ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

2 de fevereiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Estatuto das igrejas e das associações ou comunidades religiosas nos Estados‑Membros ao abrigo do direito da União — Artigo 17.o, n.o 1, TFUE — Liberdade de estabelecimento — Artigo 49.o TFUE — Restrições — Justificação — Proporcionalidade — Subsídios para um estabelecimento de ensino privado — Pedido apresentado por uma associação religiosa estabelecida noutro Estado‑Membro — Estabelecimento reconhecido por essa associação como escola confessional»

No processo C‑372/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 1 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de junho de 2021, no processo

Freikirche der Siebenten‑Tags‑Adventisten in Deutschland KdöR

contra:

Bildungsdirektion für Vorarlberg

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, M. Safjan, N. Piçarra (relator), N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Freikirche der Siebenten‑Tags‑Adventisten in Deutschland KdöR, por M. Krömer e P. Krömer, Rechtsanwälte,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e F. Werni, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por T. Machovičová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por L. Armati, M. Mataija e G. von Rintelen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de julho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 17.o e 56.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Freikirche der Siebenten‑Tags‑Adventisten in Deutschland KdöR (Igreja Livre dos Adventistas do Sétimo Dia na Alemanha, a seguir «Igreja adventista alemã») à Bildungsdirektion für Vorarlberg (Direção de Educação de Vorarlberg, Áustria) (a seguir «autoridade competente»), a respeito de um pedido de atribuição de um subsídio para um estabelecimento de ensino privado reconhecido e apoiado pela referida igreja como escola confessional.

Quadro jurídico austríaco

AnerkennungsG

3

O § 1 da Gesetz betreffend die gesetzliche Anerkennung von Religionsgesellschaften (Lei sobre o Reconhecimento Legal das Associações Religiosas), de 20 de maio de 1874 (RGBl., 68/1874; a seguir «AnerkennungsG»), dispõe:

«Os membros de uma confissão religiosa anteriormente não reconhecida por lei são reconhecidos como uma associação religiosa desde que:

1.

A sua doutrina religiosa, o seu serviço religioso, os seus estatutos ou a denominação escolhida não sejam ilegais ou contrários aos bons costumes;

2.

Seja assegurado o estabelecimento e a existência de pelo menos uma comunidade religiosa em conformidade com os requisitos da presente Lei».

BekGG

4

O § 11 da Bundesgesetz über die Rechtspersönlichkeit von religiösen Bekenntnisgemeinschaften [Lei Federal Relativa ao Estatuto Jurídico das Comunidades Confessionais (BGBl. I, 19/1998), conforme publicada no BGBl. I, 78/2011 (a seguir «BekGG»)], sob a epígrafe «Requisitos adicionais relativos ao reconhecimento de uma comunidade confessional ao abrigo da AnerkennungsG», prevê:

«Além dos requisitos constantes da [AnerkennungsG], a comunidade religiosa deve, para efeitos do seu reconhecimento, preencher os seguintes requisitos.

1.   A comunidade religiosa deve:

a)

Estar presente na Áustria há pelo menos 20 anos, dos quais dez anos sob uma forma organizada, e pelo menos cinco anos enquanto comunidade religiosa com personalidade jurídica nos termos da presente Lei; ou

b)

Estar integrada, em termos organizacionais e doutrinários, numa associação religiosa internacionalmente ativa com pelo menos 100 anos de existência e ativa na Áustria de forma organizada há pelo menos dez anos; ou

c)

Estar integrada, em termos organizacionais e doutrinários, numa associação religiosa internacionalmente ativa com pelo menos 200 anos de existência; e

d)

Ter um número de membros correspondente a pelo menos dois por cada mil habitantes da Áustria, de acordo com o último recenseamento. Caso a comunidade religiosa esteja impossibilitada de fazer prova desta situação com base nos dados do recenseamento, deve fornecê‑la sob qualquer outra forma adequada.

