ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

23 de março de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Princípio ne bis in idem — Artigo 55.o, n.o 1, alínea b) — Exceção à aplicação do princípio ne bis in idem — Crime contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro — Artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Princípio ne bis in idem — Artigo 52.o, n.o 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Compatibilidade de uma declaração nacional que prevê uma exceção ao princípio ne bis in idem — Organização criminosa — Crime contra o património»

No processo C‑365/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Bamberg (Tribunal Regional Superior de Bamberg, Alemanha), por Decisão de 4 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de junho de 2021, no processo penal contra

MR

sendo interveniente:

Generalstaatsanwaltschaft Bamberg

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan (relator), presidente de secção, L. S. Rossi, D. Gratsias, M. Ilešič e I. Jarukaitis, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretária: S. Beer, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 6 de julho de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação de MR, por S. Buhlmann e F. Ufer, Rechtsanwälte,

em representação da Generalstaatsanwaltschaft Bamberg, por N. Goldbeck, na qualidade de agente,

em representação do Governo alemão, por J. Möller, F. Halabi, M. Hellmann e U. Kühne, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por M. Augustin, A. Posch, J. Schmoll e K. Steininger, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 20 de outubro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto, por um lado, a validade do artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen em 19 de junho de 1990 e que entrou em vigor em 26 de março de 1995 (a seguir «CAAS»), à luz do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e, por outro, a interpretação dos artigos 54.o e 55.o da CAAS e dos artigos 50.o e 52.o da Carta.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado, na Alemanha, contra MR por constituição de uma organização criminosa e burla em matéria de investimentos financeiros.

Quadro jurídico

Direito da União

CAAS

3

A CAAS foi celebrada para assegurar a aplicação do Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13).

4

Os artigos 54.o a 56.o da CAAS figuram no capítulo 3, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem», abrangido pelo seu título III, que se intitula «Polícia e segurança». O artigo 54.o da CAAS prevê:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

5

O artigo 55.o da CAAS dispõe:

«1.   Uma parte contratante pode, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.o num ou mais dos seguintes casos:

[…]

b)

Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a segurança do Estado ou de outros interesses igualmente essenciais desta parte contratante;

[…]

2.   Uma parte contratante, que tenha feito uma declaração relativa à exceção referida na alínea b) do n.o 1, especificará as categorias de crimes às quais esta exceção pode ser aplicada.

[…]»

6

O artigo 56.o da CAAS enuncia:

«Se uma nova ação judicial for intentada por uma parte contratante contra uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um tribunal de uma outra parte contratante, será descontado na sanção que venha a ser eventualmente imposta qualquer período de privação de liberdade cumprido no território desta última parte contratante por esses factos. Serão igualmente tidas em conta, na medida em que as legislações nacionais o permitam, sanções diferentes das privativas de liberdade que tenham já sido cumpridas.»

Decisão‑Quadro 2008/841/JAI

7

O primeiro considerando da Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada (JO 2008, L 300, p. 42), tem a seguinte redação:

«O objetivo do Programa da Haia é melhorar as capacidades comuns da União [Europeia] e dos seus Estados‑Membros a fim de, nomeadamente, lutar contra o crime organizado transfronteiras. Este objetivo deve ser prosseguido, em especial, mediante a aproximação das legislações. É necessário reforçar a cooperação entre os Estados‑Membros da [União] para fazer face à perigosidade e à proliferação das organizações criminosas e dar uma resposta eficaz às expectativas dos cidadãos e às necessidades dos próprios Estados‑Membros. A este respeito, o ponto 14 das conclusões do Conselho Europeu de Bruxelas, de 4 e 5 de novembro de 2004, afirma que os cidadãos da Europa esperam que a [União] adote uma abordagem conjunta e mais eficaz dos problemas transfronteiras como a criminalidade organizada, garantindo, simultaneamente, o respeito das liberdades e direitos fundamentais.»

8

Nos termos do artigo 2.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Infrações relativas à participação em organização criminosa»:

«Cada Estado‑Membro toma as medidas necessárias para garantir que um ou ambos os tipos de conduta a seguir indicados relacionados com uma organização criminosa sejam considerados infração:

a)

A conduta de quem, intencionalmente e com conhecimento quer dos objetivos e da atividade geral da organização criminosa, quer da intenção da organização de cometer a infração em causa, participar ativamente na atividade criminosa da organização, incluindo o fornecimento de informações ou de meios materiais, o recrutamento de novos participantes e qualquer forma de financiamento das atividades da organização, tendo conhecimento de que tal participação contribuirá para a realização da atividade criminosa da organização;

b)

A conduta de quem tiver estabelecido, com uma ou mais pessoas, um acordo destinado a levar a cabo uma atividade que, se for executada, configura a prática de uma infração a que se refere o artigo 1.o, mesmo que essa pessoa não participe na execução efetiva de tal atividade.»

