ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

7 de julho de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política social — Artigo 153.o TFUE — Proteção dos trabalhadores — Diretiva 2003/88/CE — Organização do tempo de trabalho — Trabalho noturno — Convenção coletiva que prevê um acréscimo de remuneração pelo trabalho noturno realizado de maneira regular inferior ao fixado pelo trabalho noturno ocasional — Igualdade de tratamento — Artigo 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais»

Nos processos apensos C‑257/21 e C‑258/21,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudiciais apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), por Decisões de 9 de dezembro de 2020, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 22 de abril de 2021, nos processos

Coca‑Cola European Partners Deutschland GmbH

contra

L.B. (C‑257/21),

R.G. (C‑258/21),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J. Passer, presidente de secção, F. Biltgen e M. L. Arastey Sahún (relatora), juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Coca‑Cola European Partners Deutschland GmbH, por C. Böttger, Rechtsanwalt,

em representação de L.B. e R.G., por R. Buschmann e A. Kapeller, Prozessbevollmächtigte,

em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e D. Recchia, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9), bem como do artigo 20.o e do artigo 51.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito dos litígios que opõem a Coca‑Cola European Partners Deutschland GmbH (a seguir «Coca‑Cola») a L.B. (processo C‑257/21) e a R.G. (Processo C‑258/21) (a seguir, em conjunto, os «interessados») a propósito do acréscimo da remuneração devida, em aplicação de uma convenção coletiva, pelas horas de trabalho noturno prestadas.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

O artigo 3.o, n.o 1, da Convenção (n.o 171) relativa ao trabalho noturno, 1990, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (a seguir «Convenção da OIT relativa ao trabalho noturno»), dispõe:

«As medidas específicas exigidas pela natureza do trabalho noturno, que incluirão, pelo menos, as mencionadas nos artigos 4.o a 10.o, devem ser tomadas em favor dos trabalhadores noturnos, com vista a proteger a sua saúde, a facilitar‑lhes o exercício das suas responsabilidades familiares e sociais, a assegurar‑lhes oportunidades de evolução na carreira e a conceder‑lhes as compensações adequadas. Tais medidas devem ser igualmente tomadas no plano da segurança e da proteção da maternidade em favor de todos aqueles que efetuem trabalho noturno.»

4

O artigo 8.o desta Convenção prevê:

«As compensações concedidas aos trabalhadores noturnos em matéria de duração do trabalho, salários ou vantagens similares devem ter em conta a natureza do trabalho noturno.»

Direito da União

5

A Diretiva 2003/88 foi adotada com base no artigo 137.o, n.o 2, CE, atual artigo 153.o, n.o 2, TFUE.

6

Os considerandos 1, 2 e 4 a 6 desta diretiva enunciam:

«(1)

A Diretiva 93/104/CE do Conselho, de 23 de novembro de 1993, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho [(JO 1993, L 307, p. 18)], que fixa as prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho aplicáveis aos períodos de descanso diário, pausas, descanso semanal, tempo máximo de trabalho semanal, férias anuais e a certos aspetos do trabalho noturno, do trabalho por turnos e do ritmo de trabalho, foi alterada de forma substancial. Por uma questão de clareza, deve proceder‑se a uma codificação das disposições em questão.

(2)

O artigo 137.o [CE] prevê que a Comunidade [Europeia] apoie e complete a ação dos Estados‑Membros tendo em vista a melhoria do ambiente de trabalho, a fim de proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores. As diretivas aprovadas com base neste artigo deverão evitar impor disciplinas administrativas, financeiras e jurídicas tais, que sejam contrárias à criação e ao desenvolvimento de pequenas e médias empresas.

[…]

(4)

A melhoria da segurança, da higiene e de saúde dos trabalhadores no trabalho constitui um objetivo que não se pode subordinar a considerações de ordem puramente económica.

(5)

Todos os trabalhadores devem beneficiar de períodos de descanso suficientes. O conceito de «descanso» deve ser expresso em unidades de tempo, ou seja, em dias, horas e/ou suas frações. Os trabalhadores da Comunidade devem beneficiar de períodos mínimos de descanso — diários, semanais e anuais — e de períodos de pausa adequados. Assim sendo, é conveniente prever igualmente um limite máximo para o horário de trabalho semanal.

