ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

12 de janeiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor — Artigo 4.o, n.o 2 — Avaliação do caráter abusivo das cláusulas contratuais — Exclusão das cláusulas relativas ao objeto principal do contrato — Cláusula que prevê o pagamento de honorários de advogado de acordo com o princípio do valor por hora — Artigo 6.o, n.o 1 — Poderes do juiz nacional perante uma cláusula qualificada de “abusiva”»

No processo C‑395/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), por Decisão de 23 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 28 de junho de 2021, no processo

D. V.

contra

M. A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, L. S. Rossi, J.‑C. Bonichot, S. Rodin e O. Spineanu‑Matei (relatora), juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de D.V., por A. Kakoškina, advokatė,

em representação do Governo lituano, por K. Dieninis, S. Grigonis e V. Kazlauskaitė‑Švenčionienė, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por J. Möller, U. Bartl e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. Jokubauskaitė e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 22 de setembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.o, n.o 1, 4.o, n.o 2, 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), conforme alterada pela Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011 (JO 2011, L 304, p. 64) (a seguir «Diretiva 93/13»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe D.V., advogado, a M.A, seu cliente.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

4

O artigo 4.o dessa diretiva prevê:

«1.   Sem prejuízo do artigo 7.o, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

2.   A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

5

Nos termos do artigo 5.o da referida diretiva:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. […]»

6

O artigo 6.o, n.o 1, da mesma diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

7

O artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 estabelece:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

8

O artigo 8.o desta diretiva tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado [FUE], para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor.»

Direito lituano

Código Civil

9

Sob o título «Cláusulas abusivas nos contratos celebrados por consumidores», o artigo 6.2284 do Lietuvos Respublikos civilinio kodekso patvirtinimo, įsigaliojimo ir įgyvendinimo įstatymas Nr. VIII‑1864 (Lei VIII‑1864, sobre a Aprovação, a Entrada em Vigor e a Implementação do Código Civil Lituano), de 18 de julho de 2000 (Žin., 2000, n.o 74‑2262), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código Civil»), transpõe a Diretiva 93/13 para o direito nacional. De acordo com este artigo:

«[…]

2.   São declaradas abusivas as cláusulas dos contratos celebrados por consumidores que não tenham sido individualmente discutidas pelas partes e com as quais o equilíbrio dos direitos e das obrigações das partes tenha sido efetivamente posto em causa em detrimento do consumidor devido à violação da exigência de boa‑fé.

[…]

6.   Qualquer cláusula escrita de um contrato celebrado por consumidores deve ser redigida de maneira clara e compreensível. As cláusulas contrárias a esta exigência são consideradas abusivas.

7.   As cláusulas que descrevem o objeto do contrato celebrado por consumidores, bem como as ligadas à conformidade de um bem vendido ou de um serviço prestado e o seu preço, não devem ser apreciadas em relação ao caráter abusivo, desde que essas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível.

8.   Quando o órgão jurisdicional declara uma cláusula (cláusulas) contratual abusiva (abusivas), essa cláusula (essas cláusulas) é (são) nula(s) a contar da celebração do contrato, mas as restantes cláusulas do contrato continuam a ser obrigatórias para as partes, se for possível prosseguir a execução do contrato após a anulação das cláusulas abusivas.»

Lei IX‑2066, Relativa à Profissão de Advogado

10

O artigo 50.o da Lietuvos Respublikos advokatūros įstatymas Nr. IX‑2066 (Lei IX‑2066, Relativa à Profissão de Advogado), de 18 de março de 2004 (Žin., 2004, n.o 50‑1632), sob a epígrafe «Remuneração dos serviços jurídicos prestados por um advogado», enuncia:

«1.   Os clientes pagam ao advogado os honorários acordados no âmbito dos serviços jurídicos prestados nos termos do contrato.

[…]

3.   Para determinar o montante dos honorários devidos ao advogado a título de contrapartida de serviços jurídicos, há que ter em conta o grau de complexidade do processo, as qualificações e a experiência profissional do advogado, a situação financeira do cliente, e outras circunstâncias relevantes.»