[…]

3.   A comunidade religiosa deve manter relações cordiais com a sociedade e com o Estado.

4.   A comunidade religiosa não deve perturbar ilicitamente as relações com as igrejas e as associações religiosas reconhecidas por lei e com outras comunidades religiosas existentes.»

PrivSchG

5

Nos termos do § 17 da Bundesgesetz über das Privatschulwesen (Privatschulgesetz) (Lei Federal sobre os Estabelecimentos de Ensino Privados), de 25 de julho de 1962 (BGBl., 244/1962), conforme alterada (BGBl. I, 35/2019) (a seguir «PrivSchG»), relativo ao direito à atribuição de subsídios das escolas privadas confessionais:

«(1)   São atribuídos subsídios às igrejas e associações religiosas reconhecidas por lei para despesas de pessoal das escolas privadas confessionais a que tenha sido reconhecido um estatuto de direito público, nos termos das disposições seguintes.

(2)   Escolas privadas confessionais são as escolas geridas pelas igrejas, associações religiosas reconhecidas por lei, e pelas suas instituições, bem como as escolas geridas por associações, fundações e fundos, reconhecidas como escolas confessionais pela autoridade superior da igreja (ou pela associação religiosa) competente.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6

A Igreja adventista alemã, que tem o estatuto de pessoa coletiva de direito público na Alemanha, não goza do estatuto de igreja reconhecida ao abrigo do direito austríaco.

7

A partir do ano letivo de 2016/2017, esta igreja reconheceu, como escola confessional, um estabelecimento de ensino situado na Áustria, gerido por uma associação autorizada à qual presta apoio através, nomeadamente, de subsídios, fornecimento de material pedagógico e formação contínua do pessoal docente. A referida igreja apresentou à autoridade competente um pedido de atribuição de um subsídio para a remuneração do pessoal dessa escola, com base no § 17 da PrivSchG, invocando o artigo 56.o TFUE, a fim de beneficiar do tratamento reservado às igrejas e às associações religiosas reconhecidas ao abrigo do direito austríaco.

8

Por Decisão de 3 de setembro de 2019, a autoridade competente indeferiu esse pedido com fundamento no § 17, n.os 1 e 2, da PrivSchG, que considera apenas aplicável às igrejas e associações religiosas reconhecidas ao abrigo do direito austríaco. Consequentemente, a Igreja adventista alemã interpôs um recurso dessa decisão, ao qual o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal, Áustria) negou provimento por Acórdão de 26 de fevereiro de 2020.

9

O referido órgão jurisdicional considera que o direito da União não obriga a República da Áustria a reconhecer uma igreja ou associação religiosa previamente reconhecida noutro Estado‑Membro. Por conseguinte, o facto de essa igreja ou associação religiosa reconhecer como escola confessional um estabelecimento de ensino privado, estabelecido na Áustria, não permite a essa igreja ou associação invocar o § 17 da PrivSchG a fim de obter, para esse estabelecimento, subsídios destinados a remunerar o seu pessoal.

10

A Igreja Adventista Alemã interpôs recurso de «Revision» do referido Acórdão no Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria).

11

No seu pedido de decisão prejudicial, esse órgão jurisdicional refere que as igrejas e associações religiosas reconhecidas nomeadamente ao abrigo da AnerkennungsG e da BekGG são pessoas coletivas de direito público que gozam de direitos especiais e estão encarregadas de missões, designadamente em matéria de ensino, através das quais participam na vida pública nacional. O referido órgão jurisdicional precisa que o § 17 da PrivSchG reserva às igrejas e associações religiosas o benefício de subsídios para os estabelecimentos de ensino privados por si reconhecidos como escolas confessionais.

