ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

20 de outubro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Controlos fronteiriços, asilo e imigração — Política de asilo — Título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objeto de uma ação de auxílio à imigração clandestina e que cooperem com as autoridades competentes — Diretiva 2004/81/CE — Artigo 6.o — Âmbito de aplicação — Nacional de país terceiro que alega ter sido vítima de uma infração ligada ao tráfico dos seres humanos — Benefício do prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva — Proibição de executar uma medida de afastamento — Conceito — Alcance — Contagem desse prazo de reflexão — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de países terceiros ou um apátrida — Transferência para o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido de proteção internacional»

No processo C‑66/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância da Haia, Países Baixos), por Decisão de 28 de janeiro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de janeiro de 2021, no processo

O. T. E.

contra

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, L. S. Rossi (relatora) J.‑C. Bonichot, S. Rodin e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo neerlandês, por K. Bulterman e P. Huurnink, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 2 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o da Diretiva 2004/81/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objeto de uma ação de auxílio à imigração ilegal, e que cooperem com as autoridades competentes (JO 2004, L 261, p. 19).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe O. T. E., um nacional nigeriano, ao Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado»), a propósito do indeferimento, sem exame, por parte deste último, do pedido de autorização de residência temporária ao abrigo de asilo, apresentado pelo recorrente no processo principal, com o fundamento de que a República Italiana era o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2004/81

3

Os considerandos 2, 4 e 9 a 11 da Diretiva 2004/81 têm a seguinte redação:

«(2)

O Conselho Europeu, na sua reunião extraordinária de Tampere, de 15 e 16 de outubro de 1999, exprimiu a sua determinação em travar, na origem, o problema da imigração ilegal nomeadamente lutando contra os indivíduos que estão envolvidos no tráfico de seres humanos e na exploração económica dos migrantes. Apelou aos Estados‑Membros para que envidassem esforços na deteção e desmantelamento das redes criminosas envolvidas nesta atividade, garantindo simultaneamente os direitos das vítimas.

[…]

(4)

A presente diretiva é aplicável sem prejuízo da proteção concedida aos refugiados, aos beneficiários de proteção subsidiária e aos requerentes de proteção internacional, nos termos do direito internacional relativo aos refugiados e sem prejuízo dos outros instrumentos relativos aos direitos humanos.

[…]

(9)

A presente diretiva instaura um título de residência destinado às vítimas do tráfico de seres humanos ou, se um Estado–Membro decidir tornar extensivo o âmbito de aplicação da presente diretiva aos nacionais de países terceiros que tenham sido objeto de uma ação de auxílio à imigração ilegal e para os quais a concessão do título de residência constitua um incentivo suficiente para cooperarem com as autoridades competentes, prevendo ao mesmo tempo determinadas condições destinadas a evitar abusos.

(10)

Para este efeito, é necessário estabelecer os critérios para emitir um título de residência, as condições de permanência e os fundamentos para a sua não renovação ou retirada. O direito de permanência ao abrigo da presente diretiva fica sujeito a condições e tem caráter provisório.

(11)

É necessário que os nacionais de países terceiros em causa sejam informados da possibilidade de obter este título de residência e de que dispõem de um prazo de reflexão. Este prazo destina‑se a permitir-lhes decidir com conhecimento de causa sobre se desejam ou não cooperar com as autoridades competentes, as quais podem ser policiais, de instrução criminal e judiciais — tendo em conta os riscos em que incorrem — para que a sua cooperação seja livre e, portanto, mais eficaz.»

4

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva tem por objeto definir as condições de concessão de títulos de residência de duração limitada, em função da duração dos procedimentos nacionais relevantes, a nacionais de países terceiros que cooperem na luta contra o tráfico de seres humanos ou contra o auxílio à imigração clandestina.»

5

O artigo 2.o da referida diretiva prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende–se por:

[…]

d)

“Medida de execução de uma decisão de afastamento” qualquer medida tomada por um Estado-Membro com vista a executar a decisão tomada pelas autoridades competentes que ordena o afastamento de um nacional de um país terceiro;

e)

“Título de residência” qualquer autorização, emitida por um Estado-Membro, que permita a permanência legal no seu território de um cidadão nacional de um país terceiro que preencha as condições previstas na presente diretiva;

[…]»

6

O artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva enuncia:

«Os Estados–Membros aplicarão a presente diretiva aos nacionais de países terceiros que sejam ou tenham sido vítimas de infrações penais ligadas ao tráfico de seres humanos, mesmo que tenham entrado ilegalmente no território dos Estados–Membros.»

7

O artigo 5.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/81, tem a seguinte redação:

«Quando as autoridades competentes dos Estados-Membros considerarem que um nacional de um país terceiro pode ser abrangido pelo âmbito da presente diretiva, informarão a pessoa em causa das possibilidades conferidas por esta.»

8

O artigo 6.o desta diretiva, epigrafado «Prazo de reflexão», dispõe:

«1.   Os Estados-Membros garantem que seja dado aos nacionais de países terceiros em causa um prazo de reflexão que lhes permita recuperar e escapar à influência dos autores das infrações, de modo a poderem tomar uma decisão informada sobre se cooperam ou não com as autoridades competentes.

A duração e o início do prazo referido no parágrafo anterior serão determinados em conformidade com a legislação nacional.

2.   Durante o prazo de reflexão, e enquanto as autoridades competentes não se pronunciarem, os referidos nacionais de países terceiros têm acesso ao tratamento previsto no artigo 7.o, não podendo ser executada contra eles qualquer medida de afastamento.

3.   O prazo de reflexão não confere qualquer direito de residência ao abrigo da presente diretiva.

4.   O Estado–Membro pode, [a] todo o tempo, pôr termo ao prazo de reflexão, se as autoridades competentes tiverem determinado que a pessoa em causa reatou ativa e voluntariamente, por sua própria iniciativa, uma ligação com os autores das infrações referidas nas alíneas b) e c) do artigo 2.o, ou por razões ligadas à ordem pública e à proteção da segurança interna.»

