ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

23 de março de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão Quadro 2002/584/JAI — Processos de entrega entre os Estados‑Membros — Condições de execução — Motivos de não execução facultativa — Artigo 4.o‑A, n.o 1 — Mandado emitido para efeitos de execução de uma pena privativa de liberdade — Conceito de “julgamento que conduziu à decisão” — Alcance — Primeira condenação suspensa — Segunda condenação — Ausência do interessado no processo — Revogação da suspensão da execução da pena de prisão — Direitos de defesa — Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais — Artigo 6.o — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 47.o e 48.o — Violação — Consequências»

Nos processos apensos C‑514/21 e C‑515/21,

que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda), por Decisões de 30 de julho de 2021, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 20 de agosto de 2021, nos processos relativos à execução de dois mandados de detenção europeus emitidos contra

LU (C‑514/21),

PH (C‑515/21),

sendo interveniente

Minister for Justice and Equality,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos (relator), presidente de secção, L. S. Rossi, J.‑C. Bonichot, S. Rodin e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogada‑geral: T. Ćapeta,

secretário: M.‑A. Gaudissart, secretário adjunto,

vistos os autos e após a audiência de 13 de julho de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação de LU, por P. Carroll, SC, T. Hughes, solicitor, e K. Kelly, BL,

em representação de PH, por E. Lawlor, BL, R. Munro SC, e D. Rudden, solicitor,

em representação do Minister for Justice and Equality e do Governo irlandês, por M. Browne, A. Joyce e C. McMahon, na qualidade de agentes, assistidos por R. Kennedy, SC, e J. Williams, BL,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 27 de outubro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 47.o e do artigo 48.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e do artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2

Estes pedidos foram apresentados no quadro da execução, na Irlanda, de dois mandados de detenção europeus emitidos, respetivamente, pelas autoridades judiciais húngaras contra LU e pelas autoridades judiciais polacas contra PH para efeitos da execução de penas privativas de liberdade nos Estados‑Membros de emissão.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2002/584

3

Nos termos do considerando 6 da Decisão‑Quadro 2002/584:

«O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.»

4

O artigo 1.o desta decisão‑quadro dispõe:

«1.   O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.   Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.   A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

5

O artigo 2.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado‑Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.»

6

O artigo 3.o da mesma decisão‑quadro enuncia:

«A autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução (a seguir designada “autoridade judiciária de execução” recusa a execução de um mandado de detenção europeu nos seguintes casos:

1)

Se a infração na origem do mandado de detenção estiver abrangida por amnistia no Estado‑Membro de execução, quando este for competente para o respetivo procedimento penal nos termos da sua legislação penal;

2)

Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado‑Membro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja atualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do Estado‑Membro de condenação;

3)

Se, nos termos do direito do Estado‑Membro de execução, a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu não puder, devido à sua idade, ser responsabilizada pelos factos que fundamentam o mandado de detenção europeu.»

7

O artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2002/584 prevê:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

1)

Se, num dos casos referidos no n.o 4 do artigo 2.o, o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infração nos termos do direito do Estado‑Membro de execução; todavia, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução do mandado de detenção europeu não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado‑Membro de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado‑Membro de emissão;

2)

Quando contra a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu for movido procedimento penal no Estado‑Membro de execução pelo mesmo facto que determina o mandado de detenção europeu;

3)

Quando as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de execução tiverem decidido não instaurar procedimento criminal, ou pôr termo ao procedimento instaurado, pela infração que determina o mandado de detenção europeu ou quando a pessoa procurada foi definitivamente julgada num Estado‑Membro pelos mesmos factos, o que obsta ao ulterior exercício da ação penal;

4)

Quando houver prescrição da ação penal ou da pena nos termos da legislação do Estado‑Membro de execução e os factos forem da competência desse Estado‑Membro nos termos da sua legislação penal;

5)

Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja atualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do país de condenação;

6)

Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional;

7)

Sempre que o mandado de detenção europeu disser respeito a infração que:

a)

Segundo o direito do Estado‑Membro de execução, tenha sido cometida, no todo ou em parte, no seu território ou em local considerado como tal; ou

b)

Tenha sido praticada fora do território do Estado‑Membro de emissão e o direito do Estado‑Membro de execução não autorize o procedimento penal por uma infração idêntica praticada fora do seu território.»

8

O artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, introduzido pela Decisão‑Quadro 2009/299, dispõe:

«A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado‑Membro de emissão:

a)

Foi atempadamente

i)

notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

e

ii)

informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

ou

b)

Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efetivamente representada por esse defensor no julgamento;

ou

c)

Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial:

i)

declarou expressamente que não contestava a decisão,

ou

ii)

não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

ou

d)

Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:

i)

será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial,

e

ii)

será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.»

9

O artigo 5.o desta decisão‑quadro dispõe:

«A execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita pelo direito do Estado‑Membro de execução a uma das seguintes condições:

[1])

Quando a infração que determina o mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com caráter perpétuo, a execução do mandado de detenção europeu pode ficar sujeita à condição de que o Estado‑Membro de emissão preveja no seu sistema jurídico uma revisão da pena proferida — a pedido ou, o mais tardar, no prazo de 20 anos — ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado‑Membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada;

[2])

Quando a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado‑Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado‑Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida [a seu respeito] no Estado‑Membro de emissão.»

10

O artigo 8.o da referida decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«1.   O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:

a)

Identidade e nacionalidade da pessoa procurada;

b)

Nome, endereço, número de telefone e de fax, e endereço de correio eletrónico da autoridade judiciária de emissão;

c)

Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o;

d)

Natureza e qualificação jurídica da infração, nomeadamente à luz do artigo 2.o;

e)

Descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada na infração;

f)

Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado‑Membro de emissão para essa infração;

g)

Na medida do possível, as outras consequências da infração.

2.   O mandado de detenção europeu deve ser traduzido na língua oficial ou numa das línguas oficiais do Estado‑Membro de execução. No momento da aprovação da presente decisão‑quadro ou posteriormente, qualquer Estado‑Membro pode indicar, mediante declaração depositada junto do Secretariado‑Geral do Conselho, que aceita uma tradução numa ou em várias outras línguas oficiais das instituições das Comunidades Europeias.»