12

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, antes de mais, se a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

13

A este respeito, recorda, por um lado, que, em conformidade com o artigo 17.o TFUE, a atribuição de subsídios às escolas privadas confessionais de igrejas e associações religiosas reconhecidas por um Estado‑Membro só é abrangida pelas relações entre esse Estado‑Membro e as referidas igrejas associações religiosas e que a União deve permanecer neutra em relação a tais relações. Todavia, o Tribunal de Justiça declarou, nos n.os 30 a 33 do Acórdão de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2019:43), que este artigo 17.o TFUE não implica que uma diferença de tratamento instituída por uma legislação nacional neste domínio esteja excluída do âmbito de aplicação do direito da União.

14

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente do Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci (C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 105), o estabelecimento de ensino privado em causa no processo principal, que é financiado essencialmente por fundos privados, exerce uma atividade económica que consiste numa prestação de serviços. No entanto, uma vez que este estabelecimento é gerido por uma associação registada na Áustria, esta prestação de serviços não apresenta caráter transfronteiriço, salvo se se tiver em conta que o pedido de atribuição de subsídio para o referido estabelecimento foi apresentado por uma igreja estabelecida e reconhecida na Alemanha.

15

Em seguida, esse órgão jurisdicional tem dúvidas sobre a questão de saber se a Igreja adventista alemã pode invocar a liberdade de prestação de serviços garantida pelo artigo 56.o TFUE, para beneficiar do mesmo tratamento que as escolas privadas confessionais de igrejas ou de associações religiosas reconhecidas por lei na Áustria, cujas atividades de ensino são financiadas essencialmente por fundos públicos e que, consequentemente, não podem ser qualificadas de «atividades económicas» na aceção da jurisprudência recordada no número anterior do presente Acórdão.

16

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se a legislação nacional que proíbe a Igreja adventista alemã de beneficiar de subsídios para um estabelecimento de ensino privado situado na Áustria, contrariamente às igrejas e associações religiosas reconhecidas neste Estado‑Membro, constitui um entrave à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 56.o TFUE. Esse órgão jurisdicional sublinha que a referida legislação nacional prossegue um objetivo legítimo, uma vez que visa complementar o sistema de ensino público através de escolas privadas confessionais de igrejas ou associações religiosas suficientemente representadas na Áustria, para permitir aos progenitores escolherem mais facilmente a educação dos seus filhos em função das suas convicções religiosas. Entende também que esta legislação pode ser considerada adequada para garantir a concretização deste objetivo sem ir além do necessário para o alcançar.

17

Nestas condições, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Tendo em conta o artigo 17.o TFUE, uma situação em que uma associação religiosa reconhecida e estabelecida num Estado‑Membro da União Europeia requer noutro Estado‑Membro a atribuição de subsídios a uma escola privada por si reconhecida como confessional situada nesse Estado‑Membro e que é gerida por uma associação registada também nesse Estado‑Membro em conformidade com o direito desse Estado‑Membro é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, mais concretamente pelo artigo 56.o TFUE?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

2)

Deve o artigo 56.o TFUE ser interpretado no sentido de que se opõe a uma norma nacional que prevê como requisito para a atribuição de subsídios a escolas privadas confessionais o reconhecimento do requerente como igreja ou associação religiosa pelo direito nacional»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

18

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que tem por efeito excluir do âmbito de aplicação do direito da União uma situação em que uma igreja, uma associação ou uma comunidade religiosa com o estatuto de pessoa coletiva de direito público num Estado‑Membro e que reconhece e apoia noutro Estado‑Membro, como escola confessional, um estabelecimento de ensino privado pede a atribuição de um subsídio para este estabelecimento, que está reservado às igrejas, às associações e às comunidades religiosas reconhecidas ao abrigo do direito do segundo Estado‑Membro.

19

A este respeito, importa recordar, em primeiro lugar, que, embora o artigo 17.o, n.o 1, TFUE exprima a neutralidade da União no que respeita à organização pelos Estados‑Membros das suas relações com as igrejas e as associações ou comunidades religiosas (Acórdãos de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 58, e de 13 de janeiro de 2022, MIUR e Ufficio Scolastico Regionale per la Campania, C‑282/19, EU:C:2022:3, n.o 50), esta disposição não pode ser invocada para excluir, de um modo geral, do âmbito de aplicação do direito da União, a atividade das igrejas e associações ou comunidades religiosas quando a mesma consiste na prestação de serviços mediante remuneração num dado mercado (v., neste sentido, Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.os 43 e 47).

