ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

16 de fevereiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Concorrência — Reparação do dano causado por uma prática proibida pelo artigo 101.o, n.o 1, TFUE — Decisão da Comissão que declara a existência de acordos colusórios em matéria de fixação de preços e de aumento de preços brutos de camiões no Espaço Económico Europeu (EEE) — Regra de processo civil nacional que prevê, em caso de procedência parcial do pedido, que as despesas ficam a cargo de cada uma das partes, salvo em caso de comportamento abusivo — Autonomia processual dos Estados‑Membros — Princípios da efetividade e da equivalência — Diretiva 2014/104/UE — Objetivos e equilíbrio de conjunto — Artigo 3.o — Direito à reparação integral do dano sofrido — Artigo 11.o, n.o 1 — Responsabilidade solidária dos autores de uma infração ao direito da concorrência — Artigo 17.o, n.o 1 — Possibilidade de o órgão jurisdicional nacional proceder à estimativa do dano — Condições — Caráter, na prática, impossível ou excessivamente difícil da quantificação do dano — Artigo 22.o — Aplicação no tempo»

No processo C‑312/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil no 3 de Valencia (Tribunal de Comércio n.o 3 de Valência, Espanha), por Decisão de 10 de maio de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de maio de 2021, no processo

Tráficos Manuel Ferrer SL,

D. Ignacio,

contra

Daimler AG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, M. L. Arastey Sahún, F. Biltgen, N. Wahl (relator) e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Tráficos Manuel Ferrer SL e D. Ignacio, por Á. Zanón Reyes, abogado,

em representação de Daimler AG, por E. de Félix Parrondo, J. M. Macías Castaño, M. López Ridruejo e M. Pérez Carrillo, abogados, e por C. von Köckritz e H. Weiß, Rechtsanwälte,

em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez de la Rúa Puig, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por A. Carrillo Parra, F. Jimeno Fernández e C. Zois, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 22 de setembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.o TFUE, em particular quanto à exigência de reparação integral do dano sofrido devido a um comportamento anticoncorrencial daí decorrente, bem como do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe duas empresas de transporte rodoviário de mercadorias, a Tráficos Manuel Ferrer SL e D. Ignacio, à Daimler AG, a propósito de uma ação de indemnização intentada por estas duas primeiras empresas e que tem por objeto a reparação do dano resultante de uma infração ao artigo 101.o TFUE, constatada pela Comissão Europeia, que foi cometida por vários construtores de camiões, entre os quais figura a Daimler.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do considerando 6 da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1):

«Para assegurar a efetiva aplicação privada no âmbito do direito civil e a efetiva aplicação pública pelas autoridades da concorrência, ambos os instrumentos são necessários para interagir de forma a assegurar a máxima eficácia das regras da concorrência. Importa regular com coerência a articulação entre as duas formas de aplicação, por exemplo, em relação aos acordos em matéria de acesso aos documentos detidos pelas autoridades da concorrência. Essa articulação a nível da União permitirá também evitar divergências em matéria de regras aplicáveis, que poderiam comprometer o bom funcionamento do mercado interno.»

4

O considerando 11 da referida diretiva enuncia:

«Na falta de norma de direito da União, as ações de indemnização são regidas pelas regras e pelos processos nacionais dos Estados‑Membros. De acordo com a jurisprudência do [Tribunal de Justiça], qualquer pessoa tem o direito de pedir reparação pelos danos sofridos quando exista um nexo de causalidade entre esses danos e uma infração às regras de concorrência. Todas as regras nacionais que regem o exercício do direito à reparação por danos causados por infração aos artigos 101.o ou 102.o [TFUE], inclusive as relativas a aspetos não abrangidos pela presente diretiva, como a noção de nexo de causalidade entre a infração e o dano, devem observar os princípios da efetividade e da equivalência. Tal significa que não deverão ser formuladas ou aplicadas de forma que torne excessivamente difícil ou praticamente impossível o exercício do direito à reparação garantido pelo Tratado [FUE] ou aplicadas de forma menos favorável do que as regras aplicáveis às ações nacionais análogas. Caso os Estados‑Membros estabeleçam outras condições de reparação no âmbito do direito nacional, como a imputabilidade, a adequação ou a culpabilidade, deverão poder mantê‑las, desde que respeitem a jurisprudência do Tribunal de Justiça, os princípios da efetividade e da equivalência e a presente diretiva.»

5

O considerando 12 desta diretiva tem a seguinte redação:

«A presente diretiva reafirma o acervo comunitário relativo ao direito à reparação por danos causados por infração ao direito da concorrência, garantido pelo direito da União, especialmente no que respeita à legitimidade e à definição de dano, como declarado na jurisprudência do Tribunal de Justiça, e não obsta a qualquer evolução ulterior do dito acervo. Qualquer pessoa que tenha sofrido um dano causado por tal infração pode pedir reparação por dano emergente (damnum emergens) e por lucros cessantes (lucrum cessans) por si sofridos, bem como o pagamento de juros, independentemente de as regras nacionais definirem essas categorias separadamente ou em conjunto. […]»

6

O considerando 14 da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«As ações de indemnização por infração ao direito da concorrência da União ou nacional requerem normalmente uma análise factual e económica complexa. Os elementos de prova necessários para fundamentar um pedido de indemnização estão frequentemente na posse exclusiva da parte contrária ou de terceiros e o demandante não tem suficiente conhecimento de tais elementos ou acesso aos mesmos. […]»