9

O artigo 3.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Sanções», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para garantir que:

a)

As infrações a que se refere a alínea a) do artigo 2.o sejam puníveis com uma pena de prisão com a duração máxima de, pelo menos, dois a cinco anos; ou

b)

As infrações a que se refere a alínea b) do artigo 2.o sejam puníveis com o mesmo limite máximo da pena de prisão previsto para a infração que é objeto do acordo, ou com uma pena de prisão com a duração máxima de, pelo menos, dois a cinco anos.

2.   Cada Estado‑Membro toma as medidas necessárias para garantir que o facto de as infrações a que se refere o artigo 2.o, por ele próprio estabelecidas, serem cometidas no quadro de uma organização criminosa possa ser considerado como circunstância agravante.»

Direito alemão

10

Por ocasião da ratificação da CAAS, a República Federal da Alemanha adotou uma declaração (BGBl. 1994 II, p. 631), ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, que prevê, nomeadamente, que a República Federal da Alemanha não está vinculada pelo disposto no artigo 54.o da CAAS sempre que, em conformidade com o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da mesma, os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam o crime previsto no § 129 do Strafgesetzbuch (Código Penal, a seguir «StGB»).

11

Este § 129 do StGB, sob a epígrafe «Formação de organizações criminosas», na versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:

«(1)

Quem fundar ou for membro de uma organização cujo objetivo ou atividade consista na prática de crimes puníveis com uma pena máxima de prisão de pelo menos dois anos é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa. Quem apoiar uma organização deste tipo ou recrutar membros ou apoiantes para a mesma é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

(2)

Uma organização é um grupo estruturado de mais de duas pessoas, destinada a perdurar no tempo, com o objetivo de prosseguir um interesse comum superior e que é independente do modo como tenham sido definidas as funções dos membros, da continuidade da adesão e das características da sua estrutura.

[…]

(5)

Nos casos particularmente graves referidos no ponto 1, primeiro período, é aplicável uma pena de prisão de seis meses a cinco anos. Um caso particularmente grave ocorre, em geral, quando o autor do crime é um dos líderes ou das pessoas que estão por detrás da organização.»

12

O § 129b do StGB, sob a epígrafe «Organizações criminosas e terroristas no estrangeiro; Confisco», enuncia, no seu n.o 1:

«Os §§ 129 e 129a aplicam‑se igualmente às organizações sediadas no estrangeiro. Se o crime envolver uma organização situada fora dos Estados‑Membros da União Europeia, isto só se aplica se o crime for cometido no contexto de uma atividade abrangida pelo âmbito de aplicação territorial da presente lei ou se o autor ou a vítima forem cidadãos alemães ou se encontrarem na Alemanha. Nos casos referidos no segundo período, o crime só é investigado mediante autorização do Bundesministerium der Justiz und für Verbraucherschutz [Ministério Federal da Justiça e da Defesa dos Consumidores, Alemanha)]. A autorização pode ser concedida para o caso específico ou, em geral, também para a prática de futuros crimes relativos a uma organização específica. Para se pronunciar sobre a autorização, o ministério examina se os objetivos da organização atentam contra os valores fundamentais de uma ordem pública que respeita a dignidade humana ou contra a coexistência pacífica dos povos e se, face a todas as circunstâncias, os mesmos se afiguram censuráveis.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

MR, cidadão israelita, com última residência conhecida na Áustria, foi condenado pelo Landesgericht Wien (Tribunal Regional de Viena, Áustria) por Sentença transitada em julgado, em 1 de setembro de 2020, numa pena de prisão de quatro anos por burla agravada praticada a título profissional e branqueamento de capitais.

14

MR cumpriu parte da pena, tendo em seguida beneficiado de uma suspensão da execução do período remanescente da mesma a partir de 29 de janeiro de 2021. Contudo, por decisão também dessa data, MR foi detido na Áustria, para efeitos de extradição, ao abrigo de um mandado de detenção europeu emitido em 11 de dezembro de 2020 pelo Amtsgericht Bamberg (Tribunal de Primeira Instância de Bamberg, Alemanha) por constituição de uma organização criminosa e burla em matéria de investimentos financeiros. Após este período de detenção, foi detido, em 18 de maio de 2021, para efeitos de afastamento para Israel, onde se encontrava na data de apresentação do pedido de decisão prejudicial.

