ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

30 de março de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Diretiva 2009/103/CE — Artigo 3.o — Obrigação de segurar veículos — Artigo 18.o — Direito de ação direta — Alcance — Determinação do montante da indemnização — Custos hipotéticos — Possibilidade de sujeitar o pagamento da indemnização a determinadas condições — Venda do veículo»

No processo C‑618/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Rejonowy dla m.st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Capital, Varsóvia, Polónia), por Decisão de 30 de agosto de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de setembro de 2021, no processo

AR

contra

PK S.A.,

CR,

e

BF

contra

SI S.A.,

e

ZN

contra

MB S.A.,

e

NK sp. z o.o. s.k.

contra

PK S.A.,

e

KP

contra

SI S.A.,

e

RD sp. z o.o.

contra

EZ S.A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, D. Gratsias (relator), M. Ilešič, I. Jarukaitis e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de AR, por R. Lewandowski, radca prawny,

em representação de KP, por L. Nawrocki, radca prawny,

em representação da RD sp. z o.o., por G. Stasiak, radca prawny,

em representação da SI SA, por M. Nycz, radca prawny,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por J. Möller, P. Busche e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por U. Małecka, B. Sasinowska e H. Tserepa‑Lacombe, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 18.o da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11), lido em conjugação com o artigo 3.o desta diretiva.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de seis litígios que opõem, respetivamente, AR à PK S.A. e a CR, BF à SI S.A., ZN à MB S.A., NK sp. z o.o., s.k. à PK S.A., KP a SI, bem como que a RD sp. z o.o. à EZ S.A., proprietários de veículos automóveis às empresas de seguros da responsabilidade civil das pessoas responsáveis por danos causados a esses veículos, a respeito da indemnização devida a título desses danos.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O considerando 30 da Diretiva 2009/103 enuncia:

«O direito de exigir diretamente à empresa de seguros o cumprimento do contrato de seguro assume uma importância significativa na proteção das vítimas de acidentes rodoviários. A fim de facilitar a regularização rápida e eficaz de sinistros, e evitar, tanto quanto possível, processos judiciais dispendiosos, deverá ser previsto um direito de ação direta contra a empresa de seguros que cobre a responsabilidade civil do causador do acidente, para qualquer pessoa vítima de acidentes rodoviários.»

4

O artigo 3.o desta diretiva, sob a epígrafe «Obrigação de segurar veículos», dispõe:

«Cada Estado‑Membro, sem prejuízo do artigo 5.o, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

As medidas referidas no primeiro parágrafo devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.

[…]

O seguro referido no primeiro parágrafo deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.»

5

Em conformidade com o artigo 5.o da referida diretiva, cada Estado‑Membro pode não aplicar as disposições do seu artigo 3.o, em relação a certas pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou privado, ou a certos tipos de veículos ou a certos veículos que tenham uma chapa especial.

6

O artigo 9.o desta diretiva, sob a epígrafe «Montantes mínimos», prevê, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de montantes de garantia superiores eventualmente estabelecidos pelos Estados‑Membros, cada Estado‑Membro deve exigir que o seguro referido no artigo 3.o seja obrigatório pelo menos no que se refere aos seguintes montantes:

a)

Relativamente a danos pessoais, um montante mínimo de 1000000 [euros] por vítima ou de 5000000 [euros] por sinistro, independentemente do número de vítimas;

b)

Relativamente a danos materiais, 1000000 [euros] por sinistro, independentemente do número de vítimas.

[…]»

7

O artigo 18.o da Diretiva 2009/103, sob a epígrafe «Direito de ação direta», tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para que as pessoas lesadas por acidentes causados por veículos cobertos pelo seguro referido no artigo 3.o tenham direito de demandar diretamente a empresa de seguros que cubra a responsabilidade civil do responsável.»