11

O artigo 15.o da mesma decisão‑quadro enuncia:

«1.   A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2.   Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.o a 5.o e o artigo 8.o, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.o

3.   A autoridade judiciária de emissão pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

Decisão‑Quadro 2009/299

12

Os considerandos 1 e 15 da Decisão‑Quadro 2009/299 enunciam:

«1)

O direito da pessoa acusada de estar presente no julgamento está incluído no direito a um processo equitativo consignado no artigo 6.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[, assinado em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)], com a interpretação que lhe é dada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O Tribunal declarou também que o direito de a pessoa acusada estar presente no julgamento não é absoluto e que, em determinadas condições, ela pode renunciar por sua livre vontade, expressa ou implicitamente, mas de forma inequívoca, a esse direito.

[…]

15)

Os motivos de não reconhecimento são facultativos. Todavia, o poder discricionário dos Estados‑Membros na transposição destes motivos para o direito nacional rege‑se pelo direito a um julgamento equitativo, tendo simultaneamente em conta o objetivo global da presente decisão‑quadro de reforçar os direitos processuais das pessoas e de facilitar a cooperação judiciária em matéria penal.»

13

O artigo 1.o, n.o 1, dessa decisão‑quadro prevê:

«1.   A presente decisão‑quadro tem por objetivos reforçar os direitos processuais das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal, facilitar a cooperação judiciária em matéria penal e melhorar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre Estados‑Membros.»

Direito irlandês

14

A section 37, n.o 1, da European Arrest Warrant Act 2003 (Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu), na sua versão em vigor à data dos factos no processo principal (a seguir «Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu»), prevê:

«Uma pessoa não será entregue por força da presente lei se:

a)

a sua entrega for incompatível com as obrigações do Estado ao abrigo:

(i)

da [CEDH], ou

(ii)

dos Protocolos à [CEDH],

[…]»

15

Nos termos da section 45 dessa lei:

«Nos termos da presente lei, uma pessoa não pode ser entregue se não tiver comparecido pessoalmente no processo que conduziu à pena ou à medida de segurança privativa de liberdade objeto do mandado de detenção europeu, a não ser que este indique os elementos exigidos pelos n.os 2, 3 e 4 da alínea d) do formulário do mandado que consta no anexo da [decisão‑quadro], 2002/584.»

Direito polaco

16

O artigo 75.o, n.o 1, do kodeks karny (Código Penal), de 6 de junho de 1997 (Dz. U. no 88, posição 553), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:

«O Tribunal ordenará a execução da pena de prisão se, durante o período de regime de prova, o condenado tiver cometido uma infração dolosa semelhante àquela pela qual foi legal e definitivamente condenado numa pena de prisão.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑514/21

17

Em 10 de outubro de 2006, na sequência de um processo em que LU compareceu pessoalmente, o Encsi városi bíróság (Tribunal de Distrito de Encs, Hungria) condenou‑o por quatro infrações cometidas ao longo do ano de 2005.

18

Em 19 de abril de 2007, a Borsod Abaúj Zemplén Megyei Bíróság (Tribunal de Recurso de Borsod‑Abaúj‑Zemplén (Hungria), no qual LU, que tinha sido devidamente notificado para comparecer, foi representado por um advogado, confirmou essa sentença e condenou LU a uma pena de um ano de prisão. No entanto, a execução dessa pena foi suspensa por um período de regime de prova de dois anos. Na medida em que tinha passado um mês em prisão preventiva, LU tinha um período máximo de onze meses de prisão para cumprir.

19

Em 16 de dezembro de 2010, o Encsi városi bíróság (Tribunal Municipal de Encs) condenou LU a uma multa por não pagamento de uma pensão de alimentos em 2008, a saber, durante o período de regime de prova aplicável à pena suspensa à qual tinha sido condenado anteriormente. LU esteve presente nas audiências de 15 de novembro de 2010 e de 13 de dezembro de 2010, mas não esteve presente quando aquele tribunal proferiu a sua sentença.

20

Durante o mês de junho de 2012, o Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc, Hungria) revogou essa sentença e condenou LU numa pena de prisão de cinco meses e na proibição de exercer atividades públicas durante um ano. Ordenou igualmente a execução da pena a que tinha sido condenado pelas infrações cometidas durante o ano de 2005. Não está demonstrado se esse tribunal de recurso devia ordenar a execução dessa pena ou se dispunha de uma margem de apreciação a este respeito.

21

LU foi notificado para comparecer no Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc). Embora essa notificação não tenha sido recebida por LU, foi considerada regular nos termos do direito húngaro. LU não estava presente na audiência nesse tribunal, mas o referido tribunal nomeou um advogado para o representar. Esse advogado compareceu nessa audiência e, em seguida, apresentou, por um lado, um pedido para a realização de um novo julgamento, que foi indeferido, e, por outro, um pedido de indulto em nome e por conta de LU.

22

No mês de setembro de 2012, foi emitido um mandado de detenção europeu pelas autoridades húngaras solicitando a entrega de LU, que se encontra na Irlanda, para efeitos da execução das penas às quais tinha sido condenado tanto pelas infrações cometidas ao longo do ano de 2005 como pela infração relativa ao não pagamento de uma pensão de alimentos. No entanto, o High Court (Tribunal Superior, Irlanda) recusou executar esse mandado.

23

Em 28 de outubro de 2015, a pedido de LU, o Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) ordenou ao Encsi Járásbíróság (Tribunal Municipal de Encs) que examinasse se deveria ser realizado um novo julgamento quanto às infrações cometidas ao longo do ano de 2005. Em 24 de outubro de 2016, esse tribunal indeferiu o pedido de realização de um novo julgamento. LU não compareceu no Encsi Járásbíróság (Tribunal Municipal de Encs) mas estava representado por um advogado de defesa que tinha sido por ele nomeado.

24

Chamado a conhecer de um recurso interposto dessa decisão por LU, o Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) que realizou uma audiência, em 20 de março de 2017, na qual LU não compareceu, mas foi representado por um advogado por ele nomeado. Em 29 de março de 2017, este tribunal indeferiu o pedido de realização de um novo julgamento.

25

Na sequência dessa decisão, a pena de prisão à qual LU tinha sido condenado pelas infrações cometidas ao longo do ano de 2005, e cuja execução tinha sido ordenada pelo Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) no mês de junho de 2012, tornou‑se novamente executória em direito húngaro.