15

Segundo o mandado de detenção europeu emitido contra MR, este é acusado de ter criado, juntamente com outros arguidos, um sistema de investimentos fraudulento, ao abrigo do qual eram propostos investimentos lucrativos através da Internet a investidores de vários países europeus, entre os quais a Alemanha e a Áustria. Os montantes pagos foram, na realidade, desviados designadamente para MR, que atuou como um dos líderes da organização criminosa em causa.

16

Por Despacho de 8 de março de 2021, o Landgericht Bamberg (Tribunal Regional de Bamberg, Alemanha) negou provimento ao recurso interposto por MR contra o mandado de detenção europeu e o mandado de detenção nacional que serviu de fundamento ao primeiro, declarando que, uma vez que MR tinha sido condenado pelo Landesgericht Wien (Tribunal Regional de Viena) por burla contra vítimas residentes na Áustria, e estava naquele momento a ser julgado no Landgericht Bamberg (Tribunal Regional de Bamberg) por burla contra vítimas residentes na Alemanha, os factos que constituem estes dois processos eram diferentes, pelo que o princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.o da CAAS, não era aplicável.

17

A título subsidiário, o Landgericht Bamberg (Tribunal Regional de Bamberg) remeteu para o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, especificando que MR era acusado de ter praticado o crime previsto no § 129 do StGB, que está abrangido pela declaração feita pela República Federal da Alemanha no momento da ratificação da CAAS.

18

MR apresentou um pedido de reapreciação do referido despacho ao Oberlandesgericht Bamberg (Tribunal Regional Superior de Bamberg, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio.

19

Tendo em conta os requisitos de aplicação do artigo 54.o da CAAS, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se os factos pelos quais MR foi condenado na Áustria são ou não os mesmos pelos quais é objeto de processos na Alemanha.

20

Dito isto, o órgão jurisdicional de reenvio entende que o artigo 54.o da CAAS não é necessariamente relevante para decidir o litígio que lhe foi submetido. Com efeito, MR é acusado de ter constituído uma organização criminosa. Ora, este crime, previsto no § 129 do StGB, está abrangido pela declaração feita pela República Federal da Alemanha ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da referida convenção, declaração esta que, em aplicação do seu artigo 55.o, n.o 1, alínea b), permite que um Estado‑Membro declare não estar vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS sempre que os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a sua segurança ou outros dos seus interesses igualmente essenciais.

21

Quanto a este aspeto, o órgão jurisdicional de reenvio esclarece que os crimes a que se refere o § 129 do StGB são, em princípio, crimes contra interesses essenciais da República Federal da Alemanha. A simples existência de organizações criminosas configura um perigo potencial para a paz pública, com uma gravidade diferente daquela que resulta de atos criminosos individuais devido à ameaça grave que a criminalidade organizada representa para a comunidade. Assim, para apreciar se uma organização criminosa põe em perigo a segurança ou outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa, é irrelevante que a mesma se dedique exclusivamente ao crime contra o património sem prosseguir, além disso, objetivos políticos, ideológicos, religiosos ou filosóficos ou tentar exercer influência sobre a política, os meios de comunicação social, a Administração Pública, o poder judicial ou a economia por meios ilícitos.

22

Dito isto, o órgão jurisdicional de reenvio assinala que a questão da compatibilidade da declaração da República Federal da Alemanha com o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS só se coloca na medida em que se demonstre, previamente, que a faculdade prevista nesta última disposição é, ela própria, compatível com o artigo 50.o da Carta.

23

Nestas condições, o Oberlandesgericht Bamberg (Tribunal Regional Superior de Bamberg) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 55.o da [CAAS] é compatível com o artigo 50.o da [Carta] e continua a ser válido na medida em que admite uma exceção à proibição da dupla incriminação, uma vez que uma Parte Contratante, ao ratificar, aceitar ou aprovar essa Convenção, pode declarar que não está vinculada pelo artigo 54.o da CAAS se o ato em que se baseou a sentença estrangeira constituir [um crime] contra a segurança do Estado ou outros interesses igualmente essenciais dessa parte contratante?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Os artigos 54.o e 55.o da CAAS e os artigos 50.o e 52.o da Carta opõem‑se a uma interpretação pelos tribunais alemães da declaração feita pela República Federal da Alemanha no momento da ratificação da Convenção de Schengen no que respeita ao § 129 [do StGB], segundo a qual a declaração também abrange as [organizações] criminosas — como a que está em causa no presente processo — que se dedicam exclusivamente ao crime contra o património e, além disso, não prosseguem objetivos políticos, ideológicos, religiosos ou filosóficos e também não tentam exercer influência sobre a política, os meios de comunicação social, a administração pública, o poder judicial ou a economia por meios ilícitos?»