20

Em segundo lugar, o ensino ministrado em estabelecimentos financiados essencialmente por fundos privados constitui um serviço, uma vez que o fim prosseguido por estes estabelecimentos consiste em propor tal serviço mediante remuneração (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de dezembro de 1993, Wirth, C‑109/92, EU:C:1993:916, n.o 17, e de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 105).

21

Inversamente, o ensino ministrado por um estabelecimento de ensino que faz parte de um sistema de ensino público, financiado inteira ou principalmente por fundos públicos, não constitui uma atividade económica. Com efeito, ao estabelecer e ao manter tal sistema de ensino público, o Estado‑Membro não pretende envolver‑se em atividades remuneradas, mas cumprir a sua missão perante a sua população nos domínios social, cultural e educativo (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de dezembro de 1993, Wirth, C‑109/92, EU:C:1993:916, n.o 15, e de 11 de setembro de 2007, Schwarz e Gootjes‑Schwarz, C‑76/05, EU:C:2007:492, n.o 39).

22

No presente caso, resulta do pedido de decisão prejudicial que o estabelecimento de ensino austríaco reconhecido e apoiado pela Igreja adventista alemã como escola confessional é um estabelecimento privado cujo ensino ministrado é amplamente financiado por fundos privados, pelo que, sem prejuízo das verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, se deve considerar que este estabelecimento exerce uma atividade económica na aceção da jurisprudência referida.

23

A este respeito, contrariamente ao que sustentam o Governo austríaco e a Comissão Europeia, o facto de o subsídio pedido, uma vez atribuído, permitir que o estabelecimento de ensino privado em causa seja considerado um estabelecimento financiado por fundos públicos que, enquanto tal, já não exerce uma atividade económica na aceção da jurisprudência recordada nos n.os 20 e 21 do presente Acórdão não é relevante para determinar se a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. Com efeito, o que importa é que se possa considerar que o estabelecimento de ensino privado para o qual é pedido o subsídio exerce uma atividade económica na data em que o pedido é apresentado (v., por analogia, Acórdão de 11 de setembro de 2007, Schwarz e Gootjes‑Schwarz, C‑76/05, EU:C:2007:492, n.o 44).

24

Por outro lado, contrariamente ao que sustenta o Governo austríaco, a situação controvertida no processo principal distingue‑se de uma situação em que todos os elementos estão confinados a um único Estado‑Membro. Com efeito, no presente caso, a Igreja adventista alemã pede um subsídio às autoridades austríacas para um estabelecimento de ensino situado na Áustria, que ela reconhece e apoia como escola confessional. Este elemento transfronteiriço implica, assim, que as regras do direito da União relativas à livre circulação são, em princípio, aplicáveis (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 47).

25

Atentos os motivos precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 17.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que não tem por efeito excluir do âmbito de aplicação do direito da União uma situação em que uma igreja, uma associação ou uma comunidade religiosa com o estatuto de pessoa coletiva de direito público num Estado‑Membro e que reconhece e apoia noutro Estado‑Membro, como escola confessional, um estabelecimento de ensino privado pede a atribuição de um subsídio para este estabelecimento, que está reservado às igrejas, às associações e às comunidades religiosas reconhecidas ao abrigo do direito do segundo Estado‑Membro.

Quanto à segunda questão

26

A título preliminar, importa recordar que o estabelecimento de ensino para o qual a Igreja adventista alemã pede um subsídio está situado na Áustria e é gerido por uma associação registada neste Estado‑Membro, que assegura uma presença estável e contínua no seu território. Por conseguinte, tal situação é abrangida pela liberdade de estabelecimento garantida pelo artigo 49.o TFUE e não pela livre prestação de serviços garantida pelo artigo 56.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 8 de setembro de 2010, Stoß e o., C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504, n.o 59).