Despacho de 2 de abril de 2004

11

A Lietuvos Respublikos teisingumo ministro įsakymas Nr. 1R‑85 „Dėl Rekomendacijų dėl civilinėse bylose priteisetino užmokesčio už advokato ar advokato padėjėjo teikiamą teisinę pagalbą (paslaugas) maksimalaus dydžio patvirtinimo (Despacho n.o 1R-85 do Ministro da Justiça da República da Lituânia, sobre a Aprovação das Orientações Relativas ao Montante Máximo dos Honorários a Pagar nos Processos Cíveis pela Assistência Jurídica — Prestação de Serviços — de um Advogado ou Advogado‑Estagiário), de 2 de abril de 2004 (Žin., 2004, n.o 54‑1845), na versão aplicável a partir de 20 de março de 2015 (a seguir «Despacho de 2 de abril de 2004»), estabeleceu recomendações sobre o montante máximo devido a um advogado ou a um advogado estagiário pela assistência prestada em processos cíveis. Estas recomendações foram aprovadas pela Ordem dos Advogados lituana, em 26 de março de 2004, e constituem o fundamento que permite aplicar as regras do Código de Processo Civil que regulam a fixação das despesas.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

M.A., enquanto consumidor, celebrou, durante o período compreendido entre 11 de abril e 29 de agosto de 2018, cinco contratos de prestação de serviços jurídicos a título oneroso com D.V., na sua qualidade de advogado, a saber, em 11 de abril de 2018, dois contratos em processos cíveis relativos, respetivamente, à compropriedade de bens e à residência de filhos menores, às modalidades de comunicação e à fixação de pensão de alimentos, em 12 de abril e em 8 de maio de 2018, dois contratos relativos à representação de M.A. perante a esquadra da polícia e o Ministério Público do distrito de Kaunas (Lituânia) e, em 29 de agosto de 2018, um contrato que tinha por objeto a defesa dos interesses de M.A. no âmbito de um processo de divórcio.

13

Nos termos do artigo 1.o de cada um desses contratos, o advogado comprometia‑se a dar consultas jurídicas verbais e/ou por escrito, a preparar projetos de documentos jurídicos, a efetuar a análise jurídica dos documentos e a representar o cliente perante diversas entidades, realizando os atos conexos.

14

Em cada um dos referidos contratos os honorários eram fixados no montante de 100 euros «por cada hora de consulta ou de prestação de serviços jurídicos ao cliente» (a seguir «cláusula relativa ao preço»). Os contratos estipulavam que «uma parte dos honorários indicados […] é imediatamente devida, após apresentação pelo advogado de uma fatura de prestação de serviços jurídicos, tendo em conta as horas de consulta ou de prestação de serviços jurídicos efetuadas» (a seguir «cláusula relativa às modalidades de pagamento»).

15

Além disso, M.A. pagou adiantamentos de honorários no montante total de 5600 euros.

16

D.V. prestou serviços jurídicos entre abril e dezembro de 2018 e entre janeiro e março de 2019, e emitiu faturas para a totalidade dos serviços prestados em 21 e 26 de março de 2019.

17

Não tendo recebido todos os honorários exigidos, D.V. intentou, em 10 de abril de 2019, no Kauno apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância de Kaunas, Lituânia), uma ação destinada a obter a condenação de M.A. no pagamento de um montante de 9900 euros a título de prestações jurídicas realizadas, e de um montante de 194,30 euros a título de despesas incorridas no âmbito da execução dos contratos, acrescidos de juros anuais que ascendem a 5 % das somas devidas, calculados a partir da data da propositura da ação e até à execução da sentença.

18

Por Decisão de 5 de março de 2020, este órgão jurisdicional considerou parcialmente procedente o pedido de D.V. Considerou que, ao abrigo dos contratos celebrados, tinham sido prestados serviços jurídicos num montante total de 12900 euros. Todavia, considerou que as cláusulas relativas ao preço total dos cinco contratos eram abusivas e reduziu para metade os honorários exigidos, fixando‑os em 6450 euros. Por conseguinte, o Kauno apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância de Kaunas) condenou M.A. no pagamento de um montante de 1044,33 euros, tendo em conta a quantia já paga, acrescida de juros anuais à taxa de 5 %, calculados a partir da propositura da ação e até à execução da sentença, e no montante de 12 euros a título de despesas. D.V. foi condenada a pagar a M.A. 360 euros a título de despesas.

19

Por Despacho de 15 de junho de 2020, o Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas, Lituânia) negou provimento ao recurso interposto por D.V., em 30 de abril de 2020.

20

Em 10 de setembro de 2020, D.V. interpôs recurso de cassação desse despacho no Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), o órgão jurisdicional de reenvio.

21

Este órgão jurisdicional interroga‑se, em substância, sobre duas problemáticas relativas, a primeira, à exigência de transparência das cláusulas em relação ao objeto principal dos contratos de prestação de serviços jurídicos e, a segunda, aos efeitos da declaração do caráter abusivo de uma cláusula que fixa o preço desses serviços.

22

Quanto à primeira destas problemáticas, o referido órgão jurisdicional examina, por um lado, a questão de saber se uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos, que não foi objeto de negociação individual e que tem por objeto o preço desses serviços e as suas modalidades de cálculo, como a cláusula relativa ao preço, é abrangida pelo artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13.

