último?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, com base em que critérios e pressupostos devem esses laços ser considerados suficientemente significativos para obrigar a autoridade judiciária de execução a recusar a entrega?»

Quanto ao pedido de tramitação acelerada

23

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial acelerada ao abrigo do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

24

Embora reconhecendo que O. G., que é objeto do mandado de detenção em causa no processo principal, não está sujeito a nenhuma medida de privação de liberdade, esse órgão jurisdicional sustenta, em primeiro lugar, que o presente processo suscita questões de interpretação relativas a aspetos centrais do mecanismo do mandado de detenção europeu e, em segundo lugar, que a interpretação solicitada é suscetível de ter consequências gerais, tanto para as autoridades chamadas a cooperar no âmbito do mandado de detenção europeu como para os direitos das pessoas procuradas.

25

O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode decidir, ouvidos o juiz-relator e o advogado‑geral, submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos.

26

No caso em apreço, em 20 de dezembro de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, indeferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio visado no n.o 23 do presente Acórdão.

27

Com efeito, é jurisprudência constante que a aplicação da tramitação acelerada depende não da natureza do litígio, enquanto tal, mas das circunstâncias excecionais próprias do processo em causa, que devem demonstrar a urgência extraordinária de se pronunciar sobre essas questões (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 27).

28

Ora, a circunstância de o processo dizer respeito a um ou vários aspetos essenciais do mecanismo de entrega estabelecido pela Decisão‑Quadro 2002/584 não constitui uma razão que demonstre uma urgência extraordinária, porém necessária para justificar um tratamento por via acelerada. O mesmo se diga, no que respeita à circunstância de um número importante de pessoas serem potencialmente afetadas pelas questões submetidas (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 39).

29

No entanto, atendendo à natureza e à importância das questões submetidas, o presidente do Tribunal de Justiça concedeu ao presente processo um tratamento prioritário, em conformidade com o artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

30

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que transpõe esta disposição que exclui de modo absoluto e automático do direito de beneficiar do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto na referida disposição qualquer nacional de um país terceiro que se encontre ou resida no território desse Estado‑Membro, sem que a autoridade judiciária de execução possa apreciar os vínculos que ligam esse nacional ao referido Estado‑Membro.

31

A título preliminar, importa recordar que a decisão‑quadro 2002/584, ao instituir um sistema simplificado e eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, se destina a facilitar e a acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, fixado à União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros [v., neste sentido, Acórdão de 18 de abril de 2023, E. D. L. (Motivo de recusa com base em doença), C‑699/21, EU:C:2023:295, n.o 32 e jurisprudência referida].

32

No domínio regido pela decisão‑quadro, o princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, como resulta designadamente do considerando 6 desta, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, encontra a sua expressão no artigo 1.o, n.o 2, dessa decisão‑quadro, que consagra a regra por força da qual os Estados‑Membros são obrigados a executar qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com as disposições da mesma decisão‑quadro [v., neste sentido, Acórdão de 18 de abril de 2023, E.D. L. (Motivo de recusa baseado em doença), C‑699/21, EU:C:2023:295, n.o 33 e jurisprudência referida].

33

Daqui resulta, por um lado, que as autoridades judiciárias de execução só podem recusar executar um mandado de detenção europeu por motivos resultantes da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça. Por outro lado, ao passo que a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa de execução é concebida como uma exceção, que deve ser objeto de interpretação estrita [Acórdão de 18 de abril de 2023, E. D. L. (Motivo de recusa baseado em doença), C‑699/21, EU:C:2023:295, n.o 34 e jurisprudência referida].

34

A decisão‑quadro enuncia, no seu artigo 3.o, os motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu e, nos seus artigos 4.o e 4.o‑A, os motivos de não execução facultativa deste [Acórdão de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — Ne bis in idem), C‑665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.o 40 e jurisprudência referida].