Direito polaco

8

O artigo 363.o, n.o 1, da ustawa — Kodeks cywilny (Lei que Aprova o Código Civil), de 23 de abril de 1964 (Dz. U. de 1964, n.o 16, posição 93), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais (a seguir «Código Civil»), dispõe:

«O dano deve ser reparado, em função de opção a tomar pelo lesado, através do restabelecimento da situação anterior ou do pagamento de um montante adequado. No entanto, se for impossível restabelecer a situação anterior ou se esta implicar dificuldades ou custos excessivos para a parte sujeita à obrigação, o direito do lesado fica limitado a uma indemnização em dinheiro.»

9

O artigo 822.o, n.os 1 e 4, do Código Civil prevê:

«1.   Através do contrato de seguro de responsabilidade civil, o segurador obriga‑se a pagar as indemnizações previstas no contrato a título dos danos causados a terceiros em relação aos quais a responsabilidade do tomador do seguro ou do segurado foi contratada.

[…]

4.   A pessoa que tem o direito de receber uma indemnização a título de um sinistro coberto por um contrato de seguro de responsabilidade civil pode fazer valer o seu direito diretamente junto do segurador.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

10

Os seis litígios estão atualmente pendentes no Sąd Rejonowy dla m.st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Capital, Varsóvia, Polónia), que é órgão jurisdicional de reenvio. Cinco deles têm, respetivamente, como demandantes BF, ZN, NK, KP e RD, que pedem, cada um, a reparação de danos que os seus respetivos veículos sofreram na sequência de um acidente de viação. No âmbito do sexto litígio, AR pede a reparação dos danos que o seu veículo sofreu e que foram provocados pela queda de uma porta de garagem.

11

Os demandantes nos processos principais avaliaram os seus danos com base nos custos de reparação correspondentes ao valor de mercado estimado das peças sobressalentes originais e da mão‑de‑obra necessárias à reparação do veículo danificado. Uma vez que os veículos em causa ainda não foram reparados, o órgão jurisdicional de reenvio qualifica estes custos de reparação de «hipotéticos». Por seu turno, as demandadas nos processos principais, isto é, as empresas de seguros que cobrem a responsabilidade civil das pessoas obrigadas a indemnizar os demandantes nos processos principais, alegam que esta indemnização não pode ser superior ao montante dos danos efetivamente sofridos, calculado de acordo com um método denominado «diferencial». Em conformidade com este método, este montante deve corresponder à diferença entre o valor que o veículo danificado teria se o acidente não tivesse ocorrido e o valor atual deste veículo, sinistrado. Segundo estas empresas de seguros, os custos de reparação só podem ser tidos em conta se for demonstrado que foram efetivamente suportados.

12

O órgão jurisdicional de reenvio explica que, no direito nacional, a reparação dos danos visa atribuir ao lesado um montante correspondente à diferença entre o valor do bem danificado e aquele que este último teria tido se os danos não tivessem ocorrido, embora não permita que o lesado enriqueça.

13

O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que, segundo a jurisprudência polaca, a indemnização devida ao proprietário de um veículo danificado deve ser calculada com base nos custos hipotéticos de reparação do veículo, independentemente da questão de saber se o seu proprietário o mandou efetivamente reparar ou se tenciona fazê‑lo. Uma indemnização que tenha em conta semelhantes custos de reparação hipotéticos, que são significativamente superiores ao montante dos danos sofridos determinado com base no método diferencial, é concedida inclusivamente aos lesados que já tenham vendido o seu veículo danificado e que, por isso, não utilizam essa indemnização para o reparar. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta prática conduz ao enriquecimento sem causa dos lesados, em detrimento dos restantes tomadores de seguros, que suportam o custo resultante dessas indemnizações excessivas porque as empresas de seguros exigem prémios de seguro cada vez mais elevados.

14

De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, esta jurisprudência, que é censurável, uma vez que permite que o lesado enriqueça em determinados casos, pode encontrar justificação na proteção especial das vítimas de acidentes de viação que resulta do direito da União. Consequentemente, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é necessário clarificar o alcance dos direitos do lesado que decorrem do direito de ação direta a intentar contra a empresa de seguros, previsto no artigo 18.o da Diretiva 2009/103.