23

Considerando que é esse o caso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por outro lado, sobre a exigência de transparência que uma cláusula relativa ao objeto principal do contrato deve cumprir para escapar à avaliação do seu caráter abusivo. A este respeito, esse órgão jurisdicional afirma que, embora a cláusula relativa ao preço esteja formulada claramente do ponto de vista gramatical, é possível duvidar que seja compreensível, uma vez que o consumidor médio não está em condições de compreender as suas consequências económicas, mesmo tendo em conta as outras cláusulas dos contratos em causa, a saber, a cláusula relativa às modalidades de pagamento, que não prevê a apresentação pelo advogado de relatórios sobre os serviços prestados, nem a periodicidade do pagamento destes.

24

Ora, o referido órgão jurisdicional recorda que, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a informação, antes da celebração do contrato, sobre as condições contratuais e as consequências dessa celebração é de importância fundamental para um consumidor, porque é, nomeadamente, com base nesta informação que ele decide se se deseja vincular às condições redigidas previamente pelo profissional (Acórdão de 21 de março de 2013, RWE Vertrieb, C‑92/11, EU:C:2013:180, n.o 44).

25

Embora admitindo a natureza específica dos contratos em causa no processo principal e a dificuldade de prever o número de horas necessário para prestar serviços jurídicos, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se é razoavelmente possível exigir a um profissional que mencione um preço indicativo para esses serviços e se essa informação deve figurar nesses contratos. Põe-se igualmente a questão de saber se a falta de informações pré‑contratuais podia ser compensada durante a execução dos referidos contratos e se a circunstância de o preço só se tornar certo após a representação assegurada pelo advogado num determinado processo podia constituir um elemento útil nessa análise.

26

Quanto à segunda destas problemáticas, esse órgão jurisdicional precisa que o artigo 6.2284, n.o 6, do Código Civil assegura uma proteção mais elevada do que a garantida pela Diretiva 93/13, na medida em que a falta de transparência de uma cláusula contratual é suficiente para que seja declarada abusiva, sem que se deva proceder ao seu exame à luz do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva. Por conseguinte, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre os efeitos que o direito da União atribui à declaração do caráter abusivo de uma cláusula.

27

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que a invalidação da cláusula relativa ao preço deve acarretar a nulidade dos contratos de prestação de serviços jurídicos e o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se essas cláusulas nunca tivessem existido. Ora, no caso em apreço, isso conduziria a um enriquecimento injustificado do consumidor e a uma situação injusta em relação ao profissional que forneceu integralmente essas prestações de serviços. Por outro lado, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se uma eventual redução do custo das referidas prestações não prejudicaria o efeito dissuasivo prosseguido pelo artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.

28

Nestas condições, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Deve o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que a expressão “objeto principal do contrato” abrange uma cláusula — que não foi individualmente negociada e que figura num contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um empresário (advogado) e um consumidor — relativa ao custo e à forma como este é calculado?

2.

Deve a referência no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 ao caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual ser interpretada no sentido de que basta especificar na cláusula do contrato relativa ao custo (que fixa o custo dos serviços efetivamente prestados com base num valor por hora) o montante dos honorários por hora devidos ao advogado?

3.

Em caso de resposta negativa à segunda questão: deve a exigência de transparência ser interpretada no sentido de que abrange a obrigação de o advogado indicar no contrato o custo dos serviços cujos valores exatos podem ser claramente definidos e especificados antecipadamente, ou deve também ser especificado o custo indicativo dos serviços (um orçamento preliminar pelos serviços jurídicos prestados), caso seja impossível prever o número (ou a duração) de ações específicas e os respetivos honorários, no momento da celebração do contrato, e indicar os riscos que podem conduzir a um aumento ou a uma diminuição do custo? No âmbito da apreciação da conformidade da cláusula contratual respeitante ao custo com a exigência de transparência, é relevante saber se a informação relativa ao custo dos serviços jurídicos e à forma como este é calculado é fornecida ao consumidor através de meios adequados ou consta do próprio contrato de prestação de serviços jurídicos? É possível compensar a falta de informação nas relações pré‑contratuais com informação fornecida durante a execução do contrato? A apreciação da conformidade da cláusula contratual com a exigência de transparência é afetada pelo facto de o custo final dos serviços jurídicos prestados só ser conhecido após a prestação destes ter terminado? No âmbito da apreciação da conformidade da cláusula contratual relativa ao custo com a exigência de transparência, é relevante que o contrato não preveja a apresentação periódica de relatórios do advogado sobre os serviços prestados ou a apresentação periódica de faturas ao consumidor, que permitiriam ao consumidor tomar em tempo útil uma decisão de recusa da prestação dos serviços jurídicos ou de alteração do preço do contrato?

