ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de novembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Artigos 4.o, 7.o e 19.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Proibição dos tratos desumanos ou degradantes — Respeito da vida privada e familiar — Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição — Direito de permanência por razões médicas — Normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Diretiva 2008/115/CE — Nacional de um país terceiro que padece de uma doença grave — Tratamento médico destinado a aliviar a dor — Tratamento indisponível no país de origem — Condições em que o afastamento deve ser adiado»

No processo C‑69/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos), por Decisão de 4 de fevereiro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de fevereiro de 2021, no processo

X

contra

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. M. Safjan, P. G. Xuereb, D. Gratsias e M. L. Arastey Sahún, presidentes de secção, S. Rodin, F. Biltgen, I. Ziemele, J. Passer, M. Gavalec e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 7 de março de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação de X, por J. W. F. Noot, advocaat,

em representação do Governo neerlandês, por K. Bulterman e C. S. Schillemans, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. J. O. Van Nuffel, C. Cattabriga e A. Katsimerou, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 1.o, 4.o, 7.o, bem como do artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), e a da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe X ao Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado»), a respeito da legalidade de um procedimento de regresso instaurado por este contra X.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 [Coletânea dos Tratados das Nações Unidas, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], conforme alterada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, inclui um artigo 33.o, epigrafado «Proibição de expulsar e de repelir», que prevê, no seu n.o 1:

«Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras de territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.»

Direito da União

4

Os considerandos 2 e 4 da Diretiva 2008/115 enunciam:

«(2)

O Conselho Europeu de Bruxelas, de 4 e 5 de novembro de 2004, apelou à definição de uma política eficaz de afastamento e repatriamento, baseada em normas comuns, para proceder aos repatriamentos em condições humanamente dignas e com pleno respeito pelos direitos fundamentais e a dignidade das pessoas.

[…]

(4)

Importa estabelecer normas claras, transparentes e justas para uma política de regresso eficaz, enquanto elemento necessário de uma política de migração bem gerida.»

5

O artigo 2.o, n.o 2, desta diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros podem decidir não aplicar a presente diretiva aos nacionais de países terceiros que:

a)

Sejam objeto de recusa de entrada nos termos do artigo 13.o do [Regulamento (CE) n.o 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2006, L 105, p. 1)], ou sejam detidos ou intercetados pelas autoridades competentes quando da passagem ilícita das fronteiras externas terrestres, marítimas ou aéreas de um Estado‑Membro e não tenham posteriormente obtido autorização ou o direito de permanência nesse Estado‑Membro;

b)

Estejam obrigados a regressar por força de condenação penal ou em consequência desta, nos termos do direito interno, ou sejam objeto de processo de extradição.»

6

O artigo 3.o da referida diretiva dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“Regresso”, o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

ao país de origem, ou

a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou

a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite;

[…]»

7

O artigo 4.o, n.o 3, da mesma diretiva prevê:

«A presente diretiva não prejudica o direito dos Estados‑Membros de aprovarem ou manterem disposições mais favoráveis relativamente às pessoas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, desde que essas disposições sejam compatíveis com o disposto na presente diretiva.»

8

O artigo 5.o da Diretiva 2008/115 dispõe:

«Na aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros devem ter em devida conta o seguinte:

a)

O interesse superior da criança;

b)

A vida familiar;

c)

O estado de saúde do nacional de país terceiro em causa;

e respeitar o princípio da não‑repulsão.»

9

O artigo 6.o, n.os 1 e 4, desta diretiva enuncia:

«1.   Sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.

[…]

4.   Os Estados‑Membros podem, a qualquer momento, conceder autorizações de residência autónomas ou de outro tipo que, por razões compassivas, humanitárias ou outras, confiram o direito de permanência a nacionais de países terceiros em situação irregular no seu território. Neste caso, não pode ser emitida qualquer decisão de regresso. Nos casos em que já tiver sido emitida decisão de regresso, esta deve ser revogada ou suspensa pelo prazo de vigência da autorização de residência ou outra que confira direito de permanência.»

10

O artigo 8.o da referida diretiva, epigrafado «Afastamento», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros tomam todas as medidas necessárias para executar a decisão de regresso se não tiver sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária, nos termos do n.o 4 do artigo 7.o, ou se a obrigação de regresso não tiver sido cumprida dentro do prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o»

11

Nos termos do artigo 9.o da mesma diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros adiam o afastamento nos seguintes casos:

a)

O afastamento representa uma violação do princípio da não‑repulsão; ou

b)

Durante a suspensão concedida nos termos do n.o 2 do artigo 13.o

2.   Os Estados‑Membros podem adiar o afastamento por um prazo considerado adequado, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto. Os Estados‑Membros devem, em particular, ter em conta:

a)

O estado físico ou a capacidade mental do nacional de país terceiro;

b)

Razões técnicas, nomeadamente a falta de capacidade de transporte ou o afastamento falhado devido à ausência de identificação.

[…]»

Direito neerlandês

12

O artigo 64.o da wet tot algehele herziening van de Vreemdelingenwet (2000) (Lei de Revisão Geral da Lei dos Estrangeiros de 2000), de 23 de novembro de 2000 (Stb. 2000, n.o 495), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei dos Estrangeiros»), dispõe:

«A condução à fronteira é adiada enquanto o estado de saúde do estrangeiro ou de um membro da sua família não permitir viajar.»

13

A Vreemdelingencirculaire 2000 (Circular dos estrangeiros de 2000), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Circular dos estrangeiros»), prevê:

«[…]

7. Não condução à fronteira por razões de saúde

7.1 Considerações gerais

O [Immigratie‑ en naturalisatiedienst (IND) (Serviço de Imigração e das Naturalizações, Países Baixos)] pode conceder o adiamento da partida, nos termos do artigo 64.o da [Lei dos Estrangeiros], quando:

de um ponto vista médico, o estrangeiro não está em condições de viajar; ou

existe um risco real de violação do artigo 3.o da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950,] por razões médicas.

7.1.1 O estrangeiro não está em condições de viajar

É concedido ao estrangeiro um adiamento nos termos do artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros, se o [Bureau Medische Advisering (BMA) (Gabinete de Aconselhamento Médico do Ministério da Segurança e da Justiça, Países Baixos)] indicar que, de um ponto de vista médico, o estado de saúde do estrangeiro ou de um membro da sua família não permite viajar.

[…]

7.1.3. Risco real de violação do artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais por razões médicas.

É concedido ao estrangeiro o adiamento da partida ao abrigo do artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros quando existe um risco real de violação do artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais por razões médicas.