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

24

O órgão jurisdicional de reenvio pediu ao Tribunal de Justiça que o processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. A título subsidiário, pediu que o processo fosse submetido a tramitação acelerada, em aplicação do artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

25

Em primeiro lugar, no que se refere ao pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente, a Quinta Secção decidiu, por Decisão de 7 de julho de 2021, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, que não cabia deferir este pedido, uma vez que não estavam preenchidos os requisitos de urgência previstos no artigo 107.o do Regulamento de Processo.

26

Em segundo lugar, no que respeita ao pedido de aplicação da tramitação acelerada, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, em 9 de julho de 2021, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, que este pedido não devia ser deferido.

27

Com efeito, importa recordar que o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

28

Ora, por um lado, a incerteza jurídica que afeta uma pessoa procurada, como a que está em causa no processo principal, não constitui uma circunstância excecional suscetível de justificar o recurso a tramitação acelerada (Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 23 de dezembro de 2015, Vilkas, C‑640/15, não publicado, EU:C:2015:862, n.o 10 e jurisprudência referida).

29

Por outro lado, o facto de um pedido de decisão prejudicial versar sobre a execução de um mandado de detenção europeu não é, em si, suficiente para justificar a submissão de um processo a tramitação acelerada, e o facto de o interessado não estar atualmente detido constitui um motivo para não deferir um pedido de tramitação acelerada (v., neste sentido, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de setembro de 2018, Minister for Justice and Equality, C‑508/18 e C‑509/18, não publicado, EU:C:2018:766, n.os 11 e 13 e jurisprudência referida).

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

30

Resulta do pedido de decisão prejudicial que, embora o órgão jurisdicional de reenvio tenha dúvidas quanto à exceção ao princípio ne bis in idem prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, tem igualmente dúvidas quanto à questão de saber se os processos de que o recorrente no processo principal é objeto estão abrangidos por este princípio.

31

A este respeito, importa recordar que o referido princípio constitui um princípio fundamental do direito da União, que está atualmente consagrado no artigo 50.o da Carta [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 64 e jurisprudência referida].

32

Além disso, este princípio, consagrado igualmente no artigo 54.o da CAAS, resulta das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros. Por conseguinte, importa interpretar este artigo à luz do artigo 50.o da Carta, cujo respeito do conteúdo essencial assegura [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 65 e jurisprudência referida].

33

O artigo 50.o da Carta dispõe que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei». Assim, a aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita a uma dupla condição, a saber, por um lado, que haja uma decisão anterior definitiva (condição «bis») e, por outro, que os mesmos factos sejam abrangidos pela decisão anterior e pelos processos ou decisões posteriores (condição «idem») (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost,C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 28).

34

No que se refere, em particular, à condição «idem», decorre dos próprios termos do artigo 50.o da Carta que este proíbe julgar ou punir penalmente a mesma pessoa, mais do que uma vez, pelo mesmo delito (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost,C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 31).

35

A este respeito, à luz dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio e das considerações apresentadas pelas partes interessadas tanto nas suas observações escritas como na audiência, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, o critério relevante para apreciar a existência de uma mesma infração, na aceção do referido artigo 50.o, é o da identidade dos factos materiais, entendidos no sentido da existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si que levaram à absolvição ou à condenação definitiva da pessoa em causa. Assim, este artigo proíbe a aplicação, por factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para estes fins [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 128 e jurisprudência referida].

36

Além disso, resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualificação jurídica dos factos no direito nacional e o interesse jurídico protegido não são relevantes para efeitos da verificação da existência de uma mesma infração, na medida em que o alcance da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost,C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 34 e jurisprudência referida).

37

A este respeito, importa precisar que a condição «idem» exige que os factos materiais sejam idênticos. Em contrapartida, o princípio ne bis in idem não é aplicável quando os factos em causa não sejam idênticos, mas apenas semelhantes [v., neste sentido, Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 129 e jurisprudência referida].

38

Ora, como o Tribunal de Justiça clarificou, entende‑se por identidade dos factos materiais um conjunto de circunstâncias concretas que decorrem de acontecimentos que, em substância, são os mesmos, porquanto implicam o mesmo autor e estão indissociavelmente ligados entre si no tempo e no espaço [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis inidem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 130 e jurisprudência referida].

39

Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para decidir sobre os factos, e não ao Tribunal de Justiça, determinar se os factos objeto dos processos em causa no processo principal são os mesmos que os que foram julgados definitivamente pelos órgãos jurisdicionais austríacos. Dito isto, o Tribunal de Justiça pode fornecer ao referido órgão jurisdicional elementos de interpretação do direito da União no âmbito da apreciação da identidade dos factos [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 133 e jurisprudência referida].

