ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

15 de setembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva (UE) 2016/343 — Reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal — Artigo 8.o, n.o 1 — Direito do arguido de comparecer em julgamento — Inquirição de uma testemunha de acusação na ausência do arguido — Possibilidade de sanar a violação de um direito numa fase posterior do processo — Inquirição adicional da mesma testemunha — Diretiva 2013/48/UE — Direito de acesso a um advogado em processo penal — Artigo 3.o, n.o 1 — Inquirição de uma testemunha de acusação na ausência do advogado do arguido»

No processo C‑347/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), por Decisão de 3 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de junho de 2021, no processo penal contra

DD,

sendo interveniente:

Spetsializirana prokuratura

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Jääskinen, presidente de secção, M. Safjan (relator) e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de DD, por V. Vasilev, advokat,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. Wasmeier e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1), e do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares (JO 2013, L 294, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra DD por infrações cometidas em matéria de imigração clandestina.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2013/48

3

O considerando 54 da Diretiva 2013/48 tem a seguinte redação:

«A presente diretiva estabelece regras mínimas. Os Estados‑Membros podem alargar os direitos previstos na presente diretiva a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado. [...]»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», dispõe:

«A presente diretiva estabelece regras mínimas relativas aos direitos dos suspeitos ou acusados em processo penal [...] de terem acesso a um advogado e de informarem um terceiro da sua privação de liberdade, bem como de comunicarem, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares.»

5

O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito de acesso a um advogado em processo penal», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos e acusados tenham direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir‑lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa.

[...]

3.   O direito de acesso a um advogado implica o seguinte:

[...]

c)

Os Estados‑Membros garantem que, no mínimo, o suspeito ou acusado tenha o direito a que o seu advogado esteja presente nas diligências de investigação ou de recolha de provas adiante indicadas, se tais diligências estiverem previstas na lei nacional aplicável e o suspeito ou acusado for obrigado ou autorizado a estar presente na diligência em causa:

i)

sessões de identificação,

ii)

acareações,

iii)

reconstituições da cena do crime.

[...]»

Diretiva 2016/343

6

Os considerandos 33 e 47 da Diretiva 2016/343 enunciam:

«(33)

O direito a um processo equitativo constitui um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática. Este direito está na base do direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento e deverá estar garantido em toda a União.

[...]

(47)

A presente diretiva respeita os direitos e os princípios fundamentais reconhecidos pela [Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia] e pela [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950], nomeadamente [...] o direito de ação e o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa. [...]»

7

O artigo 8.o desta diretiva, sob a epígrafe «Direito de comparecer em julgamento», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido t[ê]m o direito de comparecer no próprio julgamento.»

Direito búlgaro

8

O artigo 55.o do nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal; a seguir «NPK») prevê:

«O arguido tem os seguintes direitos:

[...]

participar no processo penal

[...]

ter um advogado.»

9

Por força do artigo 94.o, n.o 1, ponto 8, do NPK, quando um processo é julgado na ausência do arguido, é obrigatório que a defesa desse arguido seja assegurada por um advogado.

10

O artigo 99.o do NPK prevê:

«O advogado tem os seguintes direitos:

[...]

participar no processo penal. […]»

11

Em conformidade com o artigo 269.o, n.o 3, do NPK, um processo só pode ser julgado na ausência do arguido se o seu paradeiro for desconhecido ou se este tiver sido informado da possibilidade de o processo decorrer na sua ausência.

12

O artigo 271.o, n.o 2, do NPK dispõe:

«A audiência será suspensa se as seguintes pessoas não comparecerem:

[...]

2. o arguido [...]

3. o advogado [...]»

13

Nos termos do artigo 348.o, n.o 3, do NPK:

«O incumprimento das regras processuais é substancial quando:

1.

implicou uma limitação dos direitos processuais das partes e não foi sanado.

[...]»

Tramitação no processo principal e questões prejudiciais

14

DD, agente da polícia de fronteiras do Aeroporto de Sófia (Bulgária), foi alvo, juntamente com outras pessoas, de uma ação penal por infrações em matéria de imigração clandestina, intentada no órgão jurisdicional de reenvio, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária).