Só existe um risco real de violação do artigo 3.o desta convenção quando:

decorre do parecer do BMA que, muito provavelmente, a falta de tratamento médico provocará uma situação de emergência médica; e

o tratamento médico necessário não está disponível no país de origem ou de residência permanente; ou

se estiver disponível, o tratamento médico não é manifestamente acessível.

Situação de emergência médica

Por “situação de emergência médica”, o IND entende a situação em que o estrangeiro sofre de uma condição que, no estado atual dos conhecimentos médico‑científicos, na falta de tratamento, provocará no prazo de três meses a morte, a invalidez ou outra forma de dano psíquico ou físico grave.

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

X é um nacional russo, nascido em 1988, que desenvolveu, aos dezasseis anos, uma forma rara de cancro do sangue para a qual recebe atualmente tratamento nos Países Baixos. O seu tratamento médico consiste, nomeadamente, em flebotomias e na administração de canábis terapêutica para fins antálgicos. A administração deste tratamento médico à base de canábis terapêutica não é autorizada na Rússia.

15

Em 31 de outubro de 2013, X apresentou um primeiro pedido de asilo nos Países Baixos. O Secretário de Estado considerou, porém, que o Reino da Suécia era o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido.

16

Em 13 de dezembro de 2013, X pediu, com fundamento no artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros, o adiamento da sua partida devido ao seu estado de saúde. Por Decisão de 24 de dezembro de 2013, o Secretário de Estado indeferiu esse pedido.

17

Em 19 de maio de 2016, X apresentou um novo pedido de asilo nos Países Baixos, uma vez que o prazo dentro do qual podia ser transferido para a Suécia entretanto expirou. Em apoio deste novo pedido, X alegou que o tratamento médico que lhe tinha sido administrado na Rússia para combater a dor ligada à sua doença lhe tinha causado efeitos secundários e que tinha descoberto que o consumo de canábis terapêutica convinha melhor ao seu estado de saúde. Como o uso de canábis não é autorizado no seu país de origem, X cultivou neste país plantas de canábis para fins medicinais, o que o expôs a dificuldades que o levavam a requerer agora a concessão de proteção internacional. Por ocasião desse pedido de asilo, X requereu, por outro lado, um adiamento do seu afastamento, com fundamento no artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros.

18

Por Decisão de 29 de março de 2018, após ter obtido o parecer do BMA, o Secretário de Estado indeferiu o pedido de asilo de X considerando que os problemas que alegava ter encontrado na Rússia, devido ao cultivo de canábis para seu uso pessoal, não eram credíveis. Decidiu igualmente que X não podia obter outra autorização de residência e indeferiu o pedido deste destinado a suspender, com fundamento no artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros, a execução da sua obrigação de regresso.

19

Por Sentença de 20 de dezembro de 2018, o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos) anulou parcialmente essa decisão. Embora este tribunal tenha admitido que X não podia reivindicar nem o estatuto de refugiado nem o de beneficiário da proteção subsidiária, ordenou, todavia, ao Secretário de Estado que reapreciasse tanto a argumentação de X relativa ao seu direito a obter uma autorização de residência, com fundamento no artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), como o seu pedido baseado no artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros. Esta sentença foi confirmada por um Acórdão do Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos) de 28 de março de 2019.

20

Em 19 de fevereiro de 2020, o Secretário de Estado recusou‑se, de novo, a conceder a X de um direito de residência por uma duração limitada, baseado artigo 8.o da CEDH, bem como o adiamento do seu afastamento. Além disso, adotou uma decisão de regresso que ordenava a X o abandono do território neerlandês no prazo de quatro semanas.

21

X interpôs recurso desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. Considera que lhe deve ser concedido um título de residência ao abrigo do artigo 8.o da CEDH ou que, no mínimo, lhe deve ser concedido um adiamento do seu afastamento ao abrigo do artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros. A este respeito, alega que o tratamento antálgico à base de canábis terapêutica, que lhe é administrado nos Países Baixos, lhe é de tal modo essencial que deixaria de poder ter uma vida decente se esse tratamento fosse interrompido. Indica, mais especificamente, que, em caso de interrupção do referido tratamento, a dor seria a tal ponto forte que deixaria de conseguir dormir e de se alimentar, o que teria consequências significativas não apenas no seu estado físico, mas também no seu estado psíquico, tornando‑o depressivo e suicida.

22

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta do Acórdão de 18 de dezembro de 2014, M’Bodj (C‑542/13, EU:C:2014:2452), que o estado de saúde de um nacional de um país terceiro não pode justificar que lhe seja concedido o benefício da proteção subsidiária. Além disso, é pacífico que X já não pede para obter o estatuto de refugiado.

23

Dito isto, em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, em conformidade com a regulamentação neerlandesa, um afastamento pode ser adiado quando, de um ponto de vista médico, o estrangeiro não está em condições de viajar ou quando existe um risco real de violação do artigo 3.o da CEDH por motivos médicos.

24

A segunda situação pressupõe que decorra do parecer do BMA, por um lado, que a interrupção do tratamento médico em causa geraria para o interessado, com toda a probabilidade, uma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros, e, por outro, que o tratamento médico idóneo não está disponível no país de destino ou que o estrangeiro em causa não lhe pode aceder.

25

No seu parecer emitido a pedido do Secretário de Estado, o BMA indicou, nomeadamente, que, embora fosse previsível que, na falta de flebotomias, X se encontraria, a curto prazo, numa «situação de emergência médica», esse tratamento estava, no entanto, disponível na Rússia. Em contrapartida, o BMA considerou que, não estando demonstrado o efeito medicinal da canábis, era impossível pronunciar‑se sobre as consequências para X de uma interrupção do seu tratamento antálgico à base de canábis terapêutica. Indicou igualmente que não tinha sido assinalada nenhuma perturbação relacionada com a dor que fizesse temer a morte de X ou um estado de dependência nos atos correntes da sua vida. Por conseguinte, considerou que não se podia afirmar que o uso de canábis terapêutica permitiria evitar a verificação, a curto prazo, de tal «situação de emergência médica». Considerou igualmente que existiam no mercado bastantes outros analgésicos que podiam ser administrados a X.

26

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta, todavia, das informações apresentadas por X que os médicos que tratam este último consideram que o uso de canábis terapêutica constitui o único tratamento adequado contra a dor para o interessado. Esse órgão jurisdicional considera, por outro lado, que X demonstrou que o tratamento à base de canábis terapêutica só é prescrito e utilizado quando as outras soluções contra a dor não só são ineficazes, mas igualmente contraindicadas.