40

Resulta do pedido de decisão prejudicial que o recorrente no processo principal constituiu e participou numa organização criminosa de dimensão transfronteiriça, que funcionou segundo um modus operandi sofisticado e cuja atividade causou danos patrimoniais a milhares de vítimas, residindo os lesados, nomeadamente, na Alemanha e na Áustria.

41

Tendo em conta as informações fornecidas ao Tribunal de Justiça, o recorrente no processo principal foi condenado por sentença transitada em julgado na Áustria por «burla agravada praticada a título profissional e branqueamento de capitais».

42

Neste contexto, há que sublinhar que o legislador da União atribui especial importância à luta contra a criminalidade organizada, como reflete a Decisão‑Quadro 2008/841 que lhe é consagrada. Com efeito, o seu primeiro considerando refere, nomeadamente, que é necessário reforçar a cooperação entre os Estados‑Membros da União para fazer face à perigosidade e à proliferação das organizações criminosas, bem como para dar uma resposta eficaz às expectativas dos cidadãos e às necessidades dos Estados‑Membros. É neste sentido que os artigos 2.o e 3.o desta decisão‑quadro instam os Estados‑Membros a tomarem as medidas necessárias, por um lado, para que certos tipos de conduta relacionados com a uma organização criminosa sejam considerados infração e, por outro, para que, nomeadamente, essas infrações sejam puníveis com uma pena de prisão com a duração máxima de, pelo menos, dois a cinco anos.

43

Nestas condições, para determinar se o litígio que lhe foi submetido está abrangido pelo âmbito de aplicação do princípio ne bis in idem, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apurar, particularmente, se o recorrente no processo principal foi condenado pelo Landesgericht Wien (Tribunal Regional de Viena) pelos mesmos factos que lhe foram imputados ao abrigo do mandado de detenção europeu emitido contra si pelo Amtsgericht Bamberg (Tribunal de Primeira Instância de Bamberg), ou, pelo contrário, como foi, nomeadamente, alegado na audiência no Tribunal de Justiça, apenas pelos factos constitutivos de burla praticados contra as pessoas lesadas residentes na Áustria, e não pelos factos cometidos em prejuízo das pessoas residentes na Alemanha. No segundo caso, não se pode considerar que a sentença austríaca anterior, transitada em julgada, relativa ao recorrente no processo principal se baseie nos mesmos factos que os dos processos instaurados contra ele na Alemanha. Quando muito, pode considerar‑se que a referida decisão anterior visou factos semelhantes, o que, todavia, não é suficiente para considerar preenchida a condição «idem», como resulta da jurisprudência referida no n.o 37 do presente acórdão.

44

É sob reserva destas observações preliminares que há que responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Quanto à primeira questão

45

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS é válido à luz do artigo 50.o da Carta, na medida em que permite a um Estado‑Membro declarar que não está vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS quando os factos a que se refere uma sentença estrangeira constituam crime contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro.

46

Como foi recordado nos n.os 31 e 32 do presente acórdão, o artigo 54.o da CAAS, que foi incorporado no direito da União pelo Protocolo que integra o Acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, anexado ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (JO 1997, C 340, p. 93), consagra, à semelhança do artigo 50.o da Carta, o princípio ne bis in idem.

47

Por conseguinte, a possibilidade, prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, de um Estado‑Membro estabelecer uma exceção a esse princípio quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro, constitui uma restrição ao direito fundamental garantido no artigo 50.o da Carta.

48

Todavia, essa restrição pode ser justificada com base no seu artigo 52.o, n.o 1 (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost,C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 40 e jurisprudência referida).

49

Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, primeiro período, da Carta, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos por esta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. De acordo com o segundo período do referido número, na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

50

No caso em apreço, em primeiro lugar, a restrição do princípio ne bis in idem deve ser considerada prevista por lei, uma vez que resulta do artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS (v., por analogia, Acórdão de 27 de maio de 2014, Spasic,C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.o 57).

51

Embora a exigência segundo a qual qualquer restrição ao exercício dos direitos fundamentais deve ser prevista por lei implique que a própria base jurídica que permite a ingerência nesses direitos deva definir o alcance da restrição ao exercício do direito em causa, esta exigência confunde‑se amplamente com as exigências de clareza e de precisão que decorrem do princípio da proporcionalidade, e é nesta perspetiva que deve ser examinada (v., neste sentido, Acórdão de 5 de maio de 2022, BV,C‑570/20, EU:C:2022:348, n.o 31 e jurisprudência referida).

52

Em segundo lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma restrição ao princípio ne bis in idem respeita o conteúdo essencial do artigo 50.o da Carta quando essa restrição consiste apenas em permitir investigar e sancionar novamente os mesmos factos para prosseguir um objetivo distinto (v., neste sentido, Acórdão de 22 de março de 2022, bpost,C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 43).

