Processo C‑137/21

Parlamento Europeu

contra

Comissão Europeia

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 5 de setembro de 2023

«Ação por omissão — Regulamento (UE) 2018/1806 — Artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea f) — Lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transpor as fronteiras externas — Lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação — Princípio da reciprocidade — Convite à adoção de um ato delegado que suspenda temporariamente a isenção de visto por um período de doze meses aos nacionais dos Estados Unidos da América»

  1. Ação por omissão — Notificação para cumprir da instituição — Convite para agir — Prazos — Requisitos — Ação por omissão intentada na sequência de um segundo convite para agir apresentado três anos depois de um primeiro convite para agir que não foi seguido de uma ação — Extemporaneidade da ação — Inexistência — Admissibilidade

    (Artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 27‑35)

  2. Ação por omissão — Tomada de posição na aceção do artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE antes da propositura da ação — Conceito — Recusa em agir em conformidade com o convite para agir — Inclusão — Admissibilidade

    (Artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 39‑43)

  3. Instituições da União Europeia — Exercício das competências — Poder conferido à Comissão para a adoção de atos delegados — Poderes para completar um ato legislativo — Alcance — Regulamento de base que atribui competência à Comissão para suspender temporariamente a isenção da obrigação de visto para os nacionais de um país terceiro — Obrigação de a Comissão adotar o ato delegado solicitado — Inexistência

    [Regulamento 2018/1806 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 17 e artigo 7.o, primeiro parágrafo, alíneas a), d), e), f) e h), e anexo II]

    (cf. n.os 57‑64)

  4. Instituições da União Europeia — Exercício das competências — Poder conferido à Comissão para a adoção de atos delegados — Poder de apreciação da Comissão para completar a regulamentação no domínio em questão — Recusa oposta pela Comissão de adotar um ato delegado destinado a suspender temporariamente a isenção da obrigação de visto para os nacionais de um país terceiro — Admissibilidade

    [Regulamento 2018/1806 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea d)]

    (cf. n.os 65‑70)

Resumo

Por força do Regulamento 2018/1806 ( 1 ), que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transpor as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação, a União erigiu como objetivo o princípio da completa reciprocidade em matéria de vistos, a fim de reforçar a credibilidade e a coerência da sua política externa em relação a países terceiros ( 2 ). A este título, este regulamento prevê que um mecanismo que permita a aplicação do princípio da reciprocidade deve permitir à União dar uma resposta solidária em situações em que um dos países terceiros constantes da lista do anexo II do mesmo regulamento decida sujeitar à obrigação de visto os nacionais de um ou mais Estados‑Membros ( 3 ). O regulamento delega na Comissão o poder de adotar atos em conformidade com o artigo 290.o TFUE, nomeadamente no que diz respeito à suspensão temporária da isenção de visto para os nacionais desse país terceiro ( 4 ).

Em abril de 2016, a Comissão apresentou ao Parlamento e ao Conselho uma comunicação ( 5 ) onde indicou que continuava a verificar‑se uma situação de não reciprocidade em relação a três países terceiros, entre os quais os Estados Unidos da América, que sujeitavam então à obrigação de visto os nacionais de cinco Estados‑Membros. Depois de a Comissão ter indicado ( 6 ) que a não reciprocidade em matéria de vistos dizia apenas respeito a dois países terceiros, entre os quais os Estados Unidos da América, o Parlamento adotou, em março de 2017, uma resolução ( 7 ) na qual considerou que a Comissão tinha «a obrigação legal de adotar um ato delegado [...] que suspende temporariamente a isenção da obrigação de visto para os nacionais de países terceiros que não tenham suprimido a obrigação de visto para os cidadãos de determinados Estados‑Membros» e convidou a Comissão a adotar esse ato. A Comissão respondeu negativamente a este pedido em maio de 2017 ( 8 ). Na sequência da apresentação, pela Comissão, da sua sexta comunicação de seguimento em março de 2020, o Parlamento reiterou o seu convite para agir ( 9 ), continuando os Estados Unidos da América a impor a obrigação de visto aos nacionais de quatro Estados‑Membros. Mais uma vez, a Comissão não respondeu favoravelmente a este convite ( 10 ).

Por considerar que o artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea f), do Regulamento 2018/1806 impõe à Comissão que adote um ato delegado quando estejam preenchidos os requisitos, previstos por esta disposição, para a adoção desse ato, o Parlamento intentou uma ação por omissão contra a Comissão, ao abrigo do artigo 265.o TFUE.

No seu acórdão, o Tribunal de Justiça pronuncia‑se sobre a admissibilidade da ação por omissão, a saber, por um lado, sobre o prazo de propositura da ação previsto nesta última disposição e, por outro, sobre o conceito de tomada de posição na aceção da referida disposição num contexto interinstitucional. Quanto ao mérito, o Tribunal de Justiça julga improcedente a ação com o fundamento de que, ao respeitar os critérios do referido regulamento, a Comissão não excedeu a margem de apreciação de que dispõe ao considerar que não estava obrigada a adotar o ato delegado solicitado.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça pronuncia‑se sobre a admissibilidade da ação ( 11 ).