27

O órgão jurisdicional de reenvio constata, por outro lado, que nenhum tratamento antálgico adequado está disponível na Rússia. Por conseguinte, se o afastamento de X não fosse adiado, o tratamento contra a dor que lhe é administrado seria interrompido e a intensidade da referida dor aumentaria. Em contrapartida, não é possível determinar se o aumento da dor de X, devido à interrupção do seu tratamento, provoca um agravamento da sua doença, mesmo que, atentas as informações de que esse órgão jurisdicional dispõe, seja provável que isso não acontecerá. Antes de solicitar a realização de uma perícia médica relativa ao aumento da dor que X correria o risco de sofrer na sequência da interrupção do tratamento à base de canábis terapêutica, o referido órgão jurisdicional considera que há que estabelecer, através de uma interpretação do direito da União, a maneira como deve ser tomado em consideração esse parâmetro.

28

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio alega que, segundo jurisprudência constante do Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), baseando‑se na exigência de uma deterioração rápida do estado de saúde do interessado, na aceção do Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 13 de dezembro de 2016, Paposhvili c. Bélgica (CE:ECHR:2016:1213JUD 004173810) (a seguir «Acórdão Paposhvili»), apenas as consequências médicas que se produzam nos três meses seguintes à interrupção do tratamento médico administrado ao interessado devem ser tidas em consideração para determinar se essa interrupção daria origem a uma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros.

29

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos não fixou todavia um prazo explícito no Acórdão Paposhvili. Seria, portanto, necessário determinar se as consequências ligadas à interrupção do tratamento médico de um nacional de um país terceiro, gravemente doente, em caso de regresso ao seu país de origem, só podem ser abrangidas pela aplicação do artigo 4.o da Carta se se verificarem num período de três meses, independentemente das patologias e das consequências médicas que se possam produzir após essa interrupção.

30

Em terceiro lugar, esse órgão jurisdicional assinala que o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) declarou que, em conformidade com o Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127), o artigo 64.o da Lei dos Estrangeiros impõe igualmente que se aprecie se o afastamento enquanto tal de um nacional de um país terceiro que apresente uma afeção física ou psíquica particularmente grave pode dar origem a um risco real de violação do artigo 3.o da CEDH. Todavia, esta apreciação deve unicamente ser efetuada no âmbito do exame das condições em que o estrangeiro em causa pode viajar. Daqui decorre, por um lado, que nunca é pedido ao BMA para avaliar se o procedimento de afastamento, enquanto tal, desse nacional de um país terceiro pode ter consequências médicas que surjam após este ter sido afastado no país de destino e, por outro, que essas consequências não são tomadas em consideração para determinar se uma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros, se opõe a esse afastamento.

31

Por conseguinte, tal exame dificilmente pode obstar a que o afastamento do interessado seja adiado mesmo quando se possa temer um agravamento do seu estado de saúde mental, tal como um risco de suicídio causado pelo próprio afastamento.

32

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, todavia, sobre a questão de saber se pode simplesmente apreciar se as consequências médicas do afastamento do interessado continuam a ser limitadas, mediante certas adaptações, ao longo deste. Além disso, salienta que, no caso de X, o tratamento à base de canábis terapêutica não pode ser administrado durante o afastamento propriamente dito e que X alegou que o aumento da sua dor teria por efeito torná‑lo depressivo e suicida.

33

Em quarto lugar, esse órgão jurisdicional considera que há que determinar se a gravidade do estado de saúde de um nacional de um país terceiro e o facto de este receber tratamento médico no Estado‑Membro onde reside de maneira irregular podem constituir elementos da sua vida privada cujo respeito deve ser assegurado, em aplicação do artigo 7.o da Carta e do artigo 8.o da CEDH.

34

Mais especificamente, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se as autoridades competentes de um Estado‑Membro devem examinar se há que conceder, ao abrigo do direito ao respeito da vida privada, um direito de permanência a esse nacional e se o respeito da vida privada do interessado constitui um elemento a ter em consideração a fim de decidir sobre o pedido deste último destinado a adiar a medida de afastamento de que é objeto.

35

Nestas condições, o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Pode um aumento significativo da intensidade da dor devido à falta de tratamento médico, num quadro clínico que permanece inalterado, constituir uma situação contrária ao artigo 19.o, n.o 2, da [Carta], lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da mesma, se não for permitido o adiamento da obrigação de [regresso] do país que decorre da [Diretiva 2008/115]?

2)

O estabelecimento de um prazo fixo durante o qual se devem manifestar as consequências da falta de um tratamento médico para que os obstáculos médicos à [obrigação] de regresso decorrente da [Diretiva 2008/115] devam ser aceites é compatível com o artigo 4.o da Carta lido em conjugação com o artigo 1.o da mesma? Se o estabelecimento de um prazo fixo não for contrário ao direito da União, é permitido a um Estado‑Membro estabelecer um prazo geral igual para todas as possíveis situações clínicas e para todas as possíveis consequências médicas?

3)

A norma segundo a qual as consequências da expulsão devem ser apreciadas apenas no âmbito da questão de saber se e em que condições o cidadão estrangeiro pode viajar é compatível com o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da mesma e com a [Diretiva 2008/115]?

4)

Exige o artigo 7.o da Carta, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da mesma e tendo em conta a [Diretiva 2008/115], que o estado de saúde do estrangeiro e o tratamento que recebe para o efeito no Estado‑Membro sejam tomados em consideração na apreciação da questão de saber se a proteção da vida privada deve levar à aceitação da sua permanência? Exige o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da mesma e tendo em conta a Diretiva 2008/115, que, na apreciação da questão de saber se os problemas de saúde podem constituir obstáculos à expulsão, se tenha em consideração a vida privada e familiar no sentido do artigo 7.o da Carta?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à competência do Tribunal de Justiça e à admissibilidade das questões prejudiciais

36

O Governo neerlandês contesta, em primeiro lugar, a admissibilidade das questões prejudiciais submetidas na medida em que estas são prematuras. Com efeito, antes de questionar o Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio deveria ter indeferido o pedido de X para que lhe fosse reconhecido um direito de permanência no território neerlandês, uma vez que a Diretiva 2008/115 só lhe é aplicável se esse nacional de um país terceiro permanecer de maneira irregular nesse território.

37

No entanto, os órgãos jurisdicionais nacionais podem interrogar livremente o Tribunal de Justiça a qualquer momento do processo que considerem adequado, mesmo numa fase precoce deste (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 26, e de 14 de novembro de 2018, Memoria e Dall'Antonia, C‑342/17, EU:C:2018:906, n.o 33).

38

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o Secretário de Estado indeferiu o pedido de asilo de X, pelo que este, em princípio, se encontra em situação irregular no território neerlandês e, por conseguinte, é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/115, a menos que seja elegível para a concessão de um direito de permanência nesse território ao abrigo, nomeadamente, do direito da União, o que constitui precisamente o objeto da quarta questão prejudicial.