15

Em particular, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre o alcance deste último direito, visto que, ao abrigo do direito polaco, a ação intentada contra a pessoa responsável pode ter como objetivo, em função da opção a tomar pelo lesado, o pagamento de uma indemnização pecuniária ou a reparação do veículo danificado, isto é, uma prestação em espécie, apesar de o artigo 822.o, n.o 1, do Código Civil prever que uma empresa de seguros só se pode obrigar a cumprir uma prestação de natureza pecuniária.

16

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o direito da União se opõe a disposições de direito nacional que tenham por efeito privar o lesado, que pretenda intentar uma ação direta contra a empresa de seguros, de um dos meios de reparação do dano previstos no direito nacional. Por seu turno, o órgão jurisdicional de reenvio tende a considerar que o direito da União deve ser interpretado no sentido de permitir uma resposta afirmativa a esta questão.

17

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se também sobre o objeto de uma ação direta intentada pelo lesado contra uma seguradora para efeitos de reparação do respetivo veículo. Com efeito, seria possível afastar a regra, que decorre do artigo 822.o, n.o 1, do Código Civil, segundo a qual a prestação da seguradora só pode ser de natureza pecuniária e permitir, assim, que o lesado exija à seguradora o pagamento da reparação do seu veículo danificado, ou reconhecer ao lesado o direito de exigir à seguradora o pagamento dos montantes necessários para o efeito, em lugar da assunção da reparação.

18

O órgão jurisdicional de reenvio tende a preferir a segunda opção. No entanto, interroga‑se igualmente sobre a questão de saber se o direito da União se opõe à aplicação de regras de direito interno que permitem sujeitar o pagamento, ao lesado, dos montantes necessários para a reparação do seu veículo, a condições destinadas a impedir que este último possa utilizar estes montantes para fins alheios à referida reparação e beneficiar de um incremento do seu património na sequência do acidente. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a questão de saber se o direito de exigir que a seguradora pague os montantes necessários para reparar um veículo danificado também deve ser reconhecido ao proprietário de um veículo que já o tenha vendido, e que está assim materialmente impossibilitado de o reparar.

19

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio entende que as respostas às questões prejudiciais também são pertinentes para a resolução do litígio no processo principal no qual AR é demandante, embora os danos que a queda de uma porta de garagem causa a um veículo não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/103. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera sensato, à luz do «princípio da igualdade perante a lei», aplicar a este litígio os mesmos princípios que são aplicáveis aos restantes litígios nos processos principais.

20

Foi nestas condições que o Sąd Rejonowy dla m.st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Capital, Varsóvia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 18.o em conjugação com o artigo 3.o da [Diretiva 2009/103], ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais nos termos das quais o lesado que tenha um direito de ação direta de indemnização dos danos causados ao seu veículo no âmbito da utilização de veículos automóveis contra a seguradora que cobre o responsável pelo acidente no que respeita à responsabilidade civil, apenas pode receber da seguradora uma indemnização correspondente ao montante real e atual dos danos causados à sua propriedade, ou seja a diferença entre o (valor do) veículo na condição em que se encontrava antes do acidente e o veículo sinistrado, acrescido de custos efetivamente já suportados e justificados de reparação do veículo e outros custos efetivamente já suportados resultantes do acidente, ao passo que se pedisse uma reparação dos danos diretamente ao responsável poderia optar por exigir‑lhe que repusesse o veículo na condição em que se encontrava antes do dano (reparação pelo próprio responsável ou por uma oficina paga por ele), em vez de exigir uma indemnização?