35

No que respeita aos motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu enumerados no artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2002/584, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no âmbito da transposição desta decisão‑quadro para o seu direito interno, os Estados‑Membros dispõem de uma margem de apreciação. Assim, estes podem livremente transpor ou não esses motivos para o seu direito interno. Podem igualmente optar por limitar as situações nas quais a autoridade judiciária de execução pode recusar executar um mandado de detenção europeu, facilitando assim a entrega das pessoas procuradas, em conformidade com o princípio do reconhecimento mútuo estabelecido no artigo 1.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro [Acórdão de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — Ne bis in idem), C‑665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.o 41 e jurisprudência referida].

36

É esse o caso, em particular, do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, que enuncia que a autoridade judiciária de execução pode recusar executar um mandado de detenção europeu se este tiver sido emitido para efeito de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for um nacional deste ou aí residir, e esse Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança em conformidade com o seu direito interno.

37

Tendo em conta a margem de apreciação recordada no n.o 35 do presente acórdão, os Estados‑Membros, quando aplicam o artigo 4.o, ponto 6, desta decisão‑quadro, podem limitar, no sentido indicado pela regra essencial enunciada no artigo 1.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro, as situações em que deveria ser possível recusar a entrega de uma pessoa abrangida pelo âmbito de aplicação do referido artigo 4.o, ponto 6 (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 62 e jurisprudência referida).

38

No entanto, a margem de apreciação de que dispõe um Estado‑Membro, quando escolhe transpor o motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, não pode ser ilimitada.

39

Em primeiro lugar, quando um Estado‑Membro opta por transpor esse motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, está obrigado, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 3, desta decisão‑quadro, a respeitar os direitos e os princípios fundamentais visados no artigo 6.o TUE.

40

Entre esses princípios fundamentais figura o princípio da igualdade de tratamento, que é garantido pelo artigo 20.o da Carta. O respeito desta última disposição impõe‑se aos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, o que acontece quando transpõem o motivo de não execução facultativa de um mandado de detenção europeu previsto no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584.

41

Ora, contrariamente ao artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE, que não está vocacionado para ser aplicado no caso de uma eventual diferença de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros e os de países terceiros, o artigo 20.o da Carta não prevê nenhuma limitação do seu âmbito de aplicação e é, portanto, aplicável a todas as situações regidas pelo direito da União [v., neste sentido, Parecer 1/17 (Acordo ECG UE‑Canada), de 30 de abril de 2019, EU:C:2019:341, n.os 169 e 171 e jurisprudência referida].

42

A este respeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da igualdade perante a lei, enunciado no artigo 20.o da Carta, é um princípio geral do direito da União que exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, exceto se esse tratamento diferente for objetivamente justificado [v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, État belge (Direito de residência em caso de violência doméstica), C‑930/19, EU:C:2021:657, n.o 57 e jurisprudência referida].

43

A exigência relativa ao caráter comparável das situações, a fim de determinar a existência de uma violação do princípio da igualdade de tratamento, deve ser apreciada atendendo a todos os elementos que as caracterizam, nomeadamente, à luz do objeto e da finalidade prosseguida pelo ato que institui a distinção em causa, entendendo‑se que devem ser tidos em conta, para este efeito, os princípios e os objetivos do domínio em que esse ato se integra. Na medida em que as situações não sejam comparáveis, uma diferença de tratamento das situações em questão não viola a igualdade perante a lei consagrada no artigo 20.o da Carta [Acórdão de 2 de setembro de 2021, État belge (Direito de residência em caso de violência doméstica), C‑930/19, EU:C:2021:657, n.o 58 e jurisprudência referida].

44

A este título, há que apreciar se, à luz do objeto e da finalidade prosseguida por uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, a situação de um nacional de um país terceiro que é objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade e que se encontra ou reside no Estado‑Membro de execução é comparável à de um nacional desse Estado‑Membro ou à de um nacional de outro Estado‑Membro que se encontra ou reside no referido Estado‑Membro, que é objeto desse mandado.