27

Nestas condições, a segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio deve ser entendida no sentido de que visa, em substância, saber se o artigo 49.o TFUE, conjugado com o artigo 17.o, n.o 1, TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que subordina a atribuição de subsídios públicos destinados aos estabelecimentos de ensino privados reconhecidos como escolas confessionais à condição de a igreja ou a associação religiosa que apresenta o pedido de atribuição de subsídio para esse estabelecimento ser reconhecida ao abrigo direito do Estado‑Membro em causa, incluindo quando essa igreja ou essa associação religiosa for reconhecida ao abrigo do direito do seu Estado‑Membro de origem.

28

O artigo 49.o, primeiro parágrafo, TFUE dispõe que, no âmbito das disposições que figuram no capítulo 2 do título IV da parte III do Tratado FUE, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Esta disposição opõe‑se assim a todas as medidas nacionais que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício da liberdade de estabelecimento (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France, C‑442/02, EU:C:2004:586, n.o 11, e de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 61).

29

O princípio da proibição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade, aplicável neste domínio, proíbe não só as discriminações ostensivas, mas também todas as formas dissimuladas de discriminação que, mediante a aplicação de outros critérios de distinção, conduzam efetivamente ao mesmo resultado. Não está, pois, excluído que critérios como o local de origem ou de domicílio de um nacional de um Estado‑Membro possam, segundo as circunstâncias, equivaler, na prática, a uma discriminação em razão da nacionalidade, proibida pelo Tratado FUE (v., neste sentido, Acórdãos de 12 de fevereiro de 1974, Sotgiu, 152/73, EU:C:1974:13, n.o 11, e de 20 de janeiro de 2011, Comissão/Grécia, C‑155/09, EU:C:2011:22, n.o 45).

30

No caso em apreço, resulta da Decisão de reenvio que o pedido de atribuição de subsídios previsto no § 17 da PrivSchG está reservado às igrejas ou às associações religiosas reconhecidas pela lei austríaca, isto é, que preencham os requisitos previstos no §1 da AnerkennungsG e no § 11 da BekGG.

31

Uma vez que tais requisitos exigem, em geral, a presença, com uma duração variável, das igrejas ou associações religiosas na Áustria, bem como um número de membros correspondente a pelo menos dois por cada mil habitantes da Áustria, são suscetíveis de ser cumpridos mais facilmente pelas igrejas ou associações religiosas estabelecidas na Áustria. Os referidos requisitos podem, assim, prejudicar as igrejas e associações religiosas estabelecidas noutros Estados‑Membros que reconheçam e apoiem, como escolas confessionais, estabelecimentos de ensino privado situados na Áustria. Com efeito, tais igrejas e associações religiosas não podem beneficiar de subsídios a favor destes estabelecimentos para efeitos do pagamento da remuneração do pessoal docente necessário para ministrar os programas de ensino dos referidos estabelecimentos.

32

Consequentemente, sem prejuízo das verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento.

33

Todavia, tal restrição pode ser admitida se, em primeiro lugar, for justificada por um objetivo expressamente previsto no artigo 52.o, n.o 1, TFUE ou por uma razão imperiosa de interesse geral e, em segundo lugar, respeitar o princípio da proporcionalidade, o que implica que seja adequada para garantir, de maneira coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido e não vá além do necessário para o alcançar (v., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.o 65).

34

No que respeita, em primeiro lugar, à existência de uma justificação para a restrição em causa, a exposição de motivos da PrivSchG, citada pelo órgão jurisdicional de reenvio, indica que as escolas privadas confessionais complementam o sistema de ensino público, que é interconfessional, permitindo que os progenitores escolham mais facilmente a educação dos seus filhos em função das suas convicções religiosas.