26

Em 27 de julho de 2017, um segundo mandado de detenção europeu, que é o que está em causa no processo principal, foi emitido pelas autoridades húngaras a fim de que LU cumpra os onze meses restantes da pena de prisão a que tinha sido condenado pelas quatro infrações cometidas ao longo do ano de 2005.

27

Por Decisão de 15 de dezembro de 2020, o High Court (Tribunal Superior) ordenou a entrega de LU com base nesse mandado. Chamado a conhecer de um recurso interposto por LU, o Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda), a saber, o órgão jurisdicional de reenvio, salienta, em primeiro lugar, que LU não compareceu no julgamento que conduziu, por um lado, à sua condenação pelo Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) por não pagamento de uma pensão de alimentos e, por outro, ao despacho de execução da primeira pena privativa de liberdade, que é objeto do mandado de detenção europeu em causa no processo principal. Na medida em que LU não parece ter renunciado ao seu direito de estar presente ao longo desse processo, esse órgão jurisdicional considera que o referido processo não foi conduzido em conformidade com o artigo 6.o da CEDH.

28

Esse órgão jurisdicional está ainda inclinado para considerar que, se se devesse entender que o processo no Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) faz parte do «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584, não estão preenchidos os requisitos deste artigo nem do artigo 45.o da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu.

29

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio defende, todavia, por um lado, que o despacho de execução da primeira pena privativa de liberdade aplicada a LU pode ser considerado uma decisão relativa à execução ou à aplicação dessa pena, na aceção do Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026), e, por outro, que nem essa decisão nem a condenação de LU pelo não pagamento de uma pensão de alimentos tinha por objeto ou por efeito alterar a natureza ou o quantum da pena privativa de liberdade que lhe foi aplicada pelas infrações cometidas ao longo do ano de 2005, pelo que ambas escapariam ao âmbito de aplicação do artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584.

30

Dito isto, esse órgão jurisdicional considera que o processo principal difere em vários aspetos do processo que deu origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026).

31

No caso em apreço, segundo o referido órgão jurisdicional, a segunda condenação de LU parece ter tido um efeito determinante, ao provocar a revogação da suspensão da execução da pena privativa de liberdade anteriormente aplicada a LU. Em seguida, em caso de entrega, LU não teria direito de ser ouvido a posteriori. Por último, as circunstâncias do processo principal apresentariam uma ligação muito mais estreita com o artigo 6.o da CEDH, bem como com o artigo 47.o e com o artigo 48.o, n.o 2, da Carta, do que o processo que deu origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026). Com efeito, é apenas porque LU foi declarado culpado e condenado, na sua ausência, pelo não pagamento de uma pensão de alimentos, que a pena privativa de liberdade, aplicada pelas infrações que cometeu durante o ano de 2005, é executória e não há dúvida de que o artigo 6.o da CEDH se aplica ao processo que conduziu a essa condenação na ausência do arguido.

32

Além disso, o mesmo órgão jurisdicional salienta que, uma vez que o artigo 4.o‑A da decisão‑quadro 2002/584 e o artigo 45.o da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu se opõem à entrega de LU a fim de que este cumpra a pena à qual foi condenado, na sua ausência, por não pagamento de uma pensão de alimentos, pareceria anormal que possa ser entregue às autoridades húngaras para cumprir a pena a que foi condenado pelas infrações cometidas durante o ano de 2005, quando essa pena só é executória devido a essa condenação na ausência do arguido.

33

O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que se podia considerar que o Despacho do Miskolci Törvényszék (Tribunal Regional de Miskolc) que revoga a suspensão da execução da primeira pena privativa de liberdade está tão estreitamente ligado à condenação por não pagamento de uma pensão de alimentos que uma violação do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH que vicia essa condenação deveria igualmente viciar esse despacho.

34

Nestas circunstâncias, o Court of Appeal (Tribunal de Recurso) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

a)

Quando a entrega da pessoa procurada é pedida para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade cuja execução foi suspensa ab initio mas foi posteriormente ordenada em virtude da condenação da pessoa procurada por nova infração penal, e quando essa ordem de execução foi decretada pelo tribunal que condenou a pessoa procurada por essa nova infração penal, deve considerar‑se que o processo que culminou nessa condenação e nessa ordem de execução posteriores faz parte do “julgamento que conduziu à decisão” para efeitos do artigo 4.o‑A, n.o l, da Decisão quadro 2002/584/JHA do Conselho?

b)

Para efeitos da resposta à alínea a) da primeira questão, é relevante saber se o tribunal que decretou a ordem de execução estava legalmente obrigado a decretá‑la ou se dispunha de margem discricionária para fazê‑lo?

2)

Nas circunstâncias descritas na primeira questão, a autoridade judiciária de execução tem o direito de determinar se o processo que culminou na condenação e na ordem de execução posteriores, que decorreu na ausência da pessoa procurada, foi conduzido em conformidade com o artigo 6.o da [CEDH] e, em particular, se a ausência da pessoa procurada constituiu uma violação dos direitos de defesa e/ou do direito a um processo equitativo?

3)

a)

Nas circunstâncias descritas na primeira questão, caso a autoridade judiciária de execução considere que o processo que culminou na condenação e na ordem de execução posteriores não foi conduzido em conformidade com o artigo 6.o da [CEDH] e, em particular, que a ausência da pessoa procurada violou os direitos de defesa e/ou o direito da pessoa procurada a um processo equitativo, a autoridade judiciária de execução tem o direito e/ou a obrigação a) de recusar a entrega da pessoa procurada com base no facto de tal entrega ser contrária ao artigo 6.o da [CEDH] e/ou aos artigos 47.o e 48.o, n.o 2, da [Carta] e/ou b) de exigir à autoridade judiciária de emissão, enquanto condição da entrega, que garanta que a pessoa procurada, após a entrega, terá acesso a um novo julgamento ou recurso, no qual terá o direito de participar e que permitirá a reapreciação do objeto do processo, incluindo de novos elementos de prova, o que é suscetível de conduzir à anulação da decisão original no que respeita à condenação que culminou na ordem de execução?

b)

Para efeitos da alínea a) da terceira questão, o critério aplicável que consiste em saber se a entrega da pessoa procurada viola o conteúdo essencial dos direitos fundamentais que lhe são conferidos pelo artigo 6.o da [CEDH] e/ou pelos artigos 47.o e 48.o, n.o 2, da Carta, e, se assim for, o facto de o processo que culminou na condenação e na ordem de execução posteriores ter sido conduzido na ausência, e de a pessoa procurada, no caso de ser entregue, não ter direito a um novo julgamento ou recurso, são suficientes para permitir à autoridade judiciária de execução concluir que a entrega viola o conteúdo essencial desses direitos?»