15

Aquando de uma primeira audiência que se realizou no órgão jurisdicional de reenvio, em 15 de outubro de 2020, DD compareceu acompanhado do seu advogado, VV. Nessa audiência, procedeu‑se à inquirição, designadamente, da testemunha com identidade secreta n.o 263, que pôde ser interrogada por VV. A continuação desta inquirição foi marcada para 30 de novembro de 2020.

16

Em 27 de novembro de 2020, VV pediu o adiamento da audiência prevista e do processo para uma data posterior, com o fundamento de que ainda não estava restabelecido depois de ter contraído o coronavírus.

17

Na audiência que teve lugar em 30 de novembro de 2020, DD pediu o adiamento do processo para uma data posterior devido à ausência do seu advogado, VV. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio procedeu à inquirição da testemunha com identidade secreta n.o 263, reconhecendo ao mesmo tempo que isso constituía uma violação do direito de DD de ser representado por um advogado, bem como do direito de VV de assistir e de participar no processo. Todavia, referindo‑se ao Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido) (C‑688/18, EU:C:2020:94), esse órgão jurisdicional considerou que esta irregularidade poderia ser sanada procedendo a uma nova inquirição da testemunha com identidade secreta n.o 263 na audiência seguinte, prevista para 18 de dezembro de 2020, para que VV lhe pudesse colocar as suas questões. As partes presentes na audiência de 30 de novembro de 2020 colocaram as suas questões à referida testemunha. Em seguida, foi enviada uma cópia da ata dessa inquirição a VV.

18

Em 4, 10 e 15 de dezembro de 2020, VV apresentou documentos que comprovavam os seus problemas de saúde e o facto de DD padecer do coronavírus, e pediu por duas vezes o adiamento do processo para data posterior.

19

Na audiência seguinte, que, todavia, teve lugar em 18 de dezembro de 2020, na ausência de DD e de VV, o órgão jurisdicional de reenvio procedeu ao interrogatório da testemunha YAR, cujo depoimento era pertinente para efeitos da ação penal contra DD, fazendo observar novamente que seria dada a DD e a VV a possibilidade de interrogarem esta testemunha na audiência seguinte. Foi enviada uma cópia da ata dessa inquirição a DD e a VV.

20

Realizou‑se uma audiência em 11 de janeiro de 2021, na qual compareceram DD e VV. Nessa ocasião, VV questionou a decisão do órgão jurisdicional de reenvio de ter mantido as audiências de 30 de novembro de 2020 e 18 de dezembro de 2020, invocando uma violação dos direitos de defesa. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considerou nomeadamente que, embora a realização das referidas audiências tivesse implicado uma violação do direito de DD e de VV de estarem presentes pessoalmente, esta podia ser sanada através de uma nova inquirição das testemunhas em causa.

21

Numa audiência realizada em 22 de fevereiro de 2021, DD e VV tiveram a possibilidade de interrogar a testemunha com identidade secreta n.o 263 e a testemunha YAR. Nessa ocasião, DD não colocou nenhuma questão, ao passo que VV só colocou questões à testemunha YAR declarando que não tinha questões para a testemunha com identidade secreta n.o 263.

22

O órgão jurisdicional de reenvio observa que, nos termos do direito nacional, há violação do direito do arguido de comparecer em julgamento e de acesso a um advogado quando são recolhidas provas, nomeadamente através da inquirição de testemunhas, quando o arguido e o seu advogado estão ausentes. É evidente que esta irregularidade processual só pode ser sanada se estas testemunhas forem novamente convocadas e se for dada ao arguido e ao seu advogado a oportunidade de as interrogar.

23

No entanto, o direito nacional não prevê nenhuma disposição expressa sobre a natureza desta nova inquirição das testemunhas. Ou esta última tem simplesmente caráter adicional e, neste caso, as declarações feitas pelas testemunhas face às perguntas das outras partes numa inquirição anterior na ausência do arguido e do seu advogado manter‑se‑iam válidas ou a nova inquirição substitui a anterior, que deve ser considerada nula e sem valor jurídico. Em tal hipótese, as partes presentes na inquirição anterior seriam obrigadas a colocar de novo as questões que tinham colocadas nessa ocasião. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio indica que há elementos que indicam que uma inquirição adicional seria suficiente para sanar a violação das regras processuais em causa no processo principal.