9

O artigo 7.o da referida diretiva, epigrafado «Tratamento dado antes da emissão do título de residência», dispõe:

«1.   Os Estados-Membros garantirão que seja proporcionado aos nacionais de países terceiros que não disponham de recursos suficientes um nível de vida suscetível de assegurar a sua subsistência e o acesso a tratamento médico urgente. Os Estados-Membros velarão igualmente pela satisfação das necessidades específicas das pessoas mais vulneráveis, incluindo o recurso, se for caso disso e se previsto pela legislação nacional, a assistência psicológica.

2.   Ao aplicar a presente diretiva, os Estados-Membros terão na devida conta a segurança e a proteção dos nacionais de países terceiros visados, em conformidade com a legislação nacional.

[…]»

10

O artigo 8.o da mesma diretiva, epigrafado «Emissão e renovação do título de residência», indica, no seu n.o 1:

«Após o termo do prazo de reflexão, ou antes, se as autoridades competentes entenderem que o nacional de um país terceiro em causa já preenche os critérios previstos na alínea b), os Estados-Membros analisarão se:

a)

É oportuno prorrogar a sua permanência no território, tendo em conta o interesse que representa para as investigações ou os processos judiciais;

b)

O interessado mostrou uma vontade clara de cooperar;

c)

Rompeu todos os laços com os autores presumidos dos atos suscetíveis de ser incluídos nas infrações referidas nas alíneas b) e c) do artigo 2.o»

Regulamento Dublim III

11

O Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise e um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1), foi revogado e substituído, com efeitos a partir de 18 de julho de 2013, pelo Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31) (a seguir «Regulamento Dublim III»).

12

O artigo 1.o do Regulamento Dublim III enuncia:

«O presente regulamento estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (a seguir designado “Estado‑Membro responsável”).»

13

O artigo 21.o deste regulamento, epigrafado «Apresentação de um pedido de tomada a cargo», prevê, no seu n.o 1:

«O Estado‑Membro ao qual tenha sido apresentado um pedido de proteção internacional e que considere que a responsabilidade pela análise desse pedido cabe a outro Estado‑Membro pode requerer a este último, o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de três meses a contar da apresentação do pedido na aceção do artigo 20.o, n.o 2, que proceda à tomada a cargo do requerente.

Não obstante o primeiro parágrafo, no caso de um acerto Eurodac com dados registados, nos termos do artigo 14.o do Regulamento (UE) n.o 603/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.o 604/2013, e de pedidos de comparação com os dados Eurodac apresentados pelas autoridades responsáveis dos Estados‑Membros e pela Europol para fins de aplicação da lei e que altera o Regulamento (UE) n.o 1077/2011 que cria uma Agência europeia para a gestão operacional de sistemas informáticos de grande escala no espaço de liberdade, segurança e justiça (JO 2013, L 180, p. 1)], o pedido é enviado no prazo de dois meses a contar da receção desse acerto, nos termos do artigo 15.o, n.o 2, desse regulamento.

Se o pedido de tomada a cargo de um requerente não for formulado nos prazos previstos no primeiro e no segundo parágrafos, a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional cabe ao Estado‑Membro ao qual o pedido tiver sido apresentado.»

14

O artigo 26.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento Dublim III dispõe:

«Caso o Estado‑Membro requerido aceite a tomada ou retomada a cargo de um requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), o Estado‑Membro requerente deve notificar a pessoa em causa da decisão da sua transferência para o Estado‑Membro responsável e, se for caso disso, da decisão de não analisar o seu pedido de proteção internacional.»

15

O artigo 27.o deste regulamento, epigrafado «Vias de recurso», enuncia:

«1.   O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.

2.   Os Estados‑Membros devem prever um período de tempo razoável para a pessoa em causa poder exercer o seu direito de recurso nos termos do n.o 1.

3.   Para efeitos de recursos ou de pedidos de revisão de decisões de transferência, os Estados‑Membros devem prever na sua legislação nacional que:

a)

O recurso ou o pedido de revisão confira à pessoa em causa o direito de permanecer no Estado‑Membro em causa enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão; ou

b)

A transferência seja automaticamente suspensa e que essa suspensão termine após um período razoável, durante o qual um órgão jurisdicional, após exame minucioso e rigoroso, deve tomar uma decisão sobre o efeito suspensivo de um recurso ou de um pedido de revisão; ou

c)

A pessoa em causa tenha a possibilidade de dentro de um prazo razoável requerer junto do órgão jurisdicional a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto […] aguarda o resultado do recurso ou do pedido de revisão. […]».

16

O artigo 29.o do referido regulamento prevê:

«1.   A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

[…]

2.   Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.

[…]»

Diretiva 2001/40/CE

17

O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2001/40/CE do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativa ao reconhecimento mútuo de decisões de afastamento de nacionais de países terceiros (JO 2001, L 149, p. 34), dispõe:

«Sem prejuízo, por um lado, das obrigações decorrentes do artigo 23.o e, por outro, da aplicação do artigo 96.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985 [entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19)] […], assinada em Schengen em 19 de junho de 1990, […] tem por objetivo permitir o reconhecimento de uma decisão de afastamento tomada por uma autoridade competente de um Estado‑Membro, adiante designado por “Estado‑Membro autor”, contra um nacional de um país terceiro que se encontre no território de outro Estado‑Membro, adiante designado por “Estado‑Membro de execução”.»

18

O artigo 2.o desta diretiva prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende–se por:

[…]

b)

“Decisão de afastamento”: qualquer decisão que ordene o afastamento tomada por uma autoridade administrativa competente de um Estado‑Membro autor;

[…]»

Diretiva 2004/38/CE

19

O artigo 28.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, bem como retificações no JO 2004, L 229, p. 35, e JO 2005, L 197, p. 34), dispõe:

«1.   Antes de tomar uma decisão de afastamento do território por razões de ordem pública ou de segurança pública, o Estado‑Membro de acolhimento deve tomar em consideração, nomeadamente, a duração da residência da pessoa em questão no seu território, a sua idade, o seu estado de saúde, a sua situação familiar e económica, a sua integração social e cultural no Estado‑Membro de acolhimento e a importância dos laços com o seu país de origem.