Processo C‑515/21

35

Em 29 de maio de 2015, o Sąd Rejonowy dla Wrocławia—Śródmieścia (Tribunal de Primeira Instância de Wroclow‑Śródmieście, Polónia) condenou PH, na sua presença, a uma pena de prisão de um ano por uma infração cometida durante o ano de 2015. No entanto, a execução dessa pena foi suspensa condicionalmente por um período de regime de prova de cinco anos. PH não interpôs recurso dessa condenação.

36

Em 21 de fevereiro de 2017, PH foi declarado culpado, pelo Sąd Rejonowy w Bydgoszczy (Tribunal de Primeira Instância de Bydgoszczy, Polónia), por uma segunda infração pela qual foi condenado a uma pena de prisão de catorze meses. PH não teve conhecimento da audiência realizada nesse tribunal e não compareceu nessa audiência, nem pessoalmente nem por intermédio de um representante legal.

37

Em 16 de maio de 2017, o Sąd Rejonowy dla Wrocławia‑Śródmieścia (Tribunal de Primeira Instância de Wrocław‑Śródmieście, Polónia) ordenou, nos termos do artigo 75.o, n.o 1, do Código Penal polaco, a execução da pena de prisão de um ano a que tinha condenado PH, com o fundamento de que este último tinha cometido uma segunda infração durante o seu período do regime de prova. Esse tribunal não dispunha de nenhuma margem de apreciação a este respeito.

38

PH não teve conhecimento do processo instaurado no Sąd Rejonowy dla Wrocławia‑Śródmieścia (Tribunal de Primeira Instância de Wrocław‑Śródmieście), tendo esse processo conduzido à decisão que revogou a suspensão da execução da sua primeira pena de prisão, e não compareceu na audiência de 16 de maio de 2017, nem pessoalmente nem por intermédio de um representante legal.

39

O prazo em que PH podia interpor recurso da sua condenação pela segunda infração já expirou e, em caso de entrega, PH não terá o direito de ser ouvido, exceto no âmbito de um eventual recurso extraordinário.

40

Em 26 de fevereiro de 2019, o Sąd Rejonowy dla Wrocławia‑Śródmieścia (Tribunal de Primeira Instância de Wrocław‑Śródmieście) emitiu um mandado de detenção europeu contra PH, que se encontra na Irlanda, para efeitos da execução da pena de prisão de um ano a que tinha sido condenado em 29 de maio de 2015.

41

Por Decisão de 16 de novembro de 2020, o High Court (Tribunal Superior) ordenou a entrega de PH com base nesse mandado. PH interpôs recurso desta decisão para o Court of Appeal (Tribunal de Recurso).

42

O Court of Appeal (Tribunal de Recurso) sublinha que o processo, na sua ausência, que conduziu à segunda condenação de PH não parece conforme com o artigo 6.o da CEDH nem com os artigos 47.o e 48.o da Carta, na medida em que PH não parece ter renunciado ao seu direito de estar presente nesse processo.

43

Nestas circunstâncias, o Court of Appeal (Tribunal de Recurso) decidiu, por motivos análogos aos expostos nos n.os 27 a 33 do presente acórdão, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Quando a entrega da pessoa procurada é pedida para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade cuja execução foi suspensa ab initio mas foi posteriormente ordenada em virtude da condenação da pessoa procurada por nova infração penal, em circunstâncias em que a ordem de execução era obrigatória devido a essa condenação, deve considerar‑se que o processo que culminou nessa condenação posterior e/ou o processo que culminou na ordem de execução fazem parte do “julgamento que conduziu à decisão” para efeitos do artigo 4.o‑A, n.o l, da Decisão quadro 2002/584/JHA do Conselho?

2)

Nas circunstâncias descritas na primeira questão, a autoridade judiciária de execução tem o direito e/ou a obrigação de determinar se o processo que culminou na condenação posterior e/ou o processo que culminou na ordem de execução, ambos conduzidos na ausência da pessoa procurada, foram conduzidos em conformidade com o artigo 6.o da [CEDH] e, em particular, se a ausência da pessoa procurada nesses processos constituiu uma violação dos direitos de defesa e/ou do direito a um processo equitativo?

3)

a)

Nas circunstâncias descritas na primeira questão, caso a autoridade judiciária de execução considere que o processo que culminou na condenação e na ordem de execução posteriores não foi conduzido em conformidade com o artigo 6.o da [CEDH] e, em particular, que a ausência da pessoa procurada constituía uma violação dos direitos de defesa e/ou do direito da pessoa procurada a um processo equitativo, a autoridade judiciária de execução tem o direito e/ou a obrigação i) de recusar a entrega da pessoa procurada com base no facto de tal entrega ser contrária ao artigo 6.o da [CEDH] e/ou aos artigos 47.o e 48.o, n.o 2, da [Carta] e/ou ii) de exigir à autoridade judiciária de emissão, enquanto condição da entrega, que garanta que a pessoa procurada, após a entrega, terá acesso a um novo julgamento ou recurso, no qual terá o direito de participar e que permitirá a reapreciação do objeto do processo, incluindo de novos elementos de prova, o que é suscetível de conduzir à anulação da decisão original no que respeita à condenação que culminou na ordem de execução?

b)

Para efeitos da alínea a) da terceira questão, o critério aplicável que consiste em saber se a entrega da pessoa procurada viola o conteúdo essencial dos direitos fundamentais que lhe são conferidos pelo artigo 6.o da [CEDH] e/ou pelos artigos 47.o e 48.o, n.o 2, da Carta, e, se assim for, o facto de o processo que culminou na condenação e na ordem de execução posteriores ter sido conduzido na ausência, e de a pessoa procurada, no caso de ser entregue, não ter direito a um novo julgamento ou recurso, são suficientes para permitir à autoridade judiciária de execução concluir que a entrega viola o conteúdo essencial desses direitos?»

