ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

13 de julho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direitos de autor na sociedade da informação — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 3.o — Direito de comunicação ao público — Artigo 5.o, n.o 2, alínea b) — Exceção dita de “cópia privada” — Fornecedor de um serviço “Internet Protocol Television” (IPTV) — Acesso a conteúdos protegidos sem autorização dos titulares dos direitos — Gravador de vídeo em linha — Replay em diferido — Técnica de desduplicação»

No processo C‑426/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 27 de maio de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de julho de 2021, no processo

Ocilion IPTV Technologies GmbH

contra

Seven.One Entertainment Group GmbH,

Puls 4 TV GmbH & Co. KG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Primeira Secção, M. Ilešič, A. Kumin e I. Ziemele (relatora), juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 21 de junho de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Ocilion IPTV Technologies GmbH, por P. Burgstaller, Rechtsanwalt,

em representação da Seven.One Entertainment Group GmbH e da Puls 4 TV GmbH & Co. KG, por M. Boesch, Rechtsanwalt,

em representação da Comissão Europeia, por J. Samnadda e G. von Rintelen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 1, e do artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).

2

Este pedido foi apresentado no quadro de um litígio que opõe a Ocilion IPTV Technologies GmbH (a seguir «Ocilion») à Seven.One Entertainment Group GmbH e à Puls 4 TV GmbH und Co. KG (a seguir, em conjunto, «Seven.One e o.»), relativo à disponibilização aos clientes comerciais da Ocilion, por esta, de um serviço de televisão pela Internet em rede fechada [«Internet Protocol Television» (IPTV)] mediante o qual é transmitido aos utilizadores finais o conteúdo de programas de televisão sobre os quais a Seven.One e o. detêm direitos.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 4, 9, 10, 21, 23, 27, 31 e 44 da Diretiva 2001/29 enunciam:

«(4)

Um enquadramento legal do direito de autor e dos direitos conexos, através de uma maior segurança jurídica e respeitando um elevado nível de proteção da propriedade intelectual, estimulará consideravelmente os investimentos na criatividade e na inovação, nomeadamente nas infraestruturas de rede, o que, por sua vez, se traduzirá em crescimento e num reforço da competitividade da indústria europeia, tanto na área do fornecimento de conteúdos e da tecnologia da informação, como, de uma forma mais geral, num vasto leque de setores industriais e culturais. Este aspeto permitirá salvaguardar o emprego e fomentará a criação de novos postos de trabalho.

[…]

(9)

Qualquer harmonização do direito de autor e direitos conexos deve basear‑se num elevado nível de proteção, uma vez que tais direitos são fundamentais para a criação intelectual. A sua proteção contribui para a manutenção e o desenvolvimento da atividade criativa, no interesse dos autores, dos intérpretes ou executantes, dos produtores, dos consumidores, da cultura, da indústria e do público em geral. A propriedade intelectual é pois reconhecida como parte integrante da propriedade.

(10)

Os autores e os intérpretes ou executantes devem receber uma remuneração adequada pela utilização do seu trabalho, para poderem prosseguir o seu trabalho criativo e artístico, bem como os produtores, para poderem financiar esse trabalho. É considerável o investimento necessário para produzir produtos como fonogramas, filmes ou produtos multimédia, e serviços, como os serviços “a pedido”. É necessária uma proteção jurídica adequada dos direitos de propriedade intelectual no sentido de garantir tal remuneração e proporcionar um rendimento satisfatório desse investimento.

[…]

(21)

A presente diretiva deve definir o âmbito dos atos abrangidos pelo direito de reprodução relativamente aos diferentes beneficiários. Tal deve ser efetuado na linha do acervo comunitário. É necessário consagrar uma definição ampla destes atos para garantir a segurança jurídica no interior do mercado interno.

[…]

(23)

A presente diretiva deverá proceder a uma maior harmonização dos direitos de autor aplicáveis à comunicação de obras ao público. Esses direitos deverão ser entendidos no sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações. Abrangem ainda qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão, não abrangendo quaisquer outros atos.

[…]

(27)

A mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na aceção da presente diretiva.

[…]

(31)

Deve ser salvaguardado um justo equilíbrio de direitos e interesses entre as diferentes categorias de titulares de direitos, bem como entre as diferentes categorias de titulares de direitos e utilizadores de material protegido. As exceções ou limitações existentes aos direitos estabelecidas a nível dos Estados‑Membros devem ser reapreciadas à luz do novo ambiente eletrónico. As diferenças existentes em termos de exceções e limitações a certos atos sujeitos a restrição têm efeitos negativos diretos no funcionamento do mercado interno do direito de autor e dos direitos conexos. Tais diferenças podem vir a acentuar‑se tendo em conta o desenvolvimento da exploração das obras através das fronteiras e das atividades transfronteiras. No sentido de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, tais exceções e limitações devem ser definidas de uma forma mais harmonizada. O grau desta harmonização deve depender do seu impacto no bom funcionamento do mercado interno.