7

O considerando 15 da Diretiva 2014/104 enuncia:

«Os elementos de prova são importantes para intentar uma ação de indemnização por infração ao direito da concorrência da União ou nacional. No entanto, uma vez que a litigância no domínio do direito da concorrência da União se caracteriza por uma assimetria da informação, convém assegurar que os demandantes tenham o direito de obter a divulgação dos elementos de prova relevantes para o seu pedido, sem necessidade de especificarem elementos de prova individuais. […]»

8

Nos termos do considerando 43 desta diretiva:

«As infrações ao direito da concorrência dizem frequentemente respeito às condições e ao preço a que os bens ou serviços são vendidos e originam um custo adicional e outros danos aos clientes dos infratores. […]»

9

O considerando 45 da referida diretiva enuncia:

«O lesado que tenha provado que sofreu danos em resultado de uma infração ao direito da concorrência também deverá provar a extensão dos danos sofridos para obter uma indemnização. A quantificação dos danos em processos no domínio do direito da concorrência é uma operação que exige um intenso apuramento dos factos e pode requerer a aplicação de modelos económicos complexos. Isso é frequentemente muito oneroso, sendo difícil para os demandantes obter os dados necessários para fundamentar os seus pedidos. Assim, a quantificação dos danos em processos no domínio do direito da concorrência pode constituir um obstáculo significativo que impede o pedido efetivo de reparação.»

10

O considerando 46 da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«Na falta de regras da União sobre a quantificação dos danos causados por uma infração ao direito da concorrência, compete ao ordenamento jurídico nacional de cada Estado‑Membro determinar as suas próprias regras sobre a quantificação dos danos e aos Estados‑Membros e tribunais nacionais determinar os requisitos que o demandante tem de cumprir para provar o montante dos danos sofridos, os métodos que podem ser utilizados para quantificar o montante e as consequências da impossibilidade do cumprimento pleno desses requisitos. No entanto, esses requisitos do direito nacional sobre a quantificação dos danos causados no domínio do direito da concorrência não deverão ser menos favoráveis do que aqueles que regem ações nacionais análogas (princípio da equivalência) nem deverão tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito à indemnização garantido pelo direito da União (princípio da efetividade). Deverá atender‑se a quaisquer assimetrias de informação entre as partes e ao facto de a quantificação dos danos implicar a apreciação do modo como o mercado em questão teria evoluído se a infração não tivesse existido. Esta apreciação implica uma comparação com uma situação que, por definição, é hipotética, pelo que nunca poderá ser feita com toda a exatidão. Convém, portanto, assegurar que os tribunais nacionais sejam dotados da competência para calcular o montante dos danos causados pela infração ao direito da concorrência. Os Estados‑Membros deverão assegurar, quando lhes for pedido, que as autoridades nacionais da concorrência facultem orientação relativamente à quantificação. A fim de assegurar a coerência e a previsibilidade, a Comissão deverá facultar orientação geral a nível da União.»

11

Nos termos do considerando 47 da Diretiva 2014/104:

«Para corrigir a assimetria de informação e algumas das dificuldades associadas à quantificação dos danos em processos no domínio do direito da concorrência da União e para assegurar a efetividade dos pedidos de indemnização, convém presumir que as infrações cometidas por cartéis dão origem a danos, em especial através de um efeito sobre os preços. Em função das circunstâncias específicas de cada caso, os cartéis dão origem ao aumento de preços ou impedem a descida de preços que, de outro modo, ocorreriam na sua ausência. Essa presunção não deverá abranger o montante concreto dos danos. Os infratores deverão poder ilidir tal presunção. Convém limitar esta presunção ilidível a cartéis, tendo em conta a sua natureza secreta, que acentua a referida assimetria de informação e agrava a dificuldade, para os demandantes, de obterem os elementos de prova necessários para provar os danos.»

12

O artigo 3.o desta diretiva, epigrafado «Direito à reparação integral», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que as pessoas singulares ou coletivas que sofram danos causados por infrações ao direito da concorrência possam pedir e obter a reparação integral desses danos.

2.   A reparação integral coloca a pessoa que sofreu danos na posição em que estaria se a infração ao direito da concorrência não tivesse sido cometida. Por conseguinte, abrange o direito à reparação por danos emergentes e por lucros cessantes acrescido do pagamento de juros.

3.   A reparação integral nos termos da presente diretiva não pode conduzir à reparação excessiva, por meio de indemnizações punitivas, múltiplas ou de outro tipo.»

13

O artigo 5.o, epigrafado «Divulgação de elementos de prova», da referida diretiva prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que, nos processos relativos a ações de indemnização na União e a pedido do demandante que apresentou uma justificação fundamentada com factos e elementos de prova razoavelmente disponíveis, suficientes para corroborar a plausibilidade do seu pedido de indemnização, os tribunais nacionais possam ordenar ao demandado ou a um terceiro a divulgação dos elementos de prova relevantes que estejam sob o seu controlo, sob reserva das condições estabelecidas no presente capítulo. Os Estados‑Membros asseguram que os tribunais nacionais possam, a pedido do demandado, ordenar ao demandante ou a terceiros a divulgação de elementos de prova relevantes.

[…]

2.   Os Estados‑Membros asseguram que os tribunais nacionais possam ordenar a divulgação de determinados elementos de prova ou de categorias relevantes de elementos de prova, caracterizados de forma tão precisa e estrita quanto possível com base em factos razoavelmente disponíveis indicados na justificação fundamentada.