35

Além disso, resulta da exposição de motivos da alteração à BekGG, no que respeita aos critérios que presidem ao reconhecimento das igrejas e associações religiosas ao abrigo da AnerkennungsG, que as que são reconhecidas pela lei austríaca beneficiam de apoios públicos materiais, nomeadamente nos domínios da saúde e da educação, uma vez que contribuem para o bem‑estar das pessoas. Com efeito, a obtenção do estatuto de igreja ou associação religiosa reconhecida ao abrigo do direito austríaco acarreta obrigações, entre as quais a de ministrar um ensino religioso.

36

O órgão jurisdicional de reenvio, à semelhança do Governo austríaco, considera que esta legislação, ao complementar o sistema de ensino público interconfessional através de escolas privadas confessionais, permite efetivamente que os progenitores escolham a educação dos seus filhos em função das suas convicções religiosas e prossegue, como tal, um objetivo legítimo. Como salienta o advogado‑geral no n.o 72 das suas Conclusões, este objetivo, juntamente com o objetivo que consiste em assegurar um elevado nível de formação, que o Tribunal de Justiça qualificou de «razão imperiosa de interesse geral» (Acórdãos de 13 de novembro de 2003, Neri, C‑153/02, EU:C:2003:614, n.o 46, e de 14 de setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C‑386/04, EU:C:2006:568, n.o 45), é suscetível de justificar uma restrição à liberdade de estabelecimento.

37

Nestas condições, como resulta do n.o 33 do presente Acórdão, há que examinar, em segundo lugar, se a legislação nacional em causa no processo principal é, por um lado, adequada para garantir, de maneira coerente e sistemática, a realização do objetivo que prossegue e, por outro, não vai além do necessário para o alcançar.

38

Cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio, que é o único competente para apreciar a matéria de facto do litígio no processo principal e interpretar a legislação nacional aplicável, determinar se e em que medida tal legislação satisfaz esses requisitos. No entanto, o Tribunal de Justiça, chamado a dar respostas úteis a esse órgão jurisdicional, tem competência para lhe fornecer indicações baseadas nos autos e nas observações escritas de que dispõe (Acórdão de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.os 72 e 73).

39

No caso em apreço, no que se refere à capacidade da legislação nacional em causa para prosseguir, de maneira coerente e sistemática, o objetivo legítimo de que se trata, resulta da exposição de motivos da alteração da BekGG que o reconhecimento das igrejas e associações religiosas, ao abrigo da AnerkennungsG, pressupõe que estas tenham uma certa dimensão para que as suas atividades não se limitem aos seus membros. Presume‑se que, quando o número mínimo de membros de uma igreja ou associação religiosa previsto por esta legislação é atingido, o alcance dos efeitos positivos das suas atividades, nomeadamente em matéria de ensino, excede o âmbito estrito da comunidade dos membros. Além disso, a limitação da atribuição de subsídios públicos apenas às escolas confessionais de igrejas e associações religiosas reconhecidas ao abrigo do direito austríaco visa garantir que estas escolas se destinam a uma parte significativa da população, suscetível de escolher esta oferta de ensino complementar à proposta pelos estabelecimentos de ensino públicos.

40

Nestas condições, a legislação em causa no processo principal não se afigura desadequada para permitir aos progenitores escolherem a educação dos seus filhos em função das suas convicções religiosas, no contexto de um ensino interconfessional de qualidade, objetivo que, conforme recordado no n.o 36 do presente Acórdão, é legítimo à luz do direito da União.

41

No que respeita à questão de saber se a referida legislação não vai além do necessário para alcançar esse objetivo, há que recordar que o artigo 17.o, n.o 1, TFUE impõe à União que respeite e não interfira no estatuto das igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados‑Membros, enquanto o artigo 17.o TFUE exprime a neutralidade da União no que respeita à organização pelos Estados‑Membros das suas relações com as mesmas (Acórdãos de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 58, e de 13 de janeiro de 2022, MIUR e Ufficio Scolastico Regionale per la Campania, C‑282/19, EU:C:2022:3, n.o 50). Consequentemente, em situações como a do processo principal, o artigo 49.o TFUE, conjugado com o artigo 17.o, n.o 1, TFUE, não pode ser interpretado no sentido de que obriga um Estado‑Membro a reconhecer o estatuto de que gozam as referidas igrejas, associações ou comunidades religiosas ao abrigo do direito de outros Estados‑Membros.