[…]

(44)

Quando aplicadas, as exceções e limitações previstas nesta diretiva deverão ser exercidas em conformidade com as obrigações internacionais. Tais exceções e limitações não podem ser aplicadas de forma que prejudique os legítimos interesses do titular do direito ou obste à exploração normal da sua obra ou outro material. A previsão de tais exceções e limitações pelos Estados‑Membros deve, em especial, refletir devidamente o maior impacto económico que elas poderão ter no contexto do novo ambiente eletrónico. Consequentemente, o alcance de certas exceções ou limitações poderá ter que ser ainda mais limitado em relação a certas novas utilizações de obras e outro material protegido.»

4

O artigo 2.o da Diretiva 2001/29, sob a epígrafe «Direito de reprodução», dispõe:

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)

Aos autores, para as suas obras;

[…]

e)

Aos organismos de radiodifusão, para as fixações das suas radiodifusões, independentemente de estas serem transmitidas por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite.»

5

O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

2.   Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que seja acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, cabe:

[…]

d)

Aos organismos de radiodifusão, para as fixações das suas radiodifusões, independentemente de estas serem transmitidas por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite.

[…]»

6

Nos termos do artigo 5.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Exceções e limitações»:

«1.   Os atos de reprodução temporária referidos no artigo 2.o, que sejam transitórios ou episódicos, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objetivo seja permitir:

a)

Uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário,

ou

b)

Uma utilização legítima

de uma obra ou de outro material a realizar, e que não tenham, em si, significado económico, estão excluídos do direito de reprodução previsto no artigo 2.o

2.   Os Estados‑Membros podem prever exceções ou limitações ao direito de reprodução previsto no artigo 2.o nos seguintes casos:

[…]

b)

Em relação às reproduções em qualquer meio efetuadas por uma pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos, desde que os titulares dos direitos obtenham uma compensação equitativa que tome em conta a aplicação ou a não aplicação de medidas de caráter tecnológico, referidas no artigo 6.o, à obra ou outro material em causa;

[…]

5.   As exceções e limitações contempladas nos n.os 1, 2, 3 e 4 só se aplicarão em certos casos especiais que não entrem em conflito com uma exploração normal da obra ou outro material e não prejudiquem irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito.»

Direito austríaco

7

O artigo 15.o da Urheberrechtsgesetz (Lei relativa ao Direito de Autor), de 9 de abril de 1936 (BGBl. 111/1936), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «UrhG»), dispõe:

«O autor tem o direito exclusivo de reproduzir a obra, independentemente do processo utilizado e da quantidade reproduzida, de maneira provisória ou permanente.»

8

O artigo 17.o, n.o 1, da UrhG tem a seguinte redação:

«O autor tem o direito exclusivo de difundir a obra através de radiodifusão ou de maneira semelhante.»

9

Nos termos do artigo 18.o‑A, n.o 1, da UrhG:

«O autor tem o direito exclusivo de colocar a obra à disposição do público, por fio ou sem fio, de maneira a permitir a qualquer pessoa aceder à obra a partir de um local e num momento que ele escolhe individualmente.»

10

O artigo 42.o da UrhG prevê:

«[…]

(4)   Qualquer pessoa singular pode fazer reproduções de uma obra em suportes diferentes dos referidos no n.o 1, para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos.

(5)   Sob reserva do disposto nos n.os 6 e 7, uma reprodução não é efetuada para uso próprio ou privado quando é feita para colocar a obra à disposição do público através do exemplar reproduzido ou quando o modelo utilizado para esse fim foi produzido ou colocado à disposição do público de maneira manifestamente ilícita. Os exemplares produzidos para uso próprio ou privado não podem ser utilizados para tornar a obra acessível ao público.

[…]»

11

O artigo 76.o‑A da UrhG dispõe:

«(1)   Quem, por meio de radiodifusão ou por um meio equivalente, transmitir sons ou imagens (organismo de radiodifusão na aceção do artigo 17.o) tem o direito exclusivo, com as limitações previstas na lei, de difundir a emissão em simultâneo através de outro equipamento de emissão e de utilizar a emissão para efeitos de uma comunicação ao público na aceção do artigo 18.o, n.o 3, em locais acessíveis ao público com entrada paga; o organismo de radiodifusão tem igualmente o direito exclusivo de fixar a emissão num suporte de imagem ou de som (em particular também sob a forma de fotografia), de a reproduzir, de a difundir e de a utilizar para pôr à disposição do público. Por reprodução entende‑se também a utilização de uma comunicação efetuada com o auxílio de um suporte de imagem ou de som para a transmitir a outro suporte.