44

Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de setembro de 2021, os processos C‑514/21 e C‑515/21 foram apensos para efeitos da fase oral e do acórdão.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

45

Com a sua primeira questão nos processos apensos C‑514/21 e C‑515/21, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que, quando a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade é revogada, devido a uma nova condenação penal, e um mandado de detenção europeu, para efeitos da execução dessa pena, é emitido, a decisão, adotada na ausência do arguido, que revoga essa suspensão ou a segunda condenação penal, igualmente pronunciada na ausência do arguido, constitui uma «decisão» na aceção dessa disposição.

46

Em primeiro lugar, importa recordar que a Decisão‑Quadro 2002/584, ao instituir um sistema simplificado e eficaz de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, destina‑se a facilitar e a acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, fixado à União Europeia, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 67 e jurisprudência referida).

47

Para esse efeito, decorre desta decisão‑quadro, e em especial do seu artigo 1.o, n.o 2, que a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, ao passo que a recusa de execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 68 e jurisprudência referida).

48

Em segundo lugar, resulta da própria redação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que a autoridade judiciária de execução dispõe da faculdade de recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade se o interessado não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, salvo se o mandado de detenção europeu indicar que as condições enunciadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) desta disposição estão preenchidas (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 38 e jurisprudência referida).

49

A este respeito, importa salientar que esse artigo 4.o‑A limita, assim, a possibilidade de recusar executar o mandado de detenção europeu ao enumerar, de maneira precisa e uniforme, as condições em que o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento no qual a pessoa em causa não tenha estado presente não podem ser recusados (v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.os 35 e 36 e jurisprudência referida).

50

O artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584 visa assim garantir um nível de proteção elevado e permitir à autoridade de execução proceder à entrega do interessado não obstante a sua ausência do processo que conduziu à sua condenação, respeitando plenamente os seus direitos de defesa (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 39 e jurisprudência referida). Mais especificamente, resulta expressamente do artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2009/299, lido à luz dos seus considerandos 1 e 15, que este artigo 4.o‑A foi inserido na Decisão‑Quadro 2002/584 a fim de proteger o direito do arguido de comparecer pessoalmente no processo penal contra ele movido melhorando o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre Estados‑Membros.

51

O referido artigo 4.o‑A deve, ainda, ser interpretado e aplicado em conformidade com o artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, bem como com o artigo 48.o da Carta, que, como precisam as Anotações relativas à Carta, correspondem ao artigo 6.o da CEDH. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve assegurar que a interpretação por ele efetuada do artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e do artigo 48.o da Carta garante um nível de proteção que não viole o garantido no artigo 6.o da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [Acórdão de 15 de setembro de 2022, HN (Julgamento de um arguido afastado do território), C‑420/20, EU:C:2022:679, n.o 55].

52

Em terceiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser entendido no sentido de que designa o processo que conduziu à decisão judicial que condenou definitivamente a pessoa cuja entrega é solicitada no quadro da execução de um mandado de detenção europeu (Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 74, e de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 64).

53

Em contrapartida, uma decisão relativa à execução ou à aplicação de uma pena privativa de liberdade proferida anteriormente não constitui uma «decisão», na aceção deste artigo 4.o‑A, n.o 1, salvo quando afete a declaração de culpabilidade ou tenha por objeto ou efeito alterar a natureza ou o quantum dessa pena e a autoridade que a proferiu beneficiou, a este respeito, de uma margem de apreciação. Daqui resulta que uma decisão que revoga a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade, devido à violação pelo interessado de uma condição objetiva que acompanhe essa suspensão, como a prática de uma nova infração durante o período do regime de prova, não é abrangida pelo âmbito de aplicação do referido artigo 4.o‑A, n.o 1, uma vez que deixa inalterada essa pena no que respeita tanto à sua natureza como ao seu quantum (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.os 77, 81, 82 e 88).

54

Por outro lado, uma vez que a autoridade competente para decidir sobre essa revogação não é chamada a reexaminar o mérito do processo que deu origem à condenação penal, a circunstância de essa autoridade dispor de uma margem de apreciação não é pertinente, uma vez que esta última não lhe permite alterar o quantum ou a natureza da pena privativa de liberdade, como foram fixados pela decisão que condena definitivamente a pessoa procurada (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 80).

55

Esta interpretação estrita do conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, é, além disso, conforme com a economia geral do regime estabelecido por esta decisão‑quadro. Com efeito, como foi sublinhado no n.o 47 do presente acórdão, esta disposição constitui uma exceção à regra que impõe à autoridade judiciária de execução que entregue a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão e deve, portanto, ser objeto de interpretação restritiva.

56

Além disso, tal interpretação é suscetível de assegurar, pelo melhor, o objetivo, prosseguido pela referida decisão‑quadro, que, como recordado no n.o 46 do presente acórdão, consiste em facilitar e acelerar a cooperação judiciária entre os Estados‑Membros com base nos princípios da confiança e do reconhecimento mútuos, evitando de investir a autoridade judiciária de execução de uma função geral de fiscalização de todas as decisões processuais adotadas no Estado‑Membro de emissão (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.os 87 e 88, e de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 88).

57

A este respeito, resulta de jurisprudência constante, por um lado, que a Decisão‑Quadro 2002/584, lida à luz das disposições da Carta, não pode ser interpretada de modo a pôr em causa a efetividade do sistema de cooperação judiciária entre os Estados‑Membros, de que o mandado de detenção europeu, conforme previsto pelo legislador da União, constitui um dos elementos essenciais [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Openbaar Ministerie (Tribunal estabelecido por lei no Estado‑Membro de emissão), C‑562/21 PPU e C‑563/21 PPU, EU:C:2022:100, n.o 47 e jurisprudência referida] e, por outro, que a garantia do respeito dos direitos da pessoa cuja entrega é solicitada é, em primeira linha, da responsabilidade do Estado‑Membro de emissão (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 23 de janeiro de 2018, Piotrowski, C‑367/16, EU:C:2018:27, n.os 49 e 50).