45

Resulta da decisão de reenvio que a diferença de tratamento que resulta da regulamentação nacional em causa no processo principal entre os nacionais italianos e os de outros Estados‑Membros, por um lado, e os nacionais de países terceiros, por outro, foi instituída para transpor o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, tendo o legislador italiano considerado que esta disposição visa unicamente os nacionais do Estado‑Membro de execução e os cidadãos da União.

46

Ora, a este respeito, resulta da redação desta disposição que esta não faz nenhuma distinção consoante a pessoa que é objeto do mandado de detenção europeu, quando não é nacional do Estado‑Membro de execução, seja ou não nacional de outro Estado‑Membro. A aplicação do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto na referida disposição está, em contrapartida, sujeita à reunião de duas condições, a saber, por um lado, que a pessoa procurada se encontre no Estado‑Membro de execução, seja sua nacional ou aí resida e, por outro, que esse Estado se comprometa a executar, em conformidade com o seu direito interno, a pena ou a medida de segurança para a qual o mandado de detenção europeu foi emitido.

47

No que respeita à primeira destas condições, o Tribunal de Justiça já declarou que uma pessoa procurada «reside» no Estado‑Membro de execução sempre que tenha fixado a sua residência real neste último e aí se «encontra» quando, na sequência de uma permanência estável com uma certa duração nesse Estado‑Membro, criou vínculos que o ligam a esse Estado de modo semelhante aos que resultam de uma residência (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de setembro de 2012, Lopes Da Silva Jorge, C‑42/11, EU:C:2012:517, n.o 43 e jurisprudência referida, e de 13 de dezembro de 2018, Sut, C‑514/17, EU:C:2018:1016, n.o 34 e jurisprudência referida). Daqui resulta que, tendo em conta esta primeira condição, um nacional de um país terceiro, objeto de um mandado de detenção europeu e que se encontra ou reside no Estado‑Membro de execução, está numa situação comparável à de um nacional desse Estado‑Membro ou à de um nacional de outro Estado‑Membro que se encontra ou reside no referido Estado‑Membro, que seja objeto desse mandado.

48

Quanto à segunda das referidas condições, decorre da redação do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 que qualquer recusa de executar o mandado de detenção europeu pressupõe um verdadeiro compromisso do Estado‑Membro de execução de executar a pena privativa de liberdade decretada contra a pessoa procurada (Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Sut, C‑514/17, EU:C:2018:1016, n.o 35 e jurisprudência referida). Esta segunda condição não contém, portanto, nenhum elemento suscetível de servir de base a uma distinção entre a situação de um nacional de país terceiro e a de um cidadão da União quando são, um e outro, objeto de um mandado de detenção europeu para fins de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade enquanto se encontram ou residem no território de um Estado‑Membro.

49

Quando a autoridade judiciária de execução constata que as duas condições recordadas no n.o 46 do presente acórdão estão reunidas, deve ainda apreciar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena infligida no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução. Esta apreciação permite a essa autoridade ter em conta o objetivo prosseguido pelo artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, que consiste, segundo jurisprudência assente, em aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada no termo da pena a que esta última foi condenada (Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Sut, C‑514/17, EU:C:2018:1016, n.os 33 e 36 e jurisprudência referida). Ora, os cidadãos da União e os nacionais de países terceiros que preenchem a primeira condição explicitada no n.o 47 do presente acórdão podem ter, sob reserva das verificações que cabe à autoridade judiciária de execução efetuar, oportunidades comparáveis de reinserção social se, quando são visadas por um mandado de detenção europeu para efeitos de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, cumprem a sua pena ou medida de segurança no Estado‑Membro de execução.

50

Nestas condições, resulta dos termos do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 e do objetivo prosseguido por esta disposição que não se pode presumir que um nacional de um país terceiro, objeto desse mandado de detenção europeu e que se encontra ou reside no Estado‑Membro de execução, está necessariamente numa situação diferente da de um nacional desse Estado‑Membro ou da de um nacional de outro Estado‑Membro que se encontra ou reside no referido Estado‑Membro, que é objeto desse mandado. Pelo contrário, há que considerar que essas pessoas podem estar numa situação comparável, para efeitos da aplicação do motivo de não execução facultativa previsto nessa disposição, quando apresentem um grau de integração certo no Estado‑Membro de execução.

