Processos apensos C‑647/21 e C‑648/21

Processos penais

contra

D. K. e o.

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Okręgowy w Słupsku)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 6 de março de 2025

«Reenvio prejudicial — Estado de direito — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Princípio da inamovibilidade e da independência judicial — Resolução do plenário de um tribunal de afastar um juiz de todos os processos que lhe estão atribuídos — Inexistência de critérios objetivos para a tomada de uma decisão de afastamento do juiz — Inexistência de um dever de fundamentação de tal decisão — Primado do direito da União — Dever de não aplicar essa decisão de afastamento»

  1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Obrigação dos Estados‑Membros de estabelecerem as vias de recurso necessárias para assegurar uma proteção jurisdicional efetiva — Questões respeitantes às normas nacionais relativas à tomada de decisões de nomeação de juízes e à fiscalização judicial aplicável neste contexto — Inclusão

    (Artigo 19.o, n.o 1, TUE; artigo 267.o TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.o)

    (cf. n.os 42 a 44)

  2. Estados‑Membros — Obrigações — Estabelecimento das vias de recurso necessárias para garantir uma tutela jurisdicional efetiva — Respeito pelo princípio da independência judicial — Direito a um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei — Legislação nacional que autoriza um órgão de tribunal a afastar um dos seus juízes de uma parte ou da totalidade dos processos que lhe foram atribuídos — Legislação nacional que não prevê os critérios de uma decisão de afastamento de um juiz e não impõe o dever de fundamentação dessa decisão — Inadmissibilidade

    (Artigos 2.° e 19.°, n.o 1, segundo parágrafo, TUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.°, segundo parágrafo, e 52.°, n.o 3)

    (cf. n.os 62 a 86, disp. 1)

  3. Estados‑Membros — Obrigações — Estabelecimento das vias de recurso necessárias para garantir uma tutela jurisdicional efetiva — Respeito pelo princípio da independência judicial — Primado e efeito direto do direito da União — Obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais — Obrigação de não aplicar, por sua própria autoridade, qualquer regulamentação ou prática nacional contrária a uma disposição do direito da União com efeito direto — Resolução adotada pelo plenário de um órgão jurisdicional que afasta um juiz deste órgão dos processos a seu cargo e os reafeta — Violação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Obrigação de o referido órgão jurisdicional nacional não aplicar essa resolução e eliminar as consequências ilícitas da violação do direito da União — Obrigação dos órgãos judiciais que determinam a composição dessa formação de julgamento de não aplicar essa resolução

    (Artigo 19.o, n.o 1, TUE; artigo 267.o TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.o)

    (cf. n.os 88 a 97, disp. 2)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se no âmbito de dois processos penais, dos quais a juíza que submeteu os dois presentes reenvios prejudiciais foi posteriormente afastada, o Tribunal de Justiça dá indicações precisas sobre o alcance e a aplicação prática do conceito de «independência judicial “interna”», conforme reconhecido no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

No que respeita ao processo C‑647/21, o Sąd Okręgowy w Słupsku (Tribunal Regional de Slupsk, Polónia), que é o órgão jurisdicional de reenvio, em formação de juiz singular, foi chamado a pronunciar‑se no recurso interposto por D. K. da decisão que o condenou, em primeira instância, a uma pena de prisão.

No que respeita ao processo C‑648/21, M. C. e F. foram condenados em primeira instância. O órgão jurisdicional de segunda instância chamado a conhecer do recurso interposto absolveu M. C. e confirmou a condenação de M. F. O Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), chamado a pronunciar‑se no recurso interposto da decisão de segunda instância relativa a M. C., anulou essa decisão e remeteu o processo ao órgão jurisdicional de reenvio. Neste processo, a formação de julgamento reúne em coletivo de três juízes, o qual é composto pela presidente da formação, pelo presidente do órgão jurisdicional de reenvio e por um terceiro juiz. O pedido de decisão prejudicial foi apresentado apenas pela presidente da formação de julgamento, que é também a juíza do processo C‑647/21.

Em setembro de 2021, num processo não relacionado com os processos principais, a juíza que submeteu os presentes dois pedidos de decisão prejudicial solicitou ao presidente da Secção de Recurso do órgão jurisdicional de reenvio que substituísse, na formação de julgamento desse processo, o presidente desse mesmo órgão jurisdicional por outro juiz. Com efeito, a mesma juíza considera que, tendo este juiz sido nomeado com base numa resolução do Krajowa Rada Sądownictwa (Conselho Nacional da Magistratura, Polónia, a seguir «KRS») na sua nova composição, é violado o direito a um tribunal previamente estabelecido por lei, na aceção, nomeadamente, do artigo 19.o, n.o 1, TUE. Esse pedido foi indeferido.

Em outubro de 2021, noutro processo, a mesma juíza anulou uma sentença de um tribunal de primeira instância proferida por uma pessoa também nomeada com base numa resolução do KRS na sua nova composição.