39

Daqui resulta que há que afastar a argumentação do Governo neerlandês relativa ao caráter pretensamente prematuro das questões prejudiciais.

40

Em segundo lugar, o Governo neerlandês considera que a segunda questão prejudicial não é pertinente para a resolução do litígio no processo principal, uma vez que visa, no essencial, determinar se um Estado‑Membro pode exigir que a deterioração do estado de saúde do nacional de um país terceiro em causa, que é de temer em caso de regresso, se manifeste num prazo fixo após este. Ora, esse prazo não é um elemento determinante no âmbito do litígio no processo principal, uma vez que a recusa de adiar o afastamento de X foi justificada essencialmente pelo facto de nenhuma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros, ser de temer a curto prazo, no seu país de origem, pelo facto de a dor de X não estar ligada aos sintomas da sua doença e de existirem tratamentos de substituição nesse país.

41

A este respeito, decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o juiz nacional, que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo principal, a pertinência da questão que submete ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, quando a questão submetida for relativa à interpretação ou à validade de uma norma de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir. Daqui se conclui que uma questão prejudicial relativa ao direito da União goza de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre essa questão se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 7 de setembro de 2022, Cilevičs e o., C‑391/20, EU:C:2022:638, n.os 41 e 42).

42

Ora, contrariamente ao que o Governo neerlandês sustenta, a interpretação do direito da União solicitada na segunda questão prejudicial não se afigura manifestamente desprovida de relação com o objeto do litígio no processo principal.

43

Com efeito, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 35 das suas conclusões, é pacífico que a decisão de regresso adotada em relação a X se baseou, nomeadamente, no facto de nenhuma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros, se verificar a curto prazo em caso de regresso deste ao seu país de origem. Ora, resulta claramente da decisão de reenvio que, por força da regulamentação neerlandesa, a existência dessa «situação de emergência médica» é apreciada à luz do prazo de três meses mencionado na Circular dos estrangeiros, sendo esse prazo precisamente o objeto da segunda questão prejudicial.

44

Além disso, resulta do quadro factual definido pelo órgão jurisdicional de reenvio que as dores de X devem ser consideradas causadas pela doença de que padece e que, no que respeita a essas dores, nenhum tratamento de substituição está disponível no seu país de origem. Ora, as questões relativas à interpretação do direito da União são submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar. Assim, quaisquer que sejam as críticas do Governo neerlandês às apreciações factuais do órgão jurisdicional de reenvio, o exame da segunda questão prejudicial deve ser efetuado com base nessas apreciações [v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, Caixabank, C‑385/20, EU:C:2022:278, n.os 34 e 38 e jurisprudência referida).

45

Daqui resulta que a segunda questão prejudicial é admissível.

46

No que respeita, em terceiro lugar, à quarta questão prejudicial, importa salientar, por um lado, que, contrariamente ao que o Governo neerlandês afirma, esta questão tem por objeto a interpretação, não do artigo 8.o da CEDH, mas do artigo 7.o da Carta, lido em conjugação com outras disposições desta, bem como da Diretiva 2008/115.

47

Daqui resulta que o Tribunal de Justiça é competente para responder a esta questão.

48

Por outro lado, este governo alega que a referida questão é inadmissível pelo facto de o órgão jurisdicional de reenvio pretender determinar se o artigo 7.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que deve ser reconhecido a X um direito de permanência nos Países Baixos, apesar de nenhuma disposição material do direito da União lhe permitir beneficiar de tal direito de permanência.

49

A este respeito, basta salientar que a questão de saber se a interpretação da Diretiva 2008/115, lida em conjugação com o artigo 7.o da Carta, pode conduzir a reconhecer a um nacional de um país terceiro, numa situação como a que está em causa no processo principal, um direito de permanência no território de um Estado‑Membro, é abrangida, de qualquer modo, pela apreciação, quanto ao mérito, dessa questão.

50

Por conseguinte, a quarta questão prejudicial é admissível.

Quanto à primeira e segunda questões

51

Com a primeira e segunda questões, que importa apreciar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/115, lida em conjugação com os artigos 1.o e 4.o, bem como com o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento seja tomada em relação a um nacional de um país terceiro, em situação irregular no território de um Estado‑Membro e que padeça de uma doença grave, que esteja exposto, no país terceiro para o qual seria afastado, ao risco de um aumento significativo da dor causada por essa doença, devido à proibição, nesse país, do único tratamento antálgico eficaz. Pergunta igualmente se um Estado‑Membro pode prever um prazo estrito durante o qual tal aumento deve ser suscetível de se materializar para que seja possível obstar a essa decisão de regresso ou a essa medida de afastamento.

52

Em primeiro lugar, importa sublinhar que, antes de mais, sob reserva das exceções previstas no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/115, esta é aplicável a todos os nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado‑Membro. Por outro lado, uma vez abrangido pelo âmbito de aplicação dessa diretiva, um nacional de um país terceiro deve, em princípio, estar sujeito às normas e aos procedimentos comuns aí previstos com vista ao seu regresso, desde que a sua situação não tenha sido, se for caso disso, regularizada [Acórdão de 24 de fevereiro de 2021, M e o. (Transferência para um Estado‑Membro), C‑673/19, EU:C:2021:127, n.os 29 e 31 e jurisprudência referida].

53

Nesta perspetiva, resulta, por um lado, do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 que, uma vez estabelecido o caráter irregular da permanência, qualquer nacional de um país terceiro deve, sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5 do referido artigo e no estrito cumprimento dos requisitos fixados no artigo 5.o desta diretiva, ser objeto de uma decisão de regresso, a qual deve identificar, entre os países terceiros referidos no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115, aquele para o qual deve ser afastado [Acórdão de 24 de fevereiro de 2021, M e o. (Transferência para um Estado‑Membro), C‑673/19, EU:C:2021:127, n.os 32 e 39 e jurisprudência referida].

54

Por outro lado, um Estado‑Membro não pode proceder ao afastamento de um nacional de um país terceiro em situação irregular, ao abrigo do artigo 8.o da Diretiva 2008/115, sem que uma decisão de regresso em relação a esse nacional tenha sido previamente adotada com respeito pelas garantias materiais e processuais que esta diretiva instaura [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Comissão/Hungria (Acolhimento dos requerentes de proteção internacional), C‑808/18, EU:C:2020:1029, n.o 253].