53

A este respeito, segundo a própria redação do artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, a exceção que esta disposição prevê a esse princípio só é válida quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro que pretende fazer uso dessa exceção.

54

Sem que seja necessário, no presente caso, definir exaustivamente o alcance do conceito de «segurança do Estado», na aceção da referida disposição, este deve, em todo caso, aproximar‑se do conceito de «segurança nacional», referido, nomeadamente, no artigo 4.o, n.o 2, TUE, como observou o advogado‑geral no n.o 60 das suas conclusões.

55

No que respeita a este último conceito, o Tribunal de Justiça já declarou que o objetivo de preservação da segurança nacional corresponde ao interesse primordial de proteger as funções essenciais do Estado e os interesses fundamentais da sociedade, através da prevenção e da repressão de atividades suscetíveis de desestabilizar gravemente as estruturas constitucionais, políticas, económicas ou sociais fundamentais de um país, em especial de ameaçar diretamente a sociedade, a população ou o Estado enquanto tal (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 135, e de 20 de setembro de 2022, SpaceNet e Telekom Deutschland, C‑793/19 e C‑794/19, EU:C:2022:702, n.o 92 e jurisprudência referida).

56

Daqui resulta que, além da sua especial gravidade, os crimes em razão dos quais o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS autoriza exceções ao princípio ne bis in idem, porquanto atentam contra a segurança do Estado‑Membro em causa, devem afetar esse próprio Estado‑Membro. O mesmo se aplica aos crimes contra outros interesses do Estado‑Membro, referidos nesta disposição. Com efeito, uma vez que devem ser essenciais a esse Estado‑Membro na mesma medida que a sua segurança, esses outros interesses devem revestir uma importância análoga a esta e, por conseguinte, ser igualmente inerentes ao referido Estado‑Membro.

57

Por conseguinte, o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, ao prever a faculdade de um Estado‑Membro introduzir exceções ao referido princípio apenas para crimes contra a sua segurança ou outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro, respeita o conteúdo essencial desse princípio, na medida em que permite ao referido Estado‑Membro reprimir crimes que o afetam e, assim, prosseguir objetivos que são necessariamente diferentes daqueles pelos quais o arguido já foi julgado noutro Estado‑Membro.

58

Em terceiro lugar, tendo em conta a importância da repressão das ofensas à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa, a restrição do princípio ne bis in idem prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS responde a um objetivo de interesse geral.

59

Em quarto lugar, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, este exige que as restrições que possam nomeadamente ser impostas por atos de direito da União aos direitos e liberdades consagrados na Carta não ultrapassem os limites do que é adequado e necessário para alcançar os objetivos legítimos prosseguidos ou a necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros, entendendo‑se que, sempre que exista uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva. Além disso, um objetivo de interesse geral não pode ser prosseguido sem que se tenha em conta o facto de que deve ser conciliado com os direitos fundamentais afetados pela medida, através de uma ponderação equilibrada entre, por um lado, o objetivo de interesse geral e, por outro, os direitos em causa, a fim de assegurar que os inconvenientes causados por esta medida não sejam desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos. Assim, a possibilidade de justificar uma restrição ao princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta deve ser apreciada através da avaliação da gravidade da ingerência que tal restrição implica e da verificação de que a importância do objetivo de interesse geral prosseguido por esta restrição está relacionada com essa gravidade (v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Orde van Vlaamse Balies e o., C‑694/20, EU:C:2022:963, n.o 41 e jurisprudência referida).

60

A este respeito, há que observar que a faculdade prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS é apta a realizar o objetivo de interesse geral de repressão por um Estado‑Membro de ofensas à sua segurança ou outros dos seus interesses igualmente essenciais.

61

Por outro lado, tendo em conta a natureza e a especial gravidade dessas ofensas, a importância do objetivo de interesse geral ultrapassa a da luta contra a criminalidade em geral, ainda que grave. Sem prejuízo do respeito dos restantes requisitos previstos no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, este objetivo é, por conseguinte, suscetível de justificar medidas que incluem ingerências nos direitos fundamentais que não são autorizadas para prosseguir e sancionar os crimes em geral (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 136, e de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána e o., C‑140/20, EU:C:2022:258, n.o 57 e jurisprudência referida).

62

É o caso, nomeadamente, de uma medida que consista na possibilidade de um Estado‑Membro declarar que não está vinculado pelo princípio ne bis in idem para investigar e sancionar factos que, embora já tenham sido objeto de uma sentença estrangeira, constituem um crime contra a sua segurança ou outros dos seus interesses igualmente essenciais. A este respeito, importa igualmente salientar que, dado o seu objeto específico, o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS só autoriza exceções materialmente circunscritas a este princípio.