O primeiro fundamento de inadmissibilidade é relativo à extemporaneidade desta última, uma vez que o Parlamento intentou a sua ação por omissão depois de ter dirigido à Comissão, através da Resolução de outubro de 2020, um segundo convite para agir, apesar de não ter intentado a referida ação na sequência da Resolução de março de 2017. A este respeito, o Tribunal de Justiça constata que a questão de saber se o Parlamento violou assim o prazo de propositura da ação previsto no artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE depende da questão de saber se este segundo convite para agir é, à luz de elementos objetivos relacionados com o seu conteúdo ou o seu contexto, distinto do primeiro. A este respeito, na comunicação que se seguiu à Resolução de março de 2017, a Comissão considerou, nomeadamente, que a adoção de um ato delegado que suspenda temporariamente a isenção de visto seria contraproducente «neste momento» e não contribuiria para alcançar o objetivo da isenção de visto para todos os cidadãos da União. Através da sua Resolução de outubro de 2020, o Parlamento convidou a Comissão a reconsiderar a via escolhida três anos antes, tendo em conta a evolução entretanto ocorrida. O Tribunal de Justiça nota, a este propósito, que diversos motivos, tanto de ordem jurídica como política, podem ter levado o Parlamento, numa primeira fase, a renunciar à via contenciosa na sequência da adoção desta comunicação pela Comissão. Afigura‑se, além disso, que foi após ter avaliado a evolução da situação desde a adoção do primeiro convite para agir que o Parlamento adotou a Resolução de outubro de 2020. Uma vez que os convites para agir constantes das duas resoluções eram distintos tanto à luz do seu conteúdo como do contexto em que foram adotados, o Tribunal de Justiça conclui que a Resolução de outubro de 2020 não pode ter por objeto contornar o prazo de propositura da ação previsto no artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE, que tinha começado a correr através do convite para agir constante da Resolução de março de 2017.

No que respeita ao segundo fundamento de inadmissibilidade, relativo à existência de uma tomada de posição da Comissão através da sua Comunicação de dezembro de 2020, o Tribunal de Justiça recorda que, nos termos do artigo 265.o, primeiro parágrafo, TFUE, pode ser chamado a declarar que, em violação dos Tratados, a instituição em causa se absteve de se pronunciar. A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que o facto de uma resposta de uma instituição a um convite a agir não dar satisfação a quem o dirigiu não significa que essa resposta não constitua uma tomada de posição, cuja adoção põe termo à omissão. Contudo, esta solução não pode ser aplicada num contexto interinstitucional, em casos em que a inadmissibilidade da ação por omissão permita à instituição em causa perpetuar um estado de inação. Ora, seria esse o caso se a comunicação em causa da Comissão fosse qualificada de «[tomada de] posição», na aceção do artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE. A recusa de agir na sequência de um convite para agir pode, assim, ser submetida ao Tribunal de Justiça com base no artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE, uma vez que essa recusa, por muito explícita que seja, não põe fim à omissão. Nestas condições, num contexto interinstitucional, a resposta de uma instituição que consiste, como no caso em apreço, numa exposição das razões pelas quais, segundo essa instituição, não há que adotar a medida solicitada, deve necessariamente ser considerada como uma recusa em agir por parte dessa instituição e deve, portanto, poder ser submetida ao Tribunal de Justiça no âmbito de uma ação intentada ao abrigo do artigo 265.o TFUE.

Em segundo lugar, no que respeita ao fundamento único invocado, quanto ao mérito, pelo Parlamento, segundo o qual a Comissão violou os Tratados ao não ter adotado, ao abrigo do artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea f), do Regulamento 2018/1806, um ato delegado que suspendesse temporariamente a isenção da obrigação de visto para os nacionais dos Estados Unidos da América, o Tribunal de Justiça observa que, na verdade, parece resultar dos termos desta disposição que a Comissão está obrigada a adotar esse ato quando os requisitos exigidos para a sua adoção estiverem preenchidos. Todavia, essa interpretação deve ser excluída à luz da economia geral do artigo 7.o, primeiro parágrafo, do Regulamento 2018/1806, caracterizada, nomeadamente, pela estrutura em várias etapas do mecanismo de reciprocidade que estabelece. Assim, resulta, nomeadamente, da leitura conjugada das disposições que figuram neste artigo, lido à luz do considerando 17 do mesmo regulamento, que a Comissão dispõe de uma margem de apreciação para adotar ou não um ato delegado baseado nesse artigo. Por conseguinte, a Comissão não tem a obrigação de adotar o ato delegado em questão após o termo do prazo de 24 meses a contar da data de publicação da notificação referida no artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea a), deste regulamento.