2.   O Estado‑Membro de acolhimento não pode decidir o afastamento de cidadãos da União ou de membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, que tenham direito de residência permanente no seu território, exceto por razões graves de ordem pública ou de segurança pública.»

Direito neerlandês

20

O artigo 8.o da Wet tot algehele herziening van de Vreemdelingenwet (Vreemdelingenwet 2000) [Lei de revisão geral da Lei dos Estrangeiros (Lei dos Estrangeiros de 2000)], de 23 de novembro de 2000 (Stb. 2000, n.o 496), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei dos Estrangeiros»), dispõe:

«Um estrangeiro só permanece em situação regular nos Países Baixos:

[…]

k)

durante o período em que o ministro lhes disponibilize as condições necessárias para fazer uma denúncia por violação do artigo 273f do Wetboek van Strafrecht (Código Penal neerlandês) [, relativo ao tráfico de seres humanos]».

21

O artigo 30.o, n.o 1, da Lei dos Estrangeiros, especifica que um pedido de autorização de residência por tempo determinado não é analisado caso tenha sido demonstrado, ao abrigo do Regulamento Dublim III, que outro Estado‑Membro é responsável pela análise desse pedido.

22

A secção B8/3.1 da Vreemdelingencirculaire 2000 (Circular de 2000 relativa aos cidadãos estrangeiros), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «circular relativa aos cidadãos estrangeiros»), tem a seguinte redação:

«O comandante da Koninklijke Marechaussee [(Guarda Nacional, Países Baixos, a seguir “KMar”)] dispõe dos mesmos poderes que o chefe da Polícia Nacional na medida em que se verifiquem indícios de tráfico de seres humanos relativamente a um estrangeiro. […]

O Immigratie‑en Naturalisatiedienst [Serviço de Imigração e de Naturalização, Países Baixos, a seguir “IND”] distingue três situações em matéria de direito de residência no que respeita ao direito de residência temporário das vítimas e testemunhas denunciantes do tráfico de seres humanos:

1. Prazo de reflexão para as vítimas do tráfico de seres humanos;

2. Autorização de residência para as vítimas do tráfico de seres humanos; e

3. Autorização de residência para as testemunhas denunciantes do tráfico de seres humanos.

1. Prazo de reflexão

Em aplicação do artigo 8.o, alínea k), da Lei dos Estrangeiros, é concedido às vítimas presumidas do tráfico de seres humanos um prazo de reflexão de três meses, no máximo, no qual devem decidir se pretendem apresentar queixa por tráfico de seres humanos ou cooperar de outro modo numa informação ou numa instrução penal que vise uma pessoa suspeita de tráfico de seres humanos ou no julgamento de mérito dessa pessoa, ou se a tal renunciam.

A Polícia ou a KMar concede à vítima presumida um prazo de reflexão, desde que haja o menor indício de tráfico de seres humanos e/ou mediante intervenção da Inspectie Sociale Zaken en Werkgelegenheid (Inspeção da Segurança Social e do Trabalho, Países Baixos) […]

Durante o prazo de reflexão, o IND suspende a partida dos Países Baixos da vítima presumida de tráfico de seres humanos.

O prazo de reflexão é concedido uma única vez e não pode ser prorrogado.

O prazo de reflexão exclusivamente aos cidadãos estrangeiros que estejam em situação irregular nos Países Baixos e que:

participem ou tenham participado numa situação prevista e punida no artigo 273f do Código Penal neerlandês;

nunca tenham participado, nos Países Baixos, numa situação prevista e punida no artigo 273f do Código Penal neerlandês, mas sejam eventualmente vítimas do tráfico de seres humanos; ou

não tenham tido acesso ao território dos Países Baixos, mas sejam eventualmente vítimas do tráfico de seres humanos, entendendo‑se que a KMar, se necessário em concertação com o Ministério Público, propõe o benefício do prazo de reflexão perante o menor indício de tráfico de seres humanos.

O benefício do prazo de reflexão não é concedido às testemunhas denunciantes do tráfico de seres humanos.

O IND concede o prazo de reflexão aos cidadãos estrangeiros detidos exclusivamente com o acordo do Ministério Público e da Polícia ou da KMar.

Durante o prazo de reflexão, a pretensa vítima deve apresentar‑se uma vez por mês na unidade regional da Polícia ou da KMar à qual tenha ficado administrativamente adstrita.

O prazo de reflexão termina quando:

A Polícia ou a KMar verificar que, durante o prazo de reflexão, a pretensa vítima partiu “para destino desconhecido”;

A pretensa vítima comunicar, durante o prazo de reflexão, que renuncia a denunciar ou a cooperar de outro modo numa informação ou instrução de processo penal relativamente à pessoa suspeita de tráfico de seres humanos ou no julgamento dessa pessoa;

A pretensa vítima tiver feito uma denúncia por tráfico de seres humanos e assinar o respetivo auto de notícia, ou cooperado numa informação ou instrução de processo penal relativamente à pessoa suspeita de tráfico de seres humanos ou no julgamento dessa pessoa; ou

A pretensa vítima apresentar um pedido de autorização de residência (com um fundamento diferente do previsto no presente número).

Quando o prazo de reflexão termina, o IND levanta a suspensão da transferência do interessado.»

Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

23

Após ter apresentado três pedidos de asilo na Itália e um pedido de asilo adicional na Bélgica, o recorrente no processo principal, de nacionalidade nigeriana, pediu asilo nos Países Baixos em 26 de abril de 2019.

24

Em 3 de junho de 2019, o Reino dos Países Baixos apresentou à República Italiana um pedido de retomada a cargo do interessado, na aceção do artigo 18.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento Dublim III. A República Italiana aceitou essa retomada a cargo em 13 de junho seguinte.