(2)   Os suportes de imagem ou de som reproduzidos ou difundidos em violação do n.o 1 não podem ser utilizados para fins de radiodifusão ou de comunicação ao público.

(3)   Qualquer pessoa singular pode, para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos, fixar uma radiodifusão num suporte de imagem ou de som e reproduzi‑la em vários exemplares […]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

A Ocilion, uma sociedade de direito austríaco, oferece a clientes comerciais, que podem ser operadores de rede, telefónica ou de eletricidade por exemplo, ou estabelecimentos, tais como hotéis ou estádios (a seguir «operadores de rede»), um serviço IPTV, cujo acesso está reservado aos utilizadores finais da rede que são pessoas singulares, clientes dos operadores de rede. Este serviço, que diz respeito, nomeadamente, aos programas televisivos cujos direitos de retransmissão são detidos pela Seven.One e o., assume a forma quer de uma solução local, através da qual a Ocilion disponibiliza aos operadores de rede o hardware e o software necessários, que são geridos por esses operadores, mas para os quais ela assegura uma assistência técnica, quer de uma solução de alojamento na nuvem (cloud), que é diretamente gerida pela Ocilion.

13

O referido serviço da Ocilion permite não só a retransmissão simultânea dos programas televisivos da Seven.One e o. mas oferece igualmente a possibilidade de ver em diferido esses programas a partir de um gravador de vídeo em linha. Este permite gravar pontualmente uma emissão em particular, mas também gravar todos os programas selecionados pelo utilizador final, cliente do operador de rede, permitindo uma visualização em diferido, até sete dias após a difusão inicial dos programas em causa.

14

Quer se trate da solução local ou da solução de alojamento na nuvem, a iniciativa de qualquer gravação é tomada, na prática, pelo utilizador final que exerce as funções de gravação em linha e seleciona o conteúdo a gravar. Logo que um programa seja selecionado por um primeiro utilizador, o produto da gravação deve ser disponibilizado a qualquer outro utilizador que deseje ver o conteúdo gravado. Para o efeito, um processo de desduplicação evita que se façam múltiplas cópias para os clientes que programam gravações compatíveis e o acesso ao conteúdo gravado efetua‑se pela atribuição de um número de referência comunicado a cada utilizador pela Ocilion.

15

Quanto à solução local, as convenções‑quadro celebradas entre a Ocilion e os operadores de rede estipulam que estes últimos devem assegurar, pelos seus próprios meios, que eles próprios e os seus clientes possuam direitos suficientes para todos os conteúdos que disponibilizam.

16

Não tendo consentido na comunicação dos seus programas televisivos através do serviço proposto pela Ocilion, a Seven.One e o. consideram que este serviço corresponde a uma retransmissão não autorizada de conteúdos sobre os quais detêm direitos exclusivos. Alegam, além disso, que as modalidades de funcionamento do gravador em linha não permitem considerar que as desduplicações que daí resultam estão abrangidas pela exceção dita de «cópia privada», na aceção do artigo 42.o, n.o 4, e do artigo 76.o‑A, n.o 3, da UrhG.

17

Nestas condições, a Seven.One e o. apresentaram um pedido de medidas provisórias destinado a proibir a Ocilion de colocar à disposição dos seus clientes os conteúdos dos seus programas ou de reproduzir esses programas por terceiros, sem o seu consentimento.

18

Tendo este pedido sido, em substância, acolhido em primeira instância e confirmado em sede de recurso, a Ocilion recorreu para o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), o órgão jurisdicional de reenvio.

19

Esse órgão jurisdicional indica, em primeiro lugar, que lhe cabe verificar se as reproduções de conteúdos de emissões realizadas com o auxílio de um gravador de vídeo em linha estão abrangidas pelo regime derrogatório dito de «cópia privada», tanto no que respeita à solução local como no âmbito do alojamento na nuvem.

20

A este respeito, considera que é determinante a questão de saber a quem é imputável a cópia de um conteúdo realizada no âmbito do processo de desduplicação fornecido pela Ocilion. Assim, se esta última dispõe do poder de organização da operação de gravação e do leitor de vídeo em linha, a desduplicação do conteúdo é‑lhe imputável e a aplicação do regime derrogatório dito de «cópia privada» está excluída. Em contrapartida, se a Ocilion se limita a armazenar as cópias realizadas por pessoas singulares, sem propor um serviço de disponibilização de conteúdos, nada impede que se considere que as reproduções realizadas estão abrangidas pelo conceito de «cópia privada».