63

Além disso, no que se refere ao caráter estritamente necessário da exceção ao mencionado princípio prevista nesta disposição, há que observar, antes de mais, que o artigo 55.o, n.o 2, da CAAS exige que o Estado‑Membro que tenha feito uma declaração relativa à exceção mencionada no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), especifique as categorias de crimes às quais esta exceção pode ser aplicada. Por conseguinte, os Estados‑Membros que pretendam invocar a referida exceção têm de adotar regras claras e precisas que permitam aos particulares prever os atos e omissões suscetíveis de ser objeto de novos processos, mesmo que já tenham sido objeto de uma sentença estrangeira (v., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.o 51).

64

Em seguida, o artigo 56.o da CAAS prevê que, se um Estado‑Membro instaurar uma nova ação judicial contra uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por outro Estado‑Membro, por um lado, será descontado na sanção que venha a ser eventualmente imposta qualquer período de privação de liberdade cumprido no território desta última parte contratante por esses factos e, por outro, que há que ter em conta, na medida em que as legislações nacionais o permitam, sanções diferentes das privativas de liberdade que tenham já sido cumpridas.

65

Assim, a faculdade prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, de introduzir uma exceção ao princípio ne bis in idem é acompanhada de regras para garantir que os encargos daí resultantes para as pessoas em questão são limitados ao estritamente necessário para cumprir o objetivo referido no n.o 58 do presente acórdão (v., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.o 54).

66

Daqui resulta que esta faculdade não excede os limites do que é adequado e necessário para permitir a um Estado‑Membro reprimir as ofensas à sua segurança ou a outros dos seus interesses igualmente essenciais.

67

À luz das considerações precedentes, o exame da primeira questão não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS à luz do artigo 50.o da Carta.

Quanto à segunda questão

68

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, lido em conjugação com o artigo 50.o e o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à interpretação, pelos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, da declaração feita por este último ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, segundo a qual esse Estado‑Membro não está vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS no que respeita ao crime de constituição de uma organização criminosa, quando a organização criminosa em que o arguido participou tenha cometido exclusivamente crimes contra o património.

69

Na medida em que, através de uma declaração ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, um Estado‑Membro pretende exercer a faculdade de prever uma exceção ao princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, referindo que, em relação aos crimes em causa, não está vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS, esta declaração pode respeitar o artigo 50.o e o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, desde que estejam preenchidos os requisitos previstos, para o efeito, pela CAAS, que, como resulta da resposta à primeira questão, garantem a compatibilidade dessa faculdade com o artigo 50.o da Carta.

70

Assim, há que esclarecer, a título preliminar, que, além da questão do alcance dos crimes em causa no processo principal, devem estar preenchidos os requisitos expostos no n.o 63 do presente acórdão. A este respeito, a República Federal da Alemanha, no momento da ratificação da CAAS, fez uma declaração publicada no Bundesgesetzblatt (Jornal Oficial da República Federal da Alemanha) referindo, em conformidade com o artigo 55.o, n.o 2, da CAAS, que não estava vinculada pelo disposto no artigo 54.o da CAAS, nomeadamente, quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam um crime previsto no § 129 do StGB.

71

Por conseguinte, afigura‑se que foram adotadas regras claras e precisas que permitem aos particulares prever que os factos relativos à constituição de uma organização criminosa são suscetíveis de ser objeto de novos processos, mesmo que já tenham sido objeto de uma sentença estrangeira, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

72

A este respeito, importa precisar que a existência dessas regras não pode ser contestada pelo facto de, como alega nomeadamente a República da Áustria nas suas observações escritas, as mesmas implicarem pesquisas que exigem certos conhecimentos jurídicos.

73

Com efeito, como declarou o Tribunal de Justiça, o facto de, por um lado, a pessoa em causa ter, além da redação das disposições pertinentes, de atender à interpretação que lhes é dada pelos órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, de recorrer a aconselhamento especializado para avaliar as consequências que podem resultar de um determinado ato não é, em si mesmo, suscetível de pôr em causa o caráter claro e preciso das regras relativas às exceções ao princípio ne bis in idem (v., neste sentido, Acórdão de 5 de maio de 2022, BV,C‑570/20, EU:C:2022:348, n.os 39 e 43).