55

Em segundo lugar, o artigo 5.o da Diretiva 2008/115, que constitui uma regra geral que se impõe aos Estados‑Membros desde que estes apliquem esta diretiva, obriga a autoridade nacional competente a respeitar, em todas as fases do procedimento de regresso, o princípio da não-repulsão, garantido, enquanto direito fundamental, no artigo 18.o da Carta, lido em conjugação com o artigo 33.o da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951, conforme alterada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, bem como no artigo 19.o, n.o 2, da Carta. É o que sucede, nomeadamente, como recordado no n.o 53 do presente acórdão, quando essa autoridade pretende, após ter ouvido o interessado, adotar uma decisão de regresso a seu respeito [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Comissão/Hungria (Acolhimento dos requerentes de proteção internacional), C‑808/18, EU:C:2020:1029, n.o 250 e jurisprudência referida].

56

Por conseguinte, o artigo 5.o da Diretiva 2008/115 opõe‑se a que um nacional de um país terceiro seja objeto de uma decisão de regresso quando esta decisão vise, como país de destino, um país onde existem motivos sérios e comprovados para crer que, em caso de execução da referida decisão, esse nacional está exposto a um risco real de tratos contrários ao artigo 18.o ou ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta.

57

Nos termos deste artigo 19.o, n.o 2, ninguém pode ser afastado para um Estado onde exista um risco sério de ser sujeito não só à pena de morte mas também à tortura ou a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta. A proibição das penas ou dos tratos desumanos ou degradantes, prevista neste artigo 4.o, reveste caráter absoluto na medida em que está estreitamente ligada ao respeito da dignidade do ser humano referido no artigo 1.o da Carta (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 85).

58

Daqui resulta que, quando existam motivos sérios e comprovados para crer que um nacional de um país terceiro, em situação irregular no território de um Estado‑Membro, ficaria exposto, em caso de regresso a um país terceiro, a um risco real de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, lido em conjugação com o artigo 1.o e com o artigo 19.o, n.o 2, esse nacional não pode ser objeto de uma decisão de regresso a esse país, enquanto tal risco perdurar.

59

De igual modo, o referido nacional não pode ser objeto de uma medida de afastamento durante esse período, como aliás expressamente prevê o artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115.

60

Em terceiro lugar, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, uma vez que os direitos garantidos no artigo 4.o desta correspondem aos garantidos pelo artigo 3.o da CEDH, o sentido e o âmbito destes direitos são iguais aos conferidos pelo referido artigo 3.o da CEDH [Acórdão de 24 de abril de 2018, MP (Proteção subsidiária de uma vítima de atos de tortura passados), C‑353/16, EU:C:2018:276, n.o 37].

61

Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativa ao artigo 3.o da CEDH que a dor causada por uma doença que se manifestou de modo natural, seja essa doença física ou mental, pode estar abrangida pelo âmbito de aplicação deste artigo 3.o se for ou puder vir a ser agravada por um tratamento, como o que resulta de condições de detenção, de uma expulsão ou de outras medidas, pelas quais as autoridades possam ser responsabilizadas, e isto na condição de a dor daí resultante atingir o limiar de gravidade exigido pelo referido artigo 3.o (v., neste sentido, Acórdão Paposhvili, § 174 e 175, assim como Acórdão de 24 de abril de 2018, MP (Proteção subsidiária de uma vítima de atos de tortura passados), C‑353/16, EU:C:2018:276, n.o 38].

62

Com efeito, importa recordar que, para ser abrangido pelo artigo 3.o da CEDH, um tratamento deve atingir um mínimo de gravidade, sendo a apreciação desse mínimo relativa e dependente de todos os dados da causa (TEDH, 20 de outubro de 2016, Muršić c. Croácia, ECLI:CE:ECHR:2016:1020JUD000733413, § 97; TEDH, 7 de dezembro de 2021, Savran c. Dinamarca, CE:ECHR:2021:1207JUD005746715, § 122 e jurisprudência referida).

63

A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que o artigo 3.o da CEDH se opõe ao afastamento de uma pessoa gravemente doente, relativamente à qual existe um risco de morte iminente ou relativamente à qual existem motivos sérios para acreditar que, embora não corra esse risco de morte iminente, essa pessoa ficaria sujeita, devido à falta de tratamentos adequados no país de destino ou à falta de acesso a estes, a um risco real de ser exposta a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde de que decorreriam dores intensas ou uma redução significativa da sua esperança de vida [v., neste sentido, Acórdão Paposhvili, § 178 e 183, assim como Acórdão de 24 de abril de 2018, MP (Proteção subsidiária de uma vítima de atos de tortura passados), C‑353/16, EU:C:2018:276, n.o 40].

64

Além disso, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que este Acórdão Paposhvili estabelece um padrão que tem devidamente em conta todas as considerações pertinentes para efeitos do artigo 3.o da CEDH, na medida em que preserva o direito geral de os Estados controlarem a entrada, a permanência e o afastamento dos estrangeiros, reconhecendo a natureza absoluta deste artigo (TEDH, 7 de dezembro de 2021, Savran c. Dinamarca, CE:ECHR:2021:1207JUD 005746715, § 133).

65

Decorre de maneira constante da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o limiar de gravidade exigido na matéria para efeitos da aplicação do artigo 4.o da Carta equivale ao limiar de gravidade exigido, nas mesmas circunstâncias, por força do artigo 3.o da CEDH [Acórdãos de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 67, e de 24 de abril de 2018, MP (Proteção subsidiária de uma vítima de atos de tortura passados), C‑353/16, EU:C:2018:276, n.o 37].

66

Resulta dos n.os 52 a 65 do presente acórdão que o artigo 5.o da Diretiva 2008/115, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o, e o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, se opõe a que um Estado‑Membro adote uma decisão de regresso ou proceda ao afastamento de um nacional de um país terceiro em situação irregular no território desse Estado‑Membro e que padeça de uma doença grave, quando existam motivos sérios e comprovados para crer que o regresso desse nacional o exporia, em razão da indisponibilidade de cuidados adequados no país de destino, a um risco real de redução significativa da sua esperança de vida ou de deterioração rápida, significativa e irremediável do seu estado de saúde, que provocaria dores intensas.

67

Em segundo lugar, há que apreciar, para efeitos do processo principal, se um Estado‑Membro deve abster‑se de adotar uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento em relação a um nacional de um país terceiro em situação irregular no território desse Estado‑Membro e que padeça de uma doença grave, quando existam motivos sérios e comprovados para crer que esse nacional ficaria exposto, em caso de regresso, a um risco real de aumento da sua dor, devido à proibição, no país de destino, do único tratamento antálgico eficaz, sem que tal regresso o exponha ao risco de a doença de que padece se agravar.

68

A este respeito, como salientado nos n.os 61, 63 e 65 do presente acórdão, um Estado‑Membro é suscetível de violar a proibição dos tratos desumanos e degradantes, consagrada no artigo 4.o da Carta, quando a decisão de regresso ou a medida de afastamento tomada pelas suas autoridades arriscam agravar a dor que é causada a um nacional de um país terceiro por uma doença que se manifestou de modo natural numa medida tal que essa dor atinja o limiar de gravidade referido nesses números.