4.

Caso o órgão jurisdicional nacional decida que a cláusula contratual que fixa o custo dos serviços efetivamente prestados com base num valor por hora não está redigida de maneira clara e compreensível, como exige o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, deve apreciar‑se se esta cláusula é abusiva na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva (ou seja, no momento da apreciação do caráter eventualmente abusivo da cláusula contratual, deve verificar-se se esta cláusula dá origem a um “desequilíbrio significativo” em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes no contrato) ou, tendo embora em conta que essa cláusula abrange informação essencial do contrato, o simples facto de a cláusula relativa ao custo não ser transparente é suficiente para que seja considerada abusiva?

5.

O facto de, quando a cláusula contratual relativa ao custo tiver sido considerada abusiva, o contrato de prestação de serviços jurídicos não ser vinculativo, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, significa que é necessário restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse? O restabelecimento de tal situação significa que o consumidor não tem a obrigação de pagar pelos serviços já prestados?

6.

Caso a natureza de um contrato de prestação de serviços a título oneroso torne impossível o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse (os serviços já foram prestados), a fixação da remuneração pelos serviços prestados pelo advogado é contrária ao objetivo do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13? Em caso de resposta negativa a esta questão, o equilíbrio real através do qual é restabelecida a igualdade das partes no contrato seria alcançado: (i) se o advogado fosse pago pelos serviços prestados ao valor por hora previsto no contrato; (ii) se o advogado fosse pago pelo custo mínimo dos serviços jurídicos (por exemplo, o previsto num ato jurídico nacional), nomeadamente, recomendações sobre o montante máximo dos honorários pela assistência prestada por um advogado; (iii) se o advogado fosse pago num montante razoável fixado judicialmente, tendo em conta a complexidade do caso, as qualificações e experiência do advogado, a situação financeira do cliente e outras circunstâncias relevantes?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

29

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, na aceção desta disposição, deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor que não foi objeto de negociação individual e que fixa o preço dos serviços prestados segundo o princípio do valor por hora é abrangida pelo «objeto principal do contrato».

30

A este respeito, há que recordar que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 estabelece uma exceção ao mecanismo de fiscalização substancial das cláusulas abusivas, como previsto no âmbito do sistema de proteção dos consumidores instituído por esta diretiva, e que, consequentemente, esta disposição deve ser objeto de interpretação estrita. Além disso, os termos «objeto principal do contrato», que figura na referida disposição, deve normalmente ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 34 e jurisprudência referida).

31

No que diz respeito à categoria de cláusulas contratuais abrangidas pelo conceito de «objeto principal do contrato», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, o Tribunal de Justiça declarou que essas cláusulas devem ser entendidas como as que fixam as prestações essenciais deste contrato e que, como tais, o caracterizam. Em contrapartida, as cláusulas que revestem caráter acessório relativamente às que definem a própria essência da relação contratual não podem ser abrangidas pelo conceito de «objeto principal do contrato» [v., nomeadamente, Acórdãos de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.os 35 e 36, e de 22 de setembro de 2022, Vicente (Ação para pagamento de honorários de advogado), C‑335/21, EU:C:2022:720, n.o 78].

32

No caso em apreço, a cláusula relativa ao preço tem por objeto a remuneração dos serviços jurídicos, estabelecida segundo um valor por hora. Tal cláusula, que determina a obrigação do mandante de pagar os honorários do advogado e indica a sua tabela, faz parte das cláusulas que definem a própria essência da relação contratual, sendo esta relação precisamente caracterizada pela prestação remunerada de serviços jurídicos. Por conseguinte, é abrangida pelo «objeto principal do contrato», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13. A sua avaliação pode, além disso, respeitar à «adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os […] serviços a fornecer em contrapartida, por outro», na aceção desta disposição.

33

Esta interpretação é válida independentemente do facto, mencionado pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua primeira questão prejudicial, de a referida cláusula não ter sido negociada individualmente. Com efeito, quando uma cláusula contratual faz parte das que definem a própria essência da relação contratual, tal sucede tanto no caso de essa cláusula ter sido objeto de uma negociação individual como no caso de essa negociação não ter ocorrido.

34

Tendo em conta todas as considerações expostas, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que é abrangida por esta disposição uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor que fixa o preço dos serviços prestados segundo o princípio do valor por hora.

