Processo C‑205/21
V. S.
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad)
Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 26 de janeiro de 2023
«Reenvio prejudicial – Proteção das pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados pessoais – Diretiva (UE) 2016/680 – Artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c) – Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais – Limitação das finalidades – Minimização dos dados – Artigo 6.o, alínea a) – Distinção clara entre os dados pessoais de diferentes categorias de titulares de dados – Artigo 8.o – Licitude do tratamento – Artigo 10.o – Transposição – Tratamento de dados biométricos e de dados genéticos – Conceito de “tratamento autorizado pelo direito de um Estado Membro” – Conceito de “estrita necessidade” – Poder de apreciação – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigos 7.°, 8.°, 47.°, 48.° e 52.° – Direito a uma tutela jurisdicional efetiva – Presunção de inocência – Restrição – Infração dolosa objeto de ação penal ex officio – Arguidos – Recolha de dados fotográficos e dactiloscópicos para efeitos do seu registo e recolha de uma amostra biológica para a elaboração de um perfil ADN – Procedimento de execução coerciva da recolha – Caráter sistemático da recolha»
Aproximação das legislações – Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais em matéria penal – Diretiva 2016/680 – Tratamento de categorias especiais de dados pessoais – Autorização desse tratamento pelo direito de um Estado‑Membro – Legislação nacional que impõe a recolha, pelas autoridades policiais de um Estado‑Membro, de dados biométricos e genéticos das pessoas constituídas arguidas, para efeitos do seu registo – Disposições nacionais que se referem ao Regulamento 2016/679, embora reproduzam o conteúdo da Diretiva 2016/680 – Admissibilidade – Requisitos
[Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 52.o; Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 9.o; Diretiva 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 3.°, ponto 7, e 10.°, alínea a)]
(cf. n.os 62‑67, 72‑76, disp. 1)
Atos das instituições – Diretivas – Execução pelos Estados‑Membros – Diretiva que prevê, para a sua execução, que lhe seja feita referência nas disposições nacionais de transposição – Incidência – Obrigação de os Estados‑Membros adotarem um ato positivo de transposição da diretiva – Exigência de menção à diretiva nas disposições nacionais que autorizam o tratamento de dados pessoais abrangidos pelo âmbito de aplicação desta diretiva – Inexistência
(Artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE; Diretiva 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 63.o, n.o 1, segundo parágrafo)
(cf. n.os 68, 71)
Aproximação das legislações – Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais em matéria penal – Diretiva 2016/680 – Obrigação de distinguir entre as diferentes categorias de titulares de dados – Alcance – Legislação nacional que impõe a recolha, pelas autoridades policiais de um Estado‑Membro, de dados biométricos e genéticos das pessoas constituídas arguidas, para efeitos do seu registo – Legislação que prevê um procedimento de execução coerciva da recolha – Poder do juiz nacional de apreciar a existência de motivos fundados relativos à culpabilidade do titular de dados – Inexistência – Admissibilidade – Condições – Respeito pelo direito à tutela jurisdicional efetiva e pela presunção de inocência
[Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.° e 48.°; Diretiva 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 6.°, alínea a), e 54.°]
(cf. n.os 82‑110, disp. 2)
Aproximação das legislações – Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais em matéria penal – Diretiva 2016/680 – Tratamento de categorias especiais de dados – Tratamento só autorizado se for estritamente necessário – Conceito – Alcance – Condições reforçadas de licitude do tratamento – Limitação das finalidades – Minimização dos dados – Legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo – Inadmissibilidade
[Diretiva 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerandos 26 e 37 e artigos 4.°, n.o 1, alíneas a) a c), 8.°, n.os 1 e 2, e 10.°]
(cf. n.os 116‑135, disp. 3)
Resumo
A recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida para efeitos do seu registo policial é contrária à exigência de assegurar uma maior proteção no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais sensíveis.
No âmbito de um processo penal por fraude fiscal instaurado pelas autoridades búlgaras, V. S. foi constituída arguida pela sua alegada participação numa organização criminosa, constituída com o objetivo de enriquecimento, com vista a cometer de forma concertada delitos no território búlgaro. Na sequência desta constituição de arguida, a polícia búlgara pediu a V. S. para se sujeitar à recolha dos seus dados dactiloscópicos e fotográficos para efeitos do seu registo e a uma amostra para a elaboração do seu perfil ADN. V. S. opôs‑se a esta recolha.
Com base na legislação nacional que prevê o «registo policial» das pessoas constituídas arguidas pela prática de infrações dolosas objeto de ação penal ex officio, as autoridades policiais pediram ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) que autorizasse a execução coerciva da recolha de dados genéticos e biométricos de V. S. Só as cópias do despacho da sua constituição de arguida e da declaração da sua recusa de recolha dos seus dados acompanhavam o requerimento das autoridades policiais.
Esse órgão jurisdicional tinha dúvidas quanto à compatibilidade da legislação búlgara aplicável a este «registo policial» com a Diretiva 2016/680 ( 1 ), lida à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), e, por conseguinte, submeteu um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça.