3.   Os Estados‑Membros asseguram que os tribunais nacionais limitem a divulgação dos elementos de prova ao que for proporcional. […]»

14

O artigo 11.o da mesma diretiva, epigrafado «Responsabilidade solidária», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros asseguram que as empresas que infringem o direito da concorrência por meio de um comportamento conjunto sejam solidariamente responsáveis pelos danos causados pela infração ao direito da concorrência; cada uma dessas empresas fica obrigada a reparar integralmente os danos, e o lesado tem o direito de exigir reparação integral de qualquer uma delas até ser indemnizado na íntegra.»

15

O artigo 17.o da Diretiva 2014/104, epigrafado «Quantificação dos danos», enuncia:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que nem o ónus da prova nem o grau de convicção do julgador exigidos para a quantificação dos danos tornem o exercício do direito à indemnização praticamente impossível ou excessivamente difícil. Os Estados‑Membros asseguram que os tribunais nacionais sejam competentes, de acordo com os processos nacionais, para calcular o montante dos danos, se for estabelecido que o demandante sofreu danos mas seja praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar com precisão os danos sofridos, com base nos elementos de prova disponíveis.

2.   Presume‑se que as infrações de cartel causam danos. O infrator tem o direito de ilidir essa presunção.

3.   Os Estados‑Membros asseguram que, nas ações de indemnização, a autoridade nacional da concorrência possa, a pedido do tribunal nacional, prestar‑lhe assistência na quantificação dos danos, caso a autoridade nacional da concorrência considerar adequada a prestação dessa assistência.»

16

Nos termos do artigo 22.o desta diretiva, epigrafado «Aplicação no tempo»:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que as disposições nacionais adotadas […] a fim de dar cumprimento às disposições substantivas da presente diretiva não se aplicam retroativamente.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que quaisquer disposições nacionais adotadas […] que não as referidas no n.o 1, não se aplicam às ações de indemnização intentadas nos tribunais nacionais antes de 26 de dezembro de 2014.»

Direito espanhol

17

O Real Decreto‑ley 9/2017, por el que se transponen directivas de la Unión Europea en los ámbitos financiero, mercantil y sanitario, y sobre el desplazamiento de trabajadores (Real Decreto‑Lei n.o 9/2017, relativo à Transposição de Diretivas da União Europeia nos Domínios Financeiro, Comercial e Sanitário e do Destacamento de Trabalhadores), de 26 de maio de 2017 (BOE n.o 126, de 27 de maio de 2017, p. 42820), visa, designadamente, transpor a Diretiva 2014/104 para o direito espanhol.

18

O referido Real Decreto‑Lei 9/2017 aditou um artigo 283.o bis, alínea a), à Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000, que aprova o Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000 (BOE n.o 7, de 8 de janeiro de 2000, p. 575, a seguir «Código de Processo Civil»), relativo à produção de provas em processos judiciais relativos a ações de indemnização dos danos sofridos por infrações ao direito da concorrência. O conteúdo do n.o 1, primeiro parágrafo, desta disposição é idêntico ao do artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/104.

19

O artigo 394.o deste código dispõe:

«1.   Nos processos declarativos, as custas na primeira instância são suportadas pela parte que ficou totalmente vencida, exceto se o tribunal decidir fundamentadamente que o processo suscitava sérias dúvidas quanto à matéria de facto ou de direito.

Para apreciar, para efeitos de uma condenação nas custas, se o processo suscita dúvidas jurídicas, é tida em conta a jurisprudência assente em processos semelhantes.

2.   Se os pedidos forem julgados parcialmente procedentes ou improcedentes, cada uma das partes pagará as suas próprias custas e metade das custas comuns, exceto se existirem fundamentos para condenar uma das partes por litigância de má‑fé.

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

20

Em 19 de julho de 2016, a Comissão adotou a Decisão C(2016) 4673 final relativa a um processo nos termos do artigo 101.o [TFUE] e do artigo 53.o do Acordo EEE (Processo AT.39824 — Camiões), cujo resumo foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 6 de abril de 2017 (JO 2017, C 108, p. 6). A demandada no processo principal é uma das destinatárias desta decisão.

21

Na referida decisão, a Comissão constatou que quinze fabricantes de camiões, entre os quais a demandada no processo principal, a Renault Trucks SAS e a Iveco SpA, tinham participado num cartel sob a forma de uma infração única e continuada ao artigo 101.o TFUE e ao artigo 53.o do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3), tendo por objeto acordos colusórios em matéria de fixação de preços e de aumento de preços brutos para veículos utilitários médios e para veículos pesados no Espaço Económico Europeu (EEE).

22

Quanto à demandada no processo principal, o período de infração tido em conta situou‑se entre 17 de janeiro de 1997 e 18 de janeiro de 2011.

23

Em 11 de outubro de 2019, os demandantes no processo principal intentaram uma ação de indemnização contra a demandada no processo principal, baseada no comportamento ilícito desta última. Durante o período da infração, D. Ignacio comprou um camião da marca Mercedes, fabricado pela demandada no processo principal, e a Tráficos Manuel Ferrer adquiriu onze camiões, cinco da marca Mercedes, fabricados pela referida demandada, quatro sendo pela Renault Trucks e dois pela Iveco, apresentando as características técnicas dos veículos identificados na Decisão de 19 de julho de 2016.