(6)

Deve ter‑se em conta os princípios da [OIT] em matéria de organização do tempo de trabalho, incluindo os relativos ao trabalho noturno.»

7

O artigo 1.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», prevê no seu n.o 1:

«A presente diretiva estabelece prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho.»

8

O artigo 7.o da mesma diretiva dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais.

2.   O período mínimo de férias anuais remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira, exceto nos casos de cessação da relação de trabalho.»

9

O artigo 8.o da Diretiva 2003/88, sob a epígrafe «Duração do trabalho noturno», enuncia:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que:

a)

O tempo de trabalho normal dos trabalhadores noturnos não ultrapasse oito horas, em média, por cada período de 24 horas;

b)

Os trabalhadores noturnos cujo trabalho implique riscos especiais ou uma tensão física ou mental significativa não trabalhem mais de oito horas num período de 24 horas durante o qual executem trabalho noturno.

Para efeitos da alínea b), o trabalho que implique riscos especiais ou uma tensão física ou mental significativa deve ser definido pelas legislações e/ou práticas nacionais ou por convenções coletivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais, atendendo aos efeitos e riscos inerentes ao trabalho noturno.»

10

Nos termos do artigo 9.o desta diretiva, sob a epígrafe «Avaliação do estado de saúde e transferência dos trabalhadores noturnos para um trabalho diurno»:

«1.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que:

a)

Os trabalhadores noturnos, antes da sua colocação e, seguidamente, a intervalos regulares, beneficiem de um exame gratuito destinado a avaliar o seu estado de saúde;

b)

Os trabalhadores noturnos que sofram de problemas de saúde que sejam reconhecidos como estando relacionados com o facto de esses trabalhadores executarem um trabalho noturno, sejam transferidos, sempre que possível, para um trabalho diurno que estejam aptos a desempenhar.

2.   O exame de saúde gratuito a que se refere a alínea a) do n.o 1 deve respeitar o sigilo médico.

3.   O exame de saúde gratuito a que se refere a alínea a) do n.o 1 pode ser efetuado no âmbito de um sistema nacional de saúde.»

11

O artigo 10.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Garantias relativas ao trabalho em período noturno», prevê:

«Os Estados‑Membros podem sujeitar o trabalho executado por determinadas categorias de trabalhadores noturnos a certas garantias, em condições fixadas pelas legislações e/ou práticas nacionais, no caso de trabalhadores que corram riscos de segurança ou de saúde relacionados com o trabalho durante o período noturno.»

12

O artigo 11.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Informação em caso de recurso regular a trabalhadores noturnos», dispõe:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que as entidades patronais que recorrem regularmente a trabalhadores noturnos informem desse facto as autoridades competentes, a pedido destas.»

13

O artigo 12.o da Diretiva 2003/88, sob a epígrafe «Proteção em matéria de segurança e de saúde», enuncia:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que:

a)

Os trabalhadores noturnos e os trabalhadores por turnos beneficiem de um nível de proteção em matéria de segurança e de saúde adequado à natureza do trabalho que exercem;

b)

Os serviços ou meios adequados de proteção e prevenção em matéria de segurança e de saúde dos trabalhadores noturnos e dos trabalhadores por turnos sejam equivalentes aos que são aplicáveis aos restantes trabalhadores e se encontrem disponíveis a qualquer momento.»

14

Nos termos do artigo 13.o desta diretiva, sob a epígrafe «Ritmo de trabalho»:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que as entidades patronais que pretendam organizar o trabalho segundo um certo ritmo tenham em conta o princípio geral da adaptação do trabalho ao homem, com vista, nomeadamente, a atenuar o trabalho monótono e o trabalho cadenciado em função do tipo de atividade e das exigências em matéria de segurança e de saúde, em especial no que se refere às pausas durante o tempo de trabalho.»

Direito alemão

15

O artigo 3.o da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), de 23 de maio de 1949 (BGBl. 1949 I, p. 1), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais, dispõe:

«(1)   Todas as pessoas são iguais perante a lei.