25

Em 18 de julho de 2019, o Secretário de Estado informou o recorrente no processo principal da sua intenção de indeferir, sem análise, o seu pedido de asilo, uma vez que a República Italiana era o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido, em aplicação do Regulamento Dublim III.

26

Em 30 de julho de 2019, o recorrente no processo principal declarou ter sido vítima do tráfico de seres humanos em Itália e ter reconhecido um dos autores dessa infração num centro de acolhimento nos Países Baixos. Foi ouvido a esse respeito pela polícia de estrangeiros.

27

Por Decisão de 12 de agosto de 2019, o Secretário de Estado recusou analisar o pedido do recorrente no processo principal de concessão de uma autorização de residência temporária ao abrigo do direito de asilo, com o fundamento de que a República Italiana era o Estado‑Membro responsável por força do Regulamento Dublim III. Com essa decisão, o Secretário de Estado ordenou a transferência do recorrente no processo principal para Itália.

28

Em 3 de outubro de 2019, o recorrente no processo principal apresentou uma denúncia junto das autoridades neerlandesas alegando ter sido vítima de tráfico de seres humanos.

29

Segundo os elementos apresentados ao Tribunal de Justiça, o Ministério Público concluiu, após exame, que não existia nos Países Baixos nenhum indício que permitisse fundamentar a denúncia do recorrente no processo principal. Uma vez que a cooperação do recorrente no processo principal num inquérito penal nos Países Baixos não é necessária, a denúncia deste último foi arquivada.

30

O recorrente no processo principal interpôs recurso da Decisão de 12 de agosto de 2019 para o órgão jurisdicional de reenvio. Alega, nomeadamente, que essa decisão é ilegal na medida em que, em aplicação do artigo 6.o da Diretiva 2004/81, deveria ter‑lhe sido concedido um prazo de reflexão.

31

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, as questões que se colocam são as de saber se, em algum momento, a partir de 30 de julho de 2019, deveria ter sido concedido ao recorrente no processo principal o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81 e se, em caso afirmativo, o Secretário de Estado podia, quando esse prazo de reflexão não tinha sido concedido, tomar medidas para preparar o afastamento do recorrente no processo principal para fora do território neerlandês e, no prolongamento desta questão, se a Decisão de 12 de agosto de 2019 constitui uma medida de afastamento, na aceção do artigo 6.o, n.o 2, desta diretiva. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre quais as consequências a retirar da circunstância de que, com exceção dos elementos indicados na circular relativa aos cidadãos estrangeiros, o direito neerlandês não determina a duração nem o início desse prazo de reflexão e que, por conseguinte, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81 não foi transposto para este direito.

32

Nestas condições, o Rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância da Haia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

a)

Uma vez que os Países Baixos não determinaram na sua legislação nacional o início do prazo de reflexão garantido no artigo 6.o, n.o 1, da [Diretiva 2004/81], deve esta disposição ser interpretada no sentido de que o referido prazo de reflexão começa a correr automaticamente com a denúncia (comunicação) às autoridades neerlandesas, pelo nacional de um país terceiro, do tráfico de seres humanos?

b)

Uma vez que os Países Baixos não determinaram na sua legislação nacional a duração do prazo de reflexão garantido no artigo 6.o, n.o 1, da [Diretiva 2004/81] […], deve esta disposição ser interpretada no sentido de que o referido prazo de reflexão cessa automaticamente depois de ter sido efetuada a denúncia do tráfico de seres humanos ou se o nacional de um país terceiro afetado indicar que pretende desistir da referida denúncia?

2)

Devem as medidas de afastamento de um nacional de um país terceiro do território de um Estado‑Membro para o território de outro Estado‑Membro ser consideradas medidas de afastamento na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da [Diretiva 2004/81]?

3)

a)

Opõe‑se o artigo 6.o, n.o 2, da [Diretiva 2004/81] a que seja tomada uma decisão de transferência durante o prazo de reflexão garantido no n.o 1 do mesmo artigo?

b)

Opõe‑se o artigo 6.o, n.o 2, da [Diretiva 2004/81] a que, durante o prazo de reflexão garantido no n.o 1 do mesmo artigo, seja executada ou preparada a execução de uma decisão de transferência já tomada?»

Quanto ao pedido de decisão prejudicial

Quanto à admissibilidade

33

Os governos neerlandês e checo duvidam da pertinência das questões prejudiciais submetidas para a resolução do litígio no processo principal.

34

Segundo o Governo checo, a interpretação do artigo 6.o da Diretiva 2004/81 solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio é manifestamente desprovida de ligação com a situação do recorrente no processo principal. Com efeito, por um lado, este último limita‑se a alegar ter sido vítima de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos, ao passo que, segundo o artigo 3.o da Diretiva 2004/81, esta só se aplica aos nacionais de países terceiros «que sejam ou tenham sido» vítimas de tais infrações. Por outro lado, o Governo checo salienta que não resulta do pedido de decisão prejudicial que as autoridades competentes tenham procedido à análise da questão de saber se o recorrente no processo principal era abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/81, em aplicação do artigo 5.o, primeiro parágrafo, desta diretiva.

35

O Governo neerlandês sustenta, por sua vez, que o artigo 6.o da referida diretiva não é aplicável a um nacional de país terceiro, que, como é o caso do recorrente no processo principal, reside de maneira regular no território do Estado‑Membro em questão, na sua qualidade de requerente de proteção internacional.

36

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, EU:C:1995:463, n.os 59 e 61, e de 25 de novembro de 2021, État luxembourgeois (Informações sobre um grupo de contribuintes), C‑437/19, EU:C:2021:953, n.o 81].

37

A necessidade de chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige, por outro lado, que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inscrevem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as situações factuais em que essas questões se baseiam. Além disso, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que levaram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça [Acórdão de 10 de março de 2022, Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs (Cobertura extensa de seguro de doença), C‑247/20, EU:C:2022:177, n.o 75 e jurisprudência referida].