2)

Em caso de resposta afirmativa à questão supra, deve o artigo 18.o em conjugação com o artigo 3.o da [Diretiva 2009/103], ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais nos termos das quais o lesado que tenha um direito de ação direta de indemnização dos danos causados ao seu veículo automóvel no âmbito da utilização de veículos automóveis contra a seguradora que cobre o responsável pelo acidente no âmbito da responsabilidade civil, apenas pode receber da seguradora uma indemnização correspondente ao montante real e atual dos danos causados à sua propriedade, ou seja, a diferença entre o (valor do) veículo na condição em que se encontrava antes do acidente e o veículo sinistrado, acrescido de custos efetivamente já suportados e justificados de reparação do veículo e outros custos efetivamente já suportados resultantes do acidente, um montante equivalente ao custo de repor o veículo na condição em que se encontrava antes do dano, ao passo que, se pedisse a reparação do dano diretamente ao responsável pelo acidente, poderia optar por exigir‑lhe que repusesse o veículo na condição em que se encontrava antes do dano, em vez de exigir uma indemnização (e não apenas a disponibilização de fundos para esse fim)?

3)

Em caso de resposta afirmativa à questão n.o [1] e negativa à questão n.o [2] — deve o artigo 18.o, em conjugação com o artigo 3.o da [Diretiva 2009/103], ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais nos termos das quais a seguradora à qual o proprietário do veículo sinistrado em resultado da circulação de veículos automóveis reclama o pagamento de custos hipotéticos que não suportou mas teria de suportar caso decidisse repor o veículo na condição em que se encontrava antes do acidente pode:

a)

fazer depender esse pagamento da condição de a pessoa lesada ter efetivamente a intenção de reparar o veículo numa determinada oficina, a um preço específico para peças e serviços, e de transferir os meios para essa reparação diretamente a essa oficina (ou ao vendedor das peças necessárias à reparação), sem prejuízo do reembolso se a finalidade para a qual foram pagas essas quantias não se realizasse e, não sendo esse o caso:

b)

fazer depender esse pagamento da obrigação de o consumidor provar, no prazo acordado, que utilizou os montantes pagos para reparar o veículo ou de os reembolsar à seguradora e, não sendo esse o caso:

c)

após o pagamento desses montantes, mediante indicação do fim a que o pagamento se destina (a forma como vai ser utilizado) e terminado o tempo necessário para o lesado mandar reparar o veículo, exigir‑lhe que faça prova de ter utilizado esses meios para a reparação ou que os reembolse,

de modo a impedir o enriquecimento do lesado com o dano?

4)

Em caso de resposta afirmativa à questão n.o [1] e negativa à questão n.o [2] — deve o artigo 18.o, em conjugação com o artigo 3.o da [Diretiva 2009/103], ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais nos termos das quais o lesado que já não é proprietário de um veículo sinistrado, porque o alienou, tendo recebido em troca dinheiro, pelo que já não pode reparar esse veículo, não pode, consequentemente, pedir à seguradora que cobre o autor do acidente no âmbito da responsabilidade civil o pagamento dos custos da reparação necessária para repor o veículo sinistrado na condição em que se encontrava antes do dano e estando a sua ação limitada a reclamar à seguradora uma indemnização pelos danos causados à sua propriedade, isto é, a diferença entre o valor do veículo na condição em que se encontrava antes do acidente e o montante que recebeu com a venda do veículo, acrescido dos custos efetivamente já suportados e justificados de reparação do veículo e outros custos efetivamente já suportados resultantes do acidente?»

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

21

Nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, RD alega que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível uma vez que as questões prejudiciais visam, na realidade, pôr em causa as modalidades de indemnização de resolução, a título do seguro de responsabilidade civil, dos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis, como previstas no direito polaco. Por seu turno, o Governo polaco salienta que as ações que estão na origem dos litígios nos processos principais não têm como objetivo a reparação dos veículos dos demandantes nos processos principais, visando antes que a estes últimos seja paga uma indemnização pecuniária, pelo que as duas primeiras questões devem ser consideradas hipotéticas e, por conseguinte, inadmissíveis.

22

A este respeito, é certo que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no estado atual do direito da União, os Estados‑Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, no âmbito dos seus regimes de responsabilidade civil, em particular, os danos causados por veículos automóveis que devem ser reparados, o alcance da indemnização desses danos e as pessoas que têm direito à referida reparação [Acórdão de 20 de maio de 2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C‑707/19, EU:C:2021:405, n.o 25 e jurisprudência referida].