24

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta do Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido) (C‑688/18, EU:C:2020:94), que, quando o arguido esteve ausente de uma audiência, o seu direito de comparecer pessoalmente no seu julgamento, consagrado no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, não é violado se tiver obtido a repetição posteriormente, na sua presença, dos atos praticados na sua ausência. Este órgão jurisdicional considera, todavia, que o alcance desta exigência não é claro. Questiona‑se, mais precisamente, se é necessário repetir a inquirição de uma testemunha por completo, de modo que, por um lado, as partes que estavam presentes anteriormente e que já tinham colocado as suas questões à testemunha devem voltar a colocar as mesmas questões e, por outro, o arguido anteriormente ausente coloca em seguida as suas questões, ou se é suficiente que a inquirição adicional ofereça simplesmente ao acusado e ao seu advogado a possibilidade de colocarem as suas perguntas à testemunha.

25

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, na medida em que, no presente processo, as audiências de 30 de novembro de 2020 e 18 de dezembro de 2020 tiveram lugar na ausência de VV, o direito de DD ser defendido por um advogado, consagrado no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48, foi violado.

26

Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O direito do arguido de estar pessoalmente presente, garantido pelo artigo 8.o, n.o 1, [da Diretiva 2016/343] conjugado com o artigo 10.o, n.o 1, [desta diretiva] e [à luz d]o considerando 44 da [mesma], é respeitado quando, numa […] audiência [diferente], uma testemunha foi [interrogada] na ausência do arguido, mas este teve a oportunidade de interrogar a testemunha na audiência seguinte, tendo declarado que não tinha nenhuma questão a colocar, ou, para respeitar o direito do arguido de estar pessoalmente presente, é necessário repetir por completo a inquirição, incluindo a repetição das questões das outras partes que estiveram presentes na primeira inquirição?

2)

O direito de ser defendido por um advogado, garantido pelo artigo 3.o, n.o 1, [da Diretiva 2013/48], lido em conjugação com o artigo 12.o, n.o 1, [desta Diretiva], é respeitado quando duas testemunhas foram [interrogadas] em duas audiências diferentes na ausência do advogado [do arguido], mas foi dada ao advogado a oportunidade de interrogar as duas testemunhas na audiência seguinte, ou é necessário, a fim de salvaguardar o direito de defesa por um advogado, que essas duas [inquirições], incluindo as questões das outras partes [nas] primeira[s] [inquirições], sejam repetidas na íntegra e, além disso, que seja dada ao advogado que esteve ausente nas duas audiências anteriores a oportunidade de colocar as suas questões?»

27

Por carta de 5 de agosto de 2022, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) informou o Tribunal de Justiça de que, na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) foi extinto e determinados processos penais pendentes neste último órgão jurisdicional, incluindo o processo principal, foram transferidos a partir dessa data para o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia).

Quanto às questões prejudiciais

28

Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 e o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48 devem ser interpretados no sentido de que, quando, para assegurar o respeito do direito do arguido de comparecer em julgamento e do seu direito de aceder a um advogado, o órgão jurisdicional nacional procede a uma inquirição adicional de uma testemunha de acusação, na medida em que, por razões independentes da sua vontade, o arguido e o seu advogado não puderam comparecer na inquirição anterior dessa testemunha, é suficiente que o arguido e o seu advogado possam livremente interrogar essa testemunha, ou se essa inquirição adicional deve consistir numa repetição por completo da inquirição anterior da mesma testemunha, o que teria por efeito invalidar os atos processuais realizados durante a inquirição anterior.

29

Em primeiro lugar, importa recordar que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 prevê que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito e o arguido têm o direito de comparecer no próprio julgamento.

30

Nos termos do considerando 47 desta diretiva, a mesma respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos pela Carta dos Direitos Fundamentais e pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»), nomeadamente o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa.

31

Como decorre do considerando 33 da referida diretiva, o direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento assenta no direito a um processo equitativo, que está consagrado no artigo 6.o da CEDH, ao qual correspondem, como explicam as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), o artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e o artigo 48.o da Carta. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve assegurar que a interpretação que fornece destas últimas disposições garante um nível de proteção que respeite o garantido pelo artigo 6.o da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (v., neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2019, Gambino e Hyka, C‑38/18, EU:C:2019:628, n.o 39 e jurisprudência referida).