Quanto à segunda e terceira questões

35

Com a segunda e terceira questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que cumpre a exigência de redação clara e compreensível, na aceção desta disposição, uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos, celebrado entre um advogado e um consumidor, que fixa o preço desses serviços segundo o princípio do valor por hora, sem incluir outras precisões ou informações para lá da taxa horária praticada. Em caso de resposta negativa, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta quais as informações a comunicar ao consumidor na situação em que é impossível prever o número efetivo de horas necessárias para prestar os serviços que são objeto desse contrato e se a falta dessas informações no âmbito da relação pré‑contratual pode ser compensada durante a execução do referido contrato.

36

Em primeiro lugar, quanto ao alcance da exigência de transparência das cláusulas contratuais, conforme resulta do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, o Tribunal de Justiça sublinhou que esta exigência, que figura também no artigo 5.o desta diretiva, não pode ficar reduzida apenas ao caráter compreensível das mesmas nos planos formal e gramatical, mas que, pelo contrário, dado que o sistema de proteção instituído pela referida diretiva assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade face ao profissional, no que respeita designadamente ao nível de informação, esta exigência de redação clara e compreensível das cláusulas contratuais e, logo, de transparência, imposta pela mesma diretiva, deve ser entendida de maneira extensiva (v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.os 46 e 50 e jurisprudência referida).

37

A exigência segundo a qual uma cláusula contratual deve ser redigida de maneira clara e compreensível deve ser entendida como impondo que o contrato exponha com transparência o funcionamento concreto do mecanismo a que a cláusula em questão se reporta e, sendo caso disso, a relação entre este mecanismo e o estabelecido por outras cláusulas, de modo que esse consumidor possa avaliar, com fundamento em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas que daí decorrem para ele (Acórdãos de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 45, e de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 67 e jurisprudência referida).

38

Por conseguinte, a análise da questão de saber se uma cláusula como a que está em causa no processo principal é «clara e compreensível», na aceção da Diretiva 93/13, deve ser efetuada pelo juiz nacional à luz de todos os elementos factuais pertinentes. Especialmente, incumbe a este juiz verificar, tendo em conta as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato, se foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de ter incidência no alcance do seu compromisso que lhe permitam avaliar as consequências financeiras do mesmo (v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 52 e jurisprudência referida).

39

No que respeita, em segundo lugar, ao momento em que esses elementos devem ser dados a conhecer ao consumidor, o Tribunal de Justiça declarou que o fornecimento, antes da celebração do contrato, da informação relativa às condições contratuais e às consequências dessa celebração é de importância fundamental para o consumidor. É, nomeadamente, com base nesta informação que este decide se deseja vincular‑se às condições previamente redigidas pelo profissional (Acórdão de 9 de julho de 2020, Ibercaja Banco, C‑452/18, EU:C:2020:536, n.o 47 e jurisprudência referida).

40

No caso em apreço, há que observar que, como precisa o órgão jurisdicional de reenvio, a cláusula relativa ao preço limita‑se a indicar que os honorários a receber pelo profissional ascendem a um montante de 100 euros por cada hora de serviços jurídicos prestados. Esse mecanismo de fixação do preço não permite, na falta de qualquer outra informação fornecida pelo profissional, a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, avaliar as consequências financeiras que decorrem dessa cláusula, a saber, o montante total a pagar por esses serviços.

41

É certo que, tendo em conta a natureza dos serviços objeto de um contrato de prestação de serviços jurídicos, é muitas vezes difícil, ou mesmo impossível, para o profissional prever, aquando da celebração do contrato, o número exato de horas necessárias para prestar esses serviços e, consequentemente, o custo total efetivo destes.

42

Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou que o cumprimento, por um profissional, da exigência de transparência, prevista nos artigos 4.o, n.o 2, e 5.o da Diretiva 93/13, deve ser apreciado em relação aos elementos de que esse profissional dispunha no momento da celebração do contrato que celebrou com o consumidor (Acórdão de 9 de julho de 2020, Ibercaja Banco, C‑452/18, EU:C:2020:536, n.o 49).

43

Todavia, embora não se possa exigir a um profissional que informe o consumidor sobre as consequências financeiras finais do seu compromisso, que dependem de acontecimentos futuros, imprevisíveis e independentes da vontade desse profissional, não deixa de ser verdade que as informações que está obrigado a comunicar antes da celebração do contrato devem permitir ao consumidor tomar a sua decisão com prudência e com pleno conhecimento, por um lado, da possibilidade de que esses eventos ocorram e, por outro, das consequências que podem acarretar relativamente à duração da prestação de serviços jurídicos em causa.