21

O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, a este respeito, ao Acórdão de 29 de novembro de 2017, VCAST (C‑265/16, EU:C:2017:913), na parte em que este precisa que a circunstância de a própria pessoa em causa possuir os equipamentos, aparelhos ou suportes de reprodução para realizar uma cópia privada não incide sobre o caráter ilícito dessa cópia. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio duvida da pertinência de tal solução no processo principal, tendo em conta as particularidades do serviço oferecido pela Ocilion e, nomeadamente, devido ao facto de esse serviço ultrapassar largamente o de um fornecedor de espaço de armazenamento. Por conseguinte, para evitar que a Diretiva 2001/29 seja contornada, este órgão jurisdicional considera que, para determinar se se trata de uma cópia privada, não se pode atender à questão formal de saber quem tem a iniciativa de realizar a operação de cópia.

22

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o serviço que a Ocilion oferece no local constitui uma comunicação ao público de conteúdos de emissões protegidos, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, pela qual esta empresa deve ser considerada responsável.

23

A este respeito, indica, por um lado, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça não revela claramente se os atos, que não devem ser considerados em si mesmos de transmissão, mas que se limitam a facilitar a transmissão por um terceiro, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação desta disposição. Por outro lado, considera que a jurisprudência resultante do Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456), necessita de ser precisada no que respeita ao conceito de «papel incontornável» que, no caso em apreço, o fornecedor deve desempenhar para se considerar que realiza um ato de «comunicação ao público» na aceção da referida disposição.

24

Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

É compatível com o direito da União uma disposição nacional que, com fundamento no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva [2001/29], permite a exploração de um gravador de vídeo em linha disponibilizado por um fornecedor comercial que

a)

devido ao processo utilizado de desduplicação técnica, não cria uma cópia autónoma do conteúdo programado da emissão para cada gravação iniciada por um utilizador, mas, se o conteúdo em questão já tiver sido armazenado por iniciativa de um outro utilizador, o primeiro a fazer a gravação se limita — a fim de evitar dados redundantes — a fazer uma referenciação que permite ao utilizador seguinte aceder ao conteúdo já armazenado;

b)

dispõe de uma função de replay, graças à qual o programa integral de todos os canais selecionados é gravado permanentemente e fica disponível para acesso durante sete dias, desde que o utilizador faça uma [só] vez a seleção no menu do gravador de vídeo em linha, clicando na caixa do canal correspondente, e

c)

fornece ao utilizador (quer incorporado num serviço de nuvem do fornecedor, quer no âmbito da solução local completa de IPTV disponibilizada pelo fornecedor) o acesso mesmo a conteúdos protegidos das emissões sem o consentimento do titular do direito?

2)

Deve o conceito de «comunicação ao público» que figura no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva [2001/29], ser interpretado no sentido de que realiza essa comunicação um fornecedor comercial de uma solução completa IPTV (local), no âmbito da qual, além de software e hardware para receção de programas de televisão pela Internet, também fornece suporte técnico e efetua adaptações correntes do serviço, mas o serviço é executado inteiramente na infraestrutura do cliente, quando o serviço permite ao utilizador o acesso não só a conteúdos de emissões cuja utilização em linha tenha sido consentida pelo respetivo titular do direito, mas também a conteúdo protegidos que não tenham sido objeto da correspondente aquisição de direitos, e o fornecedor […]

a)

pode exercer influência sobre quais os programas de televisão que o utilizador final pode receber através do serviço,

b)

tem conhecimento de que o seu serviço também permite a receção de conteúdos de emissões protegidos sem o consentimento do titular dos direitos, porém

c)

não anuncia essa possibilidade de utilização não autorizada do seu serviço, criando desse modo um incentivo importante para a aquisição do produto, mas, pelo contrário, avisa os seus clientes, na assinatura do contrato, de que é da sua própria responsabilidade obter a concessão dos direitos, e

d)

não cria com a sua atividade um acesso especial a conteúdos de emissões que, sem a sua intervenção, não poderiam ou só dificilmente poderiam ser recebidos?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

25

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o e o artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 devem ser interpretados no sentido de que é suscetível de estar abrangido pela exceção ao direito exclusivo dos autores e dos organismos de radiodifusão de autorizar ou proibir a reprodução de obras protegidas o serviço oferecido por um operador de retransmissão de emissões de televisão em linha a clientes comerciais que permite, a partir de uma solução de alojamento na nuvem ou baseada num servidor disponibilizado no local, por iniciativa dos utilizadores finais desse serviço, uma gravação contínua ou pontual dessas emissões, quando a cópia efetuada pelo primeiro desses utilizadores que selecionaram uma emissão é disponibilizada, pelo operador, a um número indeterminado de utilizadores que pretendem visionar o mesmo conteúdo.