24

Os demandantes no processo principal afirmam ter sofrido danos que consistiram num custo adicional dos veículos adquiridos devido ao comportamento ílícito da demandada no processo principal. Apresentaram, a fim de demonstrar esse custo adicional, um relatório pericial que concluía por um custo médio adicional no mercado afetado por este cartel de 16,35 %.

25

Dado que alguns dos veículos comprados pelos demandantes no processo principal não foram fabricados pela demandada no processo principal, mas por outros destinatários da Decisão de 19 de julho de 2016, a referida demandada pediu, em 11 de agosto de 2020, a intervenção provocada no processo da Renault Trucks e da Iveco, alegando que, se o processo se desenrolasse sem esses construtores, tanto os direitos de defesa destes como os seus próprios direitos seriam violados. Por Despacho de 22 de setembro de 2020, o órgão jurisdicional de reenvio indeferiu esse pedido e confirmou esse indeferimento por Despacho de 23 de outubro de 2020.

26

A demandada no processo principal contestou igualmente o mérito da ação, nomeadamente apresentando o seu próprio relatório pericial.

27

Na sequência de uma audiência prévia no órgão jurisdicional de reenvio, foi acordado entre as partes no processo principal que os demandantes teriam acesso aos dados tomados em consideração no relatório pericial apresentado pela demandada, com o duplo objetivo de permitir uma crítica mais aprofundada e de chegar à eventual reformulação do relatório pericial apresentado pelos referidos demandantes. Este acesso foi‑lhes dado no quadro de uma sala de dados, nos escritórios da referida demandada. Em 18 de março de 2021, os demandantes no processo principal apresentaram um parecer técnico sobre os resultados obtidos na sequência da consulta dos dados em causa.

28

Após a audiência principal que perante ele decorreu, tendo ouvido as partes no processo principal discutir os respetivos relatórios periciais e apresentar as suas conclusões, o órgão jurisdicional de reenvio, por Decisão de 25 de março de 2021, decidiu suspender o prazo de prolação do acórdão e pediu‑lhes que apresentassem as suas observações sobre a oportunidade de submeter ao Tribunal de Justiça um reenvio prejudicial. As referidas partes deram seguimento a este pedido.

29

Nestas circunstâncias, o Juzgado de lo Mercantil no 3 de Valencia (Tribunal de Comércio n.o 3 de Valência, Espanha) decidiu suspender o processo e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O regime previsto no artigo 394.o, n.o 2, [do Código de Processo Civil], que permite que o lesado por um comportamento anticoncorrencial na aceção do artigo 101.o TFUE e segundo a jurisprudência que o interpreta suporte uma parte das custas judiciais em função do montante das quantias indevidamente pagas a título de custo adicional e que lhe são restituídas na sequência da procedência parcial do seu pedido de indemnização, com base na constatação da existência de uma infração ao direito da concorrência e do nexo de causalidade com a produção de um dano, que é efetivamente reconhecido, quantificado e concedido em resultado do processo, é compatível com o direito à reparação integral do lesado?

2)

A competência do órgão jurisdicional nacional para calcular o montante dos danos permite a sua quantificação de modo subsidiário e autónomo, devido à constatação de uma situação de assimetria de informação ou de dificuldades de quantificação insolúveis que não devem constituir obstáculo ao direito à reparação integral do lesado por uma prática anticoncorrencial na aceção do artigo 101.o TFUE e da sua conjugação com o artigo 47.o da Carta, mesmo que o lesado por uma infração ao direito da concorrência que consiste num cartel que está na origem de um custo adicional tenha tido acesso, no decurso do processo, aos dados em que o próprio demandado baseou o seu relatório pericial para excluir a existência de danos indemnizáveis?

3)

A competência do órgão jurisdicional nacional para calcular o montante dos danos permite a sua quantificação de modo subsidiário e autónomo devido à constatação de uma situação de assimetria de informação ou de dificuldades de quantificação insolúveis que não devem constituir obstáculo ao direito à reparação integral do lesado por uma prática anticoncorrencial na aceção do artigo 101.o TFUE e da sua conjugação com o artigo 47.o da Carta, mesmo que o lesado por uma infração ao direito da concorrência que consiste num cartel que está na origem de um custo adicional intente a sua ação de indemnização contra um dos destinatários da decisão administrativa [que constata a infração], solidariamente responsável por esses danos, mas que não comercializou o produto ou serviço adquirido pelo lesado em causa?»

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

30

Antes de mais, importa salientar que as questões do órgão jurisdicional de reenvio não mencionam a Diretiva 2014/104, mas se referem a conceitos que nela figuram, como o direito à reparação integral dos danos sofridos devido a um comportamento anticoncorrencial na aceção do artigo 101.o TFUE, a assimetria da informação entre as partes, as dificuldades de quantificação dos danos resultantes desse comportamento com as quais o juiz nacional pode ser confrontado e a responsabilidade solidária dos autores do referido comportamento. Além disso, nos fundamentos do pedido de decisão prejudicial, este órgão jurisdicional suscita a questão da aplicação no tempo dos artigos 3.o, 5.o, 11.o e 17.o, n.o 1, desta diretiva.

31

Recorde‑se, a este propósito, que, no âmbito da cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, mesmo que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são dirigidas por esses órgãos jurisdicionais [Acórdão de 7 de julho de 2022, Pensionsversicherungsanstalt (Períodos de educação de crianças no estrangeiro), C‑576/20, EU:C:2022:525, n.o 35 e jurisprudência referida].