51

Daqui resulta que não se pode considerar que uma regulamentação nacional que vise transpor o artigo 4.o, ponto 6, desta decisão‑quadro é conforme com o princípio da igualdade perante a lei consagrado no artigo 20.o da Carta se essa regulamentação tratar de maneira diferente, por um lado, os seus próprios nacionais e os outros cidadãos da União e, por outro, os nacionais de países terceiros, ao recusar a estes últimos, de modo absoluto e automático, o direito a beneficiar do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto nesta disposição, mesmo quando esses nacionais de países terceiros se encontrem ou residam no território desse Estado‑Membro e sem que seja tomado em consideração o grau de integração dos referidos nacionais de países terceiros na sociedade do referido Estado‑Membro. Com efeito, não se pode considerar que semelhante diferença de tratamento possa ser objetivamente justificada, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 42 do presente acórdão.

52

Em contrapartida, nada se opõe a que, quando da transposição do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 para o direito interno de um Estado‑Membro, este faça depender, no que respeita aos nacionais de países terceiros que são objeto de um mandando de detenção europeu, o direito a beneficiar do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto nesta disposição, da exigência de que esse nacional aí se encontre ou aí resida de modo ininterrupto durante um período de tempo mínimo (v., por analogia, Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 74), desde que essa condição não exceda o que é necessário para garantir que a pessoa procurada apresenta um grau de integração certo no Estado‑Membro de execução.

53

Em segundo lugar, uma transposição do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 não pode ter por efeito privar a autoridade judiciária de execução da margem de apreciação necessária para esta poder decidir se, atendendo ao objetivo visado de reinserção social, mencionado no n.o 49 do presente acórdão, deve ou não recusar executar o mandado de detenção europeu.

54

A este respeito, como foi recordado nos n.os 46 a 49 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça já declarou que, para saber se, numa situação concreta, a autoridade judiciária de execução pode recusar executar um mandado de detenção europeu, esta última deve, num primeiro momento, determinar se a pessoa procurada, quando não é nacional do Estado‑Membro de execução, se encontra ou reside neste, na aceção do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme transposta para o direito nacional, e é, assim, abrangida pelo âmbito de aplicação desta. Num segundo momento, e unicamente quando a autoridade judiciária de execução constata que a referida pessoa é abrangida por esse âmbito de aplicação, deve poder apreciar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena ou a medida de segurança aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução (v., neste sentido, Acórdão de 17 de julho de 2008, Kozłowski, C‑66/08, EU:C:2008:437, n.o 44).

55

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o artigo 18.o‑A da Lei n.o 69 de 2005, que visa transpor o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 para o direito italiano, limita a aplicação do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, previsto nesta última disposição, apenas aos nacionais italianos e aos nacionais de outros Estados‑Membros. Os nacionais de países terceiros são, assim, excluídos de forma absoluta e automática do benefício desse motivo, sem que nenhuma margem de apreciação seja deixada a este respeito à autoridade judiciária de execução, apesar de o referido artigo 4.o, ponto 6, não circunscrever o âmbito de aplicação do referido motivo exclusivamente aos cidadãos da União.

56

Assim, quando a pessoa visada pelo mandado de detenção europeu para efeitos de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade é um nacional de um país terceiro, essa regulamentação nacional priva a autoridade judiciária de execução do poder de apreciar, tomando em consideração as circunstâncias específicas de cada caso, se os vínculos que ligam essa pessoa ao Estado‑Membro de execução forem suficientes para que o objetivo de reinserção social visado por esta disposição seja mais bem alcançado se a referida pessoa cumprir a sua pena nesse Estado‑Membro, comprometendo desse modo o referido objetivo.