44

Estas informações, que podem variar em função, por um lado, do objeto e da natureza das prestações previstas no contrato de serviços jurídicos e, por outro, das regras profissionais e deontológicas aplicáveis, devem conter indicações que permitam ao consumidor apreciar o custo total aproximado desses serviços. Trata‑se da estimativa do número previsível ou mínimo de horas necessárias para prestar um determinado serviço ou o compromisso de enviar, com intervalos razoáveis, faturas ou relatórios periódicos que indiquem o número de horas de trabalho prestadas. Cabe ao juiz nacional, como foi recordado no n.o 38 do presente acórdão, avaliar, tendo em conta todos os elementos pertinentes que rodeiam a celebração desse contrato, se as informações comunicadas pelo profissional antes da celebração do contrato permitiram ao consumidor tomar a sua decisão com prudência e com pleno conhecimento das consequências financeiras que a celebração do referido contrato implicava.

45

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que não cumpre a exigência de redação clara e compreensível, na aceção desta disposição, uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor que fixa o preço desses serviços segundo o princípio do valor por hora sem que sejam comunicadas ao consumidor, antes da celebração do contrato, informações que lhe permitam tomar a sua decisão com prudência e total conhecimento das consequências económicas que a celebração desse contrato acarreta.

Quanto à quarta questão

46

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, que fixa, segundo o princípio do valor por hora, o preço desses serviços e que é, assim, abrangida pelo objeto principal desse contrato, deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não cumprir a exigência de transparência prevista no artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva.

47

A este respeito, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou, no que toca ao artigo 5.o da Diretiva 93/13, que o caráter transparente de uma cláusula contratual constitui um dos elementos a ter em conta no âmbito da avaliação do caráter abusivo dessa cláusula que cabe ao juiz nacional efetuar nos termos do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva. No âmbito desta apreciação, incumbe a esse órgão jurisdicional avaliar, à luz de todas as circunstâncias do processo, num primeiro momento, o possível desrespeito da exigência de boa‑fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, na aceção desta última disposição (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 49 e jurisprudência referida).

48

Como resulta da jurisprudência referida no n.o 36 do presente acórdão, a exigência de transparência das cláusulas contratuais tem o mesmo alcance nos termos do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 e nos termos do artigo 5.o da mesma (v. também, neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 69). Por conseguinte, não há que tratar diferentemente as consequências da falta de transparência de uma cláusula contratual consoante diga respeito ao objeto principal do contrato ou a outro aspeto deste.

49

Embora resulte da jurisprudência recordada no n.o 47 do presente acórdão que a apreciação do caráter abusivo de uma cláusula de um contrato celebrado com um consumidor assenta, em princípio, numa avaliação global que não tem unicamente em conta a eventual falta de transparência dessa cláusula, há que salientar que os Estados‑Membros podem assegurar, em conformidade com o artigo 8.o da Diretiva 93/13, um nível de proteção mais elevado para os consumidores.

50

No caso em apreço, como resulta da decisão de reenvio e das observações apresentadas pelo Governo lituano, a República da Lituânia optou por assegurar um nível de proteção mais elevado, na medida em que o artigo 6.2284, n.o 6, do Código Civil dispõe que as cláusulas contrárias à exigência de transparência são consideradas abusivas.

51

Na medida em que os Estados‑Membros continuam a ter a liberdade de prever, no seu direito interno, esse nível de proteção, a Diretiva 93/13, sem exigir que a falta de transparência de uma cláusula de um contrato celebrado com um consumidor implique automaticamente a declaração do seu caráter abusivo, não se opõe a que essa consequência decorra do direito nacional.

52

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, que fixa, segundo o princípio do valor por hora, o preço desses serviços e que integra, por conseguinte, o objeto principal desse contrato, não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não cumprir a exigência de transparência prevista no artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva, salvo se o Estado‑Membro cujo direito nacional se aplica ao contrato em causa previu expressamente, em conformidade com o artigo 8.o da referida diretiva, que a qualificação de «cláusula abusiva» decorre desse mero facto.

Quanto à quinta e sexta questões

53

Com a quinta e sexta questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que, quando um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor não pode subsistir após a supressão de uma cláusula declarada abusiva que fixa o preço dos serviços segundo o princípio do valor por hora e esses serviços foram prestados, se opõem a que o juiz nacional decida restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula, mesmo que isso leve a que o profissional não receba nenhuma remuneração pelos seus serviços, ou substitua a referida cláusula por uma disposição de direito nacional relativa ao custo máximo da remuneração a título da assistência prestada pelo advogado ou pela sua própria apreciação sobre o nível de remuneração que considera razoável para esses serviços.

54

Para responder a estas questões, importa lembrar que, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a declaração do caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato deve permitir restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula (v., neste sentido, Acórdão de 31 de maio de 2018, Sziber, C‑483/16, EU:C:2018:367, n.o 34 e jurisprudência referida).