Em contrapartida, a Comissão deve ter em conta os três critérios enunciados no artigo 7.o, primeiro parágrafo, alínea d), do Regulamento 2018/1806 para determinar se, à luz do objetivo de completa reciprocidade, deve suspender a isenção da obrigação de visto relativamente aos nacionais do país terceiro em causa ou se, pelo contrário, deve abster‑se de tomar tal medida, tendo em conta interesses relativos, em especial, às relações externas dos Estados‑Membros, dos países associados ao espaço Schengen e da União ( 12 ). Após ter examinado estes três critérios, o Tribunal de Justiça chega à conclusão de que a Comissão não excedeu a margem de apreciação de que dispunha no caso em apreço ao considerar, na sequência do convite para agir que lhe foi dirigido pelo Parlamento em outubro de 2020, que não estava obrigada a adotar o ato delegado em questão. Por conseguinte, julga improcedente a ação.


( 1 ) Regulamento (UE) 2018/1806 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de novembro de 2018, que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transpor as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação (codificação) (JO 2018, L 303, p. 39).

( 2 ) V. considerando 14 do Regulamento 2018/1806.

( 3 ) V. considerando 15 do Regulamento 2018/1806.

( 4 ) V. considerando 17 e artigo 7.o, alíneas e), f) e h), do Regulamento 2018/1806. Em especial, nos termos do artigo 7.o:

«Caso um país terceiro constante da lista do anexo II aplique uma obrigação de visto relativamente aos nacionais de pelo menos um Estado‑Membro, aplicam‑se as seguintes disposições:

[…]

f) Se, no prazo de 24 meses a contar da data da publicação referida na alínea a), terceiro parágrafo, o país terceiro em causa não tiver suprimido a obrigação de visto, a Comissão adota, nos termos do artigo 10.o, um ato delegado que suspende temporariamente a isenção da obrigação de visto por um período de 12 meses aos nacionais desse país terceiro [...]. Sem prejuízo da aplicação do artigo 6.o, durante os períodos dessa suspensão, os nacionais do país terceiro em causa abrangidos pelo ato de execução ficam sujeitos à obrigação de visto na passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros;

[…]»

( 5 ) Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 12 de abril de 2016, «Balanço da situação de não reciprocidade com certos países terceiros no domínio da política de vistos e eventuais vias a seguir» [COM(2016) 221 final].

( 6 ) Através da sua segunda comunicação de seguimento, de 21 de dezembro de 2016.

( 7 ) Resolução do Parlamento Europeu, de 2 de março de 2017, sobre as obrigações da Comissão em matéria de reciprocidade de vistos nos termos do artigo 1.o, n.o 4, do Regulamento (CE) n.o 539/2001 [2016/2986(RSP)] (JO 2018, C 263, p. 2; a seguir «Resolução de março de 2017»).

( 8 ) Através da sua comunicação de seguimento, de 2 de maio de 2017 [COM (2017) 227 final].

( 9 ) Resolução do Parlamento Europeu, de 22 de outubro de 2020, sobre as obrigações da Comissão em matéria de reciprocidade de vistos nos termos do artigo 7.o do Regulamento (UE) 2018/1806 [2020/2605(RSP)] (JO 2021, C 404, p. 157; a seguir «Resolução de outubro de 2020»).

( 10 ) Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho que define a posição da Comissão na sequência da Resolução do Parlamento Europeu, de 22 de outubro de 2020, sobre as obrigações da Comissão em matéria de reciprocidade de vistos, e apresenta um balanço dos progressos alcançados [COM(2020) 851 final] (a seguir «Comunicação de dezembro de 2020»).

( 11 ) Por força do artigo 265.o, segundo parágrafo, TFUE, uma ação por omissão só é admissível se a instituição, o órgão ou o organismo em causa tiver sido previamente convidado a agir. Se, decorrido um prazo de dois meses a contar da data do convite, essa instituição, órgão ou organismo não tiver tomado posição, essa ação pode ser intentada dentro de novo prazo de dois meses.

( 12 ) Segundo o artigo 7.o, alínea d), do Regulamento n.o 2018/1806:

«Caso um país terceiro constante da lista do anexo II aplique uma obrigação de visto relativamente aos nacionais de pelo menos um Estado‑Membro, aplicam‑se as seguintes disposições:

[…]

d) Quando a Comissão se propuser efetuar novas diligências nos termos das alíneas e), f) ou h), deve ter em conta os resultados das medidas tomadas pelo Estado‑Membro em questão para assegurar a isenção de visto com o país terceiro em causa, as diligências efetuadas nos termos da alínea b) e as consequências da suspensão da isenção da obrigação de visto para as relações externas da União e dos seus Estados‑Membros com o país terceiro em causa;

[…]»