No seu acórdão, o Tribunal de Justiça especifica, antes de mais, as condições em que o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades policiais pode ser considerado autorizado pelo direito de um Estado‑Membro, na aceção da Diretiva 2016/680. Em seguida, pronuncia‑se sobre a aplicação do requisito, previsto nesta diretiva, relativo ao tratamento de dados de uma categoria de pessoas a respeito das quais existam motivos fundados para considerar que estão implicadas numa infração penal e sobre o respeito pelo direito a uma tutela jurisdicional efetiva e pelo princípio da presunção de inocência, no caso de a legislação nacional permitir ao órgão jurisdicional nacional competente autorizar a recolha coerciva desses dados, considerados «sensíveis» pelo legislador da União. Por último, o Tribunal debruça‑se sobre a questão da compatibilidade da legislação nacional que prevê a recolha sistemática destes dados com as disposições da Diretiva 2016/680 relativas ao seu tratamento, tendo em conta os princípios aí aplicáveis.
Apreciação do Tribunal de Justiça
Antes de mais, o Tribunal de Justiça constata que a Diretiva 2016/680, lida à luz da Carta ( 2 ), deve ser interpretada no sentido de que o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades policiais com vista às suas atividades de investigação, para efeitos de luta contra a criminalidade e de manutenção da ordem pública, é autorizado pelo direito de um Estado‑Membro, quando o direito desse Estado Membro contém uma base jurídica suficientemente clara e precisa para autorizar o referido tratamento. O facto de o ato legislativo nacional que contém essa base jurídica se referir, por outro lado, ao Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados ( 3 ), e não à Diretiva 2016/680, não é suscetível, em si mesmo, de pôr em causa a existência de tal autorização, desde que resulte, de forma suficientemente clara, precisa e inequívoca, da interpretação de todas as disposições aplicáveis do direito nacional que o tratamento de dados biométricos e genéticos em causa está abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva e não pelo RGPD.
Neste contexto, tendo em conta o facto de que a legislação nacional pertinente se referia às disposições do RGPD que regulam o tratamento de dados sensíveis, embora reproduzindo o conteúdo das disposições da Diretiva 2016/680 que visam o tratamento dos mesmos dados ( 4 ), o Tribunal de Justiça salienta que estas disposições não são equivalentes. Com efeito, enquanto um tratamento de dados sensíveis pelas autoridades competentes para fins, nomeadamente, de prevenção e deteção de infrações penais abrangido pela Diretiva 2016/680 só é suscetível de ser autorizado se for estritamente necessário e deve ser enquadrado por garantias adequadas e estar previsto no direito da União ou no direito de um Estado‑Membro, o RGPD enuncia uma proibição de princípio do tratamento destes dados, acompanhada de uma lista de exceções. Embora o legislador nacional possa prever, no âmbito do mesmo instrumento legislativo, o tratamento de dados pessoais para os efeitos abrangidos pela Diretiva 2016/680 e para outros efeitos abrangidos pelo RGPD, é obrigado a certificar‑se da inexistência de ambiguidade quanto à aplicabilidade de um ou de outro destes dois atos da União à recolha de dados sensíveis.
Além disso, no que respeita a uma eventual transposição incorreta da Diretiva 2016/680, invocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça sublinha que esta diretiva não exige que as disposições nacionais que autorizam o tratamento de dados abrangidos pelo seu âmbito de aplicação contenham uma referência à mesma diretiva. O Tribunal especifica que, quando o legislador nacional prevê o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades competentes suscetíveis de serem abrangidos quer pelo âmbito de aplicação desta diretiva quer pelo do RGPD, pode, por uma questão de clareza e de precisão, fazer referência expressa, por um lado, às disposições de direito nacional que asseguram a transposição desta diretiva e, por outro, ao RGPD, sem ser obrigado a mencionar a referida diretiva. Todavia, em caso de contradição aparente das disposições nacionais que autorizam o tratamento de dados em causa e as que parecem excluí‑lo, o órgão jurisdicional nacional deve dar a essas disposições uma interpretação que preserve o efeito útil da Diretiva 2016/680.
Em seguida, o Tribunal de Justiça declara que a Diretiva 2016/680 ( 5 ) e a Carta ( 6 ) não se opõem a uma legislação nacional que prevê que, em caso de recusa da pessoa constituída arguida, por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio, em cooperar voluntariamente na recolha de dados biométricos e genéticos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo, o órgão jurisdicional penal competente está obrigado a autorizar uma medida de execução coerciva dessa recolha, sem dispor do poder de apreciar se existem motivos fundados para crer que o titular de dados cometeu a infração que lhe é imputada, desde que o direito nacional garanta posteriormente a fiscalização jurisdicional efetiva das condições dessa constituição de arguido, da qual decorre a autorização para proceder à referida recolha.