57

Daqui resulta que o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 se opõe, igualmente por esta razão, a uma regulamentação nacional que visa transpor esta disposição.

58

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido em conjugação com o princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 20.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que transpõe esse artigo 4.o, ponto 6, que exclui de modo absoluto e automático do direito de beneficiar do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto nessa disposição qualquer nacional de um país terceiro que se encontre ou resida no território desse Estado‑Membro, sem que a autoridade judiciária de execução possa apreciar os vínculos que ligam esse nacional ao referido Estado‑Membro.

Quanto à segunda questão

59

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que, para apreciar se há que recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido contra um nacional de um país terceiro que se encontra ou reside no território do Estado‑Membro de execução, a autoridade judiciária de execução deve proceder a uma apreciação dos elementos suscetíveis de indicar se existem entre este e o Estado‑Membro de execução vínculos de ligação que demonstrem que está suficientemente integrado nesse Estado e, em caso afirmativo, quais são esses elementos.

60

Em conformidade com o que foi recordado no n.o 49 do presente acórdão, quando a autoridade judiciária de execução constatar que as duas condições enunciadas no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 estão reunidas, deve ainda apreciar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena ou a medida de segurança aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução.

61

Cabe assim à autoridade judiciária de execução proceder a uma apreciação global de todos os elementos concretos que caracterizam a situação da pessoa procurada, suscetíveis de indicar se existem entre essa pessoa e o Estado‑Membro de execução vínculos de ligação que permitam concluir que a referida pessoa está suficientemente integrada nesse Estado e que, por conseguinte, a execução, no Estado‑Membro de execução, da pena ou da medida de segurança privativas de liberdade proferida contra aquela no Estado‑Membro de emissão contribuirá para a realização do objetivo de reinserção social prosseguido por este artigo 4.o, ponto 6 (v., neste sentido, Acórdão de 5 de setembro de 2012, Lopes Da Silva Jorge, C‑42/11, EU:C:2012:517, n.o 43).

62

Neste contexto, conforme foi já declarado pelo Tribunal de Justiça, há designadamente que tomar em consideração a Decisão‑Quadro 2008/909 [v., neste sentido, Acórdão de 11 de março de 2020, SF (Mandado de detenção europeu — Garantia de reenvio para o Estado de execução), C‑314/18, EU:C:2020:191]. Em especial, o considerando 9 desta decisão‑quadro fornece uma lista exemplificativa de elementos suscetíveis de permitir a uma autoridade judiciária obter a certeza de que a execução da condenação pelo Estado‑Membro de execução contribuirá para a realização do objetivo que consiste em facilitar a reinserção social da pessoa condenada. Entre esses elementos figuram, em substância, o vínculo da pessoa ao Estado‑Membro de execução, bem como a circunstância de esse Estado‑Membro constituir o centro da sua vida familiar e dos seus interesses, tendo em conta, designadamente, os seus laços familiares, linguísticos, culturais, sociais ou ainda económicos com o referido Estado.

63

Na medida em que o objetivo prosseguido pelo artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 é idêntico ao mencionado nesse considerando e que é prosseguido pelo artigo 25.o da Decisão‑Quadro 2008/909, o qual se refere ao motivo de não execução facultativa previsto nesse artigo 4.o, ponto 6, os referidos elementos são igualmente pertinentes no âmbito da apreciação global que a autoridade judiciária de execução deve efetuar quando aplica esse motivo.

64

Em especial, quando a pessoa procurada tenha estabelecido o centro da sua vida familiar e dos seus interesses no Estado‑Membro de execução, deve tomar‑se em consideração que a reintegração social dessa pessoa depois de aí ter cumprido a sua pena é favorecida pelo facto de poder manter contactos regulares e frequentes com a sua família e com os seus familiares.

65

Quando a pessoa procurada for nacional de um país terceiro, importa igualmente tomar em consideração a natureza, a duração e as condições de residência dessa pessoa no Estado‑Membro de execução.