(2)   Homens e mulheres têm os mesmos direitos. O Estado incentiva a realização de facto da igualdade de direitos entre homens e mulheres e age no sentido de suprimir as desvantagens existentes.

(3)   Ninguém pode ser prejudicado ou privilegiado em razão do sexo, descendência, raça, língua, pátria, origem, credo, opiniões religiosas ou políticas. Ninguém pode ser prejudicado devido à deficiência de que é portador.»

16

O artigo 7.o do Manteltarifvertrag zwischen dem Verband der Erfrischungsgetränke‑Industrie Berlin und Region Ost e.V. und der Gewerkschaft Nahrung‑Genuss‑Gaststätten Hauptverwaltung (Convenção coletiva entre a União da Indústria dos Refrigerantes de Berlim e da Região Este e. V. e a Direção Central do Sindicato do «setor alimentar, bebidas e restauração»), de 24 de março de 1998 (a seguir «MTV»), prevê, nos seus n.os 1 e 3, relativos aos «Acréscimos de remuneração pelo trabalho efetuado durante a noite, domingos e dias feriados»:

«1.   Os seguintes acréscimos de remuneração são pagos pelo trabalho efetuado durante a noite, domingos e dias feriados:

Horas extraordinárias a partir de 41 horas por semana 25 %

Horas extraordinárias noturnas a partir de 41 horas por semana 50 %

Trabalho noturno efetuado de maneira regular a partir do ano de 1998 17,5 %

Trabalho noturno efetuado de maneira regular a partir do ano de 1999 20 %

Trabalho noturno efetuado de maneira ocasional a partir do ano de 1998 40 %

Trabalho noturno efetuado de maneira ocasional a partir do ano de 1999 50 %

[…]

3.   Os acréscimos de remuneração são calculados com base na remuneração global prevista pela convenção coletiva.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

17

Os interessados efetuaram trabalho noturno por turnos para a Coca‑Cola, uma empresa da indústria de bebidas que celebrou uma convenção coletiva de empresa com o Sindicato Nahrung‑Genuss‑Gaststätten (Sindicato do «setor alimentar, bebidas e restauração»), nos termos da qual está vinculada pelas disposições da MTV.

18

Durante o período compreendido entre dezembro de 2018 e junho de 2019, L.B. prestou de maneira regular trabalho noturno na aceção da MTV, pelo qual beneficiou de um acréscimo de remuneração de 20 % por hora.

19

R.G. exerceu, em dezembro de 2018 e janeiro de 2019, bem como durante o período compreendido entre março e julho de 2019, trabalho noturno de maneira regular, na aceção da MTV, para o qual a sua remuneração obteve um acréscimo de 25 % por hora.

20

Considerando que, ao prever um acréscimo de remuneração pelo trabalho noturno executado de maneira ocasional superior ao fixado pelo trabalho noturno realizado de maneira regular, a MTV instituía uma diferença de tratamento contrária ao princípio da igualdade de tratamento na aceção do artigo 3.o da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, bem como do artigo 20.o da Carta, cada um dos interessados intentou uma ação no Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho, Alemanha) de cuja competência jurisdicional dependiam no caso em apreço, com vista a obter, para os períodos em causa, o pagamento do montante correspondente à diferença entre as remunerações que receberam e as remunerações devidas em aplicação das taxas de acréscimo previstas pela MTV para o trabalho noturno prestado de maneira ocasional. A este respeito, sustentaram que as pessoas que trabalhavam regularmente de noite estavam expostas a riscos de saúde e a perturbações do seu ambiente social sensivelmente mais importantes do que as que trabalhavam de noite de maneira ocasional.