58

Importa, igualmente, salientar que tal interpretação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 é compatível com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Segundo esta jurisprudência, por um lado, os processos relativos às modalidades de execução das penas não são abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 6.o da CEDH e, por outro, as medidas adotadas por um órgão jurisdicional após a pronúncia de uma pena definitiva ou durante a execução desta só podem ser consideradas «penas», na aceção desta Convenção, se puderem conduzir a uma redefinição ou alteração do âmbito da pena aplicada inicialmente (v., designadamente, TEDH, 3 de abril de 2012, Boulois c. Luxemburgo, CE:ECHR:2012:0403JUD003757504, § 87; TEDH, 10 de novembro de 2015, Çetin c. Turquia, CE:ECHR:2015:1110DEC003285709, § 42 a 47; TEDH, de 12 de novembro de 2019, Abedin c. Reino‑Unido, CE:ECHR:2019:1112DEC005402616, § 29 a 37; TEDH, de 22 de junho de 2021, Ballıktaş Bingöllü, CE:ECHR:2021:0622JUD007673012, § 48, TEDH, de 10 de novembro de 2022, Kupinskyy c. Ucrânia, CE:ECHR:2022:1110JUD000508418, §§ 47 a 52).

59

Em quarto lugar, importa salientar, primeiro, que, ao contrário das questões relativas às modalidades de execução ou de aplicação de uma pena, uma decisão judicial de condenação da pessoa em causa se enquadra na face penal do artigo 6.o da CEDH (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 85, e de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 75 e jurisprudência referida).

60

Segundo, o direito do arguido de comparecer em julgamento constitui um elemento essencial dos direitos de defesa e, de um modo mais geral, tem uma importância crucial no respeito do direito a um processo penal equitativo consagrado no artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e no artigo 48.o da Carta [v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2022, HN (Julgamento de um arguido afastado do território), C‑420/20, EU:C:2022:679, n.os 54 a 56 e jurisprudência referida].

61

A este respeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que uma condenação in absentia de uma pessoa, relativamente à qual não ficou provado que tinha renunciado ao seu direito de comparecer e de se defender ou que tinha tido a intenção de se subtrair à justiça, sem que essa pessoa tenha possibilidade de um novo julgamento, após ter sido ouvida, sobre o mérito da acusação, de facto e de direito, de que essa pessoa é objeto, constitui uma denegação de justiça flagrante (TEDH, 1 de março de 2006, Sejdovic c. Itália, CE:ECHR:2006:0301JUD005658100, § 82, e TEDH, 9 de julho de 2019, Kislov c. Rússia, CE:ECHR:2019:0709JUD000359810,§ 106, 107 e 115).

62

No caso em apreço, importa ainda salientar, por um lado, que as segundas condenações penais aplicadas a PH e a LU obrigaram ou autorizaram a autoridade nacional competente a revogar a suspensão da execução das primeiras penas privativas de liberdade às quais estas pessoas já tinham sido condenadas e, por outro, que essa revogação permitiu, ela própria, a emissão dos mandados de detenção europeus, em causa no processo principal, tendo‑se tornado executórias as primeiras penas privativas de liberdade aplicadas a PH e a LU, devido a essa revogação.

63

Por conseguinte, uma condenação penal pronunciada, na sua ausência, em relação à pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu e sem a qual, como no caso em apreço, esse mandado não poderia ter sido emitido constitui um elemento necessário à emissão do referido mandado que é suscetível de estar afetado por um vício fundamental que viole gravemente o direito do arguido de comparecer pessoalmente no seu julgamento, conforme garantido no artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e no artigo 48.o da Carta.

64

Em terceiro lugar, como foi salientado no n.o 50 do presente acórdão, o legislador da União decidiu atribuir, no âmbito do mecanismo do mandado de detenção europeu, uma importância específica ao direito do arguido de comparecer pessoalmente no seu julgamento, instituindo, no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, um motivo facultativo de não execução desse mandado especialmente dedicado à proteção desse direito. Além disso, como foi sublinhado no n.o 51 do presente acórdão, esse motivo de recusa deve ser interpretado em conformidade com as exigências decorrentes do artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, bem como do artigo 48.o da Carta, conforme essas exigências foram salientadas nos n.os 60 e 61 do presente acórdão.

65

Por conseguinte, sob pena de privar o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 de uma grande parte da sua efetividade, a autoridade judiciária de execução deve poder ter em conta, para apreciar se há que recusar, nos termos desta disposição, a entrega da pessoa procurada, não só o eventual processo na sua ausência que conduziu à condenação definitiva para execução da qual o mandado de detenção europeu foi emitido, mas igualmente qualquer outro processo na ausência do arguido que tenha conduzido a uma condenação penal sem a qual esse mandado não poderia ter sido emitido.

66

De resto, como a Comissão Europeia sublinhou, o conceito de «julgamento que conduziu à decisão» pode remeter para mais de uma decisão judicial quando tal seja necessário para alcançar o objetivo prosseguido no artigo 4.o‑A, n.o 1, o qual visa, nomeadamente, reforçar os direitos de defesa das pessoas em causa assegurando que o seu direito fundamental a um processo penal equitativo seja garantido (v., por analogia, Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 94).

67

Daqui resulta que uma decisão judicial que tenha condenado, na sua ausência, a pessoa procurada deve ser considerada uma «decisão», nos termos do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, quando a sua adoção tenha sido determinante para a emissão do mandado de detenção europeu.

68

Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que, quando a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade é revogada, devido a uma nova condenação penal, e um mandado de detenção europeu para efeitos da execução dessa pena é emitido, essa condenação penal, pronunciada na ausência do arguido, constitui uma «decisão», na aceção desta disposição. Não é esse o caso da decisão que revoga a suspensão da execução da referida pena.

Quanto à segunda e terceira questões

69

Com as suas segunda e terceira questões nos processos apensos C‑514/21 e C‑515/21, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Decisão‑Quadro 2002/584, lida à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, deve ser interpretada no sentido de que autoriza ou obriga a autoridade judiciária de execução a recusar entregar a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão ou a subordinar a sua entrega à garantia de que essa pessoa poderá beneficiar, nesse Estado‑Membro, de um novo julgamento ou de um recurso, quando se afigure que o processo na ausência do arguido que conduziu à revogação da suspensão da pena privativa de liberdade para execução da qual foi emitido o mandado de detenção europeu ou a uma segunda condenação penal da referida pessoa, determinante para a emissão desse mandado, violou o artigo 47.o ou o artigo 48.o, n.o 2, da Carta. Pergunta igualmente se é necessário que essa violação afete o conteúdo essencial dos direitos garantidos nesses artigos.