32

Consequentemente, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado as suas questões à interpretação do artigo 101.o TFUE, em conjugação, quanto à segunda e terceira questões, com o artigo 47.o da Carta, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis ao julgamento do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. Assim, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem interpretação, tendo em conta o objeto do litígio [ver, por analogia, Acórdão de 7 de julho de 2022, Pensionsversicherungsanstalt (Períodos de educação de crianças no estrangeiro), C‑576/20, EU:C:2022:525, n.o 36 e jurisprudência referida].

33

Em seguida, quanto à questão da aplicação no tempo dos artigos 3.o, 5.o e 11.o, bem como do artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104, que o órgão jurisdicional de reenvio suscita, importa distinguir consoante estas disposições decorrem, à luz da jurisprudência, do próprio artigo 101.o TFUE, caso em que são imediatamente aplicáveis, ou resultam unicamente desta diretiva, o que impõe que se examine a sua aplicabilidade no tempo à luz do artigo 22.o da referida diretiva.

Quanto à primeira questão

34

No que respeita ao direito à reparação integral do dano sofrido devido a um comportamento anticoncorrencial, evocado no âmbito da primeira questão, importa recordar que resulta do princípio da efetividade e do direito de qualquer pessoa pedir a reparação do dano causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou de falsear o jogo da concorrência que as pessoas que sofreram um dano devem poder pedir a reparação não apenas do dano real (damnum emergens) mas também dos lucros cessantes (lucrum cessans), bem como o pagamento de juros (Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 95).

35

Assim, ao recordar, no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104, a obrigação dos Estados‑Membros de assegurarem que as pessoas singulares ou coletivas que sofram danos causados por infrações ao direito da concorrência possam pedir e obter a reparação integral desses danos e ao definir esta última, no artigo 3.o, n.o 2, como o direito à reparação por danos emergentes e por lucros cessantes acrescido do pagamento de juros, o legislador da União pretendeu reafirmar a jurisprudência existente, como se depreende do considerando 12 da referida diretiva, pelo que as medidas nacionais de transposição dessas disposições devem necessariamente aplicar‑se com efeito imediato a todas as ações de indemnização abrangidas pelo âmbito de aplicação da mesma diretiva, como confirmado pelo seu artigo 22.o, n.o 2.

36

Daqui resulta que a primeira questão visa saber, em substância, se o direito à reparação integral dos danos sofridos em resultado de um comportamento anticoncorrencial, como reconhecido e definido no artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/104 e decorrente do artigo 101.o TFUE, é contrário a uma regra de processo civil nacional como a prevista no artigo 394.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, por força da qual, em caso de procedência parcial do pedido, as despesas ficam a cargo de cada uma das partes e cada uma das partes suporta metade das despesas comuns, salvo em caso de comportamento abusivo.

37

A este respeito, como resulta das considerações expostas nos n.os 34 e 35 do presente acórdão, o direito à reparação integral dos danos sofridos em resultado de um comportamento anticoncorrencial e, em particular, de uma violação do artigo 101.o TFUE não tem por objeto as regras relativas à repartição das despesas no âmbito de processos judiciais que visam a aplicação desse direito, uma vez que essas regras não têm por objeto a indemnização dos danos, mas determinam, a nível de cada Estado‑Membro, em conformidade com o seu próprio direito, as modalidades de repartição das despesas incorridas na condução de tais processos.

38

Por outro lado, o legislador da União teve o cuidado de excluir a questão das despesas do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/104, uma vez que esta só é abordada a título incidental, no artigo 8.o, n.o 2, desta diretiva, que diz respeito às sanções em caso de recusa de apresentação de provas ou de destruição de provas e prevê a possibilidade de os tribunais nacionais condenarem nas despesas a parte que for considerada culpada dessa recusa de produção ou dessa destruição.

39

Dito isto, há que recordar que, no que respeita ao artigo 101.o TFUE, se aplica a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual as regras relativas às ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que decorrem para os litigantes do direito da União não devem ser menos favoráveis do que as que regulam ações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 2019, Cogeco Communications, C‑637/17, EU:C:2019:263, n.os 43 e 44).

40

Uma vez que uma violação do princípio da equivalência não está manifestamente em causa no caso em apreço, é à luz do princípio da efetividade que há que examinar se uma regra processual civil nacional como a prevista no artigo 394.o, n.o 2, do Código de Processo Civil e matizada, se for caso disso, pela jurisprudência dos órgãos jurisdicionais espanhóis, segundo a qual seria igualmente possível obter a condenação nas despesas quando existe uma diferença menor entre o que foi pedido e o que foi obtido no âmbito do processo, torna, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito à reparação integral dos danos sofridos em resultado de um comportamento anticoncorrencial, como reconhecido e definido no artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/104 e decorrente do artigo 101.o TFUE.

41

Neste contexto, como resulta do considerando 6 da Diretiva 2014/104, no que respeita às ações de indemnização intentadas em aplicação das medidas nacionais destinadas a transpor esta diretiva, o legislador da União baseou‑se na constatação de que o combate dos comportamentos anticoncorrenciais por iniciativa da esfera pública, ou seja, da Comissão e das autoridades nacionais da concorrência, não era suficiente para assegurar a plena observância dos artigos 101.o e 102.o TFUE e que havia que facilitar a possibilidade de a esfera privada contribuir para o alcance desse objetivo (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2022, PACCAR e o., C‑163/21, EU:C:2022:863, n.o 55).