55

Por força do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, incumbe ao juiz nacional abster‑se de aplicar as cláusulas abusivas, a fim de que não produzam efeitos vinculativos para o consumidor, salvo se o consumidor a isso se opuser. No entanto, esse contrato deve subsistir, em princípio, sem mais nenhuma alteração a não ser a resultante da supressão das cláusulas abusivas, na medida em que, em conformidade com as regras do direito interno, a subsistência do contrato seja juridicamente possível (Acórdão de 25 de novembro de 2020, Banca B, C‑269/19, EU:C:2020:954, n.o 29 e jurisprudência referida).

56

Quando um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor não pode subsistir após a supressão de uma cláusula abusiva, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 não se opõe a que o juiz nacional, em aplicação de princípios do direito dos contratos, suprima a cláusula abusiva substituindo‑a por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo em situações em que a invalidação da cláusula abusiva obrigue o juiz a anular o contrato no seu todo, expondo assim o consumidor a consequências particularmente prejudiciais, que o penalizariam (Acórdão de 25 de novembro de 2020, Banca B, C‑269/19, EU:C:2020:954, n.o 32 e jurisprudência referida).

57

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre as consequências a retirar do eventual reconhecimento do caráter abusivo da cláusula relativa ao preço. Esse órgão jurisdicional considera, por um lado, que os contratos em causa no processo principal não podem subsistir sem essa cláusula e, por outro, que a situação em que o consumidor se encontraria na falta da referida cláusula não poderia ser restabelecida, uma vez que este beneficiou dos serviços jurídicos previstos nesses contratos.

58

A este respeito, há que observar que, como resulta da jurisprudência referida nos n.os 54 a 56 do presente acórdão, o reconhecimento do caráter abusivo da cláusula relativa ao preço implica a obrigação do juiz nacional de se abster de a aplicar, salvo se o consumidor a isso se opuser. O restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula traduz‑se, em princípio, incluindo no caso de os serviços terem sido prestados, na sua dispensa da obrigação de pagar os honorários fixados com base na referida cláusula.

59

Por conseguinte, no caso de o órgão jurisdicional de reenvio considerar que, em aplicação das disposições pertinentes de direito interno, os contratos não poderiam subsistir após a supressão da cláusula relativa ao preço, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 não se opõe à declaração de invalidade dos mesmos, mesmo que isso leve a que o profissional não receba nenhuma remuneração pelos seus serviços.

60

Só no caso de a invalidação dos contratos no seu conjunto expor o consumidor a consequências particularmente prejudiciais, que o penalizariam, é que o órgão jurisdicional de reenvio dispõe da possibilidade excecional de substituir uma cláusula abusiva anulada por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo ou aplicável em caso de acordo das partes no contrato em causa.

61

No que respeita às consequências que a anulação dos contratos em causa no processo principal poderia implicar para o consumidor, há que observar que, tratando‑se de um contrato de mútuo, o Tribunal de Justiça declarou que a anulação no seu conjunto tornaria, em princípio, imediatamente exigível o montante do empréstimo remanescente em dívida, numa medida suscetível de exceder as capacidades financeiras do consumidor, e poderia implicar consequências particularmente prejudiciais para este último (v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 63 e jurisprudência referida). Todavia, o caráter particularmente prejudicial da anulação de um contrato não pode ser reduzido unicamente às consequências de natureza puramente pecuniária.

62

Com efeito, como afirma o advogado‑geral nos n.os 74 e 76 das suas conclusões, não está excluído que a anulação de um contrato relativo à prestação de serviços jurídicos já prestados possa colocar o consumidor numa situação de insegurança jurídica, nomeadamente na hipótese de o direito nacional permitir ao profissional reclamar uma remuneração desses serviços com um fundamento diferente do do contrato anulado. Além disso, também em função do direito nacional aplicável, a invalidade do contrato poderia eventualmente ter incidência na validade e na eficácia dos atos praticados ao abrigo deste.

63

Por conseguinte, se, tendo em conta as considerações precedentes, o órgão jurisdicional de reenvio concluir que a anulação dos contratos em causa no seu conjunto teria consequências particularmente prejudiciais para o consumidor, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 não se opõe a que esse órgão jurisdicional substitua a cláusula relativa ao preço por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo ou aplicável em caso de acordo das partes nos referidos contratos. No entanto, importa que essa disposição se destine a ser especificamente aplicada aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor e não tenha um alcance de tal modo geral, que a sua aplicação equivalha a permitir, em substância, ao juiz nacional fixar com base na sua própria estimativa a remuneração devida pelos serviços prestados [v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2022, D.B.P. e o. (Mútuo hipotecário denominado em divisas estrangeiras), C‑80/21 a C‑82/21, EU:C:2022:646, n.os 76 e 77 e jurisprudência referida].