69

Por conseguinte, a circunstância de só a dor ligada à doença grave de um nacional de um país terceiro, em situação irregular no território de um Estado‑Membro, correr o risco de se agravar, em caso de regresso desse nacional, não basta para excluir que esse regresso possa ser contrário ao artigo 4.o da Carta. Isto é tanto mais assim quanto um aumento da dor ligada a uma doença pode, por si só, conduzir a uma deterioração do estado de saúde física ou mental, propriamente dito, da pessoa em questão.

70

Dito isto, qualquer risco de aumento da dor, que resultaria do regresso de um nacional de um país terceiro, não expõe este último a um tratamento contrário ao artigo 4.o da Carta. Com efeito, por analogia com o exposto no n.o 66 do presente acórdão, é ainda necessário que existam motivos sérios e comprovados para crer que, em caso de regresso, esse nacional ficaria exposto ao risco real de a sua dor aumentar de forma rápida, significativa e irremediável.

71

A este respeito, há que precisar, em primeiro lugar, que existem razões sérias para pensar que um nacional de um país terceiro corre o risco de ser exposto, em caso de regresso, a um aumento significativo e irremediável da dor causada pela sua doença, nomeadamente, quando se demonstre que, no país de destino, o único tratamento antálgico eficaz não lhe pode ser legalmente administrado e que a falta desse tratamento o exporia a uma dor de uma intensidade tal que esta seria contrária à dignidade humana na medida em que lhe poderia causar perturbações psíquicas graves e irreversíveis, ou mesmo levá‑lo a suicidar‑se, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar à luz de todos os dados, nomeadamente médicos, pertinentes. Em particular, importa apreciar a natureza irreversível do aumento da dor tendo em conta uma multiplicidade de fatores, incluindo os efeitos diretos e as consequências mais indiretas de tal aumento (v., por analogia, TEDH, Acórdão Savran c. Dinamarca, CE:ECHR:2021:1207JUD 005746715, § 138).

72

No que respeita, em segundo lugar, à exigência segundo a qual o regresso do nacional de um país terceiro em questão pode ocasionar ao interessado um aumento rápido da sua dor, importa sublinhar que tal condição não pode ser interpretada de uma maneira a tal ponto estrita que só se oporia ao regresso de um nacional de um país terceiro gravemente doente nos casos extremos em que este sofre um aumento significativo e irremediável da sua dor desde a sua chegada ao território do país de destino ou no prolongamento imediato dessa chegada. Pelo contrário, há que ter em conta o facto de que o aumento da dor da pessoa em questão, causado pelo seu regresso a um país onde os tratamentos adequados não estão disponíveis, pode ser progressivo e que pode ser necessário um certo lapso de tempo para que esse aumento se torne significativo e irremediável.

73

Além disso, a necessidade de ter em conta todos os elementos pertinentes, para efeitos da apreciação do limiar de gravidade exigido na matéria ao abrigo do artigo 4.o da Carta, tal como a parte de especulação inerente a esse exame prospetivo, opõem‑se a que, para que seja considerado rápido, o aumento da dor de um nacional de um país terceiro, em caso de regresso, deva ser suscetível de se produzir num prazo predeterminado no direito do Estado‑Membro em questão de maneira absoluta.

74

Com efeito, a autoridade nacional competente deve poder ponderar, em função da patologia de que sofre o nacional de um país terceiro, a rapidez com que, em caso de regresso, esse aumento é suscetível de se verificar, por um lado, e o grau de intensidade do aumento da dor que é de temer em tal hipótese, por outro.

75

Se os Estados‑Membros fixarem um prazo, este deve ser puramente indicativo e não dispensa a autoridade nacional competente de um exame concreto da situação do nacional de um país terceiro em questão atentos todos os elementos pertinentes, nomeadamente os mencionados no número anterior, tendo em conta a patologia de que esse nacional padece.

76

Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 5.o da Diretiva 2008/115, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da Carta, bem como com o artigo 19.o, n.o 2, desta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento seja tomada em relação a um nacional de um país terceiro, em situação irregular no território de um Estado‑Membro e que padeça de uma doença grave, quando existam motivos sérios e comprovados para crer que o interessado ficaria exposto, no país para o qual seria afastado, ao risco real de um aumento significativo, irremediável e rápido da sua dor, em caso de regresso, devido à proibição, nesse país, do único tratamento antálgico eficaz. Um Estado‑Membro não pode prever um prazo estrito durante o qual esse aumento deve ser suscetível de se materializar para que seja possível obstar a essa decisão de regresso ou a essa medida de afastamento.

Quanto à terceira questão prejudicial

77

Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/115, lida em conjugação com os artigos 1.o, 4.o e 19.o da Carta, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que as consequências da medida de afastamento, propriamente dita, sobre o estado de saúde do nacional de um país terceiro apenas sejam tidas em conta pela autoridade nacional competente a fim de apreciar se este está em condições de viajar.

78

Resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que a regulamentação neerlandesa em causa distingue, por um lado, a apreciação do risco de que a interrupção do tratamento administrado a um nacional de um país terceiro, causada pelo seu regresso, provoque a curto prazo uma «situação de emergência médica», na aceção do ponto 7.1.3 da Circular dos estrangeiros, e, por outro, a apreciação das consequências da medida de afastamento propriamente dita, que deve inserir‑se no âmbito da apreciação da capacidade desse nacional para viajar e que pressupõe, assim, que apenas sejam tidas em conta as consequências médicas suscetíveis de se verificar durante esse afastamento, excluindo as que se podem manifestar, no termo deste, no país de destino.

79

O Governo neerlandês contesta que tal seja a prática da autoridade nacional competente em questão. No entanto, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 44 do presente acórdão, há que responder à terceira questão partindo da premissa exposta pelo órgão jurisdicional de reenvio.

80

Sob reserva desta precisão, resulta dos fundamentos da resposta à primeira e segunda questões que o artigo 5.o e o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2008/115 exigem que, antes de adotar uma decisão de regresso ou de proceder ao afastamento de um nacional de um país terceiro que padeça de uma doença grave, os Estados‑Membros possam afastar qualquer dúvida séria quanto ao risco de o regresso desse nacional provocar um agravamento rápido, significativo e irremediável dessa doença ou da dor causada por esta última. Quando essa dúvida não pode ser afastada, a autoridade nacional competente não pode adotar uma decisão de regresso nem proceder ao afastamento do nacional de um país terceiro em questão.