21

A Coca‑Cola considerou, pelo contrário, que o trabalho noturno prestado ocasionalmente era muito menos frequente do que o trabalho noturno prestado de maneira regular e que o acréscimo de remuneração superior aplicável ao trabalho noturno prestado de maneira ocasional se justificava, nomeadamente, pelo facto de este implicar geralmente trabalho extraordinário. Além disso, o trabalho noturno prestado de maneira regular dá direito a benefícios suplementares, nomeadamente no que concerne a férias. O acréscimo de remuneração mais elevado a título do trabalho noturno prestado de maneira ocasional visa não só compensar os constrangimentos deste tipo de trabalho, mas também dissuadir uma entidade patronal de recorrer a este interferindo de maneira espontânea no tempo livre e na vida social dos seus trabalhadores.

22

Tendo as ações intentadas pelos interessados sido julgadas improcedentes pelo Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho), estes últimos interpuseram recurso das sentenças desse órgão jurisdicional para o Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg (Tribunal Superior do Trabalho de Berlim‑Brandeburgo, Alemanha), que reconheceu os seus direitos relativamente a uma parte dos períodos em causa, mas declarou‑os caducados quanto ao restante.

23

A Coca‑Cola interpôs recurso de «Revision» destas sentenças para o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

24

Este órgão jurisdicional interroga‑se, na hipótese de a Carta ser aplicável no caso em apreço, sobre a compatibilidade com esta de uma disposição de uma convenção coletiva que prevê um acréscimo remuneratório pelo trabalho noturno, especialmente sobre a questão de saber se a diferença de tratamento entre o trabalho noturno prestado de maneira regular e o trabalho noturno prestado de maneira ocasional, resultante do artigo 7.o, n.o 1, da MTV, é conforme com o artigo 20.o da Carta.

25

Nestas condições, o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos idênticos nos processos C‑257/21 e C‑258/21:

«1)

A Diretiva [2003/88] é aplicada, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, primeiro período, da [Carta], por uma disposição de uma convenção coletiva, se esta disposição estabelecer uma compensação pelo trabalho noturno [ocasional] mais elevada do que a compensação pelo trabalho noturno regular?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão prejudicial:

É compatível com o artigo 20.o da [Carta] a disposição de uma convenção coletiva que prevê uma compensação pelo trabalho noturno [ocasional] mais elevada do que a compensação pelo trabalho noturno regular se tiver igualmente por objetivo compensar, além dos prejuízos para a saúde causados pelo trabalho noturno, os constrangimentos devidos à maior dificuldade de planificação em caso de trabalho noturno [ocasional]?»

Quanto à apensação dos processos C‑257/21 e C‑258/21

26

Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 26 de maio de 2021, os processos C‑257/21 e C‑258/21 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral do processo, assim como do acórdão.

Quanto aos pedidos de abertura da fase oral do processo

27

Por cartas apresentadas na Secretaria do Tribunal de Justiça em 10 de março e 13 de junho de 2022, os interessados pediram a abertura da fase oral do processo, invocando o seu desacordo, por um lado, com a decisão de julgar os processos sem conclusões do advogado‑geral e, por outro, com as observações da Comissão Europeia.

28

A este respeito, importa salientar que o Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 76.o, n.o 2, do seu Regulamento de Processo, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidiu não realizar audiência de alegações considerando que, lidas as observações apresentadas durante a fase escrita do processo, dispunha das informações suficientes para se pronunciar nos presentes processos.

29

Além disso, há que recordar que, por força do artigo 83.o do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a abertura ou a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido, ou quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal, ou ainda quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

30

No caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera, ouvido o advogado‑geral, que dispõe de todos os elementos necessários para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

31

Por conseguinte, há que indeferir os pedidos dos interessados de abertura da fase oral do processo.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade

32

A Comissão sustenta que os pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não demonstrou que a interpretação da Diretiva 2003/88 era necessária para poder decidir os litígios nos processos principais, incidindo as questões submetidas unicamente sobre a interpretação da Carta. Ora, na medida em que estes litígios escapam ao âmbito de aplicação da Diretiva 2003/88, a questão da interpretação da Carta não se coloca.

33

A este respeito, importa recordar que o processo de decisão prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE estabelece uma cooperação estreita entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, que se baseia numa repartição de funções entre eles, e constitui um instrumento graças ao qual o Tribunal de Justiça fornece aos tribunais nacionais os elementos de interpretação do direito da União necessários para a resolução dos litígios que lhes são submetidos [Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 59 e jurisprudência referida].