Nesse mesmo mês, o plenário do órgão jurisdicional de reenvio adotou uma resolução para afastar a referida juíza de cerca de setenta processos, nos quais se incluem os processos principais. Segundo essa juíza, esta resolução não lhe foi notificada e não teve conhecimento dos seus fundamentos. O presidente desse órgão jurisdicional emitiu também uma ordem de transferência dessa juíza da secção de recurso para a secção de primeira instância desse mesmo tribunal. Essa ordem, que entrou em vigor alguns dias após ter sido emitida, limita‑se a mencionar a necessidade de assegurar o bom funcionamento de ambas as secções.

Nestas circunstâncias, o órgão jurisdicional de reenvio, interrogando‑se sobre a conformidade dos atos acima referidos com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que esclareça se a juíza que submeteu os dois presentes pedidos de decisão prejudicial pode continuar a fazer parte da formação de julgamento destes dois processos. Pergunta igualmente se é obrigado a ignorar a resolução do plenário e os demais atos subsequentes.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça enuncia que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE se opõe a uma legislação nacional por força da qual um órgão de um tribunal nacional pode afastar um juiz desse tribunal de uma parte ou da totalidade dos processos que lhe estão atribuídos, sem que essa legislação preveja os critérios que devem orientar esse órgão na tomada da decisão de afastamento e imponha a fundamentação dessa decisão.

Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Justiça esclarece que as regras de atribuição e de reatribuição de processos fazem parte do conceito de tribunal «previamente estabelecido por lei», o qual exige não só uma base legal para a própria existência do tribunal mas também o respeito pela composição da formação de julgamento em cada processo.

No caso em apreço, afigura‑se que a legislação em causa prevê que a composição de um tribunal pode ser alterada quando exista um «obstáculo duradouro que impeça a tramitação do processo com a composição atual», sem mais precisões. Ora, embora essa legislação preveja, em substância, que um juiz mantém a competência para a tramitação dos processos que lhe foram atribuídos apesar da sua transferência para outro local ou do seu destacamento para outro tribunal, até ao encerramento desses processos, afigura‑se que os processos lhe podem ser retirados por decisão do plenário do tribunal em causa sem enunciar critérios para esse efeito. Por outro lado, segundo essa mesma legislação, o plenário do tribunal também pode afastar um juiz dos processos a seu cargo em caso de transferência deste para outra secção, mas sem que esta possibilidade seja, mais uma vez, acompanhada de nenhum critério preciso. Por conseguinte, importa concluir que uma legislação deste tipo não só não prevê critérios objetivos que enquadrem a possibilidade de um juiz ser afastado de um ou de vários dos seus processos como também permite ao plenário do tribunal em causa afastar um juiz dos processos que tem a cargo sem fundamentação dessa decisão. Além disso, a resolução do plenário pela qual a juíza em causa foi afastada dos processos principais é insuscetível de ser justificada pela ordem de transferência, fundamentada de forma lacónica, pela qual o presidente do órgão jurisdicional de reenvio decidiu, em outubro de 2021, transferir a juíza em questão para outra secção do mesmo órgão jurisdicional.

Por outro lado, o afastamento de um juiz dos processos que tem a seu cargo, sem que a legislação nacional pertinente fixe critérios objetivos que permitam enquadrar esta possibilidade e sem que a decisão de proceder a este afastamento deva ser fundamentada, não permite excluir que esse afastamento seja arbitrário ou mesmo que constitua uma sanção disciplinar dissimulada. Assim, medidas organizativas de afastamento de juízes como as que estão em causa no processo principal, cuja aplicação não está enquadrada por critérios suficientemente precisos e não está sujeita a um dever de fundamentação suficiente, são suscetíveis de gerar interrogações sobre a eventualidade de o afastamento do juiz dos processos, seguida de uma transferência, ter ocorrido em resposta a atos anteriores do juiz em causa. Por conseguinte, para evitar deixar margem para a arbitrariedade que poderia decorrer de um processo não transparente, suscetível de pôr em causa os princípios da independência e da inamovibilidade dos juízes, importa que as regras nacionais que regulam o afastamento de um juiz dos processos a seu cargo prevejam critérios objetivos claramente enunciados com base nos quais um juiz pode ser afastado dos seus processos, bem como o dever de fundamentar as decisões de afastamento, nomeadamente nos casos de afastamento não consentidos pelo juiz em causa.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e o princípio do primado do direito da União impõem a um tribunal nacional que não aplique uma resolução do plenário desse tribunal que afasta um juiz do referido tribunal dos processos que lhe estão atribuídos, bem como os demais atos subsequentes, como as decisões relativas à reafetação desses processos, quando essa resolução tenha sido adotada em violação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE. Os órgãos judiciais competentes em matéria de determinação e de alteração da composição dessa formação de julgamento não devem aplicar essa resolução.

Mais concretamente, numa situação em seja declarada a incompatibilidade da legislação nacional que regula o afastamento de juízes dos processos com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, uma formação de julgamento deve poder prosseguir, com a mesma composição, a apreciação dos processos principais sem que os órgãos judiciais competentes em matéria de determinação e de alteração da composição das formações de julgamento do órgão jurisdicional nacional a isso possam obstar.