38

No caso em apreço, o pedido de decisão prejudicial tem essencialmente por objeto saber se, a partir do momento em que o recorrente no processo principal, um nacional nigeriano que apresentou um pedido de proteção internacional nos Países Baixos, depois de o ter feito em Itália e na Bélgica, declarou, junto das autoridades neerlandesas, ter sido vítima de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos tanto em Itália como nos Países Baixos, essas autoridades deviam ter‑lhe concedido o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81 antes que pudesse ser legalmente adotada a Decisão de 12 de agosto de 2019 de transferir o interessado para o território da República Italiana, em aplicação do Regulamento Dublim III, decisão a respeito da qual o órgão jurisdicional de reenvio pergunta igualmente se deve ser qualificada de «medida de afastamento», na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81.

39

Por conseguinte, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio foi chamado a decidir a questão de saber se, no litígio no processo principal, as autoridades neerlandesas violaram o artigo 6.o da Diretiva 2004/81, ao terem recusado ao recorrente no processo principal as garantias concedidas ao abrigo deste artigo, não se afigura de modo nenhum que a interpretação solicitada do direito da União seja manifestamente desprovida de relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

40

Nestas condições, a objeção dos Governos neerlandês e checo, baseada na inaplicabilidade do artigo 6.o da Diretiva 2004/81 ao litígio no processo principal, não diz respeito à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, mas enquadra‑se na apreciação do mérito das questões (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de março de 2020, Agro In 2001, C‑234/18, EU:C:2020:221, n.o 44, e de 28 de outubro de 2021, Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo, C‑319/19, EU:C:2021:883, n.o 25).

41

Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto ao mérito

42

No que respeita à ordem de exame das questões submetidas no pedido de decisão prejudicial, importa começar por responder à segunda questão, que tem por objeto a interpretação do conceito de «medida de afastamento», na aceção do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81, e a questão de saber se este conceito abrange uma decisão pela qual um Estado‑Membro transfere um nacional de país terceiro para outro Estado‑Membro em aplicação do Regulamento Dublim III. Em seguida, há que responder à terceira questão, na qual esse órgão jurisdicional se interroga sobre o alcance da proibição referida no artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81. Por último, importa analisar a primeira questão, na qual o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre as regras de contagem dos prazos aplicáveis ao prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva.

Quanto à segunda questão

– Observações preliminares

43

Antes de proceder ao exame da segunda questão, há que responder, em primeiro lugar, ao argumento invocado pelo Governo checo, mencionado no n.o 34 do presente acórdão, segundo o qual, em substância, o prazo de reflexão instituído no artigo 6.o da Diretiva 2004/81 não deve beneficiar um nacional de país terceiro que se limita a alegar ter sido vítima de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos.

44

A este respeito, importa salientar que, em conformidade com o artigo 1.o da Diretiva 2004/81, esta tem por objeto definir as condições de concessão de títulos de residência de duração limitada a nacionais de países terceiros que cooperem na luta contra o tráfico de seres humanos ou contra o auxílio à imigração clandestina.

45

Por força do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, os Estados‑Membros aplicarão esta última aos nacionais de países terceiros que sejam ou tenham sido vítimas de infrações penais ligadas ao tráfico de seres humanos, mesmo que tenham entrado ilegalmente no território dos Estados–Membros.

46

O artigo 5.o, primeiro parágrafo, da referida diretiva estabelece a obrigação de as autoridades nacionais competentes informarem qualquer nacional de país terceiro das garantias proporcionadas pela mesma diretiva quando considerarem que «pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação» desta. Entre essas garantias figura, nos termos do considerando 11 da Diretiva 2004/81, o direito de beneficiar do prazo de reflexão previsto no seu artigo 6.o, n.o 1.

47

O objeto deste prazo de reflexão é, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva, assegurar que os nacionais de países terceiros em questão possam recuperar e escapar à influência dos autores das infrações de que são ou foram vítimas, de modo a poderem tomar uma decisão informada sobre se cooperam ou não com as autoridades competentes a esse respeito.

48

Ao abrigo do artigo 6.o, n.o 2, da referida diretiva, durante o prazo de reflexão, e enquanto as autoridades competentes não se pronunciarem, os referidos nacionais de países terceiros têm acesso ao tratamento previsto no artigo 7.o, não podendo ser executada contra eles qualquer medida de afastamento.

49

Ao precisar que as medidas de que beneficiam esses nacionais de países terceiros, durante o período de reflexão, se aplicam «enquanto as autoridades competentes não se pronunciarem», o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 remete implicitamente para o artigo 8.o desta diretiva, nos termos do qual pode ser concedido um título de residência, sob determinadas condições, a esses nacionais no termo do prazo de reflexão ou mais cedo. Ora, decorre do artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva, especialmente da sua alínea c), que a concessão desse direito de residência não exige prova de que os referidos nacionais são ou foram vítimas de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos. Daqui resulta, a fortiori, que esses nacionais podem beneficiar do prazo de reflexão, consagrado no artigo 6.o da mesma diretiva, ainda que não tenha sido demonstrado que são ou foram vítimas de tais crimes. A este respeito, resulta da leitura conjugada dos artigos 5.o e 6.o da Diretiva 2004/81 que esse prazo de reflexão deve ser reconhecido a qualquer nacional de país terceiro a partir do momento que o Estado‑Membro em causa tenha motivos razoáveis para considerar que esse nacional pode ser ou ter sido vítima de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos, o que é necessariamente o caso quando esse nacional alega, perante uma das autoridades chamadas a conhecer da sua situação, de modo suficientemente plausível, que sofre ou sofreu esses tratamentos.