64

Desde que o Despacho de 2 de abril de 2004, mencionado na decisão de reenvio, contenha tal disposição, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, esse despacho pode ser utilizado para substituir a cláusula relativa ao preço por uma remuneração fixada pelo juiz.

65

Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio não pode completar os contratos em causa no processo principal com a sua própria estimativa relativa a um nível de remuneração que considera razoável para os serviços prestados.

66

Com efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, quando o juiz nacional declara a nulidade de uma cláusula abusiva num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, esse juiz não pode completar o contrato modificando o conteúdo dessa cláusula (Acórdão de 25 de novembro de 2020, Banca B., C‑269/19, EU:C:2020:954, n.o 30 e jurisprudência referida).

67

A este propósito, o Tribunal de Justiça considerou que, se fosse possível ao juiz nacional modificar o conteúdo das cláusulas abusivas desse contrato, essa faculdade poderia prejudicar a realização do objetivo de longo prazo previsto no artigo 7.o da Diretiva 93/13. Esta faculdade contribuiria para eliminar o efeito dissuasivo exercido sobre os profissionais através da pura e simples não aplicação de tais cláusulas abusivas ao consumidor, uma vez que os referidos profissionais ficariam tentados a utilizar essas cláusulas, sabendo que, embora as mesmas viessem a ser invalidadas, o contrato poderia ainda assim ser completado, na medida do necessário, pelo juiz nacional, de modo que se assegurasse o interesse dos referidos profissionais (Acórdão de 18 de novembro de 2021, A. S.A., C‑212/20, EU:C:2021:934, n.o 69 e jurisprudência referida).

68

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à quinta e sexta questões que os artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que, quando um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor não puder subsistir após a supressão de uma cláusula declarada abusiva que fixa o preço dos serviços segundo o princípio do valor por hora, tendo esses serviços sido prestados, não se opõem a que o juiz nacional restabeleça a situação em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula, mesmo que isso leve a que o profissional não receba nenhuma remuneração pelos seus serviços. No caso de a invalidação do contrato no seu conjunto expor o consumidor a consequências particularmente prejudiciais, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, estas disposições não se opõem a que o juiz nacional sane a nulidade da referida cláusula substituindo‑a por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo ou aplicável em caso de acordo das partes no referido contrato. Em contrapartida, estas disposições opõem‑se a que o juiz nacional substitua a cláusula abusiva anulada por uma estimativa judicial do nível da remuneração devida pelos referidos serviços.

Quanto às despesas

69

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, conforme alterada pela Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011,

deve ser interpretado no sentido de que:

é abrangida por esta disposição uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor que fixa o preço dos serviços prestados segundo o princípio do valor por hora.

 

2)

O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, conforme alterada pela Diretiva 2011/83,

deve ser interpretado no sentido de que:

não cumpre a exigência de redação clara e compreensível, na aceção desta disposição, uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor que fixa o preço desses serviços segundo o princípio do valor por hora sem que sejam comunicadas ao consumidor, antes da celebração do contrato, informações que lhe permitam tomar a sua decisão com prudência e total conhecimento das consequências económicas que a celebração desse contrato acarreta.

 

3)

O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, conforme alterada pela Diretiva 2011/83,

deve ser interpretado no sentido de que:

uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, que fixa, segundo o princípio do valor por hora, o preço desses serviços e que integra, por conseguinte, o objeto principal desse contrato, não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não cumprir a exigência de transparência prevista no artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva, salvo se o Estado‑Membro cujo direito nacional se aplica ao contrato em causa previu expressamente, em conformidade com o artigo 8.o da referida diretiva, que a qualificação de «cláusula abusiva» decorre desse mero facto.

 

4)

O artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, conforme alterada pela Diretiva 2011/83,

devem ser interpretados no sentido de que:

quando um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor não puder subsistir após a supressão de uma cláusula declarada abusiva que fixa o preço dos serviços segundo o princípio do valor por hora, tendo esses serviços sido prestados, não se opõem a que o juiz nacional restabeleça a situação em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula, mesmo que isso leve a que o profissional não receba nenhuma remuneração pelos seus serviços. No caso de a invalidação do contrato no seu conjunto expor o consumidor a consequências particularmente prejudiciais, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, estas disposições não se opõem a que o juiz nacional sane a nulidade da referida cláusula substituindo‑a por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo ou aplicável em caso de acordo das partes no referido contrato. Em contrapartida, estas disposições opõem‑se a que o juiz nacional substitua a cláusula abusiva anulada por uma estimativa judicial do nível da remuneração devida pelos referidos serviços.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: lituano.