26

A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos, de acordo com o seu sentido habitual na linguagem corrente, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 4 de maio de 2023, Österreichische Datenschutzbehörde e CRIF, C‑487/21, EU:C:2023:369, n.o 19 e jurisprudência referida).

27

Em primeiro lugar, importa desde logo salientar que, nos termos do artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29, os Estados‑Membros podem prever exceções ou limitações ao direito exclusivo de reprodução consagrado no artigo 2.o desta diretiva, «[e]m relação às reproduções em qualquer meio efetuadas por uma pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos, desde que os titulares dos direitos obtenham uma compensação equitativa».

28

Antes de mais, quanto à questão de saber se um serviço como o que está em causa no processo principal constitui uma «reprodução», na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva, o Tribunal de Justiça declarou que este conceito deve ser entendido em sentido amplo, à luz tanto da exigência expressa no considerando 21 desta diretiva, segundo o qual há que dar aos atos abrangidos pelo direito de reprodução uma definição ampla para garantir a segurança jurídica no interior do mercado interno, como da redação do artigo 2.o da referida diretiva, que faz referência, para qualificar a reprodução, a expressões como «diretas ou indiretas», «temporárias ou permanentes», «por quaisquer meios e sob qualquer forma». Além disso, o âmbito de tal proteção dos atos abrangidos pelo direito de reprodução também resulta do objetivo principal da mesma diretiva, que consiste em instaurar um elevado nível de proteção a favor, designadamente, dos autores (Acórdão de 24 de março de 2022, Austro‑Mechana, C‑433/20, EU:C:2022:217, n.o 16).

29

Em seguida, no que respeita mais precisamente à expressão «reproduções em qualquer meio efetuadas», que figura no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva, o Tribunal de Justiça declarou que ela abrange a realização, para fins privados, de cópias de segurança de obras protegidas por direitos de autor num servidor no qual o fornecedor de um serviço de computação na nuvem disponibiliza a um utilizador um espaço de armazenamento (Acórdão de 24 de março de 2022, Austro‑Mechana, C‑433/20, EU:C:2022:217, n.o 33).

30

Com efeito, para poderem invocar a derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva, não é necessário que as pessoas singulares em causa possuam os equipamentos, os aparelhos ou os suportes de reprodução. Pode igualmente ser‑lhes prestado por um terceiro um serviço de reprodução, que constitui a premissa factual necessária para que essas pessoas singulares possam obter cópias privadas (Acórdão de 29 de novembro de 2017, VCAST, C‑265/16, EU:C:2017:913, n.o 35 e jurisprudência referida).

31

Por último, importa sublinhar que, como resulta da redação do artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29, conforme exposto no n.o 27 do presente acórdão, esta disposição só é aplicável quando as reproduções são realizadas por uma pessoa singular não só para uso privado mas também sem fins comerciais diretos ou indiretos.

32

Em segundo lugar, importa recordar que, no que respeita às exceções e limitações previstas, nomeadamente, no artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29, o artigo 5.o, n.o 5, lido em conjugação com o considerando 44 desta diretiva, prevê que as mesmas só se aplicam em certos casos especiais que não entrem em conflito com uma exploração normal da obra ou outro material protegido e não prejudiquem irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito.

33

A este respeito, em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça precisou que, uma vez que as exceções e limitações previstas no artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29 comportam, elas próprias, direitos em benefício dos utilizadores de obras ou de outro material protegido, esta disposição contribui para assegurar um justo equilíbrio entre, por um lado, os direitos e os interesses dos titulares de direitos, que são eles próprios objeto de uma interpretação ampla e, por outro, os direitos e os interesses desses utilizadores (ver, neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2019, Spiegel Online, C‑516/17, EU:C:2019:625, n.o 54).

34

Com efeito, como resulta do considerando 31 da Diretiva 2001/29, a manutenção desse justo equilíbrio é precisamente o objetivo da harmonização efetuada por esta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando, C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.o 64).

35

É à luz do que precede que há que determinar se um serviço, como o prestado pela Ocilion, é suscetível de ser abrangido pela exceção dita de «cópia privada» prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29.

36

Antes de mais, resulta do quadro jurídico nacional apresentado na decisão de reenvio que a República da Áustria fez uso da faculdade que lhe é reconhecida pelo artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 ao prever no artigo 42.o, n.o 4, e no artigo 76.o‑A, n.o 3, da UrhG que qualquer pessoa singular pode efetuar reproduções de uma obra ou fixar uma radiodifusão em suportes para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos.