50

No caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, antes da adoção da Decisão de 12 de agosto de 2019 cuja legalidade deve ser fiscalizada pelo órgão jurisdicional de reenvio, o recorrente no processo principal alegou ter sido vítima do tráfico de seres humanos, declarou querer apresentar denúncia a esse título e indicou ter reconhecido um dos autores dessa infração num centro de acolhimento nos Países Baixos. Por conseguinte, afigura‑se que o recorrente no processo principal alegou, de modo suficientemente plausível, ter sido vítima do tráfico de seres humanos, o que caberá, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

51

Em segundo lugar, quanto ao argumento invocado pelo Governo neerlandês, segundo o qual o prazo de reflexão, previsto no artigo 6.o da Diretiva 2004/81, é, por natureza, inaplicável a um requerente de proteção internacional na medida em que este último reside legalmente no território de um Estado‑Membro e não é abrangido, deste modo, pelo âmbito de aplicação desta diretiva, há que observar que nenhuma disposição da referida diretiva distingue os nacionais de países terceiros em questão em função da sua residência, legal ou não, no território dos Estados‑Membros. Pelo contrário, esta diretiva, ao indicar, no seu artigo 3.o, n.o 1, que se aplica às vítimas de infrações ligadas ao tráfico de seres humanos, «mesmo que» sejam ou tenham entrado «ilegalmente no território dos Estados‑Membros», não exclui de modo nenhum que essas vítimas, que tenham entrado e residido legalmente no território de um Estado‑Membro, beneficiem das garantias concedidas pela referida diretiva.

52

Além disso, resulta do considerando 4 da Diretiva 2004/81 que os direitos que esta confere a determinados nacionais de países terceiros não prejudicam, nomeadamente, garantias que decorrem para estes da sua eventual qualidade de requerentes de proteção internacional. Daqui resulta que o legislador da União não excluiu de modo nenhum que a Diretiva 2004/81 possa reconhecer outros direitos além dos conferidos a esses nacionais de países terceiros em razão da sua qualidade de requerentes de proteção internacional, tendo em conta, nomeadamente, as necessidades específicas ligadas à sua situação de vulnerabilidade particular, como as necessidades em matéria de segurança e de proteção por parte das autoridades nacionais previstas no artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva.

– Quanto ao mérito

53

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 deve ser interpretado no sentido de que é abrangida pelo conceito de «medida de afastamento» a medida através da qual se procede à transferência de um nacional de país terceiro do território de um Estado‑Membro para o de outro Estado‑Membro, em aplicação do Regulamento Dublim III.

54

A este respeito, há que observar que a Diretiva 2004/81 não define o conceito de «medida de afastamento» e não contém nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance. Por conseguinte, há que proceder a uma interpretação autónoma e uniforme deste conceito, na aceção da Diretiva 2004/81 (v., neste sentido, Acórdão de 15 de abril de 2021, The North of England P & I Association, C‑786/19, EU:C:2021:276, n.o 49).

55

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 1 de agosto de 2022, Vyriausioji tarnybinės etikos komisija, C‑184/20, EU:C:2022:601, n.o 121 e jurisprudência referida).

56

A este respeito, importa salientar que, de um ponto de vista literal, o termo «afastamento», no seu sentido habitual, não permite determinar se o território que a pessoa a afastar deve abandonar é o do Estado‑Membro que adota a medida de afastamento em causa ou o território da União no seu conjunto. Contudo, resulta dos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2004/81, bem como do contexto em que se inscreve o seu artigo 6.o, n.o 1, que a medida, cuja execução é proibida por força deste artigo, é aquela pela qual é ordenado ao interessado que abandone o território do Estado‑Membro em questão.

57

Em primeiro lugar, no que diz respeito aos objetivos da Diretiva 2004/81, como resulta nomeadamente do artigo 1.o desta diretiva e dos seus considerandos 2, 4 e 11, a referida diretiva prossegue o duplo objetivo de concentrar os esforços na deteção e no desmantelamento das redes criminosas, protegendo simultaneamente os direitos das vítimas do tráfico de seres humanos, ao permitir a essas vítimas, durante um determinado período, em especial, refletir sobre a sua possibilidade de cooperar com as autoridades policiais, repressivas e jurisdicionais nacionais, no âmbito da luta contra tal infração.

58

Em conformidade com este duplo objetivo de proteção dos direitos da vítima do tráfico de seres humanos e de contribuir para a eficácia do processo penal, a Diretiva 2004/81 instituiu o prazo de reflexão previsto no seu artigo 6.o, n.o 1, que, como esta disposição prevê, visa garantir que os nacionais de países terceiros em causa possam recuperar e escapar à influência dos autores das infrações de que são ou foram vítimas, de modo a que esses nacionais possam decidir com conhecimento de causa cooperar ou não com as autoridades competentes.

59

É igualmente tendo em conta este duplo objetivo que, durante esse período de reflexão, o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 exige, por um lado, que o Estado‑Membro em cujo território se encontra o interessado satisfaça, nomeadamente, as necessidades essenciais deste último, concedendo‑lhe o tratamento previsto no artigo 7.o desta diretiva e, por outro, que renuncie à execução de qualquer medida de afastamento durante esse período, autorizando temporariamente o interessado a permanecer no território em causa, «enquanto as autoridades competentes não se pronunciarem». Como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 69 das suas conclusões, ambas as exigências estão interligadas, uma vez que as medidas de assistência e de apoio, referidas no artigo 7.o da Diretiva 2004/81, que devem ser asseguradas durante o período de reflexão, não podem ser plenamente cumpridas se o interessado tiver deixado o território do Estado‑Membro em questão.

60

Considerar que, durante o referido prazo de reflexão, a «medida de afastamento» referida no artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 e cuja execução é proibida, não abrange uma decisão de transferência para outro Estado‑Membro, tomada em aplicação do Regulamento Dublim III, poderia assim comprometer a realização do duplo objetivo prosseguido por esta diretiva.

61

Com efeito, por um lado, a execução dessa decisão de transferência durante o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81 levaria a afastar a vítima do tráfico de seres humanos dos serviços de apoio especializados junto dos quais pôde encontrar apoio e, assim, pôr termo ao tratamento que lhe tinha sido concedido nesse Estado‑Membro por força do artigo 7.o da Diretiva 2004/81, o que prejudicaria a recuperação dessa vítima e, deste modo, acentuaria a sua vulnerabilidade.