23

Todavia, na presente situação, as questões prejudiciais não incidem sobre as matérias referidas no número anterior. Com efeito, através das suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 18.o da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que prevê determinadas modalidades para o exercício, pelas pessoas que sofreram danos na sequência de um acidente de viação, do seu direito de demandar diretamente a seguradora da pessoa responsável por esses danos, reconhecido por aquele artigo.

24

Além disso, o argumento do Governo polaco, segundo o qual as ações que estão na origem dos litígios nos processos principais não se destinam a reparar os veículos danificados em causa mas a receber o pagamento de uma indemnização pecuniária, não é suficiente para demonstrar a natureza hipotética das duas primeiras questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

25

Com efeito, resulta das indicações fornecidas por este órgão jurisdicional, resumidas nos n.os 13 a 17 do presente acórdão, que este último está bem ciente de que através das ações que estão na origem dos litígios nos processos principais se pretende obter o pagamento de uma indemnização pecuniária. Todavia, pretende saber, nomeadamente, se o artigo 18.o da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que, quando a regulamentação de um Estado‑Membro prevê que o lesado pode optar por exigir à pessoa responsável pelo dano o pagamento de uma indemnização pecuniária ou a reparação do veículo danificado, esse lesado pode, ao exercer o seu direito de ação direta contra a seguradora que cobre a responsabilidade civil da pessoa responsável, pedir a essa seguradora uma indemnização pecuniária que não é calculada com base no método denominado «diferencial», mas com base nos custos necessários para a reparação do referido veículo.

26

Daqui resulta que as questões do órgão jurisdicional de reenvio visam a interpretação do direito da União e não revestem caráter hipotético.

27

No entanto, convém observar que, segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, o litígio no processo principal entre, por um lado, AR e, por outro, PK e CR visa a reparação dos danos que a queda de uma porta de garagem causou a um veículo.

28

A Diretiva 2009/103 visa assegurar a proteção das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, objetivo que foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União [v., neste sentido, Acórdão de 20 de maio de 2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C‑707/19, EU:C:2021:405, n.o 27 e jurisprudência referida].

29

Todavia, é evidente que a responsabilidade civil em que incorre a pessoa responsável por uma garagem na sequência da queda da porta dessa garagem sobre um veículo automóvel não tem origem num dano causado pelo veículo em causa, mas num dano causado a esse veículo pela queda de um elemento de um imóvel. Daqui resulta que, como o próprio órgão jurisdicional de reenvio reconhece, os factos que na origem do litígio no processo principal entre, por um lado, AR e, por outro, PK e CR, não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/103.

30

O órgão jurisdicional de reenvio refere, contudo, que lhe parece ser razoável, à luz do «princípio da igualdade perante a lei», que se apliquem ao referido litígio as mesmas regras que são aplicáveis aos restantes litígios nos processos principais. Uma vez que aquele órgão jurisdicional se limita a considerar as consequências que podem decorrer do presente acórdão por força de um princípio reconhecido pelo direito polaco, basta recordar que, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça não tem competência para interpretar o direito nacional, nem para aplicar as regras jurídicas a uma determinada situação porque estas missões que são da competência exclusiva do órgão jurisdicional de reenvio (v., neste sentido, Despachos de 3 de setembro de 2020, Vikingo Fővállalkozó, C‑610/19, EU:C:2020:673, n.o 68 e jurisprudência referida, e de 9 de janeiro de 2023, A.T.S. 2003, C‑289/22, EU:C:2023:26, n.o 29). Assim, estas considerações não são suficientes para determinar que existe uma relação entre o objeto desse primeiro litígio e a interpretação do direito da União solicitada.