37

A este respeito, decorre do Acórdão de 29 de novembro de 2017, VCAST (C‑265/16, EU:C:2017:913), que o artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que permite a uma empresa comercial fornecer a particulares um serviço de gravação à distância, na nuvem, de cópias privadas de obras protegidas pelo direito de autor, através de um sistema informático, intervindo ativamente na gravação dessas cópias, sem o consentimento do titular dos direitos.

38

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, todavia, sobre se esta jurisprudência é transponível para um serviço como o prestado pela Ocilion.

39

No processo principal, é pacífico que a Ocilion é uma sociedade que presta os seus serviços no âmbito de uma atividade comercial. Por conseguinte, uma vez que as pessoas coletivas estão, em todo o caso, excluídas do benefício da exceção prevista no referido artigo 5.o, n.o 2, alínea b) (Acórdão de 9 de junho de 2016, EGEDA e o., C‑470/14, EU:C:2016:418, n.o 30), não se pode considerar que esta empresa realiza uma cópia abrangida por tal exceção.

40

A Ocilion sustenta, todavia, que o serviço que oferece se limita a fornecer um instrumento que permite a cada utilizador final, por sua própria iniciativa e em função da programação que ele próprio efetua, visualizar em diferido programas televisivos, tendo em conta que, quando um conteúdo foi selecionado por um primeiro utilizador final, a gravação daí resultante é colocada à disposição dos outros utilizadores finais que pretendam visualizar esse mesmo conteúdo através de um número de referência. Esta empresa deduz daí que a reprodução dos programas televisivos daqui resultante é efetuada por cada utilizador final para fins privados e que, tendo em conta a técnica de desduplicação que utiliza, não causa um prejuízo injustificado aos interesses legítimos dos titulares de direitos exclusivos.

41

Por conseguinte, há que determinar se o artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que a desduplicação das emissões televisivas gerada por um serviço, como o oferecido pela Ocilion, é suscetível de ser abrangida pela exceção dita de «cópia privada».

42

Em primeiro lugar, como salientou o advogado‑geral nos n.os 36 a 38 das suas conclusões, um serviço como o oferecido pela Ocilion caracteriza‑se pela sua dupla funcionalidade. Com efeito, este assenta numa solução IPTV de retransmissão simultânea de emissões televisivas, à qual acresce um instrumento de gravação em linha dessas emissões. Uma vez que a gravação em linha diz respeito às emissões retransmitidas no âmbito da solução IPTV, este serviço não é autónomo, mas depende necessariamente do serviço de retransmissão simultânea assegurado por esta solução.

43

Além disso, a possibilidade de gravar as emissões televisivas retransmitidas representa uma mais‑valia de um serviço como o que está em causa no processo principal, pois permite aceder aos conteúdos em causa em condições diferentes das da sua retransmissão simultânea.

44

Em segundo lugar, resulta da decisão de reenvio que o serviço oferecido pela Ocilion assenta numa técnica que coloca a cópia efetuada por um primeiro utilizador, através dos meios fornecidos por esse prestador, à disposição dos utilizadores finais que pretendam visualizar o conteúdo. Nestas condições, embora seja certo que o próprio utilizador final programa as gravações, o serviço de gravação e de disponibilização da cópia assim realizada não só se baseia nos meios fornecidos pelo prestador como constitui também, como resulta do número anterior, o interesse principal da oferta fornecida.

45

A este respeito, a técnica de desduplicação em causa no processo principal conduz à realização de uma cópia que, longe de estar à disposição exclusiva do primeiro utilizador, se destina a ser acessível, através do sistema oferecido pelo prestador, a um número indeterminado de utilizadores finais, eles próprios clientes dos operadores de rede aos quais o referido prestador disponibiliza essa técnica.

46

Nestas condições, há que constatar, sob reserva das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, que um serviço como o oferecido pela Ocilion, que permite a um número indeterminado de beneficiários com fins comerciais aceder a uma reprodução de uma obra protegida, não está abrangido pela exceção dita de «cópia privada» prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29.

47

Em terceiro lugar, e como salientou o advogado‑geral no n.o 42 das suas conclusões, esta constatação não pode ser infirmada pela necessidade de respeitar o princípio da neutralidade tecnológica, em virtude do qual a lei deve enunciar os direitos e as obrigações das pessoas de maneira genérica, a fim de não privilegiar o recurso a uma tecnologia em detrimento de outra (ver, neste sentido, Acórdão de 24 de março de 2022, Austro‑Mechana, C‑433/20, EU:C:2022:217, n.o 27).