32

A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a realização de uma audiência pública constitui um princípio fundamental consagrado no artigo 6.o da CEDH. Este princípio reveste uma importância particular em matéria penal, cujo processo deve geralmente prever um órgão jurisdicional de primeira instância que cumpra plenamente as exigências do artigo 6.o da CEDH e perante o qual um particular pode legitimamente exigir ser «ouvido» e beneficiar, nomeadamente, da possibilidade de expor oralmente os seus fundamentos de defesa, de ouvir os depoimentos de acusação, bem como de interrogar e contrainterrogar as testemunhas [v., neste sentido, TEDH, 23 de novembro de 2006, Jussila c. Finlândia (CE:ECHR:2006:1123JUD007305301, § 40), e TEDH, 4 de março de 2008, Hüseyin Turan c. Turquia (CE:ECHR:2008:0304JUD001152902, § 31)].

33

Decorre igualmente da jurisprudência do TEDH que os Estados contratantes dispõem de uma grande liberdade na escolha dos meios adequados para permitir que os seus sistemas judiciais respondam às exigências impostas pelo artigo 6.o da CEDH quanto ao direito do acusado de participar na audiência, devendo os meios processuais propostos pelo direito e pela prática internas revelar‑se efetivos se este não tiver renunciado a comparecer e a se defender nem ter tido a intenção de se subtrair à justiça (v., neste sentido, TEDH, 1 de março de 2006, Sejdovic c. Itália, CE:ECHR:2006:0301JUD005658100, § 83).

34

No que respeita mais especificamente ao direito de obter a convocação e o interrogatório das testemunhas, previsto no artigo 6.o, n.o 3, alínea d), da CEDH, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que esta disposição consagra o princípio segundo o qual, antes de o acusado poder ser declarado culpado, todos os elementos de acusação devem, em princípio, ser apresentados em audiência pública, com vista a um debate contraditório. As exceções a esse princípio só podem ser aceites sob reserva do respeito dos direitos de defesa, que exigem, em regra, dar ao acusado uma possibilidade adequada e suficiente de contestar os depoimentos de acusação e de interrogar os seus autores, quer no momento da sua deposição, quer numa fase posterior [v., neste sentido, TEDH, 15 de dezembro de 2011, Al‑Khawadja e Tahery c. Reino Unido (CE:ECHR:2011:1215JUD002676605, § 118), e TEDH, 23 de março de 2016, Blokhin c. Rússia (CE:ECHR:2016:0323JUD004715206, § 200)].

35

Tendo em conta esta jurisprudência, há que constatar que, embora o interrogatório de uma testemunha de acusação numa audiência realizada na ausência do arguido por razões independentes da sua vontade constitua uma violação do direito de essa pessoa comparecer em julgamento, consagrado no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, esta disposição não se opõe a que essa violação seja sanada numa fase posterior do mesmo processo. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que não se pode considerar que uma pessoa esteve ausente do seu julgamento, quando essa pessoa obteve a repetição, na sua presença, dos atos praticados em audiências às quais não pôde comparecer [Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido), C‑688/18, EU:C:2020:94, n.o 48)].

36

Para garantir o respeito do direito a um processo equitativo e dos direitos de defesa, a repetição da inquirição da testemunha de acusação deve, no entanto, ser efetuada em condições que deem ao arguido a possibilidade adequada de contestar o depoimento de acusação e de interrogar o seu autor.

37

Para este efeito, basta proceder a uma inquirição adicional na qual o arguido tem a possibilidade de interrogar livremente a testemunha, sem que seja necessário repetir por completo a inquirição realizada na sua ausência, uma vez que a invalidação dos atos processuais praticados nessa inquirição não se afigura necessária à luz das exigências constantes do número anterior.

38

Todavia, é importante que, previamente à inquirição adicional, seja enviada ao arguido uma cópia da ata da inquirição da testemunha de acusação à qual se procedeu na sua ausência. Com efeito, só na condição de ter conhecimento do conteúdo e do desenrolar do interrogatório da testemunha nessa inquirição anterior é que o arguido está plenamente em condições de a interrogar, se for caso disso, com base nas declarações feitas na referida inquirição.