31

Por conseguinte, atendendo a todas as considerações que precedem, há que julgar admissível o pedido de decisão prejudicial, exceto na parte em que diz respeito ao litígio entre, por um lado, AR e, por outro, PK, e CR, em relação ao qual o pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

Quanto às questões prejudiciais

32

Através das suas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 18.o da Diretiva 2009/103, lido em conjugação com o seu artigo 3.o, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, em caso de ação direta intentada pela pessoa cujo veículo sofreu um sinistro na sequência de um acidente de viação contra a seguradora da pessoa responsável pelo acidente, prevê como única modalidade de obtenção de uma reparação a cargo dessa seguradora o pagamento de uma indemnização pecuniária e, sendo caso disso, pergunta que obrigações decorrem dessas disposições no que se refere às modalidades de cálculo dessa indemnização, bem como às condições relativas ao seu pagamento.

33

O artigo 3.o da Diretiva 2009/103 prevê a obrigação de cada Estado‑Membro, sem prejuízo das derrogações que estes podem prever ao abrigo do artigo 5.o desta diretiva, adotar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

34

A este respeito, há que salientar a título preliminar que, não havendo indicação em sentido contrário do órgão jurisdicional de reenvio, os cinco litígios nos processos principais relativamente aos quais o pedido de decisão prejudicial foi julgado admissível não se referem a pessoas nem a veículos em relação aos quais a República da Polónia exerceu as faculdades de derrogação conferidas pelo referido artigo 5.o

35

No que se refere ao direito de ação direta dos lesados a intentar contra a seguradora, consagrado no artigo 18.o da Diretiva 2009/103, há que observar que esta disposição não se opõe a que o direito nacional preveja que esta modalidade de obtenção de reparação não possa consistir unicamente em prestações de natureza pecuniária.

36

Com efeito, importa salientar que resulta do considerando 30 desta diretiva que este direito consiste em permitir que o lesado invoque o contrato de seguro e demande diretamente a empresa de seguros com base no mesmo. Daqui decorre que semelhante ação só pode ter por objeto o cumprimento, pela seguradora da pessoa responsável, diretamente ao lesado, da prestação que essa seguradora estava obrigada a cumprir em relação ao seu segurado, dentro dos limites contratualmente previstos.

37

Assim, quando a prestação da seguradora, como definida no contrato de seguro, for de natureza exclusivamente pecuniária, o artigo 18.o da referida diretiva não se opõe a que a ação direta, intentada pelo lesado contra a seguradora, tenha obrigatoriamente por objeto o pagamento de uma indemnização pecuniária.

38

A este respeito, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 52 das suas conclusões, o facto de, nomeadamente, o artigo 9.o da Diretiva 2009/103 fixar a cobertura mínima obrigatória através de montantes mínimos de indemnização confirma semelhante interpretação.

39

No caso em apreço, é o que sucede com as ações diretas intentadas nos processos principais, ao abrigo do artigo 18.o desta diretiva, uma vez que, como resulta das informações fornecidas ao Tribunal de Justiça, o artigo 822.o, n.o 1, do Código Civil prevê que as prestações da seguradora só podem ser de natureza pecuniária.

40

Neste contexto, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio também dizem respeito às modalidades de cálculo dessa indemnização pecuniária, bem como às modalidades do respetivo pagamento, nomeadamente no que se refere à possibilidade de sujeitar o pagamento dessa indemnização que está a cargo da seguradora ao cumprimento de condições destinadas a garantir que o lesado utilizará efetivamente a indemnização para reparar o seu veículo, o que impede que esta indemnização corresponda aos custos de reparação do veículo danificado no caso de o lesado o tenha vendido nesse estado.

41

A este respeito, é oportuno observar que os tribunais nacionais têm legitimidade para zelar por que a proteção dos direitos garantidos pela ordem jurídica da União Europeia não se traduza num enriquecimento sem causa desses titulares de direitos [Acórdãos de 25 de março de 2021, Balgarska Narodna Banka, C‑501/18, EU:C:2021:249, n.o 125, e de 21 de março de 2023, Mercedes‑Benz Group (Responsabilidades dos fabricantes de veículos munidos de dispositivo manipulador), C‑100/21, EU:C: 2023:229, n.o 94].