48

A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinhou que a exceção prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 deve tornar possível e assegurar o desenvolvimento e o funcionamento de novas tecnologias, bem como manter um justo equilíbrio entre os direitos e os interesses dos titulares de direitos e dos utilizadores de obras protegidas que pretendam beneficiar dessas tecnologias (Acórdão de 24 de março de 2022, Austro‑Mechana, C‑433/20, EU:C:2022:217, n.os 26 e 27).

49

Todavia, embora se reconheça que o princípio da neutralidade tecnológica requer que a interpretação das disposições do direito da União não limite a inovação e o progresso tecnológico (v., por analogia, Acórdão de 15 de abril de 2021, Eutelsat, C‑515/19, EU:C:2021:273, n.o 48), não é menos certo que a constatação efetuada no n.o 46 do presente acórdão não depende da tecnologia de reprodução utilizada no âmbito do serviço como o que está em causa no processo principal, mas resulta da circunstância de o sistema utilizado pelos operadores de rede permitir a um número indeterminado de pessoas com fins comerciais ter acesso às emissões gravadas, e de esse acesso ser suscetível de causar um prejuízo injustificado aos interesses legítimos dos titulares dos direitos, pelo que a aplicação da exceção dita de «cópia privada» relativa a esse serviço poderia prejudicar o objetivo de manter um justo equilíbrio entre os interesses dos titulares dos direitos de autor e os dos utilizadores.

50

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 2.o e o artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 devem ser interpretados no sentido de que não está abrangido pela exceção ao direito exclusivo dos autores e dos organismos de radiodifusão de autorizar ou proibir a reprodução de obras protegidas o serviço oferecido por um operador de retransmissão de emissões de televisão em linha a clientes comerciais que permite, a partir de uma solução de alojamento na nuvem ou baseada no hardware e no software necessários disponibilizados localmente, uma gravação contínua ou pontual dessas emissões, por iniciativa dos utilizadores finais desse serviço, quando a cópia efetuada por um primeiro utilizador que selecionou uma emissão é disponibilizada, pelo operador, a um número indeterminado de utilizadores que pretendem visualizar o mesmo conteúdo.

Quanto à segunda questão

51

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que são constitutivas de uma «comunicação ao público», no sentido desta norma, a disponibilização e a manutenção de um processo de gravação vídeo em linha que dá acesso a conteúdos protegidos, quando o fornecedor exerce uma certa influência na escolha dos conteúdos aos quais o utilizador tem acesso, este último tem acesso a esses conteúdos sem a intervenção do fornecedor o qual, embora ciente de que o seu serviço pode ser utilizado para aceder a conteúdos de emissões protegidos sem o consentimento dos seus autores, não promove esse aspeto do seu serviço.

52

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

53

Como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, em virtude desta disposição, os autores dispõem de um direito de natureza preventiva que lhes permite proibir qualquer comunicação ao público que eventuais utilizadores finais ou clientes comerciais possam pretender fazer (Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 44 e jurisprudência referida).

54

Uma vez que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29 não define o conceito de «comunicação ao público», há que determinar o sentido e o alcance deste conceito à luz dos objetivos prosseguidos por esta diretiva e à luz do contexto no qual esta disposição se insere (Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 45 e jurisprudência referida).

55

A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que o referido conceito deve, como sublinha o considerando 23 da Diretiva 2001/29, ser entendido em sentido lato, como abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de origem da comunicação e, assim, qualquer transmissão ou retransmissão, dessa natureza, de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão. Com efeito, resulta dos considerandos 4, 9 e 10 desta diretiva que esta tem por principal objetivo instituir um elevado nível de proteção dos autores, que lhes permita obter uma remuneração adequada pela utilização das suas obras, em particular pela sua comunicação ao público (Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 46 e jurisprudência referida).

56

Em especial, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, o conceito de «comunicação ao público», na aceção deste artigo 3.o, n.o 1, associa dois elementos cumulativos, a saber, um ato de comunicação de uma obra, bem como a comunicação desta última a um público, e implica uma apreciação individualizada (Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 47 e jurisprudência referida).

57

Quanto ao conceito de «ato de comunicação», importa sublinhar que esse ato visa qualquer transmissão de obras protegidas, independentemente do meio ou procedimento técnico utilizado (Acórdão de 29 de novembro de 2017, VCAST, C‑265/16, EU:C:2017:913, n.o 42 e jurisprudência referida).

58

Além disso, para efeitos da apreciação individualizada recordada no n.o 56 do presente acórdão, importa ter em conta vários critérios complementares, de natureza não autónoma e interdependentes. Na medida em que estes critérios podem, em diferentes situações concretas, estar presentes com uma intensidade muito variável, há que aplica‑los tanto individualmente como na sua interação recíproca (Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 48 e jurisprudência referida).