42

Esta participação da esfera privada na sanção pecuniária, e, por conseguinte, também na prevenção de comportamentos anticoncorrenciais, é tanto mais desejável porquanto é suscetível não só de reparar o dano direto que a pessoa em questão alega ter sofrido, mas igualmente os danos indiretos causados à estrutura e ao funcionamento do mercado, que não pôde desenvolver a sua plena eficácia económica, nomeadamente em proveito dos consumidores em causa (Acórdão de 10 de novembro de 2022, PACCAR e o., C‑163/21, EU:C:2022:863, n.o 56 e jurisprudência referida).

43

É para alcançar esse objetivo que o legislador da União, tendo sublinhado, nos considerandos 14, 15, 46 e 47 da Diretiva 2014/104, a assimetria da informação existente entre a demandante e a demandada quanto ao tipo de ações visadas por essa diretiva, uma vez que, nos termos do considerando 14 da referida diretiva, «[o]s elementos de prova necessários para fundamentar um pedido de indemnização estão frequentemente na posse exclusiva da parte contrária ou de terceiros e o demandante não tem suficiente conhecimento de tais elementos ou acesso aos mesmos», obrigou os Estados‑Membros a prever medidas que permitissem ao demandante sanar essa assimetria.

44

Com este objetivo, a Diretiva 2014/104, em primeiro lugar, obriga esses Estados a dotar essa parte do poder de pedir aos órgãos jurisdicionais nacionais que ordenem ao demandado ou a um terceiro, em determinadas condições, que apresentem provas pertinentes que se encontrem na sua posse, nos termos do artigo 5.o desta diretiva. Em segundo lugar, a referida diretiva impõe aos referidos Estados que habilitem, sob certas condições, esses órgãos jurisdicionais a proceder, quando é praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar o dano, a uma estimativa deste último, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 1, desta diretiva e, se for caso disso, se estes o desejarem, com o auxílio da autoridade nacional da concorrência, como resulta do artigo 17.o, n.o 3, da referida diretiva. Em terceiro lugar, esta diretiva obriga os Estados‑Membros a estabelecer presunções, nomeadamente a relativa à existência de danos decorrentes de um cartel, prevista no artigo 17.o, n.o 2, da mesma diretiva.

45

Daqui resulta que, diferentemente da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), cuja interpretação deu lugar, nomeadamente, ao Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578), mencionado pelo órgão jurisdicional de reenvio, os quais implicam tipicamente uma parte fraca, o consumidor, que enfrenta uma parte forte, o profissional que vendeu ou alugou bens ou prestou serviços, esta relação desigual de forças, materializada numa relação contratual, encontrando os seus limites, nomeadamente, no princípio da proibição das cláusulas abusivas sancionado, em princípio, pela anulação de tais cláusulas, a Diretiva 2014/104 visa ações que põem em causa a responsabilidade extracontratual de uma empresa e que apresentam uma relação de forças entre as partes no litígio que, em resultado da intervenção das medidas nacionais de transposição de todas as disposições dessa diretiva enumeradas no n.o 44 do presente acórdão pode, consoante a utilização dos instrumentos assim colocados à disposição, em especial do demandante, ser reequilibrada.

46

Por conseguinte, há que considerar que esta jurisprudência não é transponível para um tipo de litígio caracterizado por uma intervenção do legislador da União que dote o demandante, inicialmente em desvantagem, de meios que visem reequilibrar em seu proveito a relação de forças entre este e o demandado. É do comportamento de cada uma das partes, soberanamente apreciado pelo juiz nacional que conhece do litígio, que depende a evolução dessa relação de forças e, em especial, da questão de saber se o demandante utilizou ou não os instrumentos postos à sua disposição, nomeadamente no que respeita à possibilidade de pedir a esse juiz que intime o demandado ou um terceiro a apresentar as provas pertinentes na posse destes, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/104.

47

Decorre daqui que, como salientou a advogada‑geral no n.o 68 das suas conclusões, no que respeita aos processos de reparação dos danos causados por infrações ao direito da concorrência, se um demandante for vencido, pode razoavelmente ser‑lhe imposto que suporte as suas próprias despesas ou, pelo menos, uma parte delas, bem como uma parte das despesas comuns, uma vez que, designadamente, a origem dessas despesas lhe é imputável, por exemplo devido a pedidos excessivos ou à maneira como conduziu o processo.

48

Há, portanto, que declarar que uma regra de processo civil nacional como a prevista no artigo 394.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, lida à luz da jurisprudência dos órgãos jurisdicionais espanhóis mencionada no n.o 40 do presente acórdão, não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício do direito à reparação integral do dano sofrido devido a um comportamento anticoncorrencial, conforme reconhecido e definido no artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/104 e que decorre do artigo 101.o TFUE, pelo que o princípio da efetividade não é violado.

49

Atentas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 101.o TFUE e o artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/104 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regra de processo civil nacional por força da qual, em caso de procedência parcial do pedido, as despesas ficam a cargo de cada uma das partes e cada uma das partes suporta metade das despesas comuns, salvo em caso de comportamento abusivo.