42

Dito isto, importa igualmente recordar que a obrigação de cobertura pelo seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos no âmbito da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional [Acórdão de 20 de maio de 2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C‑707/19, EU:C:2021:405, n.o 23 e jurisprudência referida].

43

Assim, a regulamentação da União não visa harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados‑Membros, que conservam, em princípio, a liberdade de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos [Acórdão de 20 de maio de 2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C‑707/19, EU:C:2021:405, n.o 24 e jurisprudência referida].

44

Por conseguinte, como foi recordado no n.o 22 do presente acórdão, no estado atual do direito da União, os Estados‑Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, no âmbito dos seus regimes de responsabilidade civil, particularmente os danos causados por veículos automóveis que devem ser reparados, a extensão da indemnização desses danos e as pessoas que têm direito à referida reparação.

45

Todavia, os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio no respeito do direito da União e as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a regulamentação da União do seu efeito útil, nomeadamente ao excluírem de modo oficioso ou ao limitarem desproporcionadamente o direito da vítima a obter uma indemnização através do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis [v., neste sentido, Acórdãos de 20 de maio de 2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C‑707/19, EU:C:2021:405, n.o 26 e jurisprudência referida, e de 10 de junho de 2021, Van Ameyde España, C‑923/19, EU:C:2021:475, n.o 44 e jurisprudência referida].

46

A este respeito, há que salientar que na medida em que, quando exerce o seu direito de ação direta contra a seguradora da responsabilidade civil da pessoa responsável pelo dano, o lesado exige o cumprimento, em seu benefício, da prestação da seguradora prevista no contrato de seguro, o pagamento desta prestação só pode estar sujeito às condições que estejam expressamente previstas nesse contrato.

47

Por conseguinte, como o advogado‑geral sublinhou no n.o 62 das suas conclusões, sob pena de se prejudicar o efeito útil do direito de ação direta previsto no artigo 18.o da Diretiva 2009/103, as condições expostas no n.o 40 do presente acórdão não podem ter por efeito excluir ou limitar a obrigação da seguradora, resultante do artigo 3.o desta diretiva, de cobrir a totalidade da reparação que a pessoa responsável pelo dano deve prestar ao lesado a título dos danos sofridos por este último.

48

Atendendo a todas as considerações que precedem, há que responder às questões submetidas que o artigo 18.o da Diretiva 2009/103, lido em conjugação com o artigo 3.o desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a uma regulamentação nacional que, em caso de ação direta intentada pela pessoa cujo veículo sofreu um sinistro na sequência de um acidente de viação contra a seguradora da pessoa responsável pelo acidente, prevê como única modalidade de obtenção de uma reparação a cargo dessa seguradora o pagamento de uma indemnização pecuniária;

se opõe a modalidades de cálculo dessa indemnização e a condições relativas ao seu pagamento, na medida em que estas tenham por efeito, no âmbito de uma ação direta intentada ao abrigo deste artigo 18.o, excluir ou limitar a obrigação da seguradora, que resulta deste artigo 3.o, de cobrir a totalidade da reparação que a pessoa responsável pelo dano deve fornecer ao lesado a título dos danos sofridos por este último.

Quanto às despesas

49

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

O artigo 18.o da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, lido em conjugação com o artigo 3.o desta diretiva,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

não se opõe a uma regulamentação nacional que, em caso de ação direta intentada pela pessoa cujo veículo sofreu um sinistro na sequência de um acidente de viação contra a seguradora da pessoa responsável pelo acidente, prevê como única modalidade de obtenção de uma reparação a cargo dessa seguradora o pagamento de uma indemnização pecuniária;

 

se opõe a modalidades de cálculo dessa indemnização e a condições relativas ao seu pagamento, na medida em que tenham por efeito, no âmbito de uma ação direta intentada ao abrigo deste artigo 18.o, excluir ou limitar a obrigação da seguradora, que resulta deste artigo 3.o, de cobrir a totalidade da reparação que a pessoa responsável pelo dano deve fornecer ao lesado a título dos danos sofridos por este último.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.