59

Entre estes critérios, o Tribunal de Justiça salientou o papel incontornável desempenhado pelo fornecedor e o caráter deliberado da sua intervenção. Com efeito, este pratica um ato de comunicação ao intervir, com pleno conhecimento das consequências do seu comportamento, para dar aos seus clientes acesso a uma obra protegida, designadamente quando, sem esta intervenção, estes clientes não poderiam, em princípio, desfrutar da obra difundida (v., neste sentido, Acórdão de 20 de abril de 2023, Blue Air Aviation, C‑775/21 e C‑826/21, EU:C:2023:307, n.o 49 e jurisprudência referida).

60

Em contrapartida, o considerando 27 da Diretiva 2001/29 precisa que «[a] mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na aceção [desta] diretiva».

61

No caso em apreço, como é mencionado no n.o 12 do presente acórdão, resulta da decisão de reenvio que a Ocilion fornece aos operadores de rede, no âmbito da sua solução local, o hardware e o software necessários, bem como assistência técnica para assegurar a manutenção.

62

Ora, como salientou o advogado‑geral nos n.os 68 a 70 das suas conclusões, na falta de qualquer ligação entre o fornecedor do hardware e do software necessários e os utilizadores finais, um serviço como o que está em causa no processo principal não pode ser considerado um ato de comunicação, no sentido do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, realizado pela Ocilion.

63

Com efeito, por um lado, um prestador como a Ocilion não dá aos utilizadores finais acesso a uma obra protegida. É certo que fornece aos operadores de rede o hardware e o software necessários a este respeito, mas estes últimos são os únicos que concedem aos utilizadores finais o acesso às obras protegidas.

64

Por um lado, dado que são os operadores de rede a dar acesso a obras protegidas pelos utilizadores finais, em conformidade com modalidades previamente definidas entre eles, o prestador que fornece o hardware e o software necessários aos operadores de rede para dar acesso a essas obras não tem um «papel incontornável», no sentido da jurisprudência resultante do acórdão citado no n.o 59 do presente acórdão, de modo que não se pode considerar que realizou um ato de comunicação, no sentido da Diretiva 2001/29. Com efeito, embora a utilização desse hardware e software, no quadro da solução local, pareça necessária para que os utilizadores finais possam visualizar em diferido as emissões de televisão, não resulta das indicações que figuram nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o prestador que fornece esse hardware e software intervenha para dar aos utilizadores finais acesso a essas obras protegidas.

65

Neste contexto, o eventual conhecimento por tal prestador do facto de o seu serviço poder ser utilizado para aceder a conteúdos de emissão protegidos sem o consentimento dos seus autores não basta, por si só, para considerar que realiza um ato de comunicação, no sentido do artigo 3.o da Diretiva 2001/29.

66

De resto, não resulta da decisão de reenvio que a assistência técnica oferecida pela Ocilion vá além da manutenção e da adaptação do hardware e do software necessários fornecidos e permita a esse prestador influenciar a escolha dos programas televisivos que o utilizador final pode visualizar em diferido.

67

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que não constitui uma «comunicação ao público», no sentido desta disposição, o fornecimento, por um operador de retransmissão de emissões de televisão em linha, ao seu cliente comercial, do hardware e do software necessários, incluindo a assistência técnica, que permitem a esse cliente dar acesso em diferido, aos seus próprios clientes, a emissões de televisão em linha, mesmo sabendo que o seu serviço pode ser utilizado para aceder a conteúdos de emissões protegidos sem o consentimento dos seus autores.

Quanto às despesas

68

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o e o artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação,

devem ser interpretados no sentido de que:

não está abrangido pela exceção ao direito exclusivo dos autores e dos organismos de radiodifusão de autorizar ou proibir a reprodução de obras protegidas o serviço oferecido por um operador de retransmissão de emissões de televisão em linha a clientes comerciais que permite, a partir de uma solução de alojamento na nuvem ou baseada no hardware e no software necessários disponibilizados localmente, uma gravação contínua ou pontual dessas emissões, por iniciativa dos utilizadores finais desse serviço, quando a cópia efetuada por um primeiro utilizador que selecionou uma emissão é disponibilizada, pelo operador, a um número indeterminado de utilizadores que pretendem visualizar o mesmo conteúdo.

 

2)

O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29

deve ser interpretado no sentido de que:

não constitui uma «comunicação ao público», no sentido desta disposição, o fornecimento, por um operador de retransmissão de emissões de televisão em linha, ao seu cliente comercial, do hardware e do software necessários, incluindo a assistência técnica, que permitem a esse cliente dar acesso em diferido aos seus próprios clientes a emissões de televisão em linha, mesmo sabendo que o seu serviço pode ser utilizado para aceder a conteúdos de emissões protegidos sem o consentimento dos seus autores.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.