34

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 60 e jurisprudência referida].

35

Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 61 e jurisprudência referida].

36

No caso em apreço, há que constatar que resulta dos pedidos de decisão prejudicial e da redação das questões submetidas que a interpretação da Diretiva 2003/88 é necessária para responder à questão de saber se o artigo 7.o, n.o 1, da MTV aplica esta diretiva na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

37

Nestas condições, os argumentos invocados pela Comissão, que dizem respeito à interpretação da Diretiva 2003/88 e que se enquadram, portanto, na apreciação do mérito dos pedidos de decisão prejudicial, não podem ilidir a presunção de pertinência das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio (v., por analogia, Acórdão de 22 de outubro de 2020, Sportingbet e Internet Opportunity Entertainment, C‑275/19, EU:C:2020:856, n.o 36).

38

Consequentemente, as questões prejudiciais são admissíveis.

Quanto à primeira questão

39

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se uma disposição de uma convenção coletiva que prevê um acréscimo de remuneração pelo trabalho noturno prestado de maneira ocasional superior ao fixado pelo trabalho noturno realizado de maneira regular aplica a Diretiva 2003/88 na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

40

Em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, as suas disposições têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União e, segundo jurisprudência constante, o conceito de «aplicação do direito da União» na aceção desta disposição pressupõe a existência de um vínculo entre um ato do direito da União e a medida nacional em causa que ultrapasse a proximidade das matérias referidas ou as incidências indiretas de uma matéria na outra, tendo em conta os critérios de apreciação definidos pelo Tribunal de Justiça (Acórdão de 28 de outubro de 2021, Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo, C‑319/19, EU:C:2021:883, n.o 44 e jurisprudência referida).

41

Neste contexto, o Tribunal de Justiça concluiu pela inaplicabilidade dos direitos fundamentais da União em relação a uma regulamentação nacional, uma vez que as disposições da União no domínio em causa não impõem aos Estados‑Membros nenhuma obrigação específica relativamente à situação em causa no processo principal. Por conseguinte, o simples facto de uma medida nacional estar abrangida por um domínio em que a União dispõe de competências não a pode colocar no âmbito de aplicação do direito da União e, consequentemente, implicar a aplicabilidade da Carta [Acórdão de 14 de outubro de 2021, INSS (Pensão de viuvez baseada na concubinagem), C‑244/20, não publicado, EU:C:2021:854, n.o 61 e jurisprudência referida].

42

Por outro lado, resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando as disposições do direito da União no domínio em causa não regulamentam um aspeto e não impõem aos Estados‑Membros nenhuma obrigação específica relativamente a uma determinada situação, a disposição de uma convenção coletiva celebrada entre os parceiros sociais quanto a esse aspeto está fora do âmbito de aplicação da Carta e a situação em causa não pode ser apreciada à luz das disposições desta última (Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 53, e jurisprudência referida).

43

Por conseguinte, importa verificar se a Diretiva 2003/88 regulamenta o acréscimo de remuneração dos trabalhadores pelo trabalho noturno em causa no processo principal e impõe uma obrigação específica relativamente a essas situações.

44

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio considera, em substância, que o artigo 7.o, n.o 1, da MTV pode estar abrangido, por um lado, pelos artigos 8.o a 13.o da Diretiva 2003/88 e, por outro, pelo artigo 3.o, n.o 1, e pelo artigo 8.o da Convenção da OIT relativa ao trabalho noturno, em conjugação com o considerando 6 desta diretiva.

45

Ora, em primeiro lugar, importa mencionar que, com exceção da hipótese particular relativa às férias anuais remuneradas, referida no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, esta diretiva limita‑se a regular determinados aspetos da organização do tempo de trabalho para garantir a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores, pelo que, em princípio, não é aplicável à remuneração dos trabalhadores [v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 57, e de 9 de março de 2021, Stadt Offenbach am Main (Período de disponibilidade contínua de um bombeiro), C‑580/19, EU:C:2021:183, n.o 56].