81

Embora essa proibição seja igualmente válida enquanto o Estado‑Membro em questão não puder organizar o afastamento propriamente dito do nacional de um país terceiro em questão de maneira que seja assegurado, nomeadamente, que esse nacional não seja exposto a um risco de aumento significativo e irremediável da sua doença ou da sua dor durante esse afastamento, não se pode daí concluir que basta a este Estado‑Membro garantir que o referido nacional beneficiará de cuidados adequados durante o seu afastamento para poder adotar uma decisão de regresso a seu respeito ou proceder ao seu afastamento. Com efeito, o Estado‑Membro em questão deve assegurar‑se de que, quando o estado de saúde da pessoa em causa o exige, esta recebe não só cuidados de saúde durante o afastamento propriamente dito mas também no termo deste, no país de destino (v., por analogia, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.os 76 a 82).

82

Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 5.o e o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2008/115, lidos em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da Carta, bem como com o artigo 19.o, n.o 2, desta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que as consequências da medida de afastamento propriamente dita sobre o estado de saúde de um nacional de um país terceiro apenas sejam tidas em conta pela autoridade nacional competente a fim de apreciar se este está em condições de viajar.

Quanto à quarta questão prejudicial

83

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/115, lida em conjugação com os artigos 7.obem como 1.o e 4.o da Carta, deve ser interpretada no sentido de que o estado de saúde de um nacional de um país terceiro em situação irregular no território de um Estado‑Membro e os cuidados que esse nacional recebe nesse território, devido à doença grave de que padece, devem ser tidos em conta por esse Estado‑Membro a fim de apreciar se, por força do direito ao respeito da sua residência privada, há que reconhecer ao interessado um direito de permanência no território do referido Estado‑Membro ou adiar a data do seu afastamento.

84

Em primeiro lugar, importa recordar que as normas e os procedimentos comuns instituídos pela Diretiva 2008/115 apenas dizem respeito à adoção de decisões de regresso e à execução dessas decisões, uma vez que esta diretiva não tem por objeto harmonizar integralmente as regras dos Estados‑Membros relativas à permanência de estrangeiros. Por conseguinte, a referida diretiva não regula a maneira como deve ser atribuído um direito de permanência aos nacionais de países terceiros, nem as consequências da permanência irregular, no território de um Estado‑Membro, de nacionais de países terceiros em relação aos quais nenhuma decisão de regresso para um país terceiro pode ser adotada [v., neste sentido, Acórdãos de 8 de maio de 2018, K. A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica), C‑82/16, EU:C:2018:308, n.os 44 e 45, assim como de 24 de fevereiro de 2021, M e o. (Transferência para um Estado‑Membro), C‑673/19, EU:C:2021:127, n.os 43 e 44].

85

Daqui resulta que nenhuma disposição da Diretiva 2008/115 pode ser interpretada no sentido de que exige que um Estado‑Membro conceda um título de residência a um nacional de um país terceiro, em situação irregular no seu território, quando este nacional não possa ser objeto nem de uma decisão de regresso, nem de uma medida de afastamento, por existirem motivos sérios e comprovados para crer que o interessado ficaria exposto, no país de destino, a um risco real de aumento rápido, significativo e irremediável da dor causada pela sua doença.

86

No que respeita, especialmente, ao artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2008/115, esta disposição limita‑se a permitir aos Estados‑Membros conceder, por razões compassivas ou humanitárias, um direito de permanência, com fundamento no seu direito nacional, e não do direito da União, aos nacionais de países terceiros que permaneçam em situação irregular no seu território.

87

Ora, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 2, da Carta, as suas disposições não alargam o âmbito de aplicação do direito da União. Por conseguinte, não se pode considerar que, por força do artigo 7.o da Carta, um Estado‑Membro possa ser obrigado a conceder um direito de permanência a um nacional de um país terceiro abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva.

88

Dito isto, importa, em segundo lugar, salientar que o objetivo principal da Diretiva 2008/115 consiste, como resulta dos seus considerandos 2 e 4, na definição de uma política eficaz de afastamento e repatriamento com pleno respeito pelos direitos fundamentais, bem como pela dignidade das pessoas em questão (Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 48 e jurisprudência referida).

89

Daqui resulta que, quando aplicam a Diretiva 2008/115, inclusivamente quando tencionem adotar uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento em relação a um nacional de um país terceiro em situação irregular, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar os direitos fundamentais que são reconhecidos a esse nacional pela Carta (Acórdão de 11 de junho de 2015, Zh. e O., C‑554/13, EU:C:2015:377, n.o 69).

90

É o que sucede, nomeadamente, com o direito ao respeito da vida privada e familiar do referido nacional, conforme garantido no artigo 7.o da Carta. Este direito, mais especificamente visado pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua quarta questão, corresponde ao direito garantido no artigo 8.o da CEDH e deve, por conseguinte, ser‑lhe reconhecido o mesmo sentido e alcance [Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/Hungria (Transparência associativa), C‑78/18, EU:C:2020:476, n.o 122 e jurisprudência referida].

91

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 5.o, primeiro parágrafo, alínea b), da Diretiva 2008/115 se opõe a que um Estado‑Membro adote uma decisão de regresso sem ter em conta os elementos pertinentes da vida familiar do nacional de um país terceiro em [Acórdão de 8 de maio de 2018, K. A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica), C‑82/16, EU:C:2018:308, n.o 104].

92

Por outro lado, e embora este artigo 5.o não mencione a vida privada do nacional de um país terceiro em situação irregular entre os elementos que os Estados‑Membros devem ter em conta quando aplicam a Diretiva 2008/115, não é menos certo que decorre dos n.os 88 a 90 do presente acórdão que uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento não pode ser adotada se violar o direito ao respeito da vida privada do nacional de um país terceiro em questão.

93

A este respeito, importa salientar que os tratamentos médicos de que um nacional de um país terceiro beneficia no território de um Estado‑Membro, mesmo que esse nacional aí permaneça de maneira irregular, fazem parte da vida privada deste, na aceção do artigo 7.o da Carta.

94

Com efeito, conforme o advogado‑geral referiu, em substância, no n.o 114 das suas conclusões, a integridade física e mental de uma pessoa faz parte do seu desenvolvimento pessoal e, por conseguinte, do gozo efetivo do seu direito ao respeito da vida privada, a qual abrange igualmente, num certo grau, o direito de o indivíduo estabelecer e desenvolver relações com os seus semelhantes (v., neste sentido, TEDH, Acórdão de 8 de abril de 2021, Vavricka e o. c. República Checa, CE:ECHR:2021:0408JUD 004762113, § 261).

95

Por conseguinte, como o artigo 5.o, primeiro parágrafo, alínea c), e o artigo 9.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2008/115 confirmam, a autoridade nacional competente só pode adotar uma decisão de regresso ou proceder ao afastamento de um nacional de um país terceiro tendo tomado em consideração o seu estado de saúde.