70

Em primeiro lugar, resulta da resposta dada à primeira questão nos processos apensos C‑514/21 e C‑515/21 que a condenação penal pronunciada na ausência do arguido e sem a qual a suspensão da pena privativa de liberdade para execução da qual o mandado de detenção europeu foi emitido não foi revogada faz parte do «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

71

Beneficiando desta precisão, há que recordar, primeiro, que este artigo 4.o‑A, n.o 1, alíneas a) a d), enumera, de maneira precisa e uniforme, as condições em que o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento no qual a pessoa em causa não tenha estado presente não podem ser recusados (Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 71 e jurisprudência referida).

72

Daqui resulta que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 não permite à autoridade judiciária de execução recusar a entrega da pessoa em causa, se o mandado de detenção europeu contiver, no que respeita à decisão judicial que aplicou a pena privativa de liberdade para execução da qual esse mandado foi emitido, uma das indicações previstas nas alíneas a) a d) desta disposição.

73

Com efeito, em cada um dos casos referidos no artigo 4.o‑A, n.o 1, alíneas a) a d), da Decisão‑Quadro 2002/584, a execução do mandado de detenção europeu não infringe os direitos de defesa da pessoa em causa nem o direito a um processo equitativo, como estes são consagrados no artigo 47.o e no artigo 48.o, n.o 2, da Carta (Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni, C‑399/11, EU:C:2013:107, n.os 44 e 53).

74

Pelos mesmos motivos, a autoridade judiciária de execução não pode, ao abrigo do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, recusar entregar ao Estado‑Membro de emissão a pessoa procurada quando o mandado de detenção europeu contém, a respeito da condenação penal pronunciada na ausência do arguido referida no n.o 70 do presente acórdão, uma das indicações mencionadas nas alíneas a) a d) dessa disposição.

75

Inversamente, quando o mandado de detenção europeu não contém nenhuma das indicações mencionadas no artigo 4.o‑A, n.o 1, alíneas a) a d), da Decisão‑Quadro 2002/584, a autoridade judiciária de execução deve poder recusar a entrega da pessoa procurada, independentemente da questão de saber se o conteúdo essencial dos seus direitos de defesa foi violado, uma vez que nenhuma exigência deste tipo decorre da redação desse artigo 4.o‑A nem do seu objetivo, conforme foi recordada no n.o 50 do presente acórdão.

76

Resulta ainda da própria redação do referido artigo 4.o‑A, em especial da indicação segundo a qual a autoridade judiciária de execução «pode […] recusar» a execução do mandado de detenção, que esta última deve dispor de uma margem de apreciação quanto à questão de saber se há ou não que recusar, em tal caso, proceder a essa execução. Por conseguinte, não se pode deduzir do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 que, num caso como o descrito no número anterior, a autoridade judiciária de execução deve recusar a execução do mandado de detenção europeu, sem possibilidade de esta tomar em consideração as circunstâncias próprias de cada caso concreto [v., por analogia, Acórdão de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — Ne bis in idem), C‑665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.os 43 e 44].

77

Esta interpretação é corroborada pela economia geral desta decisão‑quadro. Com efeito, como foi recordado no n.o 47 do presente acórdão, a execução de um mandado de detenção europeu constitui o princípio estabelecido pela referida decisão‑quadro, uma vez que os motivos de recusa de reconhecimento e de execução constituem exceções. Ora, privar a autoridade judiciária de execução da possibilidade de ter em conta as circunstâncias, próprias de cada caso, que podem levar a considerar que as condições da recusa de entrega não estão preenchidas teria por efeito substituir a simples faculdade, prevista no artigo 4.o‑A da mesma decisão‑quadro, por uma verdadeira obrigação, transformando assim em princípio a exceção que constitui a recusa de entrega [v., por analogia, Acórdão de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — Ne bis in idem), C‑665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.o 47].

78

Como salientou a advogada‑geral, em substância, no n.o 115 das suas conclusões, a autoridade judiciária de execução pode, nesta ótica, ter em conta outras circunstâncias que lhe permitam garantir que a entrega do interessado não implica uma violação dos seus direitos de defesa e proceder assim à sua entrega ao Estado‑Membro de emissão. Pode, nomeadamente, ser tido em conta, a este respeito, o comportamento do interessado, particularmente o facto de este último ter procurado escapar à notificação da informação que lhe era dirigida ou evitar qualquer contacto com os seus advogados (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.os 51 e 52 e jurisprudência referida).

79

Segundo, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que a execução do mandado de detenção europeu apenas pode ser subordinada a uma das condições taxativamente previstas no artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2002/584 (Acórdão de 14 de julho de 2022, Procurador‑Geral junto do Tribunal de Recurso de Angers, C‑168/21, EU:C:2022:558, n.o 60 e jurisprudência referida).

80

Ora, o compromisso do Estado‑Membro de emissão de reconhecer à pessoa objeto de um mandado de detenção europeu o direito a um novo julgamento, quando esta tenha sido condenada na sua ausência, em violação dos seus direitos de defesa, não figura entre as condições enunciadas nesse artigo 5.o Daqui resulta que o direito da União se opõe a que a autoridade judiciária de execução possa subordinar a entrega da pessoa objeto de um mandado de detenção europeu a essa condição.

81

É certo, porém, que, a fim de assegurar uma cooperação eficaz em matéria penal, a autoridade judiciária de execução deve usar plenamente os instrumentos previstos no artigo 15.o da Decisão‑Quadro 2002/584 (v., neste sentido, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 132 e jurisprudência referida).

82

Por conseguinte, esta autoridade pode ser levada a solicitar, através, se for caso disso, de um pedido de informações complementares, na aceção do artigo 15.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, a garantia do Estado‑Membro de emissão de que a pessoa objeto do mandado de detenção europeu será avisada do facto de que, ao abrigo do direito do Estado‑Membro de emissão, obterá o direito a um novo julgamento no qual poderá participar e que permitirá reapreciar o processo quanto ao mérito, tendo em conta os novos elementos de prova e anular a decisão inicial, entendendo‑se que, se tal garantia fosse dada pelo Estado‑Membro de emissão, a autoridade judiciária de execução seria obrigada a entregar a pessoa em causa, em conformidade com o artigo 4.o‑A, n.o 1, alínea d) da referida decisão‑quadro.