39

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, por razões de saúde, DD não pôde assistir à audiência que teve lugar em 18 de dezembro de 2020 e durante a qual foi interrogada a testemunha YAR. Contudo, foi enviada a DD uma cópia da ata dessa inquirição e, em seguida, teve ocasião de interrogar livremente essa testemunha numa audiência posterior realizada em 22 de fevereiro de 2021. Por conseguinte, sem prejuízo das verificações do órgão jurisdicional de reenvio, há que constatar que foi assim sanada a violação do direito de DD de comparecer em julgamento, consagrado no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343.

40

Em segundo lugar, importa recordar que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48 consagra o princípio fundamental segundo o qual os suspeitos e acusados têm direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir‑lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa [v., neste sentido, Acórdão de 12 de março de 2020, VW (Direito de acesso a um advogado em caso de não comparência), C‑659/18, EU:C:2020:201, n.o 31].

41

Quanto às diligências de investigação ou de recolha de provas às quais se aplica este direito, o artigo 3.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 2013/48 prevê que os Estados‑Membros garantem que, no mínimo, o suspeito ou acusado tenha o direito de que o seu advogado esteja presente nas sessões de identificação dos suspeitos, nas acareações e nas reconstituições da cena do crime.

42

Além disso, importa recordar que, nos termos do artigo 1.o da Diretiva 2013/48, a mesma estabelece regras mínimas relativas aos direitos dos suspeitos ou acusados de terem acesso a um advogado em processo penal.

43

O considerando 54 desta diretiva enuncia que, uma vez que esta última apenas estabelece regras mínimas, os Estados‑Membros podem alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado.

44

Nos termos da própria redação do artigo 3.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 2013/48, os Estados‑Membros podem, assim, alargar o direito dos suspeitos ou acusados à presença do seu advogado nas diligências de investigação ou das medidas de recolha de provas enumeradas nessa disposição a outras medidas, como a inquirição de uma testemunha de acusação num tribunal penal.

45

Ora, nestas condições, há que constatar que, tendo em conta os princípios fundamentais de um processo equitativo recordados nos n.os 35 a 38 do presente acórdão, o exercício dos direitos de defesa de um arguido pode ser considerado concreto e efetivo quando, ao realizar‑se uma inquirição de uma testemunha de acusação num tribunal penal sem a presença do advogado do arguido por razões independentes da sua vontade, esse advogado teve a possibilidade de interrogar livremente a referida testemunha, com base na ata da inquirição a que se procedeu na sua ausência, aquando de uma inquirição adicional. Assim, não é necessário repetir por completo a inquirição realizada na sua ausência.

46

Tendo em conta o que precede, há que responder às questões submetidas que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 e o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48 devem ser interpretados no sentido de que, quando, para assegurar o respeito do direito do arguido de comparecer em julgamento e do seu direito de aceder a um advogado, o órgão jurisdicional nacional procede a uma inquirição adicional de uma testemunha de acusação, na medida em que, por razões independentes da sua vontade, o arguido e o seu advogado não puderam comparecer na inquirição anterior dessa testemunha, é suficiente que o arguido e o seu advogado possam livremente interrogar a referida testemunha, desde que, previamente a essa inquirição adicional, tenha sido enviada ao arguido e ao seu advogado uma cópia da ata da inquirição anterior da mesma testemunha. Nestas condições, não é necessário repetir na totalidade a inquirição realizada na ausência do arguido e do seu advogado, invalidando os atos processuais praticados na mesma.

Quanto às despesas

47

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

 

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, e o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

quando, para assegurar o respeito do direito do arguido de comparecer em julgamento e do seu direito de aceder a um advogado, o órgão jurisdicional nacional procede a uma inquirição adicional de uma testemunha de acusação, na medida em que, por razões independentes da sua vontade, o arguido e o seu advogado não puderam comparecer na inquirição anterior dessa testemunha, é suficiente que o arguido e o seu advogado possam livremente interrogar a referida testemunha, desde que, previamente a essa inquirição adicional, tenha sido enviada ao arguido e ao seu advogado uma cópia da ata da inquirição anterior da mesma testemunha. Nestas condições, não é necessário repetir na totalidade a inquirição realizada na ausência do arguido e do seu advogado, invalidando os atos processuais praticados na mesma.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.