96

Dito isto, importa recordar que o direito ao respeito da vida privada, consagrado no artigo 7.o da Carta, não é uma prerrogativa absoluta, mas deve ser tido em consideração de acordo com a sua função na sociedade. Com efeito, como resulta do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, esta admite restrições ao exercício desse direito, desde que essas restrições estejam previstas pela lei, respeitem o conteúdo essencial desse direito e que, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros (Acórdão de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána e o., C‑140/20, EU:C:2022:258, n.o 48 e jurisprudência referida).

97

A este respeito, importa salientar que a definição de uma política eficaz de afastamento e repatriamento, que é prosseguida pela Diretiva 2008/115, como sublinha o considerando 2 desta última, constitui um objetivo de interesse geral reconhecido pelo direito da União.

98

Dito isto, o artigo 52.o, n.o 1, da Carta impõe ainda que se aprecie, nomeadamente, se a adoção de uma decisão de regresso ou de uma medida de afastamento um nacional de um país terceiro que padece de uma doença grave e que beneficia, no Estado‑Membro em questão, de um tratamento antálgico indisponível no país de destino, não afeta o conteúdo essencial do seu direito à vida privada e respeita o princípio da proporcionalidade.

99

Tal apreciação pressupõe que se tenha em conta o conjunto das relações sociais que esse nacional criou no Estado‑Membro onde se encontra em situação irregular, tendo devidamente em conta a fragilidade e o estado de particular dependência que é causado pelo seu estado de saúde. No entanto, conforme o advogado‑geral sublinhou, em substância, no n.o 112 das suas conclusões, quando esse nacional desenvolveu a sua vida privada, nesse Estado‑Membro, sem aí dispor de um título de residência, apenas razões excecionais podem opor‑se a que seja objeto de um procedimento de regresso (v., por analogia, TEDH, Acórdão de 28 de julho de 2020, Pormes c. Países Baixos, CE:ECHR:2020:0728JUD 002540214, § 53 e 58).

100

Por outro lado, a circunstância de, em caso de regresso, esse nacional já não dispor dos mesmos tratamentos que os que lhe são administrados no Estado‑Membro em cujo território se encontra em situação irregular e poder, por essa razão, ser, designadamente, afetado o desenvolvimento das suas relações sociais no país de destino, não pode, por si só, obstar, ao abrigo do artigo 7.o da Carta, à adoção de uma decisão de regresso ou de uma medida de afastamento a seu respeito.

101

Com efeito, como foi recordado nos n.os 60 e 64 do presente acórdão, é em condições estritas que o artigo 4.o da Carta se opõe ao regresso de um nacional de um país terceiro, em situação irregular e que padeça de uma doença grave.

102

Daqui resulta que, sob pena de privar essas condições da sua efetividade, o artigo 7.o da Carta não pode impor a um Estado‑Membro que renuncie adotar uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento em relação a esse nacional, unicamente devido ao risco de deterioração do estado de saúde deste último no país de destino, quando tais condições não estão preenchidas.

103

Resulta de todas as considerações precedentes que a Diretiva 2008/115, lida em conjugação com os artigos 7.o, bem como 1.o e 4.o da Carta, deve ser interpretada no sentido de que:

não impõe ao Estado‑Membro em cujo território um nacional de um país terceiro se encontra em situação irregular a concessão a este último de um título de residência quando esse nacional não pode ser objeto de uma decisão de regresso nem de uma medida de afastamento, pelo facto de existirem motivos sérios e comprovados para crer que ficaria exposto, no país de destino, ao risco real de um aumento rápido, significativo e irremediável da dor causada pela doença grave de que padece;

o estado de saúde desse nacional e os tratamentos que este recebe nesse território, devido a essa doença, devem ser tidos em conta, juntamente com todos os outros elementos pertinentes, pela autoridade nacional competente quando aprecia se o direito ao respeito da vida privada do referido cidadão se opõe a que este seja objeto de uma decisão de regresso ou de uma medida de afastamento;

a adoção de tal decisão ou medida não viola este direito pelo simples facto de que, em caso de regresso ao país de destino, esse nacional ficaria exposto ao risco de que o seu estado de saúde se deteriorasse, quando esse risco não atinge o limiar de gravidade exigido pelo artigo 4.o da Carta.

Quanto às despesas

104

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 5.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, lido em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como com o artigo 19.o, n.o 2, desta,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a que uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento seja tomada em relação a um nacional de um país terceiro, em situação irregular no território de um Estado‑Membro e que padeça de uma doença grave, quando existam motivos sérios e comprovados para crer que o interessado ficaria exposto, no país para o qual seria afastado, ao risco real de um aumento significativo, irremediável e rápido da sua dor, em caso de regresso, devido à proibição, nesse país, do único tratamento antálgico eficaz. Um Estado‑Membro não pode prever um prazo estrito durante o qual esse aumento deve ser suscetível de se materializar para que seja possível obstar a essa decisão de regresso ou a essa medida de afastamento.

 

2)

O artigo 5.o e o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2008/115, lidos em conjugação com os artigos 1.o e 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais, bem como o artigo 19.o, n.o 2, desta,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a que as consequências da medida de afastamento propriamente dita sobre o estado de saúde de um nacional de um país terceiro apenas sejam tidas em conta pela autoridade nacional competente a fim de apreciar se este está em condições de viajar.

 

3)

A Diretiva 2008/115, lida em conjugação com os artigos 7.o, assim como 1.o e 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais,

deve ser interpretada no sentido de que:

não impõe ao Estado‑Membro em cujo território um nacional de um país terceiro se encontra em situação irregular a concessão a este último de um título de residência quando esse nacional não pode ser objeto de uma decisão de regresso nem de uma medida de afastamento, pelo facto de existirem motivos sérios e comprovados para crer que ficaria exposto, no país de destino, ao risco real de um aumento rápido, significativo e irremediável da dor causada pela doença grave de que padece;

o estado de saúde desse nacional e os tratamentos que este recebe nesse território, devido a essa doença, devem ser tidos em conta, juntamente com todos os outros elementos pertinentes, pela autoridade nacional competente quando aprecia se o direito ao respeito da vida privada do referido cidadão se opõe a que este seja objeto de uma decisão de regresso ou de uma medida de afastamento;

a adoção de tal decisão ou medida não viola este direito pelo simples facto de que, em caso de regresso ao país de destino, esse nacional ficaria exposto ao risco de que o seu estado de saúde se deteriorasse, quando esse risco não atinge o limiar de gravidade exigido pelo artigo 4.o da Carta.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.