A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que, por força da Diretiva 2016/680 ( 7 ), os Estados‑Membros devem assegurar que seja feita uma distinção clara entre os dados das diferentes categorias de titulares de dados, de modo a que não lhes seja imposto indiscriminadamente o mesmo grau de ingerência no direito fundamental à proteção de dados pessoais, seja qual for a categoria a que pertencem. Todavia, essa obrigação não é absoluta. De resto, na medida em que esta diretiva visa a categoria de pessoas a respeito das quais existem motivos fundados para crer que cometeram uma infração penal, o Tribunal de Justiça especifica que a existência de um número de elementos de prova suficiente da culpabilidade de uma pessoa constitui, em princípio, um motivo fundado para crer que ela cometeu a infração em causa. Assim, a Diretiva 2016/680 não se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha coerciva de dados das pessoas em relação às quais estão reunidos elementos de prova suficientes de que são culpadas de terem cometido uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio e que foram constituídas arguidas por esse motivo.
No que se refere ao respeito pelo direito a uma tutela jurisdicional efetiva, uma vez que o órgão jurisdicional nacional competente, com vista à autorização de uma medida de execução coerciva da recolha de dados sensíveis de uma pessoa constituída arguida, não pode fiscalizar, quanto ao mérito, as condições da sua constituição como arguida, o Tribunal de Justiça sublinha, nomeadamente, que o facto de subtrair temporariamente à fiscalização do juiz a apreciação das provas em que se baseia a constituição de arguido do titular de dados pode revelar‑se justificado durante a fase preliminar do processo penal. Com efeito, tal fiscalização, nesta fase, poderia dificultar a tramitação do inquérito penal durante o qual esses dados são recolhidos e restringir excessivamente a capacidade dos investigadores de esclarecer outras infrações com base numa comparação desses dados com os dados recolhidos noutros inquéritos. Esta restrição à tutela jurisdicional efetiva não é, portanto, desproporcionada, quando o direito nacional garante posteriormente uma fiscalização jurisdicional efetiva.
No que respeita à observância, por uma decisão judicial que autoriza a recolha dos dados em causa, do direito à presunção de inocência, o Tribunal de Justiça salienta, por um lado, que, na medida em que, no caso em apreço, essa recolha está limitada à categoria das pessoas cuja responsabilidade penal ainda não foi demonstrada, a recolha não pode ser considerada suscetível de refletir o sentimento das autoridades de que estas pessoas são culpadas. Por outro lado, o facto de o órgão jurisdicional que deve decidir sobre a culpabilidade do titular de dados não poder apreciar, nesta fase do processo penal, o caráter suficiente dos elementos de prova em que assenta a constituição de arguido dessa pessoa constitui uma garantia do respeito pelo direito à presunção de inocência.
Por último, o Tribunal de Justiça conclui que a Diretiva 2016/680 ( 8 ) se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo, sem prever a obrigação de a autoridade competente verificar e demonstrar, por um lado, que essa recolha é estritamente necessária à realização dos objetivos concretos prosseguidos e, por outro, que esses objetivos não podem ser alcançados através de medidas que constituam uma ingerência menos gravosa nos direitos e nas liberdades do titular de dados.
A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinha que a Diretiva 2016/680 visa assegurar, entre outros, uma maior proteção relativamente ao tratamento de dados sensíveis, entre os quais figuram os dados biométricos e genéticos, na medida em que é suscetível de implicar riscos significativos para os direitos e as liberdades fundamentais. O requisito aí previsto, segundo o qual esse tratamento «só [é autorizado] se for estritamente necessário», deve ser interpretado no sentido de que define condições reforçadas de licitude do tratamento desses dados sensíveis ( 9 ). Além disso, o alcance deste requisito também deve ser determinado à luz dos princípios relativos ao tratamento de dados, como a limitação das finalidades e a minimização dos dados.
Neste contexto, uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo é, em princípio, contrária a esse requisito. Com efeito, tal legislação nacional é suscetível de conduzir, de forma indiferenciada e generalizada, à recolha de dados da maior parte das pessoas constituídas arguidas, uma vez que o conceito de «infração dolosa objeto de ação penal ex officio» reveste um caráter particularmente genérico e é suscetível de se aplicar a um grande número de infrações penais, independentemente da sua natureza, da sua gravidade, das circunstâncias especiais dessas infrações, do seu eventual nexo com outros processos em curso, dos antecedentes criminais do titular de dados ou ainda do seu perfil individual.
( 1 ) Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão-Quadro 2008/977/JAI do Conselho (JO 2016, L 119, p. 89).
( 2 ) Artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, lido à luz do artigo 52.o da Carta.
( 3 ) Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1; a seguir «RGPD»).
( 4 ) Respetivamente, o artigo 9.o do RGPD e o artigo 10.o da Diretiva 2016/680.
( 5 ) Artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680.
( 6 ) Artigos 47.o e 48.o da Carta, que consagram, respetivamente, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e o princípio da presunção de inocência.
( 7 ) Artigo 6.o da Diretiva 2016/680.
( 8 ) Artigo 10.o da Diretiva 2016/680, lido em conjugação com o seu artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c), e o seu artigo 8.o, n.os 1 e 2.
( 9 ) À luz das condições que decorrem do artigo 4.o, n.o 1, alíneas b) e c), e do 8.°, n.o 1, da Diretiva 2016/680.