66

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que estes elementos já podem ser tidos em conta na fase do exame da primeira condição prevista no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, mencionado designadamente no n.o 47 do presente acórdão. Com efeito, cabe à autoridade judiciária de execução, para determinar se, numa situação concreta, entre uma pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução existem vínculos de ligação que permitam constatar que esta última se encontra ou reside nesse Estado, na aceção deste artigo 4.o, ponto 6, efetuar uma apreciação global de vários dos elementos objetivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais figuram, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da residência da pessoa procurada no referido Estado, bem como os vínculos familiares e económicos que esta mantém com esse mesmo Estado (Acórdão de 5 de setembro de 2012, Lopes Da Silva Jorge, C‑42/11, EU:C:2012:517, n.o 43 e jurisprudência referida).

67

Estes elementos fazem igualmente parte daqueles que são suscetíveis de demonstrar que existe um interesse legítimo que justifica que a pena ou a medida de segurança aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução. Daqui resulta que, nesta fase posterior do exame da exceção à entrega prevista no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, a autoridade judiciária de execução pode ter novamente em conta os referidos elementos, em especial quando a residência da pessoa em questão no Estado‑Membro de execução decorre do estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração, previsto pela Diretiva 2003/109. Com efeito, tal estatuto constitui, em conformidade com o que enuncia o considerando 12 desta diretiva, um verdadeiro instrumento de integração na sociedade em que o residente de longa duração se estabeleceu e constitui, portanto, um indício forte da suficiência dos vínculos de ligação estabelecidos pela pessoa procurada com o Estado‑Membro de execução para justificar a recusa de executar o mandado de detenção europeu.

68

Atendendo a todas as considerações que precedem, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que, para apreciar se há que recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido contra um nacional de um país terceiro que se encontra ou reside no território do Estado‑Membro de execução, a autoridade judiciária de execução tem de proceder a uma apreciação global de todos os elementos concretos que caracterizam a situação desse nacional, suscetíveis de indicar se existem, entre este e o Estado‑Membro de execução, vínculos de ligação que demonstrem que está suficientemente integrado nesse Estado e que, por conseguinte, a execução, no referido Estado‑Membro, da pena ou da medida de segurança privativas de liberdade proferida contra esse nacional no Estado‑Membro de emissão contribuirá para aumentar as suas oportunidades de reinserção social depois de esta pena ou medida de segurança ter sido executada. Entre estes elementos figuram os vínculos familiares, linguísticos, culturais, sociais ou económicos mantidos pelo nacional do país terceiro com o Estado‑Membro de execução, bem como a natureza, a duração e as condições da sua residência nesse Estado‑Membro.

Quanto às despesas

69

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, lido em conjugação com o princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que transpõe esse artigo 4.o, ponto 6, que exclui de modo absoluto e automático do direito de beneficiar do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto nessa disposição qualquer nacional de um país terceiro que se encontre ou resida no território desse Estado‑Membro, sem que a autoridade judiciária de execução possa apreciar os vínculos que ligam esse nacional ao referido Estado‑Membro.

 

2)

O artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584

deve ser interpretado no sentido de que:

para apreciar se há que recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido contra um nacional de um país terceiro que se encontra ou reside no território do Estado‑Membro de execução, a autoridade judiciária de execução tem de proceder a uma apreciação global de todos os elementos concretos que caracterizam a situação desse nacional, suscetíveis de indicar se existem, entre este e o Estado‑Membro de execução, vínculos de ligação que demonstrem que está suficientemente integrado nesse Estado e que, por conseguinte, a execução, no referido Estado‑Membro, da pena ou da medida de segurança privativas de liberdade proferida contra esse nacional no Estado‑Membro de emissão contribuirá para aumentar as suas oportunidades de reinserção social depois de esta pena ou medida de segurança ter sido executada. Entre estes elementos figuram os vínculos familiares, linguísticos, culturais, sociais ou económicos mantidos pelo nacional do país terceiro com o Estado‑Membro de execução, bem como a natureza, a duração e as condições da sua residência nesse Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.