Quanto à segunda e terceira questões

50

Com a segunda e terceira questões, que devem ser tratadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que uma estimativa judicial do dano causado pelo comportamento anticoncorrencial da parte demandada é permitida em circunstâncias nas quais, por um lado, esta última concedeu à demandante acesso às informações com base nas quais tinha elaborado o seu relatório pericial para excluir a existência de um dano indemnizável e, por outro, o pedido de indemnização se dirige contra apenas um dos destinatários de uma decisão que declara uma infração ao artigo 101.o TFUE, o qual só comercializou uma parte dos produtos adquiridos pela demandante, sendo alegado que estes teriam sido afetados por um custo adicional devido a tal infração. Este órgão jurisdicional subordina, neste contexto, a possibilidade de proceder a essa estimativa à constatação de uma situação de assimetria de informação ou de dificuldades intransponíveis na quantificação do dano.

51

A título preliminar, deve recordar‑se que o artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104 constitui uma disposição processual, na aceção do artigo 22.o, n.o 2, desta diretiva (Acórdão de 22 de junho de 2022, Volvo e DAF Trucks, C‑267/20, EU:C:2022:494, n.o 85), pelo que as medidas nacionais que asseguram a transposição deste artigo 17.o, n.o 1, são, em conformidade com o referido artigo 22.o, n.o 2, aplicáveis às ações de indemnização intentadas após 26 de dezembro de 2014.

52

Dito isto, importa indicar, em primeiro lugar, que as ações de indemnização abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/104, à semelhança das ações de responsabilidade civil em geral, visam a reparação tão exata quanto possível de um dano, uma vez apurada a existência e a imputabilidade deste último, o que não exclui que, quando o juiz nacional decide a fim de determinar o montante da indemnização, subsistam certas incertezas. É por esta razão que a mera existência dessas incertezas, inerentes ao contencioso da responsabilidade e que resultam, na realidade, do confronto de argumentos e de peritagens no âmbito do debate contraditório, não corresponde ao grau de complexidade na avaliação do dano exigido para permitir a aplicação da estimativa judicial prevista no artigo 17.o, n.o 1, desta diretiva.

53

Em segundo lugar, o próprio teor desta disposição limita o âmbito de aplicação da estimativa judicial do dano às situações em que é praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificá‑lo, uma vez demonstrada a sua existência relativamente à parte demandante, o que pode corresponder, por exemplo, a dificuldades particularmente importantes de interpretação dos documentos apresentados quanto à proporção da repercussão do custo adicional resultante do acordo sobre os preços dos produtos adquiridos pela parte demandante a um dos autores do cartel.

54

Por conseguinte, o conceito de assimetria da informação, embora esteja na origem da adoção do artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104, como resulta do n.o 43 do presente acórdão, não intervém na aplicação desta norma, contrariamente ao que deixa supor a redação da segunda e terceira questões. A este respeito, como sublinhou a advogada‑geral no n.o 86 das suas conclusões, mesmo quando as partes estejam em pé de igualdade no que respeita às informações disponíveis, podem surgir dificuldades na quantificação concreta do dano.

55

A este propósito, em primeiro lugar, importa sublinhar que o objetivo recordado no n.o 41 do presente acórdão pressupõe o recurso a instrumentos suscetíveis de sanar a assimetria da informação entre as partes no litígio, uma vez que, por definição, o autor da infração sabe o que fez e o que lhe foi eventualmente imputado e conhece as provas que, nesse caso, puderam servir à Comissão ou à autoridade de concorrência nacional em causa para demonstrar a sua participação num comportamento anticoncorrencial contrário aos artigos 101.o e 102.o TFUE, ao passo que a vítima do dano provocado por esse comportamento não dispõe dessas provas (Acórdão de 10 de novembro de 2022, PACCAR e o., C‑163/21, EU:C:2022:863, n.o 59).

56

Em segundo lugar, a fim de sanar esta assimetria da informação, o legislador da União adotou um conjunto de medidas enumeradas no n.o 44 do presente acórdão, a respeito das quais importa salientar que elas interagem, uma vez que a necessidade de proceder à estimativa judicial dos danos pode depender, em particular, do resultado obtido pelo demandante na sequência de um pedido de produção de provas em aplicação do artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/104.

57

Em terceiro lugar, devido ao papel fundamental dessa disposição na diretiva, cabe ao juiz nacional, antes de proceder à avaliação do dano, verificar se a parte demandante fez uso da mesma. Com efeito, na hipótese de a impossibilidade prática de avaliar o dano resultar da inação do demandante, não cabe ao juiz nacional substituir‑se a este último nem colmatar as suas falhas.

58

No presente caso, a situação é diferente, uma vez que a demandada, após ter sido autorizada a fazê‑lo pelo órgão jurisdicional de reenvio, pôs ela própria à disposição da demandante os dados em que se baseou para contradizer a peritagem desta última. A este respeito, importa salientar, por um lado, que tal disponibilização é suscetível de alimentar o debate contraditório tanto sobre a realidade como sobre o montante do dano e, portanto, aproveita tanto as partes, que podem aperfeiçoar, modificar ou completar os seus argumentos, como ao juiz nacional, que dispõe, através dessa peritagem, seguida de uma contraperitagem esclarecida pela disponibilização dos dados em que assenta, de elementos que permitem, antes de mais, estabelecer a realidade do dano sofrido pela demandante e, em seguida, determinar a sua extensão, o que é suscetível de evitar que recorra a uma estimativa judicial deste último. Por outro lado, esta disponibilização de dados, longe de privar de pertinência o pedido de produção de provas previsto no artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/104, pode, pelo contrário, guiar a demandante e fornecer‑lhe indicações relativas a documentos ou dados que considere indispensável obter.