62

Por outro lado, executar essa decisão, na fase inicial em que se inscreve o período de reflexão concedido à vítima do tráfico de seres humanos, seria suscetível de prejudicar a cooperação dessa vítima no inquérito penal e/ou no processo jurisdicional. Com efeito, transferir a referida vítima para outro Estado‑Membro antes mesmo de ter podido, durante o prazo de reflexão de que beneficia, pronunciar‑se sobre a sua vontade de cooperar nesse inquérito e/ou nesse processo, privaria não só as autoridades competentes de um depoimento que poderia ser particularmente útil para perseguir os autores da infração em causa, mas levaria, paradoxalmente, a afastar o interessado do território do Estado‑Membro competente, mesmo quando deveria estar aí presente para ser associado, na medida do necessário, ao referido inquérito e/ou ao referido processo.

63

Em segundo lugar, no que se refere ao contexto em que se inscreve o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81, importa recordar que, em conformidade com o seu artigo 5.o, incumbe às autoridades competentes do Estado‑Membro em causa uma obrigação de informação prévia sobre as «possibilidades conferidas [por esta diretiva]» à vítima do tráfico de seres humanos. Entre essas possibilidades figuram não só a de beneficiar desse prazo de reflexão, mas também as de receber as medidas de assistência e de ajuda previstas no artigo 7.o da Diretiva 2004/81 e, sob certas condições, de obter um título de residência temporária, em conformidade com o artigo 8.o desta diretiva, o qual, nos termos do seu considerando 9, deve constituir para a vítima um «incentivo suficiente» para cooperar com as autoridades competentes.

64

Ora, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 67 das suas conclusões, esta obrigação de informação ficaria privada de efeito útil se o Estado‑Membro em questão fosse autorizado, durante o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81, a transferir o interessado para outro Estado‑Membro quando o Estado‑Membro em questão se comprometeu a conceder‑lhe, durante esse prazo, o benefício das medidas acima mencionadas, bem como a emissão de um título de residência temporária no seu território, o mais tardar, no termo desse prazo, caso as condições previstas no artigo 8.o desta diretiva estejam preenchidas.

65

A interpretação que precede não é suscetível de ser posta em causa pelo exame das Diretivas 2001/40 e 2004/38, referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, bastar constatar que essas diretivas, que não fornecem elas próprias nenhuma definição do conceito de «medida de afastamento», não permitem retirar ensinamentos inequívocos relativos ao alcance geográfico deste conceito, na aceção da Diretiva 2004/81. O argumento invocado pelo Governo alemão, que se baseia nomeadamente na Diretiva 2001/40 e segundo o qual o conceito de «medida de afastamento» é tipicamente utilizado nas relações com os Estados terceiros, é, de um ponto de vista estritamente literal, posto em causa pela utilização deste conceito, em especial no artigo 28.o da Diretiva 2004/38, que visa apenas e indubitavelmente o afastamento do território de um Estado‑Membro e não do território da União no seu todo. Além disso, a Diretiva 2004/81 também não faz referência às disposições do Regulamento n.o 343/2003, que estava em vigor à data da adoção desta diretiva e que, a contar de 18 de julho de 2013, foi revogado e substituído pelo Regulamento Dublim III, o qual, de resto, também não menciona esta última diretiva.

66

Atendendo ao conjunto das considerações precedentes, há que responder à segunda questão, que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 deve ser interpretado no sentido de que é abrangida pelo conceito de «medida de afastamento» a medida através da qual se procede à transferência de um nacional de país terceiro do território de um Estado‑Membro para o de outro Estado‑Membro, em aplicação do Regulamento Dublim III.

Quanto à terceira questão

67

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma decisão de transferência, tomada em aplicação do Regulamento Dublim III, de um nacional de país terceiro, independentemente seja adotada ou executada, ou que sejam iniciadas medidas preparatórias da sua execução durante o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva.

68

Nos termos do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81, «não podendo ser executada […] qualquer medida de afastamento» durante este prazo de reflexão contra os nacionais dos países terceiros em questão.

69

Desta forma, atendendo à sua redação, o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 não proíbe a adoção de uma medida de afastamento nem de qualquer outra medida preparatória para a sua execução.

70

Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, esta disposição opõe‑se, por isso, unicamente a que, durante o prazo de reflexão concedido em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva, seja executada uma decisão de transferência, adotada em aplicação do Regulamento Dublim III, contra os nacionais de países terceiros abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva.

71

Dito isto, como indicou o advogado‑geral, em substância, no n.o 88 das suas conclusões, importa que, quando da adoção de medidas preparatórias de execução da decisão de transferência durante o prazo de reflexão previsto no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81, as autoridades nacionais competentes não comprometam a realização do duplo objetivo, recordado no n.o 58 do presente acórdão, que esta disposição prossegue. Por conseguinte, embora a adoção de medidas preparatórias da execução dessa decisão, durante esse prazo de reflexão, não seja proibida, não pode, todavia, privar de efeito útil esse prazo, o que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar no processo principal. Tal poderia ser o caso, em especial, se as medidas preparatórias de execução dessa decisão consistissem na detenção da vítima do tráfico de seres humanos, para efeitos da sua transferência, uma vez que essas medidas preparatórias não lhe permitem, atendendo à sua vulnerabilidade, recuperar nem decidir, com conhecimento de causa, cooperar com as autoridades competentes do Estado‑Membro em cujo território está presente.

72

Importa acrescentar que tal interpretação do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 não é suscetível de comprometer o cumprimento dos prazos claramente definidos e relativamente curtos em que está enquadrado o procedimento administrativo de transferência de responsabilidade da análise do pedido de proteção internacional no Estado‑Membro requerido, ao abrigo das disposições do Regulamento Dublim III.