46

Com efeito, resulta tanto do artigo 137.o CE, atual artigo 153.o TFUE, que constitui a base jurídica da Diretiva 2003/88, como da própria redação do artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, lida à luz dos considerandos 1, 2, 4 e 5 da mesma, que a referida diretiva tem por objeto fixar exigências mínimas destinadas a promover a melhoria das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores através de uma aproximação das disposições nacionais relativas, nomeadamente, à duração do tempo de trabalho (v., neste sentido, Acórdão de 20 de novembro de 2018, Sindicatul Familia Constanţa e o., C‑147/17, EU:C:2018:926, n.o 39 e jurisprudência referida).

47

Por outro lado, em conformidade com o seu n.o 5, o artigo 153.o TFUE, não é aplicável às remunerações, ao direito sindical, ao direito de greve nem ao direito de lock‑out. Esta exceção tem a sua razão de ser no facto de a fixação do nível das remunerações fazer parte da autonomia contratual dos parceiros sociais à escala nacional e na competência dos Estados‑Membros nesta matéria. Nestas condições, foi considerado adequado, no estado atual do direito da União, excluir a determinação do nível das remunerações de uma harmonização nos termos dos artigos 136.o CE e seguintes (atuais artigos 151.o TFUE e seguintes) (Acórdão de 15 de abril de 2008, Impact, C‑268/06, EU:C:2008:223, n.o 123 e jurisprudência referida).

48

É certo que os artigos 8.o a 13.o da Diretiva 2003/88 dizem respeito ao trabalho noturno. No entanto, estes artigos apenas dizem respeito à duração e ao ritmo do trabalho noturno (respetivamente, os artigos 8.o e 13.o desta diretiva), à proteção da saúde e da segurança dos trabalhadores noturnos (artigos 9.o, 10.o e 12.o da referida diretiva) e à informação das autoridades competentes (artigo 11.o da mesma diretiva). Por conseguinte, os referidos artigos não regulamentam a remuneração dos trabalhadores pelo trabalho noturno e não impõem, portanto, nenhuma obrigação específica aos Estados‑Membros em relação às situações em causa no processo principal.

49

Em segundo lugar, há que salientar que o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 8.o da Convenção da OIT relativa ao trabalho noturno, conjugados com o considerando 6 da Diretiva 2003/88, também não impõem, por força do direito da União, obrigações específicas aos Estados‑Membros quanto ao acréscimo da remuneração dos trabalhadores pelo trabalho noturno.

50

Certamente, o artigo 3.o, n.o 1, da Convenção da OIT relativa ao trabalho noturno prevê que as medidas específicas exigidas pela natureza do trabalho noturno devem ser tomadas em favor dos trabalhadores, incluindo o facto de lhes serem concedidas as compensações adequadas, ao passo que o artigo 8.o desta Convenção dispõe que as compensações concedidas aos trabalhadores noturnos em matéria de duração do trabalho, salários ou vantagens similares devem ter em conta a natureza do trabalho noturno.

51

Todavia, importa salientar que, não tendo a União ratificado a referida Convenção, esta última não tem, por si só, valor jurídico vinculativo na ordem jurídica da União e que o considerando 6 da Diretiva 2003/88 também não confere efeitos vinculativos à mesma Convenção (v., por analogia, Acórdão de 3 de setembro de 2015, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Comissão, C‑398/13 P, EU:C:2015:535, n.o 64).

52

Por conseguinte, o acréscimo da remuneração dos trabalhadores pelo trabalho noturno em causa no processo principal, previsto no artigo 7.o, n.o 1, da MTV, não está abrangido pela Diretiva 2003/88 e não pode ser considerado que aplica o direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

53

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que uma disposição de uma convenção coletiva que prevê um acréscimo de remuneração pelo trabalho noturno prestado de maneira ocasional superior ao fixado pelo trabalho noturno realizado de maneira regular não aplica a Diretiva 2003/88 na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

Quanto à segunda questão

54

Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

Uma disposição de uma convenção coletiva que prevê um acréscimo de remuneração pelo trabalho noturno prestado de maneira ocasional superior ao fixado pelo trabalho noturno realizado de maneira regular não aplica a Diretiva 2003/88 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.