74

Partindo destas precisões preliminares, importa sublinhar que os processos instaurados ao abrigo de uma exceção a este princípio, em aplicação de uma declaração de um Estado‑Membro que exerce a faculdade prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, só podem ter por objetivo, segundo esta disposição, reprimir as ofensas à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro. Consequentemente, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se é possível interpretar a declaração feita pelo Estado‑Membro em causa, nos termos do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, de modo que os processos instaurados ao abrigo dessa declaração respeitem os requisitos desta disposição.

75

A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que a exceção prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS abrange crimes como a espionagem, a traição ou ofensas graves ao funcionamento dos poderes públicos, que, pela sua natureza, estão ligados à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa.

76

No entanto, daí não decorre que o âmbito de aplicação desta exceção se limite necessariamente a esses crimes. Com efeito, não se pode excluir que processos relativos a crimes cujos elementos constitutivos não comportem especificamente uma ofensa à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro possam igualmente estar abrangidos por esta mesma exceção, quando, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado, se possa demonstrar adequadamente que a finalidade dos processos pelos factos em causa tem por objetivo reprimir ofensas a essa segurança ou a outros desses interesses igualmente essenciais.

77

Em segundo lugar, na medida em que respeitam à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa, os processos instaurados, a respeito de um crime abrangido por uma declaração que concretiza a faculdade prevista no artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, devem, como resulta dos n.os 55, 56, 61 e 62 do presente acórdão, incidir sobre factos que afetam, com especial gravidade, o Estado‑Membro em causa.

78

Ora, nem todas as organizações criminosas afetam, necessariamente e enquanto tal, a segurança ou os outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa. Assim, o crime relativo à constituição de uma organização criminosa só pode dar origem a processos ao abrigo da exceção ao princípio ne bis in idem prevista nesse artigo 55.o, n.o 1, alínea b), no caso de organizações cujas atividades, em razão de elementos que as distinguem, se possam considerar constitutivas dessas ofensas.

79

Neste contexto, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio versam sobre a importância a atribuir ao facto de uma organização criminosa se dedicar exclusivamente a crimes contra o património, sem prosseguir objetivos políticos, ideológicos, religiosos ou filosóficos, ou procurar exercer influência sobre a política, os meios de comunicação social, a Administração Pública, o poder judicial ou a economia por meios ilícitos.

80

A este respeito, importa, antes de mais, esclarecer que, em todo o caso, os elementos referidos no número anterior relativos aos objetivos prosseguidos ou à influência pretendida não bastam para qualificar uma organização criminosa de necessariamente ofensiva da segurança ou de outros interesses igualmente essenciais do Estado‑Membro em causa, sem atender à gravidade dos danos que as suas atividades causaram a esse Estado‑Membro.

81

Em seguida, não é de excluir que, em certas circunstâncias, uma organização criminosa que se dedica exclusivamente a crimes contra o património lese a segurança ou outros interesses igualmente essenciais de um Estado‑Membro. A este respeito, para que as atividades dessa organização criminosa possam ser consideradas constitutivas dessa ofensa, esses crimes devem, independentemente da intenção efetiva da referida organização e além da ofensa à ordem pública que todos os crimes implicam, afetar o próprio Estado‑Membro.

82

Ora, atentas as informações de que dispõe o Tribunal de Justiça, não se afigura que, apesar da gravidade das ofensas ao património das pessoas lesadas, as atividades da organização criminosa em causa no processo principal tenham prejudicado a própria República Federal da Alemanha, pelo que as atividades desta organização criminosa não parecem estar abrangidas pelos crimes contra a segurança do Estado ou outros dos seus interesses igualmente essenciais, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

83

À luz de todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da CAAS, lido em conjugação com o artigo 50.o e o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à interpretação, pelos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, da declaração feita por este último ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, segundo a qual esse Estado‑Membro não está vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS no que respeita ao crime de constituição de uma organização criminosa, quando a organização criminosa em que o arguido participou tenha cometido exclusivamente crimes contra o património, desde que esses processos tenham por objeto, tendo em conta as atividades dessa organização, sancionar ofensas à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro.

Quanto às despesas

84

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

O exame da primeira questão não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen em 19 de junho de 1990 e que entrou em vigor em 26 de março de 1995, à luz do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

2)

O artigo 55.o, n.o 1, alínea b), da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, lido em conjugação com o artigo 50.o e o artigo 52.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à interpretação, pelos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, da declaração feita por este último ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, da CAAS, segundo a qual esse Estado‑Membro não está vinculado pelo disposto no artigo 54.o da CAAS no que respeita ao crime de constituição de uma organização criminosa, quando a organização criminosa em que o arguido participou tenha cometido exclusivamente crimes contra o património, desde que esses processos tenham por objeto, tendo em conta as atividades dessa organização, sancionar ofensas à segurança ou a outros interesses igualmente essenciais desse Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.