73

Assim, resulta, antes de mais, do n.o 69 do presente acórdão que a concessão de um prazo de reflexão a um requerente de proteção internacional não impede o Estado‑Membro em cujo território se encontra de apresentar, durante esse prazo de reflexão, o seu pedido de tomada a cargo desse requerente por outro Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 21.o, n.o 1, desse regulamento e, em caso de aceitação por parte deste último, de adotar, durante o referido prazo de reflexão, uma decisão de transferência para o Estado‑Membro assim requerido.

74

Em seguida, é verdade que, em conformidade com o artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, o Estado‑Membro requerente dispõe, para proceder à transferência do requerente, de um prazo de seis meses, a contar da aceitação do pedido para efeitos da tomada a cargo ou da adoção da decisão definitiva sobre o recurso da decisão de transferência ou a revisão de facto e de direito, dessa decisão, quando o efeito suspensivo é concedido ao abrigo do artigo 27.o, n.o 3, do mesmo regulamento, sem o qual o Estado‑Membro requerido fica dispensado da sua obrigação de tomar a cargo a pessoa em questão e a responsabilidade é então transmitida para o Estado‑Membro requerente (v., neste sentido, Acórdão de 26 de julho de 2017, A.S., C‑490/16, EU:C:2017:585, n.os 46, 57 e 58).

75

Todavia, no que se refere à Diretiva 2004/81, importa recordar que, como prevê o seu artigo 6.o, n.o 1, segundo parágrafo, o ponto de partida e a duração do prazo de reflexão, previsto nesta disposição, são fixados em conformidade com o direito nacional.

76

Por conseguinte, cabe aos Estados‑Membros assegurar um ponto de equilíbrio entre a duração do prazo de reflexão que concedem às vítimas do tráfico de seres humanos nos respetivos territórios e o cumprimento do prazo previsto no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento Dublim III, a fim de garantir a articulação correta e a preservação do efeito útil destes instrumentos.

77

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma decisão de transferência, adotada em aplicação do Regulamento Dublim III, de um nacional de país terceiro seja executada durante o prazo de reflexão garantido neste artigo 6.o, n.o 1, mas não se opõe à adoção dessa decisão nem de medidas preparatórias da execução desta última, desde que essas medidas preparatórias não privem de efeito útil esse prazo de reflexão, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto à primeira questão

78

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, na falta de uma medida de transposição para o direito nacional, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/81 deve ser interpretado no sentido de que, por um lado, o prazo de reflexão previsto nesta disposição tem automaticamente início a partir do momento em que o nacional de país terceiro em causa informa as autoridades nacionais competentes de que é ou foi vítima do tráfico de seres humanos e, por outro, que cessa automaticamente depois de esse nacional ter apresentado uma denúncia por ter sido vítima do tráfico de seres humanos ou, pelo contrário, ter informado essas autoridades nacionais de que a isso renuncia.

79

No caso em apreço, como resulta da exposição dos factos na origem do litígio no processo principal, conforme foi resumida nos n.os 23 a 30 do presente acórdão, as autoridades nacionais competentes não informaram, em nenhum momento antes da adoção da Decisão de transferência de 12 de agosto de 2019, o recorrente no processo principal, que tinha previamente alegado ter sido vítima do tráfico de seres humanos, declarado querer apresentar denúncia a esse título e indicado ter reconhecido um dos autores dessa infração num centro de acolhimento nos Países Baixos, das possibilidades conferidas na Diretiva 2004/81, incluindo a possibilidade de beneficiar do prazo de reflexão estabelecido no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva, nem concederam tal prazo ao recorrente no processo principal.

80

Dito isto, há que salientar que, como resulta das indicações apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o litígio no processo principal tem por objeto a legalidade da Decisão de 12 de agosto de 2019 de transferir o recorrente no processo principal para Itália em aplicação do Regulamento Dublim III. Ora, como é exposto no n.o 77 do presente acórdão, a Diretiva 2004/81 não se opõe à adoção de uma decisão de transferência durante o prazo de reflexão previsto no seu artigo 6.o, n.o 1. Daqui resulta que, mesmo partindo do pressuposto de que esse prazo de reflexão devia ter sido reconhecido ao recorrente no processo principal, a irregularidade cometida pelas autoridades neerlandesas ao não terem concedido, no caso em apreço, tal prazo de reflexão, não pode afetar a legalidade da decisão de transferência, impugnada junto do órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que o artigo 6.o da Diretiva 2004/81 se opõe unicamente a que essa decisão seja executada quando não seja reconhecido ao nacional de país terceiro o prazo de reflexão a que tinha direito ao abrigo deste artigo 6.o

81

Decorre igualmente do número anterior que, para efeitos da fiscalização da legalidade da Decisão de 12 de agosto de 2019, uma resposta à questão de saber a partir de que momento e até que data devia ter sido concedido ao recorrente no processo principal um prazo de reflexão equivaleria a que o Tribunal de Justiça formulasse uma opinião consultiva sobre uma questão puramente hipotética.

82

Ora, resulta de jurisprudência constante que não cabe ao Tribunal de Justiça formular opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas (Acórdãos de 16 de julho de 1992, Meilicke, C‑83/91, EU:C:1992:332, n.o 25, e de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 33).

83

Por conseguinte, há que declarar que não cabe ao Tribunal de Justiça responder à primeira questão.

Quanto às despesas

84

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objeto de uma ação de auxílio à imigração ilegal, e que cooperem com as autoridades competentes,

deve ser interpretado no sentido de que:

é abrangida pelo conceito de «medida de afastamento» a medida através da qual se procede à transferência de um nacional de país terceiro do território de um Estado‑Membro para o de outro Estado‑Membro, em aplicação do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.

 

2)

O artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2004/81

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a que uma decisão de transferência, adotada em aplicação do Regulamento n.o 604/2013, de um nacional de país terceiro seja executada durante o prazo de reflexão garantido neste artigo 6.o, n.o 1, mas não se opõe à adoção dessa decisão nem de medidas preparatórias da execução desta última, desde que essas medidas preparatórias não privem de efeito útil esse prazo de reflexão, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.