42

No que se refere à obtenção do estatuto de igreja ou associação religiosa reconhecida ao abrigo do direito austríaco, o § 11 da BekGG estabelece três requisitos alternativos. Em primeiro lugar, pode beneficiar deste estatuto uma igreja ou uma associação religiosa presente no território austríaco há pelo menos 20 anos. Em segundo lugar, pode beneficiar do referido estatuto, mesmo sem presença prévia no território austríaco, a igreja ou associação religiosa que estiver integrada, em termos organizacionais e doutrinários, numa associação religiosa internacionalmente ativa com pelo menos 200 anos de existência. Em terceiro lugar, se a referida associação estiver internacionalmente ativa há pelo menos 100 anos, deve estar ativa na Áustria de forma organizada há pelo menos dez anos para que a igreja ou associação religiosa nela integrada, em termos organizacionais e doutrinários, possa beneficiar do estatuto em causa.

43

Estas alternativas, que visam cobrir as situações em que o reconhecimento de uma igreja ou associação religiosa pode contribuir para o caráter interconfessional do sistema de ensino nacional, não parecem ir além do necessário para alcançar o objetivo identificado no n.o 36 do presente Acórdão, que é permitir aos progenitores escolherem a educação dos seus filhos em função das suas convicções religiosas.

44

Além disso, quanto ao requisito relativo à representatividade, no seio da população nacional, da igreja ou associação religiosa que pretende ser reconhecida ao abrigo do direito austríaco, o § 11, n.o 1, alínea d), segundo período, da BekGG prevê que, quando não seja possível fazer prova, com base no último recenseamento, de que têm um número de membros correspondente a pelo menos dois por cada mil habitantes da Áustria, esta prova pode ser fornecida sob qualquer outra forma adequada. A referida disposição, uma vez que não se limita a prever apenas um meio de prova, demonstra igualmente a vontade do legislador austríaco de não ir além do necessário para alcançar o objetivo prosseguido pela legislação nacional.

45

Tendo em conta os motivos precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 49.o TFUE, conjugado com o artigo 17.o, n.o 1, TFUE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que subordina a atribuição de subsídios públicos destinados aos estabelecimentos de ensino privados reconhecidos como escolas confessionais à condição de a igreja ou a associação religiosa que apresenta o pedido de atribuição de subsídio para esse estabelecimento ser reconhecida ao abrigo do direito do Estado‑Membro em causa, incluindo quando essa igreja ou essa associação religiosa for reconhecida ao abrigo do direito do seu Estado‑Membro de origem.

Quanto às despesas

46

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 17.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que não tem por efeito excluir do âmbito de aplicação do direito da União uma situação em que uma igreja, uma associação ou uma comunidade religiosa com o estatuto de pessoa coletiva de direito público num Estado‑Membro e que reconhece e apoia noutro Estado‑Membro, como escola confessional, um estabelecimento de ensino privado pede a atribuição de um subsídio para este estabelecimento, que está reservado às igrejas, às associações e às comunidades religiosas reconhecidas ao abrigo do direito do segundo Estado‑Membro.

 

2)

O artigo 49.o TFUE, conjugado com o artigo 17.o, n.o 1, TFUE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que subordina a atribuição de subsídios públicos destinados aos estabelecimentos de ensino privados reconhecidos como escolas confessionais à condição de a igreja ou a associação religiosa que apresenta o pedido de atribuição de subsídio para esse estabelecimento ser reconhecida ao abrigo do direito do Estado‑Membro em causa, incluindo quando essa igreja ou essa associação religiosa for reconhecida ao abrigo do direito do seu Estado‑Membro de origem.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.