59

Sob reserva desta eventual incidência do artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva sobre a possibilidade de um órgão jurisdicional nacional proceder à estimativa do dano por força do artigo 17.o, n.o 1, da referida diretiva, a circunstância que caracteriza a situação em causa no processo principal, a saber, que a própria demandada, depois de ter sido autorizada pelo órgão jurisdicional de reenvio, pôs à disposição da demandante os dados em que se baseou para contradizer a peritagem desta última, não é, em si mesma, pertinente para apreciar se o órgão jurisdicional nacional pode proceder à estimativa dos danos.

60

Em terceiro lugar, a parte que apresenta um pedido de indemnização baseado na existência de um dano causado por um comportamento anticoncorrencial pode dirigir esse pedido apenas contra um dos autores desse comportamento, uma vez que, segundo a jurisprudência, como salientou a advogada‑geral no n.o 102 das suas conclusões, uma infração ao direito da concorrência implica, em princípio, a responsabilidade solidária dos seus autores (Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 36).

61

Por conseguinte, o artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104, na medida em que prevê essa possibilidade, deve ser considerado uma disposição que codifica a jurisprudência do Tribunal de Justiça e, pelas mesmas razões expostas no n.o 35 do presente acórdão a propósito do artigo 3.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, faz parte das disposições da referida diretiva cujas medidas nacionais de transposição se aplicam imediatamente.

62

Disto isto, esta possibilidade não pode privar a parte que intentou uma ação de indemnização abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/104 de pedir ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se que ordene a outros autores do comportamento ilícito que apresentem provas pertinentes, segundo as modalidades e nos limites definidos no artigo 5.o desta diretiva, a fim de permitir a esse órgão jurisdicional determinar a existência e o quantum do dano e, assim, evitar que se proceda à estimativa judicial deste último.

63

Com efeito, no caso em apreço, dois outros construtores de camiões sancionados pela Comissão na Decisão de 19 de julho de 2016, Renault Trucks e Iveco, comercializaram veículos comprados pela Tráficos Manuel Ferrer e poderiam, portanto, estar em condições de lhe fornecer provas a respeito do custo adicional devido ao cartel, a fim de determinar se, e em que proporção, este se encontrou efetivamente repercutido no preço de compra de quatro camiões Renault Trucks e de dois camiões Iveco. A este respeito, há que recordar que a demandada dispõe igualmente, em aplicação do artigo 5.o, n.o 1, primeiro parágrafo, último período, da referida diretiva, da possibilidade de pedir a esse órgão jurisdicional que ordene aos outros autores que apresentem provas pertinentes, o que pode revelar‑se particularmente útil numa situação em que, como no caso em apreço, a intervenção provocada de dois deles foi recusada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

64

Sob reserva desta eventual incidência do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104 sobre a possibilidade de um órgão jurisdicional nacional proceder à estimativa do dano nos termos do artigo 17.o, n.o 1, desta diretiva, a circunstância que caracteriza a situação em causa no processo principal, a saber, que o pedido de indemnização é dirigido apenas contra um dos destinatários de uma decisão que declara uma infração ao artigo 101.o TFUE, que só comercializou uma parte dos produtos adquiridos pela demandante e que se alega terem sido afetados por um custo adicional devido a essa infração, não é, em si mesma, pertinente para apreciar se o órgão jurisdicional nacional pode proceder à estimativa do dano.

65

Por conseguinte, tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que nem a circunstância de a demandada numa ação abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva ter posto à disposição da demandante os dados nos quais se baseou para contradizer a peritagem desta última nem o facto de a demandante ter dirigido o seu pedido apenas contra um dos autores da referida infração são, por si sós, pertinentes para apreciar se os órgãos jurisdicionais nacionais podem proceder a uma estimativa do dano, uma vez que essa estimativa pressupõe, por um lado, que a existência desse dano tenha sido demonstrada e, por outro, que seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil quantificá‑lo com precisão, o que implica que devem ser tidos em conta todos os parâmetros que conduzem a essa conclusão e, em particular, o caráter infrutífero de diligências como o pedido de produção de provas, previsto no artigo 5.o da referida diretiva.

Quanto às despesas

66

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O artigo 101.o TFUE e o artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia,

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma regra de processo civil nacional por força da qual, em caso de procedência parcial do pedido, as despesas ficam a cargo de cada uma das partes e cada uma das partes suporta metade das despesas comuns, salvo em caso de comportamento abusivo.

 

2)

O artigo 17.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104

deve ser interpretado no sentido de que:

nem a circunstância de a demandada numa ação abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva ter posto à disposição da demandante os dados nos quais se baseou para contradizer a peritagem desta última nem o facto de a demandante ter dirigido o seu pedido apenas contra um dos autores da referida infração são, por si sós, pertinentes para apreciar se os órgãos jurisdicionais nacionais podem proceder a uma estimativa do dano, uma vez que essa estimativa pressupõe, por um lado, que a existência desse dano tenha sido demonstrada e, por outro, que seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil quantificá‑lo com precisão, o que implica que devem ser tidos em conta todos os parâmetros que conduzem a essa conclusão e, em particular, o caráter infrutífero de diligências como o pedido de produção de provas, previsto no artigo 5.o da referida diretiva.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.