83

Em segundo lugar, decorre da resposta dada à primeira questão, enunciada no n.o 68 do presente acórdão, que a decisão de revogação da suspensão da pena privativa de liberdade para execução da qual o mandado de detenção europeu foi emitido não é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584, pelo que a circunstância de essa decisão ter sido proferida na sua ausência não pode justificar a recusa de uma autoridade judiciária de execução de entregar a pessoa procurada.

84

Além disso, uma vez que essa circunstância não constitui um dos motivos de não execução, obrigatórios ou facultativos, enumerados nos artigos 3.o e 4.o desta decisão‑quadro, essas disposições também não podem fundamentar essa recusa.

85

Todavia, como a advogada‑geral sublinhou, em substância, no n.o 126 das suas conclusões, a entrega da pessoa procurada pode, a título excecional, ser recusada com fundamento no artigo 1.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro (v., neste sentido, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 72).

86

A este respeito, importa, contudo, precisar, mais especificamente, que uma autoridade judiciária de execução apenas pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu com fundamento no artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, lido em conjugação com o artigo 47.o da Carta, desde que disponha, por um lado, de elementos destinados a demonstrar a existência de um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo, garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, em razão de falhas sistémicas ou generalizadas e desde que tenha verificado, por outro, de maneira concreta e precisa, se, tendo em conta a situação pessoal do indivíduo procurado, a natureza da infração pela qual este último é criminalmente perseguido e o contexto factual em que se insere a emissão do mandado de detenção europeu, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a referida pessoa correrá esse risco em caso de entrega a esse Estado‑Membro de emissão (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 97).

87

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as condições enumeradas no número anterior estão preenchidas no caso em apreço.

88

Por último, a autoridade judiciária de execução não deve dar seguimento a um mandado de detenção europeu que não respeite os requisitos mínimos de que depende a sua validade, entre os quais figuram os previstos no artigo 1.o, n.o 1, e no artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2002/584 (v., a este respeito, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.os 69 e 70). No caso em apreço, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não existem elementos que permitam supor que os mandados de detenção europeus em causa no processo principal não preenchem esses requisitos mínimos.

89

Uma vez que a Decisão‑Quadro 2002/584 enumera exaustivamente os motivos que permitem recusar a execução de um mandado de detenção europeu (v., neste sentido, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 73), essa decisão‑quadro opõe‑se, por conseguinte, a que uma autoridade judiciária de execução recuse entregar uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade com o fundamento de que a suspensão da execução dessa pena foi revogada por uma decisão proferida na sua ausência.

90

Além disso, como foi precisado no n.o 80 do presente acórdão, a referida decisão‑quadro também não permite que a entrega da pessoa procurada seja sujeita à condição de essa pessoa poder obter, no Estado‑Membro de emissão, uma reapreciação jurisdicional da decisão proferida na sua ausência por força da qual a suspensão da pena privativa de liberdade, para execução da qual o mandado de detenção foi emitido, foi revogada.

91

Com efeito, esta condição não figura entre as que são enumeradas no artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2002/584, o qual, como foi recordado no n.o 79 do presente acórdão, enuncia exaustivamente as condições a que a execução de um mandado de detenção europeu pode estar sujeita.

92

Resulta de todas as considerações precedentes que:

o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que autoriza a autoridade judiciária de execução a recusar entregar a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão, quando se afigure que o processo que conduziu a uma segunda condenação penal dessa pessoa, determinante para a emissão do mandado de detenção europeu, decorreu na sua ausência, salvo se o mandado de detenção europeu contiver, no que respeita a esse processo, uma das indicações previstas nas alíneas a) a d) desta disposição,

a Decisão‑Quadro 2002/584, lida à luz do artigo 47.o e do artigo 48.o, n.o 2, da Carta, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que a autoridade judiciária de execução recuse entregar a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão, com o fundamento de que o processo que conduziu à revogação da suspensão da pena privativa de liberdade, para execução da qual o mandado de detenção europeu foi emitido, decorreu na ausência dessa pessoa, ou faz depender a entrega da referida pessoa da garantia de que esta poderá beneficiar, nesse Estado‑Membro, de um novo julgamento ou de um novo recurso que permita reapreciar essa decisão de revogação ou a segunda condenação penal que lhe foi aplicada na sua ausência e que se revele determinante para a emissão desse mandado.

Quanto às despesas

93

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, lido à luz do artigo 47.o e do artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que:

quando a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade é revogada, devido a uma nova condenação penal, e um mandado de detenção europeu para efeitos da execução dessa pena é emitido, essa condenação penal, pronunciada na ausência do arguido, constitui uma «decisão», na aceção desta disposição. Não é esse o caso da decisão que revoga a suspensão da execução da referida pena.

 

2)

O artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299, deve ser interpretado no sentido de que:

autoriza a autoridade judiciária de execução a recusar entregar a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão, quando se afigure que o processo que conduziu a uma segunda condenação penal dessa pessoa, determinante para a emissão do mandado de detenção europeu, decorreu na sua ausência, salvo se o mandado de detenção europeu contiver, no que respeita a esse processo, uma das indicações previstas nas alíneas a) a d) desta disposição,

 

3)

A Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão 2009/299, lida à luz do artigo 47.o e do artigo 48.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretada no sentido de que:

se opõe a que a autoridade judiciária de execução recuse entregar ao Estado‑Membro de emissão a pessoa procurada com o fundamento de que o processo que conduziu à revogação da suspensão da pena privativa de liberdade para execução da qual o mandado de detenção europeu foi emitido, decorreu na ausência dessa pessoa, ou faz depender a entrega da referida pessoa da garantia de que esta poderá beneficiar, nesse Estado‑Membro, de um novo julgamento ou de um recurso que permita reapreciar essa decisão de revogação ou a segunda condenação penal que lhe foi aplicada na sua ausência e que se revele determinante para a emissão desse mandado.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.